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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano 6, número 2, 2015 ISSN: 1984-7157 FOTO DE CAPA DESTA EDIÇÃO: Título: Bubble love Resolução original: 576 x 665 Licença: Attribution Licence Fotógrafo: Steve Jurvetson Disponível em: http://www.everystockphoto.com/photo.php?imageId=18584&searchId=baa62349a24a7796116785784f54b149&npos=17
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Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Paulo Ghiraldelli Jr. – UFRRJ e Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) Susana de Castro – UFRJ Adriano Naves de Brito – Unisinos Gabriel Palumbo (Universidade de Buenos Aires – UBA) Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo Luiz Eduardo Soares – UERJ Jurandir Freire Costa – UERJ Cerasel Cuteanu – CEFA James Campbell – Universidade de Toledo Leoni Maria Padilha Henning – Universidade Estadual de Londrina Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” Inês Lacerda Araújo – PUC-PR Heraldo Silva – UFPI Maria José Pereira – UCG Vera Vidal – Fiocruz Ronie Silveira – UNILAB Reuber Scofano – UFRJ Cristiane Maria Marinho – UECE Narbal de Marsillac – UFPB Baptiste Grasset – UNIRIO Ricardo Corrêa de Araújo – UFES Marcelo Barreira – UFES Edna Maria Magalhães do Nascimento – UFPI Aldir Filho – UFMA Juliano Pessanha – CEFA e USP Andrei Venturini – CEFA Marcos C. Lopes (Unilab) Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Filosofia ISSN 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr e Maria José Pereira Editores Executivos: Vitor Lima, Paulo Francisco M. Ghiraldelli, Frederico Graniço e Francielle Maria Chies
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e Filosofia Americana Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano 6, número 2, 2015
Sumário Editorial ------------------------------------------------------------------------------------------- 4
Artigos Kant e John Rawls contra o utilitarismo implicado na ontologia social marxista -- 6 (Luiz Eduardo Soares) Ao infinito e Além ------------------------------------------------------------------------------ 16 (Ronie Alexsandro Teles da Silveira) Modelo para a construção de um projeto de pesquisa ---------------------------------- 29 (Andrei Venturini) Estamos perdidos na sociedade contemporânea? ---------------------------------------- 36 (Paulo Ghiraldelli Junior)
Traduções Comparação dos Cristãos dos primeiros tempos com aqueles de hoje (Blaise Pascal) ------------------------------------------------------------------------------------------------------ 46 (Andrei Venturini)
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Editorial (Revista Redescrições, ano VI, n. 2) É com imensa satisfação que publicamos a segunda Redescrições do ano de 2015. Neste exemplar o leitor poderá constatar, salvo a tradução, três temas nucleares: ciência, sociedade e política A ciência é uma grande aventura da humanidade sobre a Terra, transformando a sociedade e gerando inúmeras controvérsias na epopéia do pensamento ocidental. Heidegger, sabiamente, em seu ensaio O que é isto – a filosofia?, ressalta que a certidão da bomba atômica está na aurora da filosofia grega. O amálgama entre ciência e sociedade sempre gerou certa tensão, de maneira especial, com o advento da segunda guerra mundial, na qual as descobertas da ciência tiveram seu uso efetivo em cruéis campos de concentração, tendo como seu ponto alto uma ação eticamente baixa: a bomba atômica. Por este motivo, a política torna-se um empreendimento fundamental para organizar o espaço de convivialidade do homem moderno. Longe de refazer a história dos fatos históricos que perpassam estes três temas, oferecemos ao leitor quatro artigos apresentam uma reflexão ímpar a partir do olhar desconfiado do filósofo. No primeiro artigo, Kant e John Rawls contra o utilitarismo implicado na ontologia social marxista, Luiz Eduardo Soares, a partir de Kant e John Rawls, este um dos mais reconhecidos pensadores da filosofia política contemporânea, busca entender a dimensão social da chamada ontologia social marxista, mostrando que as relações de poder são historicamente constituídas e desenvolvidas “no interior do processo de apropriação da natureza pelo trabalho, de geração do valor e de circulação do valor”. Em seguida, Ronie Alexsandro Teles da Silveira nos apresenta o artigo Ao infinito e Além. Com um texto fluido e envolvente, o autor aproxima a aventura da nave Voyager 1 e o espírito de aventura em direção ao desconhecido, tão característico do ato de filosofar. No entanto, nem sempre o homem colheu os benefícios deste espírito, já que o totalitarismo, que marca o século XX, oblitera tanto o espírito de aventura quanto à própria filosofia. O autor convidará o leitor a repensar um possível “despertar do espírito de aventura da filosofia” a partir de um desvio dos horrores políticos do século anterior. Nosso itinerário de artigos ainda destaca mais um texto de Andrei Venturini Martins, denominado Modelo para a construção de um projeto de pesquisa. O espírito de aventura daqueles que amam a atividade investigativa não é exercido sem nenhum método. Por este motivo, o autor pretende esclarecer os aspectos necessários Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VI, nº 2, 2015
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para desenvolvimento de uma pesquisa científica, mas sem cair na “metodologização” que retiraria toda criatividade do pesquisador. O texto é um guia sugestivo para aqueles que desejam produzir um projeto de pesquisa acadêmica (monografias, dissertações teses), elencando e refletindo cada passo necessário à formulação de um plano investigativo, a saber: o título, a motivação pessoal, o tema, o estado da questão, o objeto, o problema, o objetivo, a hipótese, a justificativa, a metodologia, o cronograma e o levantamento bibliográfico. O último artigo, escrito por Paulo Ghiraldelli Junior, recebe o título em forma de uma instigante questão: Estamos perdidos na sociedade contemporânea? Provocativo, mas lúcido, o autor enfatiza que o contemporâneo perdeu a proeminente dicotomia entre o real e a ilusão, tão bem acentuada pelos antigos e modernos. As grandes narrativas filosóficas, como o marxismo, perdem sua força, potencializando o perspectivismo nietzscheano, o qual, como ressalta o autor, “nos pegou”. Será a partir do perspectivismo, tão bem incorporado pela teoria social da Escola de Frankfurt, que Debord, por exemplo, qualifica o contemporâneo como a “sociedade do espetáculo”. O homem torna-se um espectador subjugado à mercadoria, a qual transforma-se em fundamento das relações. Os objetos, majoritariamente, tornam-se atores no palco, centro de todas as atenções, e os homens, ávidos consumidores, passivos aos solavancos da fetichização agressiva do mercado: “você é agora o produto morto, o pedaço de carne que deverá se acomodar à calça, enquanto que se impõe sobre você o pedaço de pano falante, vivo, atuante, ou seja, o sujeito”. Por fim, apresentamos a tradução, inédita em língua portuguesa e realizada por Andrei Venturini Martins, do opúsculo Comparação dos Cristãos dos primeiros tempos com aqueles de hoje de Blaise Pascal, publicado em 1779, mas escrito entre 1655 e 1657. Como bem ressalta o tradutor, apesar do texto ser uma crítica ao laxismo do cristão em pleno século XVII, o leitor poderá perceber que pouca coisa mudou entre os cristãos do contemporâneo Lembramos ainda que o email de cada autor consta nos seus respectivos artigos, de modo que o leitor poderá iniciar um proveitoso diálogo com nossos autores. Boa leitura! Os Editores.
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KANT E JOHN RAWLS CONTRA O UTILITARISMO IMPLICADO NA ONTOLOGIA SOCIAL MARXISTA1 Luiz Eduardo Soares
RESUMO: No primeiro artigo, ‘Kant e John Rawls contra o utilitarismo implicado na ontologia social marxista’, Luiz Eduardo Soares, a partir de Kant e John Rawls, este um dos mais reconhecidos pensadores da filosofia política contemporânea, busca entender a dimensão social da chamada ontologia social marxista, mostrando que as relações de poder são historicamente constituídas e desenvolvidas “no interior do processo de apropriação da natureza pelo trabalho, de geração do valor e de circulação do valor”.2 Palavras-chave: Utilitarismo; Ontologia Social; Marxismo
ABSTRACT: In the first article, Kant and John Rawls against utilitarianism involved in Marxist social ontology, Luiz Eduardo Soares, from Kant and John Rawls, this one of the most renowned thinkers of contemporary political philosophy, seeks to understand the social dimension of the call ontology Marxist social, showing that power relations are historically constituted and developed " within the process of appropriation of nature at work, generation of value and outstanding value ."3 Keywords: Utilitarianism; Social Ontology; Marxism
Marx não foi o primeiro, mas, escrevendo um século depois, colaborou com a consolidação do movimento pelo “Esclarecimento” (também conhecido como “Iluminismo”), que nascera no século XVIII –ainda que tivesse raízes no Renascimento e na própria tradição grega clássica--, antecipando e propulsionando a revolução burguesa. Impossível imaginar a possibilidade da emergência do discurso de Marx sem a via aberta, entre outros, por Kant e Rousseau. E sem a historicização do idealismo kantiano, a cargo de Hegel. Kant decretou a maioridade do ser humano e sua autonomia, libertando-o, em 1
Este texto, até aqui inédito, é o capítulo XV de meu próximo livro, O Brasil e seu Duplo, que será publicado em 2016. 2 RESUMO escrito pelos editores. 3 ABSTRACT written by the editors.
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sua filosofia, da crença fundada em dogmas, opiniões, mitos, tradições ou experiências místicas. Ou seja, libertando-o de toda crença radicada na autoridade (da tradição, do poder institucionalizado ou da Igreja), de toda crença fundada em ideias carentes de rigor lógico ou no arbítrio subjetivista. Para Kant, a razão constituía o fundamento dessa autonomia. Sendo racional, o ser humano prescindiria da tutela de religiões e de suas instituições. Pensaria com a própria cabeça, para dizê-lo em linguagem simples, e só acreditaria no que a razão autorizasse. E mais: só obedeceria a norma que a razão estipulasse ou que estivesse de acordo com a razão. Sendo racionais, isto é, capazes de razão, os seres humanos, se fossem fiéis à razão, alcançariam verdades e valores comuns e universais, posto que a razão era uma só e dois enunciados verdadeiros não poderiam ser contraditórios entre si –em outras palavras: se todos fossem racionais, produzir-se-ia um consenso universal e, quiçá, a paz perpétua. Por outro lado, a obediência às normas coincidiria com o exercício da liberdade e com a afirmação plena da autonomia individual, uma vez que ser livre e ser racional – ou seja, agir e pensar em conformidade com a razão—se superporiam. Ser livre, para Kant, significava agir e pensar em conformidade com a razão. Ser racional era exercitar a liberdade (o não condicionamento) até as últimas consequências (cf. Kant, 1980). Estaria, assim, resolvido o antigo impasse, traduzido nas seguintes interrogações: exercer em plenitude a liberdade individual não poria em risco a vida coletiva, a vigência de normas ou leis válidas para todos? Como poderia uma lei representar a vontade coletiva e respeitar a liberdade individual? Como poderia uma norma restringir desejos e interesses individuais, e, ao mesmo tempo, expressar o interesse coletivo, quer dizer, ser escolhida por todos e ser por todos respeitada, mesmo sem coerção? Como a legitimidade de uma lei ou de um conjunto de leis poderia ser conciliada com autonomia individual, com a plenitude da liberdade e, ao mesmo tempo, com sua representatividade universal, com a necessidade de ordem e, portanto, com restrições a desejos individuais? A razão era a âncora que garantia a comutabilidade do individual no universal, da liberdade plena na vontade geral, da autonomia na obediência, da legalidade na legitimidade. A razão era a moeda, a medida que sustentava a conversibilidade universal. Substituindo Deus pela Razão, com R maiúsculo, Kant ofereceu a alforria ao ser
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humano, mas estava longe de ter resolvido os problemas. Gênio incomparável como foi, o frugal e disciplinadíssimo Immanuel, de Konigsberg (cujos passeios diários serviam de relógio para os vizinhos), deu-se conta dos limites de sua engenhosa solução. Afinal, dois seres humanos, mesmo empenhados em exercer a razão e dotados dos mesmos recursos intelectuais, não estão fadados a concordar. Por isso, sacou seu punhal filosófico e cortou o campo no qual transitiva sua reflexão em duas esferas: a idealidade pura e a realidade dos fenômenos. Na primeira, o uso empírico das faculdades cognitivas dos sujeitos humanos era substituído pela razão pura, em cujo âmbito vigorava a identidade a si dos conceitos que produziam conhecimento, reconheciam a moralidade e identificavam a beleza. Nessa esfera transcendental (isto é, esfera que deve ser pressuposta para que se sustente a teoria –nada a ver com transcendente), o sonho de Platão --poder-se-ia sugerir, não sem alguma ironia—atualizava-se: o verdadeiro, o justo e o belo confluíam e formavam uma unidade metafísica4. Não porque a divindade proporcionasse o fundamento essencial comum, mas porque a razão de outro modo não poderia pensar-se a si mesma e prover os meios para a explicação da lógica, da matemática, das ciências, e de seu isomorfismo com a natureza, espelhada na mente humana (nessa mente espelho, caução da representação do mundo). Por outro lado, o uso empírico das faculdades cognitivas dos sujeitos humanos inscrevia-se na segunda esfera, espaço em que as contradições e divergências inelimináveis transcorriam. Em outras palavras, as razões dos discursos reais não se confundem com a Razão, mas a supõem como condição de sua própria possibilidade. Por isso, orientam-se para a busca do consenso universal (porque o pressuposto funciona como telos/fim), mesmo sem a ilusão de alcançá-lo. A unidade e a universalidade do conhecimento seriam manifestações de sua adesão à verdade, isto é, de sua qualidade de verdadeiro. Não é preciso dizer que Kant supunha possível e necessária a definição racional de normas morais e leis, assim como confiava no papel cognitivo da razão –aliás, sua motivação original era explicar a possibilidade da ciência, isto é, do conhecimento, o que implicava desvendar os motivos pelos quais a mente humana mostrava-se apta a penetrar nas leis que governam a natureza. Ou seja, a filosofia idealista de Kant, como é classificada, de fato, tinha pretensões de tipo materialistas. E se o viés idealista ou neoplatônico acabou por se impor, foi para tornar o materialismo inteligível – 4
A ironia não faz justiça a Kant ou ele não teria escrito a terceira crítica como o fez.
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paradoxalmente. Observe-se que o idealismo decorria da centralidade conferida por sua filosofia à ideia do que denominava “transcendental”, entendido como um campo de recuo, como um espaço lógico, produzido por deduções disparadas pela pergunta: “quais as condições de possibilidade para X, qualquer que fosse X em cada caso?” Para fazer com que as ideias de Kant fiquem mais claras e acessíveis, menciono o argumento de John Rawls, talvez o principal filósofo político contemporâneo, que poderia ser denominado “o experimento mental do véu da ignorância”. O experimento retoma o pensamento kantiano, que subjaz ao contratualismo moderno (o qual deriva também de Thomas Hobbes, John Locke e dos demais pais fundadores do liberalismo). Ficará muito claro como é que o particular/individual se encontra com o universal/coletivo. O papel que, em Kant, é cumprido pela Razão, aqui é desempenhado pela ignorância sobre si. Essa ignorância faz com que a razão com minúscula, aquela exercitada por um sujeito empírico qualquer, corresponda a qualquer outra e produza os mesmos resultados, operando como se fosse a razão com maiúscula, de um sujeito sem corpo, pura expressão do universal. O véu da ignorância deve muitíssimo também a Rousseau, de quem apreende a ideia de que o indivíduo, enquanto membro da sociedade política, deve participar, nesse caso, votar, deslocando-se da posição individualista, que só lhe permite vislumbrar seu próprio interesse particular, para um lugar do qual contemple o interesse geral, a fim de por ele orientar suas decisões, na assembléia de cidadãos. As opiniões variarão porque os indivíduos erram, possuem informações parciais e divergem, mesmo buscando manter-se fiéis à racionalidade. Por isso o voto seria necessário. Mas a diversidade de posições não estaria expressando interesses em conflito, defendidos por quem deles se beneficia. Votar, nas decisões coletivas, a partir de interesses particulares corresponderia a trair o compromisso com o interesse geral e o bem público, nos foruns da democracia direta que o pensador genebrino postulava. Eis o experimento de John Rawls: imagine que você esqueceu quem é e não sabe onde está, mas sabe o que é e como funciona uma sociedade de massas, sabe também que vive numa delas e que a ela retornará logo depois de decidir como ela deverá ser organizada, por quais princípios. A sociedade para a qual você retornará será ordenada pelos princípios que você propuser. E você voltará a ocupar seu corpo. Insisto: você não sabe se é criança ou velho, homem ou mulher, homossexual ou heterossexual, branco ou negro, se professa ou não alguma religião, se faz arte, filosofia, ciência ou trabalho manual, se tem ou não filhos, se tem deficiências físicas ou não, se tem ideologia
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política ou não. O que lhe é dado, nesse momento hipotético e imaginário de suspensão, é a inteligência, isto é, a capacidade de raciocinar e as informações sobre o que é a vida social. Muito bem, que tipo de ordem social seria escolhido? Que princípios estruturantes seriam os preferidos? A primeira resposta de Rawls é kantiana e rousseauista: a escolha seria a mesma que qualquer outra pessoa faria se fosse submetida ao mesmo desafio. Isso porque restaria a cada um, sob o véu da ignorância, apenas o que nos iguala (a capacidade de raciocinar diante das mesmas informações sobre o funcionamento de sociedades de massas), não o que nos separa (corpo, história, relações, singularidades, mundo privado, idiossincrasias, percepções individuais, valores pessoais, interesses particulares). Por meio deste experimento mental, Rawls simulou, tanto quanto é possível fazê-lo, uma situação em que a razão empírica se aproxima da Razão pura, o indivíduo, da coletividade, o particular, do universal, o interesse pessoal ou privado, do interesse geral ou da moralidade. Em sua obra prima, “Uma Teoria da Justiça” (1973), John Rawls conclui que o tipo de sociedade escolhido seria aquele organizado a partir de dois princípios axiais, absolutamente prioritários e indisputáveis: a igualdade e a liberdade. Em havendo choque entre ambos, como, inexoravelmente, seria o caso, optar-se-ia pela hipótese de que o segundo eixo prevalecesse, mas apenas até o ponto em que fosse preservada sua qualidade fundamental, prejudicando, assim, o mínimo possível a implementação do primeiro princípio (a igualdade). O resultado é uma sociedade industrial, com economia de mercado regulada, um Estado provedor forte, democracia ampla e inclusiva, direitos humanos respeitados, crianças merecendo tratamento igualitário, desigualdades reduzidas a níveis compatíveis com o enunciado anterior. Estamos falando de um modelo social-democrático. Claro que Rawls foi repelido pelos liberais, como se fora um apóstata socialista, e pelos marxistas, como se fora um apóstata liberal. Convém precisar um ponto, relativo a Kant e Deus. O autor da trilogia sagrada da filosofia (as três Críticas: da Razão Pura, da Razão Prática e do Juízo) não era ateu. Escreveu um livro teológico-filosófico, defendendo a religião, desde que limitada pelo círculo da racionalidade. Hegel pôs o relógio precioso do kantismo (que era um cristal imune ao tempo, uma jóia estática do pensamento, um monumento da inteligência) em marcha, mergulhando-o na história. Arché e Telos, origem e fim remetem, em sua filosofia pós-
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kantiana da história, como na epopéia mítica, à unidade do espírito humano, inicialmente perdida, mas, afinal, restaurada e redimida pela graça divina. A dialética corresponderia à cosmogonia cristã. A unidade teleológica (prospectiva ou final) da razão universal equivaleria à síntese, ou seja, realizaria a suprassunção do múltiplo e contraditório dos sentidos e da coletividade humana na unidade da racionalidade histórica --ou do Espírito. Marx estendeu e intensificou o esforço hegeliano, laicizou-o, isto é, rebateu-o sobre uma épura materialista, e cortou o cordão umbilical do kantismo com a dualidade que opunha a idealidade (neo-platônica) ao fenomênico. Estava aí restaurado, finalmente, pensou Marx, o império exclusivo da materialidade. O ponto de inflexão foi o deslocamento do conceito que garantia a conversibilidade, a comutabilidade (do individual ao universal, da liberdade à ordem coletiva). Sai de cena a Razão; ingressa no palco e ocupa o proscênio outro personagem do repertório dos grandes conceitos filosóficos: a ontologia do ser social. Exponho o argumento passo a passo, com a prudência necessária. O laço que une o indivíduo ao universal, em Marx, não é mais o espírito humano --identificado em Kant com a Razão--, do qual cada ser humano empírico e singular fruiria parcialmente, imperfeitamente. O laço que une o indivíduo ao universal passa a ser a inscrição na ordem social, o que torna esse vínculo condicional, assim como são sempre condicionais as realidades históricas, por definição, e não há realidade que não seja histórica, ou seja, que se dê sem condições, ou ainda, que se deixe surpreender ou conhecer sub specie aeternitatis (do ponto de vista da eternidade, isto é, ahistórico, transcendental ou puro). Para que o laço referido tenha vigência, isto é, para que o ser humano individual --um ator social qualquer-- se conecte ao universal (humano), àquilo que diz respeito a todos e reflete a essência desse ser, é preciso que a inserção empírica, objetiva, histórica desse indivíduo seja tal que faça coincidir seu interesse particular (aquilo que o move como ser individual, historicamente condicionado) com o interesse geral de toda a sociedade, ou seja com o bem público ou com a vontade geral (para citar Rousseau). Marx pensava naquele interesse que expressaria a potencialidade autônoma e livre, potencialidade inscrita no ser humano como sua essência –a tal ponto que, se não a realiza, este ser aliena-se, trai a essência do que é, nega, portanto, o que é, repele sua própria existência enquanto humano/social. Traduzo a linguagem abstrata sobre o ser (a ontologia) em sociologia histórica:
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Marx procura demonstrar que, nas sociedades industriais que estudou, o lugar estrutural ocupado pela classe operária situava esse grupo humano numa posição privilegiada, das perspectivas ontológica e histórica, uma vez que seus interesses particulares coincidiam com o interesse geral, desde que se compreendesse a essência do ser humano do modo como o Esclarecimento a concebeu, inspirando-se nas fontes culturais judaico-cristãs: a realização individual da autonomia ou da emencipação --autonomia que enfeixa razão e liberdade. Libertando-se, a classe operária construiria um mundo social, econômico, cultural e político alternativo, abolindo a propriedade privada dos meios de produção e a exploração da força de trabalho, socializando a produção e seus frutos, em um ambiente igualitário e livre, aberto ao exercício da razão, refratário a opressões e manipulações ideológicas. Dizendo de outra forma: a libertação da classe operária só se poderia cumprir com a promoção de uma nova ordem includente e universalista, que atenderia aos interesses superiores e comuns de toda a humanidade. Uma nova ordem propícia à emancipação humana e ao fim da alienação, ao encontro do ser humano consigo mesmo, à realização da essência mesma do ser humano. A esse estágio de evolução da história humana, teleologicamente orientada para a emancipação (para a realização do ser social), corresponderia a realização da sociabilidade harmônica e solidária, cooperativa, uma vez que o ser ao qual nos referimos é social –não há o humano insulado; mesmo a singularidade individual não prescinde da relação social; para o sujeito, a relação humana é constitutiva. Por isso, fala-se em ontologia do ser social. Marx agregou à reflexão kantiana a dimensão social, mostrando que liberdade não se esgotava na razão: definia-se também nas relações objetivas de poder, historicamente constituídas, articuladas no interior do processo de apropriação da natureza pelo trabalho, de geração do valor e de circulação do valor. Estruturalmente dependente e explorada, a classe operária trazia consigo o interesse de libertar-se da opressão econômico-política. Esse interesse era intrínseco à sua posição, sendo uma classe composta por atores sociais concretos, movidos por paixões e interesses, medos e razão, mas também dominados por ideologias mascaradoras de contradições e inibidoras do emprego livre da razão, sem o qual falta a consciência da experiência real e dos interesses em jogo. Outros agentes sociais poderiam somar-se à classe operária como seus aliados, mesmo não vivenciando o interesse de classe, em conexão com os interesses supremos da espécie? Sim, respondeu Marx, porque podem ter acesso a esses interesses superiores
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e universalistas por meios não diretos, não experienciais. Que meios alternativos seriam esses? A empatia por solidariedade ou a identificação afetiva com os explorados, ou mesmo o reconhecimento de que para todos, inclusive para quem elabora esse raciocínio, o apoio ao movimento político da classe operária é o veículo para a libertação, a emancipação. Nos dois casos, há valores presentes. No primeiro caso, os valores são sentidos em sua dimensão emocional e simbólica. No segundo, há a opção por um mundo social ordenado de modo a viabilizar a emancipação, o que implica o uso da razão sem a qual não se compreenderia essa possibilidade, mas também há a valorização de tal possibilidade, sem o que ela não se mostraria desejável. Tanto a solidariedade --que supõe a repulsa à opressão--, quanto a admissão de que a autonomia seja desejável --e representa suficientemente bem o ideal almejado-- pressupõem a igualdade como valor. E um valor tem vigência, existe e é aplicável, na ação e na avaliação, se há crença. Sendo objeto da razão, produto da razão, parte do próprio conceito de razão, a autonomia é também, portanto, um valor e necessita da crença. Uma crença pode repousar exclusivamente na razão? Kant acha que sim, como procurei mostrar. Marx, também (afinal, ele próprio é um exemplo de um não operário que se desloca do campo de interesses de sua classe, e o faz por opções calcadas no casamento da razão com valores), mas apenas em parte, porque, por outro lado, atribui as adesões pessoais e coletivas, prioritariamente, a interesses materiais particulares. Pessoalmente, não me identifico nem com o kantismo, nem com o marxismo. Não acredito em crença meramente apoiada na razão, nem creio que valores se reduzam a crenças e, portanto, não concordo com as abordagens segundo as quais há valores racionais –eu tendo, hereticamente, a ver a categoria razão funcionando, nesse debate, como um valor. Por que, antes da justificativa que a própria razão ofereceria, optar-se-ia por tomá-la como a matriz fundamental? Creio que a opção pela razão, antes da razão, só poderia fundar-se no valor que se lhe atribui. Eu disse creio? Usei o verbo crer? Marx pode acusar Kant de idealista com propriedade porque apresenta uma filosofia articulada a uma visão que se pretende científica da vida social, em cujo âmbito passa-se do que é para o que deve ser, do presente para o futuro, do individual para o coletivo e do particular para o universal, sem mediações idealistas, isto é, sem recorrer a subjetivismos, valores, vontades arbitrárias, psicologismos, moralismos ou expectativas insustentáveis depositadas na eficácia do conhecimento ou do uso da razão
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e do convencimento interlocucionário (peço perdão aos leitores, mas devo esclarecer que isso não é o que penso, tampouco empregaria tais termos, muito menos de forma assim depreciativa). As referidas passagens, como já disse, resultam da dinâmica objetiva dos interesses particulares, acessível à razão utilitária e à percepção imediata, derivada da experiência empírica. Basta esse mecanismo rude e tosco: representações simples, refletindo –no plano da conciência precária e parcial-- fenômenos tangíveis ou realidades ordinárias vividas e compartilhadas, amalgamadas e processadas pelo cálculo, que o interesse anima. Eis aí a receita para a consciência anarco-sindicalista. Turbinada, ela servirá de base para a construção da consciência de classe e seus desdobramento políticos, desde que atue a inteligência “científica” do partido, esse intelectual orgânico coletivo, moderno príncipe. Não são necessárias mediações valorativas, éticas ou morais. A emancipação, na esfera ontológica, corresponderá (refletirá) à construção das condições objetivas de novo tipo, politicamente promovidas. O interesse material, expressão direta da inserção na estrutura de classes, ligado a uma vontade e a uma consciência que aparecem como meras dimensões complementares do interesse, fornece a plataforma para que a tecnologia política funcione (a intervenção do conhecimento na natureza do social), via iniciativa da vanguarda. O salto além dos limites corporativos do anarco-sindicalismo prescinde de adesão a valores alheios ao interesse. Basta compreender que para realizá-lo, plenamente, realizar-se-á o interesse geral, libertando-se a humanidade dos grilhões do capitalismo, da propriedade privada dos meios de produção, da exploração de classe, do Estado sob regência burguesa. Contudo, a emancipação universal não é visada como um valor ou um fim em si mesmo. Surge como uma consequência indireta do cumprimento do fim sensível e particular: o interesse. Basta a razão instrumental. Marx supõe que ela seja um mecanismo articulado às dinâmicas sociológicas e que toda essa máquina gire sob o acicate do interesse – indissociável da energia que emana desse processo e o faz fluir. Mesmo discordando dessa visão da sociedade, mesmo descartando a hipótese de que o modelo permanecesse aplicável no mundo contemporâneo (como se o mundo fosse, contra a própria tese de Marx, ahistórico), mesmo desaprovando a negligência ao valor e aos “subjetivismos idealistas”, mesmo assim eu poderia aceitar que a teoria marxista consegue pensar a mudança livre do idealismo. O problema mais grave vem agora: posto que o trânsito para o reino da
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emancipação colocou, na experiência histórica subsequente, problemas impensáveis para Marx, em seu tempo, e trouxe à tona desafios extraordinários e complexíssimos, que passaram a exigir mediações antes ignoradas, o esforço de manter-se fiel ao materialismo e refratário aos idealismos trouxe consigo limitações insuperáveis para a teoria e a prática. Limitações que só pderiam ser abordadas e superadas, levando-se em conta teorias sobre o sujeito e o valor, sobre a crença, o símbolo, o desejo e o inconsciente, a linguagem e as representações da realidade. Ou seja, teorias situadas em um plano que Marx tentou exorcizar. Em poucas palavras: do interesse não se passa à emancipação, da ciência não se passa ao valor. Entretanto, do interesse transita-se, isso sim, e sem hesitação ou pudor, para a apropriação do ser humano como meio e para a construção de tiranias, em cujos cofres blindados apodrecem os tratados internacionais sobre os direitos humanos, esse ideário pequeno-burguês desprezível para os partidos comunistas no poder. Da razão instrumental passa-se, sem problemas, ao terrorismo. Eis a conclusão: o marxismo não leva ao terror, nem o legitima, necessariamente. Entretanto, posto em prática e convertido em ideologia do poder, não está imune à possibilidade de servir à barbárie, não ergue barreiras intransponíveis à instrumentalizacão do ser humano –instrumentalização que degrada sua dignidade--, e aponta na direção da crença de que os fins justificam os meios.
REFERÊNCIAS KANT, I. 1980. Fundamentação da metafísica dos costUmes. ln: Kant, vol. n. São Paulo: Abril. RAWLS, J. 1973. A Theory of Justice. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press.
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AO INFINITO E ALÉM Ronie Alexsandro Teles da Silveira
RESUMO: A nave Voyager 1 deixou o sistema solar em direção ao espaço profundo. Esse evento faz parte de um espírito de aventura em direção ao desconhecido que amplia continuamente nossos horizontes. A filosofia parece estar alinhada, desde sua origem, a esse tipo de disposição para a aventura. Entretanto, nem sempre essa expansão pode ser interpretada como tendo gerado resultados positivos. Os eventos traumáticos do totalitarismo no século XX parecem ter marcado negativamente o espírito de aventura e a própria filosofia. De tal forma que, agora, precisamos reavaliar as condições para o exercício da atividade filosófica. Tudo indica que a filosofia do século XXI terá que manobrar entre seu histórico espírito de aventura e os horrores políticos do século XX. Palavras-chave:
Espírito
de
Aventura;
Filosofia
Contemporânea;
Memória;
Totalitarismo.
ABSTRACT: The Voyager 1 left the solar system toward deep space. This event is part of a spirit of adventure into the unknown that continually expands our horizons. The philosophy seems to be aligned, since its origin, this type of arrangement for adventure. However, this expansion cannot always be interpreted as having generated positive results. The traumatic events of totalitarianism in the twentieth century seem to have negatively marked the spirit of adventure and philosophy itself. So that now we need to reevaluate the conditions for the exercise of philosophical activity. Everything indicates that the philosophy of the twenty-first century will have to maneuver between its historic spirit of adventure and political horrors of the twentieth century. Keywords: Contemporary Philosophy; Memory; Spirit of Adventure; Totalitarianism.
O título desse texto é uma citação literal de uma frase de Buzz Lightyear, o astronauta do desenho animado “Toy Story” lançado em 1995. O personagem Buzz Lightyear é uma homenagem ao segundo homem a pisar na Lua, membro da Missão Apolo 11, o americano Edwin Aldrin Jr. Na sequência ficará evidente o motivo filosófico de destacar essa frase de Buzz Lightyear no título desse artigo. Tudo indica que a nave espacial Voyager 1 deixou o sistema solar no dia 25 de agosto de 2012. Há mais de um ano, portanto, um objeto humano foi capaz de transpor
Universidade Federal do Sul da Bahia – roniefilosofia@gmail.com
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os limites em que nossa vida tem se restringido desde sua origem. Essa nave, lançada em 1977, leva vários tipos de mensagens gravadas para estabelecer contato com eventuais seres alienígenas inteligentes que possam encontrá-la. A Voyager 1 ultrapassou uma fronteira especial, até agora resistente a todos os esforços humanos. Ela é um sinal inequívoco de nossa capacidade empreendedora, de nos lançarmos para fora de limites que delimitam um sentido restrito para a vida humana e de ir sempre além do que é dado. A ultrapassagem da barreira do sistema solar seria, então, um passo além desse constrangimento espacial em que nos encontrávamos até o momento. Ela seria um evento bastante significativo se considerarmos que a história humana consiste em uma aventura que nos leva sempre além de nossas condições atuais. Condições que são, por definição, restritivas e limitadoras. Nesse sentido, a Voyager 1 representaria um passo adiante com relação a uma fronteira especialmente resistente: aquela que afirma que somos seres desde planeta, que nossa vida está definitivamente ligada a este espaço específico que chamamos de Terra, que essa é uma condição necessária da humanidade. De certa forma, essa maneira de interpretar a viagem da Voyager 1, implica em compreendermos o sentido da vida humana como uma tentativa contínua de ultrapassar limites e de abandonar delimitações de toda ordem. Essas delimitações seriam todo e qualquer tipo de confinamento e de definição acabada de nossa existência. Assim entendida, poderíamos dizer que o homem é, antes de qualquer coisa, um ser que ultrapassa seus próprios limites – uma potência para ir além de qualquer configuração particular que possa ser afirmada em uma situação de fato. Se isso é verdade, então a história humana é uma contínua atividade de abandono daquilo que somos em uma circunstância particular, um movimento de deixar de ser o que já se é, uma aventura em que o sentido que buscamos se encontra sempre além daquilo que obtivemos ou do que realizamos. Se a nossa história é uma aventura desse tipo, constantemente aberta em direção ao que ainda não somos, então ela diz respeito a lançar-se em direção ao desconhecido, a lidar com aquilo que ainda não somos e que não sabemos que somos – porque é na direção dele que nos movemos. Esse constante alargamento da existência humana certamente compreende a atitude de nos projetarmos dentro do frio vazio do espaço sideral, no abismo em que tudo pode perder-se sem deixar rastros, na escuridão sem fim do indeterminado. Mas ele também implica em ampliarmos os nossos modos de viver, de tal forma que os outros
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possam ser incluídos nele sem deixar de ser o que são. Isto é, entender a existência humana como um movimento de expansão e ultrapassagem de limitações implica também em construirmos modos de vida mais inclusivos, de tal forma que dentro deles caibam todos os outros homens. A expansão dos nossos modos de vida implica em ampliação da tolerância para com aqueles que adotaram padrões de existência diferentes dos que estruturam nossas próprias crenças. Viajar para o espaço longínquo e tornar presente aos nossos olhos uma zona ainda oculta da realidade não é algo, afinal, tão diferente de ampliar nossas formas de vida, de tal maneira que dentro delas caibam outras maneiras de viver. É verdade que temos dado pouca atenção àqueles que vivem vidas estranhas bem ao nosso lado. Flusser tem razão ao indagar sobre o sentido de nos lançarmos tão longe no espaço se não conseguimos sequer cogitar como se constituem formas de vida não humanas próximas a nós (FELINTO & SANTAELLA, 2012). Afinal, o que pensa uma formiga ou uma girafa? Tal é a distância que nos separa delas que nem sequer somos capazes de formular uma pergunta pertinente – porque “pensar” talvez não se aplique a uma girafa ou não seja aquilo que ela possui de específico. Parece que nada sabemos sobre esse ser, a ponto de admitirmos que ela se constitui como um limite intransponível para nós. Nossa ignorância é tamanha que sequer sabemos o que perguntar a ela. Há aqui um limite que não ultrapassamos ainda. Talvez não faça sentido lançarmo-nos no espaço sideral sonhando com a possibilidade de estabelecer comunicação com outras formas de vida se não somos capazes de nos comunicarmos com seres que compartilham conosco a permanência nesse planeta. Todas essas dimensões potenciais da expansão, contidas naquela expressão de Buzz Lightyear, parecem exigir de nós algum grau de atenção: seja no espaço sideral, seja na política ou em direção a outras formas de vida terráqueas. É verdade que a própria possibilidade de expansão requer a capacidade de ampliarmos nossas fronteiras interiores, de tal forma que possamos estar aptos a ultrapassar todas essas fronteiras exteriores. Parece que a capacidade de ir além de nossas próprias limitações pessoais é um requisito existencial que nos habilita previamente para ir além de qualquer fronteira exterior. Se há uma forma para preparar homens que sejam capazes de cumprir com essa finalidade de extrapolar continuamente as condições existentes, acredito que ela consista na capacidade de ir além de suas próprias condições pessoais. Nesse sentido,
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precisamos pensar em que a filosofia tem nos auxiliado a preparar os homens para enfrentar suas próprias limitações e em que sentido o seu ensino está habilitando as pessoas para se tornarem astronautas dispostos a se lançarem em abismos ainda desconhecidos. Parece-me que há aqui uma questão pertinente para a filosofia atual: nós, os filósofos do século XXI, estamos afinados com esse sentido de ampliação da aventura humana ou o exercício dessa atividade tem se mostrado como a procura por um terreno sólido, a adequação a padrões conhecidos e a reiteração de procedimentos já consagrados? Em outras palavras, a filosofia é, nos dias de hoje, uma aliada do espírito de aventura? Eu me arriscaria a dizer que Tales de Mileto foi um dos primeiros astronautas, porque foi capaz de lançar-se a uma distância tão grande que tornou possível a consideração unificada da totalidade do mundo. Isto é, a pergunta pela origem da natureza tornou possível olharmos para a Terra como se não estivéssemos inseridos nela, como se fossemos capazes de viajar até o espaço e, de lá, pudéssemos contemplar o planeta inteiro com um só olhar. De certa forma, a primeira pergunta filosófica é um empreendimento de distanciamento espacial que permitiu uma apreciação da totalidade do mundo, algo que espacialmente só se tornou possível muito tempo depois. Nesse sentido, parece que o exercício filosófico se aliou historicamente ao processo de expansão da nossa capacidade de tomar nossas próprias condições de existência como objetos de reflexão e, portanto, como circunstâncias que poderiam ser avaliadas e, eventualmente, abandonadas. Olhar de longe, ver as coisas do espaço, é algo que nos permite julgá-las de maneira panorâmica e, a partir desse ponto de vista, descartá-las. De certa forma, a atividade histórica adotada pela filosofia intensificou o tipo de distanciamento que nos permitiu deixar para trás muitas de nossas limitações existenciais. Assim, a filosofia é uma das precursoras da Voyager 1 e pode ser definida por aquele lema de Buzz Lightyear, porque ela facilita nosso movimento em direção ao que ainda não somos. Ela é uma atividade voltada para o infinito e para o além. Com efeito, a distância propiciada por tais movimentos, sejam de reflexão ou de deslocamento espacial, permitiu que nos tornássemos aptos para estarmos além de qualquer circunstância particular. Então, parece claro que a atividade filosófica se constituiu historicamente como uma força promotora do espírito da aventura humana.
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Mas também é verdade que esse processo de afastamento das condições de fato em que vivemos, esse alinhamento com o espírito aventureiro da filosofia, tem sido objeto de crítica. A contemplação distanciada da totalidade de uma determinada forma de vida humana tornou possível que nos descartássemos dela com relativa facilidade. A ampliação da perspectiva tornou possível que nos desenraizássemos das condições concretas em que vivíamos, de tal forma que elas perderam seu peso existencial original.
Esse
movimento
envolve,
portanto,
uma
espécie
de
dispositivo
antigravitacional que retira do estatuto ontológico sua solidez e sua concretude convencionais. É esse dispositivo de desengajamento que nos permite avaliar a totalidade de nossas condições de existência, facilitando seu abandono. Nesse caso, a distância está intimamente relacionada à perda de peso ontológico. Nem sempre o abandono, facilitado pelo dispositivo antigravitacional, significou algo de positivo para a vida humana. Isto é, certamente a facilidade proporcionada pelo ponto de vista distanciado tornou possível a crítica e daí o desmantelamento de formas de vida vigentes. Mas isso não garantiu que aquilo que foi proposto como uma forma de vida alternativa tenha se apresentado como algo efetivamente melhor do que aquilo que foi destruído. Nem sempre o progresso pode ser claramente identificado como tendo resultado desse processo de afastamento e avaliação desengajada. Isso significa que as viagens espaciais, filosóficas ou não, nos propiciaram experiências que nem sempre se apresentaram como positivas. Quando os portugueses chegaram ao Brasil e entraram em contato com os indígenas, perceberam que eles não tinham qualquer tipo de vergonha e se comportavam de maneira inocente. Ocorreu-lhes, então, que eles haviam encontrado o próprio Éden descrito no Gênesis. Mas se o Brasil era o Paraíso, então só os europeus eram pecadores que haviam sido privados da perfeição original. Eles seriam, portanto, descendentes de homens decaídos e punidos por Deus (BUARQUE DE HOLANDA, 2000). Nesse caso específico, a expansão da perspectiva propiciada pelas navegações e pelo descobrimento de novos mundos, implicou uma reavaliação altamente pejorativa do próprio europeu, na medida em que o obrigou a alterar seu ponto de vista tradicional sobre si mesmo e sobre a civilização ocidental. Não foi em vão que dois marinheiros da esquadra de Pedro Álvares Cabral abandonaram seus postos e desapareceram nas praias brasileiras (FAORO, 1975). Somente com a chegada dos Jesuítas ao Brasil, 49 anos após o descobrimento, é que os indígenas foram devidamente interpretados como
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pagãos a serem convertidos e, portanto, como homens inferiores a serem cristianizados. Dessa forma, a dignidade europeia foi restabelecida e um sentido civilizatório pôde ser obtido para sustentar o tipo de atividade colonial que foi desenvolvida pelos europeus na América. O impacto inicial do descobrimento foi minimizado por uma reinterpretação do significado existencial dos selvagens ameríndios. Só essa reinterpretação foi capaz de estabelecer um padrão de atividade válida para o processo de cristianização do gentio. Esse exemplo torna evidente que novos descobrimentos propiciados pelo espírito de aventura podem revelar verdades indesejadas ou imagens desconfortáveis de nós mesmos – nesse caso uma compreensão altamente negativa sobre o modo de vida europeu. O resultado das adaptações exigidas pelo distanciamento, as proposições sobre que formas de vida poderemos adotar no futuro, não possuem um certificado de garantia e não implicam em progresso garantido em qualquer sentido que possamos dar a esse termo. O resultado da expansão da perspectiva e as necessárias adequações de avaliação do sentido existencial de nossas vidas podem vir a resultar, inclusive, em um mundo pior do que esse. O panorama geral pode adquirir uma feição feia quando confrontado com a dimensão mais confortável do mundo que conhecemos e no qual vivemos. Em função desse risco inerente à aventura, é compreensível que alguns tenham entendido que devemos restringir nossas ambições, nossas proposições sobre como deveríamos viver, já que elas são potencialmente perigosas e podem se mostrar mesmo como extremamente danosas. De uma forma ou de outra, vários críticos tem defendido a ideia de que devemos delimitar nossos movimentos intelectuais a dimensões gravitacionais, sem adotarmos pontos de vista elevados demais. Dessa perspectiva de interpretar o espírito de aventura haveria um perigo ligado a grandes alturas, a grandes pretensões revolucionárias – sejam políticas, epistemológicas ou morais – de tal forma que seria mais adequado realizarmos pequenos ajustes cotidianos e correções menores no nosso modo de vida. Isto é, seria mais prudente nos deslocarmos dentro de pequenas distâncias, sem nos lançarmos além de limites seguros e já conhecidos, sem abandonar o terreno seguro da gravidade terráquea. Essa perspectiva crítica com relação àquilo que se entende como uma extrapolação injustificada do empreendimento filosófico possui uma longa história e não seria possível recontá-la aqui de maneira adequada. Apenas como referência para
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essa atitude, podemos nos lembrar do espírito geral do empirismo inglês, especialmente a versão defendida por Hume (2000), do criticismo de Kant (1989) e mais recentemente da posição de Hannah Arendt (1989). De maneira geral, essa crítica diz respeito a colocar sob suspeita e conter os indóceis cavalos do carro de uma atividade filosófica que envereda pela metafísica. A despeito desse movimento crítico de autolimitação do espírito de aventura ter se desenvolvido há algum tempo dentro da própria comunidade filosófica, ele foi intensificado na atualidade pelos eventos históricos do século XX. Na mais branda das hipóteses esses eventos parecem ter reforçado essa disposição cultural de contenção do espírito de aventura filosófica. De fato, as experiências totalitárias do último século parecem ter marcado de maneira profunda aquele espírito de aventura demonstrado historicamente pela filosofia. Não é raro que a própria literatura filosófica estabeleça relações, difusas ou causais, entre o pensamento de Nietzsche e Heidegger com o Nazismo, e de Marx com o Stalinismo, por exemplo. Nesse sentido, a obra de Popper (1974) sobre os inimigos filosóficos da democracia – Platão, Hegel e Marx – é uma referência bastante eloquente. Podemos notar nesse tipo de postura uma nota de prudência com relação às consequências de um exercício filosófico radical, que poderia colocar a vida humana em risco. Não é ocasional que a possibilidade da extinção da vida humana tenha se tornado um assunto digno de atenção da filosofia política no século XX (KATEB, 1992). Assim, a radicalidade do pensamento e seu exercício sem limites ou balizas indicaria antes um tipo de desvario, uma pretensão excessiva de remodelar tudo, que poderia levar, como o fez, à destruição, ao sofrimento e à morte. Essa nota de prudência precisa ser avaliada nesse momento, porque ela redefine o tipo de atitude que seria próprio para a filosofia do século XXI. Essa posição quer restringir de alguma forma o espírito de aventura representado por aquela frase de Buzz Lightyear. De certa maneira, ela incorpora um espírito reformista que prefere ir alterando nosso modo de vida por meio de pequenas correções, de mudanças sutis, sem assumir grandes riscos ou propor grandes transformações. Ela afirma implicitamente que a segurança na viagem é mais importante do que as descobertas potenciais de novos modos de vida. Poderíamos compreender essa atitude como uma contrapartida filosófica da reação ao acidente ocorrido com o ônibus espacial Challenger em 1986 que vitimou os 7
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tripulantes. Esse evento obrigou a uma redefinição conservadora da política espacial americana. Nesse caso, em função do espírito de aventura em lançar-se ao espaço, vidas humanas foram perdidas. Da mesma forma, o espírito de aventura filosófico poderia proporcionar situações de risco à vida humana. A explosão dessa nave durante seu lançamento e seu equivalente político, o desastre dos regimes totalitários do século XX, parecem ter deixado sua marca no espírito de aventura que a filosofia cultivou, embora não exclusivamente, desde Tales de Mileto. No seu conjunto, esses eventos que marcaram o século XX parecem sugerir que devemos adotar uma atitude de prudência no exercício do pensamento filosófico em função de potenciais consequências nefastas para a humanidade. O ponto de vista desengajado das condições existenciais efetivas pode se mostrar perigoso, talvez justamente por implicar em uma diminuição do peso relativo de nossa condição ontológica atual. Então, há aqui um problema que se impõe a nós, filósofos do século XXI. Ele implica em verificarmos que tipo de atitude devemos adotar considerando, de um lado, o espírito de aventura que nos caracteriza historicamente e, de outro, os desastres políticos do século XX. Como filósofos do século XXI não podemos deixar de nos colocarmos esse tipo de pergunta, porque ela implica na possibilidade de adotarmos um espírito caracterizado pela segurança e pela prudência e abrir mão daquele lema de Buzz Lightyear. Há certo consenso tácito quanto à definição do pensamento filosófico como uma atividade essencialmente livre e, portanto, desvinculada de verdades preconcebidas. É assim que geralmente definimos a filosofia, desde as aulas introdutórias que visam formar novos filósofos. Mas também é verdade que essa definição não corresponde àquilo que estamos praticando de maneira majoritária como uma comunidade de filósofos. Nesse sentido, pode-se observar uma tendência em tentar transformar a filosofia em uma atividade parecida com a ciência. Isto é, em uma atividade limitada pela escolha de um objeto de estudo, pela definição de um método e pela definição de uma linguagem apropriada. Essas especificações, feitas previamente, estabelecem um espaço particular para a atividade filosófica dentro do mundo da cultura acadêmica. A partir da definição desses parâmetros, ela torna-se uma atividade com uma posição relativa bem definida dentro do escopo geral da produção do conhecimento atual. Isto é, seu espaço é
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determinado antes do início da própria atividade filosófica. Isso certamente não faz justiça ao nosso ideal de liberdade – talvez a essa altura uma pretensão meramente literária. Observe que o processo de especialização em nível de pós-graduação que vem sendo utilizado na formação filosófica é idêntico ao processo de especialização presente na formação dos cientistas. Ou seja, primeiro o aluno recebe uma formação geral, depois uma especialização crescente no mestrado e no doutorado que termina nos tornando aptos para falarmos de um ou de dois filósofos. Sendo um pouco mais realista, a especialização de caráter científico tem nos habilitado a falar de uma categoria presente na obra de um filósofo. Os seminários de discussão atuais, que reúnem a comunidade filosófica, representam exatamente essa ênfase que temos adotado. Cada um de nós tem se tornado um especialista tão especial que o diálogo tem sido comprometido na grande maioria dos casos. As tecnicalidades e as exigências inefáveis por “rigor” têm se sobreposto ao interesse geral, de tal forma que quase ninguém compreende o que os demais dizem. Assim, as conferências ou comunicações se tornam monótonas e desinteressantes, porque seu impacto fica restrito àqueles que também são especialistas na mesma área filosofia, no mesmo filósofo e, talvez, no mesmo conceito. Essas atividades tem se mostrado burocratizadas e, por isso, desvinculadas de uma vida intelectual relevante – se é que podemos afirmar que ela existe fora desse ambiente. É verdade que essa burocratização faz parte da tendência literária, muito específica da formação cultural brasileira (AZEVEDO, 1963). Mas essa postura verbalista, bacharelesca e de pouca capacidade de promover um diálogo pertinente com outras áreas do interesse humano também é uma marca distintiva da fragmentação promovida pelo sistema de produção de conhecimento existente no mundo contemporâneo (SILVEIRA, 2013). Observe que a própria noção, já sedimentada, de que há áreas de conhecimento na filosofia (ética, teoria do conhecimento, filosofia política, filosofia da ciência) é uma resposta ao nosso problema sobre a intensidade a ser alcançada pelo pensamento. Se há áreas diferentes é porque existem limites. E os limites definem até onde podemos pensar sem extrapolar as áreas nas quais nos tornamos competentes em função do processo de treinamento. Não é de bom tom acadêmico discutir questões que estão fora de nossos espaços de especialização, porque isso fere o respeito profissional pela capacitação dos
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demais. A delimitação de áreas e a profissionalização são dois aspectos da mesma postura de restrição do pensamento a certa territorialidade. Não há melhor maneira de finalizar uma discussão da qual você não queira participar do que a conhecida afirmação de que “isso não é da minha área”. A conotação geográfica não é estranha, ela define o tipo de postura que tem se tornado prevalente na atividade filosófica: o pensamento deve se acomodar a alguma dimensão conhecida, identificável e restritiva. O ponto de vista que está sendo afirmado hoje, com a adoção de tal padrão de comportamento, é que devemos, sim, restringir nosso espírito de aventura. O pensamento filosófico deve ser efetuado dentro de limites e não pode se apresentar como uma viagem perigosa em direção a novos mundos e horizontes ainda desconhecidos. Aquilo que parece estar se tornando predominante nos últimos anos na filosofia não corresponde ao espírito afirmado pela figura de Buzz Lightyear. De certa forma, essa é uma tendência esperada que deveria impactar a filosofia mais cedo ou mais tarde. A divisão social do trabalho, típica dos processos produtivos inaugurados com a Revolução Industrial, não poderia preservar o exercício filosófico como se ele fosse uma dimensão sagrada da cultura. Como um processo social de produção de conhecimento seria estranho que ele preservasse sua autonomia em um mundo cada vez mais intensamente caracterizado por relações instrumentais. Tudo indica, seja em função da situação social, seja em função dos comportamentos de classe profissional que estamos adotando, que já fizemos uma opção por sacrificar o espírito de aventura em benefício da adoção de um ponto de vista interno, mais prudente, conformista e menos radical. Minha avaliação com relação a esse tipo de postura é que fomos levados a adotála justamente em função de um cálculo com relação ao que foram os resultados políticos negativos do século XX. Isto é, o Nazismo, o Fascismo e o Marxismo soviético marcaram profundamente nossa experiência histórica, de tal forma que nos parece impossível, nesse momento, abstrair os seus resultados perversos no desempenho da atividade filosófica. Assim, propor que nós desconsideremos os resultados dessas formas radicais de pensar e de agir, como se fossem meros acidentes de percurso, certamente seria entendido pela parte não filosófica da humanidade como um gesto de crueldade. Isso significa que nossa avaliação do espírito de aventura não pode ser feita de uma perspectiva histórica que avalie tudo o que a civilização ocidental produziu, desde
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Tales, porque a percepção do sofrimento recente de milhões de pessoas ainda está presente e se impõe diante de nós. É a presença desse sofrimento recente em nossa memória que nos conduz a adotar um ponto de vista historicamente mais restrito, ligado ao conteúdo específico e muito vivaz do século XX. Dessa maneira, parece-me que o espírito de aventura só poderá ser retomado quando o sentimento da dor dos milhões de seres humanos sacrificados no século XX já tiver sido absorvido de alguma forma. Nesse momento, parece mais humano que nos ocupemos da lembrança do sofrimento, da preservação da memória dos nossos erros passados e do resultado negativo de nossa audácia. Isso nos impõe uma atitude de contenção respeitosa do espírito de aventura dentro do escopo do reconhecimento pelos excessos teóricos de um passado recente. Mas também parece ser verdade que a consideração da dimensão da dor deverá ceder espaço pelo interesse com relação ao espaço desconhecido à medida que o sofrimento for sendo superado e reabsorvido por uma perspectiva histórica mais ampla. E isso, no momento histórico adequado, não significará mais crueldade com relação aos milhões que morreram ou sofreram intensamente. No momento adequado, e apenas nessa circunstância muito específica, isso significará que o trauma do século XX foi superado e que estaremos prontos para novas aventuras. Agora isso certamente soa mal, como uma forma abstrata e desencarnada de tentar dar sentido a um passado altamente problemático e dolorido. Mas no futuro, não seremos mais o que somos agora. Acredito que em breve nosso espírito terá retomado o interesse pela expansão da vida em direções ainda inexistentes. Agora devemos nos preocupar em manter Buzz Lightyear como um modelo para as futuras gerações, aquelas que poderão retomar o princípio que afirma que a atividade filosófica implica em lançar-se “ao infinito e além”. O que estou tentado dizer é que o estilo filosófico que tem se mostrado predominante no início do século XXI parece ser uma resposta aos desastres políticos do século XX. Nesse sentido, essa postura conservadora não apenas é justificada, mas até mesmo esperada. Mas não devemos perder de vista esse contexto que a justifica e que, nesse momento, lhe dá sentido, sob pena de entendermos que se trata da única maneira de se fazer filosofia. Isso nos levaria certamente a prolongá-lo além do estágio em que ele funciona como uma espécie de mea culpa filosófica, como uma atitude de contenção em função dos excessos anteriores. Devemos estar alertas para o fato de que,
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passado esse contexto muito específico, a aventura típica do pensamento precisará ser revitalizada sob pena de burocratizarmos excessivamente a filosofia além do próprio sentimento de pesar consequente com o século XX. Nesse momento específico, nossa memória ainda deve se ocupar com o passado imediato em função daquilo que ele significa. Mas é natural que ela se distenda lentamente, permitindo-nos uma visão mais alongada da própria história humana e de modo a incluir nela eventos menos negativos e mais otimistas. Não creio que isso signifique propor uma reavaliação do nosso passado imediato. Antes disso, essa atitude indica a lógica interna da própria constituição de uma narrativa em função de eventos dolorosos. Em um primeiro momento a vivacidade do trauma se impõe e, com o passar dos anos, uma narrativa menos focada torna-se necessária, de tal forma que uma visão panorâmica permita uma compreensão histórica mais desengajada dos eventos. Enfim, uma perspectiva que seja feita a partir de certo distanciamento e que, ao mesmo tempo, promova esse distanciamento. Isso significa que o estilo do exercício da filosofia do século XXI está intimamente relacionado à forma como elaboramos o sofrimento histórico recente da humanidade. Sendo assim, podemos ter a esperança de que em um futuro próximo poderemos eliminar alguns limites que, de uma forma ou de outra, tem aproximado a filosofia mais do espírito de funcionário do que do espírito de Buzz Lightyear.
REFERÊNCIAS AREDNT, H. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. AZEVEDO, F. A cultura brasileira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963. BUARQUE DE HOLANDA, S. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense e Publifolha, 2000. FAORO, R. Os donos do poder. Porto Alegre/São Paulo: Globo/EDUSP, 1975. FELINTO, E. & SANTAELLA, L. O explorador de abismos. São Paulo: Paulus, 2012. HUME, D. Tratado da natureza humana. São Paulo: UNESP e Imprensa Oficial do Estado, 2000. KANT, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. KATEB, G. The inner ocean. Ithaca: Cornell University, 1992. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VI, nº 2, 2015
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POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. 2v. SILVEIRA, R. A. T. A industrialização da verdade. Redescrições, Ano 4, Número 2, 2013, pp. 46-66.
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MODELO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE PESQUISA MODEL FOR THE CONSTRUCTION OF A RESEARCH PROJECT Andrei Venturini Martins
“Não basta ter bom espírito, o principal é aplicá-lo bem”.5
RESUMO: Neste artigo esclarecerei os aspectos essências para o desenvolvimento de uma pesquisa científica, a saber: título, motivação pessoal, tema, estado da questão, objeto, problema, objetivo, hipótese, justificativa, metodologia, cronograma e levantamento bibliográfico. Mais especificamente, meu objetivo é oferecer um modelo para a construção de um projeto de pesquisa acadêmica.
Palavras-chave: Projeto de Pesquisa; Objeto; Hipótese; Justificativa.
ABSTRACT: This paper clarified the aspects essences for the development of scientific research , namely: title, personal motivation, theme, state the question, object, problem, purpose, hypothesis, rationale , methodology, schedule and literature. More specifically, I aim to provide
a
model
for
the
construction
of
an
academic
research
Key words: Research Project; Object; Hypothesis; Justification.
1 – INTRODUÇÃO 5
Doutor em Filosofia pela PUC-SP. (Email: dreivm@hotmail.com). DESCARTES, René. Discours de la Méthode, I, p. 2.
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project.
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O planejamento de uma pesquisa é parte integrante do trabalho investigativo de qualquer análise que pretenda a legitimidade do rigor científico. A escolha do tema, do objeto de investigação, a construção do problema a ser respondido, o objetivo, a justificativa, o cronograma e o levantamento bibliográfico são partes essenciais para o planejamento de um projeto, seja uma monografia, uma dissertação de mestrado ou doutorado. Muitos alunos e professores apresentam inúmeras dúvidas em relação à elaboração de um projeto de pesquisa. O projeto pode funcionar como guia da atividade investigativa, impedindo uma atitude aleatória frente àquilo que se deseja investigar. Diante disso, elaborei uma proposta metodológica, dividida em 6 passos, a fim de auxiliar o pesquisador no processo de organização de trabalhos acadêmicos. Trata-se de um passo a passo com o objetivo de analisar os aspectos fundamentais de uma pesquisa, esclarecendo a viabilidade e a necessidade de cada tópico. Gostaria de lembrar que parte desta análise devo ao Prof. Eduardo A. Cruz do Depto. de Ciências da Religião da PUC-SP, que no ano de 2009 formulou um pequeno modelo para a construção de pesquisas acadêmicas.6 Também ressalto a colaboração do Prof. José J. Queiroz, também do Depto. de Ciências da Religião da PUC-SP, que auxilia inúmeros pesquisadores em suas aulas de Metodologia, a fim de que realizem com rigor suas investigações. Por fim, não poderia esquecer do Prof. Mario A. G. Porta, do Depto. de Filosofia da PUC-SP, o qual não conheço pessoalmente, mas publico minha grande admiração por suas reflexões metodológicas e filosóficas presentes na obra A Filosofia a partir de seus problemas. Vale lembrar ao leitor que este artigo é uma síntese das reflexões metodológicas destes três docentes. Meu trabalho foi sintetizar os aspectos que considerei de estrema necessidade para a sustentação de uma pesquisa científica.
1º PASSO – O TEMA E SEU ENUNCIADO. O tema é aquilo “do que” ou “sobre o que” se deseja pesquisar. Para a escolha de um tema alguns critérios devem ser observados. a) Deve nascer de um interesse pessoal, já que o investigador irá “conviver” com o objeto de investigação por um bom tempo. Por este motivo, é fundamental que haja
6
Trata-se de algumas sugestões para a elaboração de uma pesquisa, no entanto, tal modelo não foi publicado.
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empatia e atração pelo tema escolhido. b) Necessária correspondência entre as linhas de pesquisa e as prioridades do programa. c) Deve ser um campo de trabalho acessível, como uma bibliografia possível, com a devida ciência do tempo disponível para a investigação. d) Evitar temas compilatórios ou demasiadamente panorâmicos. O título do trabalho é o modo pelo qual o tema será anunciado. Mesmo que seja provisório, o título deve constar no projeto. Podemos dividi-lo em 2 partes: a) Título geral: é amplo e chamativo. b) Título específico ou subtítulo: este deverá aproximar-se do objeto e tanto melhor será quanto mais refletir o objeto de pesquisa.
2º PASSO: INTRODUÇÃO Na Introdução do projeto consta a apresentação do tema em linhas gerais. Neste item destaco três aspectos que o compõem: a) Motivação pessoal: deve constar a motivação que impele ao trabalho, já que a “formação particular”7 e as expectativas do pesquisador são aspectos que podem influenciar a pesquisa. b) Análise do título: apresentação de uma visão geral do assunto que será trabalhado, assim, o leitor do projeto poderá adquirir uma visão inicial do que será tratado, fornecendo as informações necessárias que o levem a perceber a importância da pesquisa. c) O estado da questão: um pesquisador não deve procurar inventar a roda com o seu trabalho. Antes de avançar no conhecimento de um determinado objeto é necessário mostrar-se ciente dos progressos já conquistados por seus predecessores, ou seja, avaliar a fortuna crítica precedente. Não podemos esquecer que a ciência, pensava Francis Bacon, é um anão nos ombros de um gigante, logo, uma avaliação rigorosa daquilo que foi pensado auxiliará o investigador a postular o ponto de partida da pesquisa, não refazendo o caminho que outros já fizeram. É importante que a leitura da fortuna crítica suscite uma interrogação, um problema que ainda não fora detectado: pode ser uma lacuna argumentativa ou mesmo o modo pelo qual o argumento foi construído. d) Objeto de investigação: o objeto é o núcleo central do trabalho, o alvo de 7
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas, p. 22.
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investigação claramente demarcado. O objeto especifica os limites daquilo que será investigado: conhecer é saber os limites da investigação. O objeto pode ser a análise de um texto, de um conceito, dos textos que compõem um período histórico, o comportamento de homens ou animais em uma determinada situação ou área delineada, os aspectos qualitativos ou quantitativos da produção de uma empresa, a opinião de um grupo em dado momento histórico, a avaliação geográfica em um determinado tempo ou lugar específico, etc...
3º PASSO: JUSTIFICATIVA Este passo pode ser considerado o coração do trabalho, não que os outros não mereçam importância, mas nele deve constar aspectos que dão sustentação ao trabalho. Eis a ordem destes aspetos de vital relevância: Problema, Objetivo, Hipótese e, por fim, a Justificativa acadêmica propriamente dita. Um Problema, ao ser apreendido e esclarecido, impele o pesquisador a traçar os Objetivos que a pesquisa pretende cumprir, desta maneira, faz-se necessário elaborar uma Hipótese que dissolva os problemas iniciais nos objetivos propostos, assim, a pesquisa conterá a pertinência que Justifica a sua elaboração. Mas façamos uma análise de cada um destes aspectos. a) Problema:8 a partir da compreensão do estado da questão, uma questão deve ser levantada. Pensar não implica, necessariamente, possuir certezas. É fundamental para o desenvolvimento de uma pesquisa encontrar o problema que se deseja solucionar. Quando não há problema, não há investigação. A lista de problemas nunca está totalmente pronta. Sua incompletude nos permite submetê-la a constante revisão. Assim, duas questões podem ser elaboradas: 1) qual é o problema proposto pelo autor?9 2) Por que ele formula dessa maneira?10 Formular o problema de forma adequada é um passo capital para o desdobramento da pesquisa, esta que se configura como uma resposta ao problema levantado. Muitas vezes o problema não é dado objetivamente, mas é preciso de um esforço analítico para apropriar-se do problema que servirá de eixo investigativo. Ora, 8
Para uma análise pormenorizada do “problema” em uma pesquisa remetemos o leitor à obra de Mario A. G. Porta denominada A filosofia a partir de seus problemas, p. 26 ss. 9 Ibid., p. 26. 10 Ibid., p. 26.
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fazer uma pesquisa sem formular um problema é o mesmo que responder uma pergunta que não existe. b) Objetivo: Não se pode confundir o objetivo com o objeto de pesquisa (ver 2º passo, item d). O objetivo é o resultado que o pesquisador pretende alcançar: esclarecer um conceito, aprofundar um tema pouco explorado, oferecer subsídios para a prática pedagógica; analisar, discutir e até refutar posições e teorias; aplicar os resultados de uma pesquisa em um determinado campo, etc. Objetivo Geral: é aquilo que se pretende fazer de maneira ampla, ou seja, aquilo que, depois de atingido, fará com que o pesquisador considere que concluiu seu trabalho. Objetivos específicos: são objetivos auxiliares, necessários individualmente e suficientes em conjunto para a consecução do objetivo geral. Isso não significa que os objetivos específicos não podem ir além do objetivo geral: se vão além, são então suficientes. Mas caso não sejam suficientes para cobrir o objetivo geral, então, podem ser objetivos necessários, mas não suficientes, necessitando buscar outros objetivos que dê conta do objetivo geral. c) Hipótese: o problema e seus respectivos objetivos requerem uma hipótese, ou seja, uma afirmação que pretende conceder uma contribuição específica do pesquisador para o estado da questão. Todo trabalho é mostra-se como um esforço para demonstrar que a hipótese pode ser uma Tese (θέσις). Vale lembrar que muito pesquisadores iniciantes confundem hipótese com problema, destaco portanto que a hipótese é uma afirmação que tornar-se-á a resposta ao problema levantado, cumprindo o objetivo ressaltado previamente. d) Justificativa: Na justificativa, tenta-se responder a seguinte pergunta: por que este estudo é relevante? Do ponto de vista teórico um projeto de pesquisa pode ser justificado pela capacidade de ampliar os horizontes intelectuais de uma área, aventar a análise de um tema ainda não discutido ou não discutido suficientemente pela ciência, propor um novo encaminhamento para a análise do tema discutido. Do ponto de vista prático a relevância do projeto pode estar relacionada ao fato que as conclusões do trabalho realizado são relevantes para determinados grupos que possuem alguma relação como aquilo que foi investigado.
4º PASSO: METODOLOGIA Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VI, nº 2, 2015
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Trata-se de apresentar a forma pela qual será desenvolvida a pesquisa. Não basta obter conclusões satisfatórias para um trabalho científico, pois estes terão pouca validade se a forma pela qual se chegou a eles carecer do rigor científico. É isso que distingue um bom pesquisador de um curioso: o pesquisador sabe como se chegou aos resultados, já o curioso não justifica de forma rigorosa as suas percepções parciais de um dado fenômeno.11 Por este motivo, destacamos dois aspectos metodológicos importantes: a) Enunciar o método de coleta de material para a justificativa da hipótese: dedutivo, indutivo, misto (dedutivo-indutivo). Estes terão prevalências teóricas, históricas, empíricas ou mistas (teórica-histórica-empírica). O método é um procedimento técnico que engloba: observação de campo, pesquisas de participantes, questionários, coletas de documentos, consulta de arquivos. b) Plano provisório: o projeto deve constar provisoriamente uma distribuição da pesquisa em capítulos e partes. Trata-se de um roteiro preliminar de trabalho, através do qual o pesquisador organizará a sua leitura e coletará os dados necessários, o que evita adquirir dados aleatoriamente.
5º PASSO: CRONOGRAMA DE TRABALHO Depois que o plano de provisório foi elaborado é necessário enquadrar de forma genérica os prazos do projeto. Por exemplo (um trabalho de 2 anos): 1º semestre: Leitura e elaboração do Projeto. 2º semestre: Redação do primeiro capítulo. 3º semestre: Fim da redação da primeira parte e qualificação. 4º semestre: Finalização do trabalho e defesa.
6º PASSO: BIBLIOGRAFIA O levantamento bibliográfico é a matéria prima para a pesquisa. Como salientei acima, ninguém começa uma pesquisa do nada. Ciente do tema, levanta-se a bibliografia a partir do tema pesquisado: artigos, livros, documentos, reportagens, filmes, vídeos, etc. Após o levantamento bibliográfico é preciso separar aquilo que parece ter uma importância capital para a pesquisa e mostra uma prioridade de leitura. 11
Tal posição é continuamente lembrada pelo Prof. Eduardo A. Cruz do departamento de pósgraduação em Ciências da Religião da PUS-SP.
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Depois desta primeira leitura prioritária é possível avaliar o que é necessário ler em um segundo momento (citações da fortuna crítica). Todavia, nada impede que o levantamento bibliográfico conduza o pesquisador ao encontro de um texto não lido pela fortuna crítica ou deixado à margem nas outras pesquisas, de modo que a sua investigação venha mostrar a relevância deste texto para a análise do tema escolhido.
CONCLUSÃO A estrutura de projeto não é uma camisa de força, mas uma sugestão cujo objetivo é abarcar todos os aspectos necessários de uma pesquisa que visa o título de ciência. Um projeto pode ser configurado de modo diferente e chegar a resultados satisfatórios, no entanto, necessita conter os elementos suficientes que o rigor do planejamento de uma pesquisa científica demanda.
REFERÊNCIAS DESCARTES, René. Tannery. Paris: 1996.
Discours de la Méthode. VI. Edição Charles Adan et Paul
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas, 3ª ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2007. SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico, 20ª ed. São Paulo: Cortez, 2000. SMITH, Barbara Herrnstein. Crença e resistência: a dinâmica da controvérsia intelectual contemporânea. trad. Maria Elisa Marchini Sayeg. São Paulo: Unesp, 2002.
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ESTAMOS PERDIDOS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA DO WE ARE LOST IN CONTEMPORARY SOCIETY Paulo Ghiraldelli Junior
RESUMO: A questão que intitula este artigo nos auxiliará a pensar os rumos do contemporâneo, período este que perdeu de seu horizonte a cara dicotomia entre o real e a ilusão tão valiosa para antigos e modernos. Com a diminuição do potencial das grandes narrativas filosóficas, como é o caso do marxismo, o contemporâneo assume o perspectivismo nietzscheano. Será a partir desta narrativa que poderemos vislumbrar a chamada “sociedade do espetáculo”. O homem, subjugado à mercadoria, torna-se um consumidor passivo, uma espécie de matéria morta que se adapta à vivacidade dos produtos. O trabalho tem como objetivo esclarecer estes mecanismos de sujeição. Palavras-chave: Perspectivismo, Sociedade do Espetáculo, Fetichismo
ABSTRACT: The question that heads this article will help us to think about the direction of contemporary, a period that lost of its horizon the expensive dichotomy between the real and the illusion, so valuable to both ancients and moderns. With the lowering of potential of the great philosophical narratives, as in the case of Marxism, the contemporary assumes the nietzschean perspectivism. It will be from this narrative that we will can glimpse the so-called "society of the spectacle". Man, subdued to the commodity, becomes a passive consumer, a kind of dead matter that fits himself to the liveliness of products. The paper aims to clarify these clamping mechanisms. Key words: Perspectivism , Spectacle Society, Fetishism
I Ilusão de ótica é uma coisa, ilusão metafísica é outra. A física, a fisiologia e outros campos do conhecimento podem cuidar do primeiro caso, só a filosofia cuida do segundo, afinal, trata-se de um invento só dela. Sem ilusão de ordem metafísica não teríamos a filosofia. Poderíamos ter narrativas de ordem literária ou científica, mas jamais a narrativa que chamamos de Paulo Ghiraldelli Junior é doutor em Filosofia e autor de Sócrates: pensador e educador – A filosofia do conhece-te a ti mesmo (Cortez, 2015). Email: pgjr23@gmail.com
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filosofia, criada por Platão. A filosofia é uma conversação que, de certa forma, está às turras com essa brincadeira a respeito de “o que é o real?”. Os antigos fizeram essa pergunta sobre “o que é o real?” Os modernos transformaram a pergunta e passaram a indagar “o que é o conhecimento do real?”. Os filósofos contemporâneos, por sua vez, desdenham a primeira pergunta e criticam a segunda; eles preferem assumir que vivemos em uma época de problematização da própria dicotomia real-ilusão. Viver essa época é antes de tudo viver como quem pressente que original e cópia não possuem fronteiras não borradas. Nos tempos contemporâneos as imagens ganham proeminência. Tudo é “para os olhos”. Conta-se não mais a questão da verdade e da falsidade, mas do aparecer (e do parecer). Nesse caso, ganha estatuto privilegiado o espetáculo. Afinal esse é o que é exclusivamente “para ver” – simplesmente para ver.
II Marx foi um dos últimos pensadores pré-contemporâneos a invocar, sem qualquer rubor, a “realidade”. Ele buscou denunciar o mercado, a quem responsabilizou por um mecanismo de dominação do homem que, por sua vez, dissimularia tal dominação. Mas ele jamais disse que a sua versão da dominação era uma descrição a mais entre outras possíveis, mas a descrição verdadeira, a que teria captado o real, diferenciando sua essência de sua aparência ideológica. Pela norma contemporânea ou, digamos, inaugurando com isso a própria contemporaneidade, Nietzsche tornou as coisas um pouco mais complexas, ao menos quanto ao real. No parágrafo 22 de Além de bem e mal ele deixou a ideia de que não temos o texto básico, só interpretações. Com isso, aprovou algo diferente de Marx: ele puxou seu próprio tapete, uma vez que a sua fala deveria ser admitida também apenas como uma interpretação, e assim ele fez. Desse modo, inaugurou o perspectivismo: não temos mais que falar em verdadeiro ou falso como lidando com real e ilusão, mas temos apenas que forçar a criação de mais e mais narrativas, ampliando as perspectivas. Estar rico de perspectivas parece ser a melhor maneira de errarmos menos, pragmaticamente falando. Afinal, haveria algo mais a fazer? Ideias como a de Nietzsche foram trazidas, bem depois dele, para o campo da teoria social. Os filósofos da Escola de Frankfurt fizeram isso. Mais recentemente, por exemplo, Bataille (quase um Richard Rorty europeu?) falou de fases da imagem de um
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modo que lembra a “história de um erro” de Nietzsche, contida no Crepúsculo dos Ídolos. Vai-se da dicotomia entre imagem e cópia para a indistinção entre imagem e cópia até a indistinção entre quaisquer imagens.12 Mas, em certo sentido, também se pode tirar uma tese assim de leitores de Marx. Debord chegou à ideia de que vivemos em uma sociedade de espetáculos, onde ‘o que é bom aparece e o que aparece é bom’, e fez isso a partir do marxismo, especialmente das noções de alienação (separação) e de fetichismo. Ora, se lemos Debord sob o clima de Nietzsche, que é o clima de hoje, ou com o clima de Bataille, então sua história sobre a “sociedade do espetáculo” se torna uma narrativa boa a respeito do que estamos vivendo. Não vamos aqui chamá-la de “mais representativa do real”, o que nos faria acriticamente voltar passos, mas simplesmente podemos dizer: essa narrativa “nos pegou”.
III O que quero dizer com “nos pegou”? Ora, que é difícil não sentir algo do que vivemos se lemos em Debord isso: “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”.13 O que se quer dizer, aqui, com “uma representação”? Representação no sentido de uma especial re-apresentação; de apresentação que se faz de novo e de novo incessantemente. Algo que requisita, agora, não o chão vivido de modo exclusivo, particular, mas do chão vivido como palco, um palco que mostra a todos como é a vida, mas a partir de uma ótica que não é a do homem (portanto, não mais a modernidade vista como “a época das imagens de mundo”, de Heidegger no Holzwege), mas da nova ordem das coisas. Trata-se da ordem das “modernas condições de produção”. Nesse palco, como explicou Marx no célebre “O fetichismo da mercadoria: seu segredo” no livro I de O capital, a mercadoria se apresenta comandando relações que antes, na troca de produtos, eram relações entre homens. Explico resumidamente. Diferente de mercados pré-capitalistas, no mercado capitalista o produtor de soja não se encontra com o produtor de celulares, mas celulares e soja são trocados; Dona Soja se encontra com Senhor Celular. À medida que os produtores (humanos) deixam de se relacionar diretamente e são substituídos por coisas (mercadorias) que, então, se
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BATAILLE, G. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio D’água, 1991, p. 13. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015, p. 13.
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responsabilizam pelas relações, eis que se estabelece o fetichismo. São seres mortos que ganham vida. São objetos que se fazem sujeitos. E mais: se mostram assim, aos homens, como exercendo uma atividade natural, e não como social, como de fato é. Adquirem tal capacidade porque vão ao mercado não ostentando valor de uso, mas valor de troca – essa é a própria condição do mercado. Como isso foi possível? Ora, o valor é dado pelo aspecto exclusivamente quantitativo. Cada mercadoria pode ser trocada por outras por encontrar um equivalente universal que é o trabalho contido em cada uma. Trata-se do trabalho mensurado por meio da quantidade de tempo. Trata-se do trabalho abstrato que gera, então, o valor abstrato que é carregado por cada mercadoria. A operação ganha ainda um aspecto mais bem acabado, dando total autonomia às mercadorias, quando o próprio valor já nem precisa se referir ao trabalho medido quantitativamente, mas a uma abstração tornada palpável, o dinheiro. O dinheiro como equivalente universal dá vida completamente autônoma ao mercado, à mercadoria, e isso de uma vez por todas põe os produtores, os homens, como apenas coadjuvantes do processo todo, depois como simples coisas e, por fim, expectadores. Essa forma de organização da vida social, regida pela sociedade de mercado, se mostra como aquela que produz em larga escala e, ao dominar o mundo, oferece a todos a própria mercadoria em um ambiente chamado sociedade do consumo. A mercadoria reaparece como mais viva ainda, pois manda nas relações que antes eram humanas e passa, agora, também a induzir desejos de seus espectadores. Atua na própria psicologia de cada trabalhador já transformado em consumidor. Essa sociedade do consumo, para funcionar, não pode ser outra coisa senão uma sociedade de proliferação de imagens. Mas são imagens feitas para conquistar, para serem vistas e obedecidas. Nasce aí o espetáculo de modo específico e especial, como elemento da sociedade do espetáculo. Explico brevemente.
IV Dá-se o espetáculo. Nesse espetáculo cada homem não se vê como produtor de mercadoria, mas como admirador, ou seja, como consumidor. Sendo consumidor pode consumir a própria mercadoria ou, então, simplesmente sua imagem ou talvez apenas se embevecer. Pode entrar no mundo criado por ela. Esse mundo criado pela mercadoria é o mundo de seu espetáculo, da dança de suas marcas, e dos espetáculos adjacentes que envolvem shows esportivos, shows macabros de desastres, espetáculos de guerra e tudo
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o mais que se apresenta nos jornalismo em geral e, especialmente, no jornalismo da TV. Além disso, amplia os shows de entretenimento variáveis e, agora, shows individualizados que cada um de nós produz em celulares, pondo-os na Internet para alimentar a representação, para amentar as imagens, para contribuir com a proliferação de “mais do mesmo”, sempre integrados à retroalimentação do consumo. Tudo isso tem como base o fetichismo. O exemplo do fetichismo da mercadoria em termos psicológicos, que eu normalmente utilizo, é bem simples. Pelo espetáculo e com a extensão do espetáculo, a mercadoria se põe como sujeito e leva o trabalhador, agora como espectador do espetáculo, ou seja, como consumidor, a se transformar em objeto. Pois a mercadoria o dispõe do exato modo que um sujeito dispõe objetos. Imagine você em uma loja tentando levar uma calça jeans para casa. Ela, a calça, lhe é estranha, ela se apresenta no seu próprio palco, a vitrine física ou televisiva e, agora, também virtual. Faz isso de diversos modos. Ela cria desejo, obriga você ao consumo. O problema seu, então, é de conseguir pagar o que a prostituta mercadoria pede. Mas esse não é seu problema maior! O cartão de crédito e a Internet lhe resolvem em parte esse impasse. Você parcela o pagamento ou simplesmente cede ao impulso irresponsavelmente e, ficando no vermelho no cartão, faz o pedido de compra. Mas há uma barreira a mais, e esta sim é importante: é que a calça jeans é viva. Ela está viva, e isso fica claro quando você percebe que jamais passaria pela sua cabeça trazer a calça e pedir para a sua avó arrumá-la em seu corpo; ao contrário, é você que irá parar de comer ou ir à academia ou marcar uma operação de tipo lipoaspiração (e, portanto, consumir mais outras coisas e participar de mais espetáculos). Ou seja, você é agora o produto morto, o pedaço de carne que deverá se acomodar à calça, enquanto que se impõe sobre você o pedaço de pano falante, vivo, atuante, ou seja, o sujeito. Eis aí a contrapartida da fetichização: a reificação do humano. Então, aí está a ideologia: não como produto da maquinação de um cérebro humano, mas como uma ilusão interna a uma verdade – um espetáculo, que ocorre no mercado e pelo mercado. Essa ideologia está articulada à alienação. A alienação ocorre à medida que a mercadoria e você, que a produziu, se separaram, e isso por conta da separação anterior, entre você e os meios de produção que puderam gerar a mercadoria. Há ainda uma alienação subjetiva: você se separa de você mesmo. O vivo de você surge morto na relação com a mercadoria, toda a sua humanidade viva sai de você, lhe é alienada, e a mercadoria reina como o vivo, como aquele que lhe tomou o
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sangue. Ela se mostra como prostituta e vampira. Tudo isso é reproduzido como imagem e por imagem. Essas são postas no mundo de modo reiterativo pela proliferação vinda da mídia e da Internet, que fazem o shopping vir até você ou mesmo criam para você a falsa ideia de que tem um shopping na sua mão, via celular. Assim, a mídia não faz nenhuma dominação intencional, de “maquinação” ou de “manipulação” (quando faz, isso é secundário nesse quadro), ela apenas funciona dentro da lógica impessoal da sociedade de mercado segundo o capitalismo (a contrapartida dessa impessoalidade, segundo Weber, é a criação de uma burocracia estatal para fazer política, e que eu digo que é também para dar continuidade ao mercado impessoal). Ela, a mídia, produz imagens, quase todas elas ligadas ao fetichismo em diversos níveis. Todo o aparato do entretenimento é regrado direta ou indiretamente por essa lógica. Seu próprio conteúdo se faz assim. A certa altura dos acontecimentos a mercadoria perde seus escrúpulos e começa a revelar seu segredo abertamente: ela coloca sua marca em cada jogador de futebol, na camisa dele, e com isso ela avisa a todos que já vinha fazendo isso há algum tempo com jornalistas e políticos – inclusive com jornalistas críticos e políticos de oposição. Quando você olha para você mesmo, vê que também este é o seu papel à medida que está fazendo parte de algum espetáculo. Ou produzindo-os no seu celular de modo mais volumoso que a chamada “grande mídia”, gerando o que é aproveitado pela grande mídia, pelo marketing e pelo jornalismo. Uma sociedade do espetáculo é uma sociedade que se diverte com o fetichismo e, então, em determinado momento, não pode fazer outra coisa senão curti-lo. Vicia-se na operação fetichista de ver o morto substituir o vivo. Vive o mundo em que um clips é um soldado, o mundo da brincadeira e da fantasia. Essa sociedade retorna fácil ao brinquedo e ao jogo. Infantiliza-se. Tudo deve ser do campo da ideia lúdica em que o pedaço de pau cria vida e se transforma num cavalo, depois, esse cavalo se transforma no Pepe Legal, o cavalo cowboy, ou seja, aquele cavalo que dispensa o cavaleiro e faz o filme sozinho. Nesse espaço infantil não cabe adultos. Só crianças. No entanto, o mundo continua contendo adultos. Assim, o mundo adulto vira um mundo de crianças. As crianças se tornam mais crianças (mesmo as que trabalham!) uma vez que os adultos se tornam crianças. Nesse mundo, os adultos se tornam amiguinhos dos filhos. Os professores viram “tias” e “tios” e depois coleguinhas, “facilitadores”. A aula vira jogo e brincadeira e a escola, desse
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modo, ou é “atrativa” ou não é mais escola. Os pais se transformam rapidamente em coleguinhas também. Conversam de tudo com os filhos. Falam de sexo e ensinam as meninas a usar camisinha, ou são ensinados por estas – tentam de maneira ridícula ensinar de modo horizontal e, assim fazendo, se tornam ridículos perante os filhos. A psicologia se dobra ao comportamento desses pais e contrata profissionais para elogiálos e dizer: “nossa, que beleza, é o mundo do diálogo”. Esses pais se transformam facilmente no personagem do pai no filme Whiplash, alimentando filhos infantis, marcando hora para ir com o filho, já adulto, comer pipoca vendo vídeo em casa. Do mesmo modo esses pais, os adultos, começam a achar que seu ambiente de trabalho também deve ser lúdico. Surgem então os profissionais da motivação, os consultores, os que fazem treinamento para o trabalho, e isso em formas de jogos, de gincanas que lembram as feitas nos reality shows da TV. Qualquer palestra que queira aprofundar algo, nesse meio, é tomada como chata. Quando voltam para casa dormem e acordam como os pais paulistanos, que são chamados em faculdades (sim, faculdades!) para levar sermão dos coordenadores, pois estão mimando seus filhos (está ocorrendo isso em São Paulo!). Todos conversam com todos abertamente, francamente. A sociedade moderna internetada, eletrônica e liberal se imagina uma Ágora grega expandida para o lar. Quando a sociedade perde a distinção entre o que é a infância e o que é a vida adulta, aparecem logo, entre outras coisas do mesmo tipo, os “caçadores de pedófilos”, os grandes justiceiros. Por quê? Porque há a idealização da infância, já que esta, real, se perdeu na prática. Ninguém mais sabe quem é criança. Ninguém mais sabe o que é adulto. Então, a sociedade reclama por um pedófilo, alguém que pega crianças, pois, fazendo isso, esse “especialista” irá apontar para a criança e dizer, “ah, olha lá, a criança para ser abusada, é criança!”. O caçador de pedófilo é o caçador de quem ele presume que sabe quem é criança! A sociedade então redescobre a criança não por sua inteligência, mas por meio de um mecanismo estranho, o do mito do pedófilo. Quem ele atacar é de fato criança! O mito do devorador de crianças salva a sociedade, de modo que esta pode saber o que apontar como criança. Assim ocorre com várias outras situações em que a diferenciações acabam por conta do conteúdo dos espetáculos. As distinções reaparecem por meio de invenções, mitos, criações esdrúxulas, leis e regras malucas. A sociedade do divertimento, do entretenimento, da gincana de do reality show termina logo por ser a sociedade da perseguição. Criam-se nomes de estereótipos e leis para punição desses que são
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acusados de terem tais nomes, de modo que diferenciações perdidas sejam repostas. Essas diferenciações artificiais são repostas por leis como a do bullying. Identifico aquilo que não identificava mais, e assim faço por meio da criminalização do que venho a chamar de discriminação. Aquele fulano chamou o outro de “gordo”. Vem a denúncia e a punição. Essa punição é no fundo o momento da identificação: fica-se sabendo, de novo, o que é um gordo. O gordo é o que sofreu a agressão. A lei contra a violência se torna apenas um modo de se poder encontrar a relação entre coisas e palavras. Reinstaura-se a semântica perdida, mas de uma maneira completamente esquizofrênica. Essa busca de uma recuperação semântica não é à toa. Afinal, o que é alienado pela sociedade do espetáculo é também a linguagem. Agamben comenta isso ao falar do livro Debord, Comentários sobre a Sociedade do espetáculo. “O espetáculo é a linguagem, a própria comunicabilidade e o ser linguístico do homem”, desse modo, o capitalismo está voltado também “à alienação da própria linguagem, da própria natureza linguística e comunicativa do homem”.14 Claro, se tudo se inverte e a semântica enlouquece, nós ficamos sem saber o que falamos e do que falamos. Criamos leis de criminalização para que juízes e policiais e outros sabichões nos digam de novo o que é cada coisa: quem é negro, homossexual, gordo, criança, mulher, doente, anão, índio, clone, bastardo, rei e poeta. Fazemos isso também com atividades. Em um mundo em que as calças dão ordens, e que, como Marx notou, as mesas com cabeça de madeira se impõem diante de outras mesas e outras mercadorias, é difícil saber o que é uma mesa enquanto mesa. Bataille diz isso a respeito da criação da Disneylândia 15: eis aí o lugar institucional da fantasia, para que, de modo concreto, indicativo, se possa dizer que no resto dos Estados Unidos não reina o falso, o ilusório, o resto é o real, adulto, a América. A Internet é o perigo que quebra isso. Mas o faz com certa segurança. Pois ela própria tenta, pela velocidade, dar parâmetros para a fantasia: o que “bomba na Net” é fantasia, o que fica não é. Mas, o que fica? Nada fica? E de fato se nada fica, como saber o que não é ilusão? Então, que volte a lei para recriar a semântica e a possibilidade de saber quem é criança, quem é o justo, quem é o feio, o que é uma prática e outra prática, o que é isso ou aquilo. As perguntas socráticas reaparecem, mas sem Sócrates, sem investigação, sem pensamento. 14 15
AGAMBEN, G. Meios sem fim. São Paulo: Ática, 2015, p. 81. BATAILLE, G. Simulacros e simulações, p. 22.
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Quem notou nesses últimos dias, com a discussão da terceirização, a confusão sobre o que é ser ou não ser trabalhador, o que é trabalho e tarefas, pode bem entender de que indistinção e de que perdas semânticas estou falando.16
REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Meios sem fim. São Paulo: Ática, 2015 BATAILLE, G. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio D’água, 1991, p. 13. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
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PS: no momento em que escrevo, o Brasil discute o que é família. O Congresso recebe votos! Querem decidir isso por algo como voto e plebiscito! Ou seja, somos incapazes de olhar para nós mesmos e, por reflexão, por pensamento e estudo, decidir que temos um avô junto com neto que, por vez, nem é filho do filho dele talvez, e esse menino tem um primo, que é quase irmão, e que traz para casa como namorado outro menino. Formam uma família. Não! A sociedade prefere a via aparentemente mais fácil, do nãopensamento: a sociedade vota dizendo que a família tradicional é o padrão dado pelo espetáculo ou pela lei velha, que nunca representou qualquer coisa vivida: família é união de um homem e uma mulher! Meu Deus, quando? Quando existiu isso como família? Onde? Em Plutão? O plebiscito também é parte do espetáculo.
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COMPARAÇÃO DOS CRISTÃOS DOS PRIMEIROS TEMPOS COM AQUELES DE HOJE (de Blaise Pascal). COMPARAISON DES CHRÉTIENS DES PREMIERS TEMPS AVEC CEUX D’AUJOURD’HUI (de Blaise Pascal). Traduzido por Andrei Venturini Martins
INTRODUÇÃO O opúsculo Comparação dos Cristãos dos primeiros tempos com aqueles de hoje de Blaise Pascal foi publicado em 1779 por pelo Pe. Bossut, no entanto, estima-se que o manuscrito foi escrito entre 1655 e 1657. Conhecemos este texto por três manuscritos: a) Cópia do manuscrito Périer, b) a Segunda Cópia, que consta na Biblioteca Nacional em Paris e, c) o 1º Recueil Guerrier. Os últimos dois são idênticos, assim como o texto de Bossut, todavia, o manuscrito Périer (sobrinho de Pascal) apresenta uma ordem diferente que não parece respeitar a lógica da demonstração do filósofo do século XVII, pois os parágrafos não articulam um encadeamento coerente. Por este motivo, mantemos a ordem de Bossut. Os poucos parágrafos lançados nos auxiliam a refletir a relação entre os primeiros cristãos e os de “hoje”, a saber, do século XVII. Pascal demonstra uma precariedade dos cristãos atuais que têm seu ponto alto nos parágrafos [21] e [22]: “Disto podemos concluir que, antigamente, não víamos entre os cristãos senão pessoas muito instruídas;/ ao passo que, agora, elas estão em uma ignorância que causa horror”.17 Antigamente o compromisso batismal era precedido por uma verdadeira conversão moral e formação permanente dos preceitos do cristianismo, em contrapartida, hoje, o batismo vem logo após o nascimento, mas não se desdobra em transformação moral e conversão. Pascal pretende mostrar a ingratidão dos cristãos atuais que viram às costas para a Igreja depois de terem sido auxiliados por ela com a graça do batismo. O texto é uma crítica ao cristão do século XVII, no entanto, uma análise do homem contemporâneo nos faz exclamar em alta voz: nada mudou! Quão é evidente que “agora não vemos nada de mais comum do que os vícios do mundo dentro
Doutor em Filosofia – PUC/SP - dreivm@hotmail.com PASCAL, Blaise. Comparaison des chrétiens des premiers temps avec ceux d’aujourd’hui, p.
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do coração dos cristãos”?18 Já nas primeiras páginas do Catecismo da Igreja Católica notamos que a instituição reconhece que a descrença em Deus, em algumas ocasiões, é provocada pelo “o mau exemplo dos crentes”.19 É o contratestemunho dos cristãos de seu tempo que o velho e bom Pascal pretende avaliar. Por fim uma consideração metodológica: a tradução foi dividida em parágrafos, os quais são indicados por [ ]; a seguir, consta, entre parênteses, a página, seguida da letra (a ou b), que se refere à coluna que foi traduzida da Edição de Louis Lafuma.
TÍTULO: COMPARAÇÃO DOS CRISTÃOS DOS PRIMEIROS TEMPOS COM AQUELES DE HOJE. [1] (360a) – 1.20 Nos primeiros tempos só víamos cristãos perfeitamente completos em todos os pontos necessários para a salvação; [2] (360a) – ao passo que hoje vemos uma ignorância tão grosseira que causa sofrimento a todos aqueles que têm sentimentos de ternura pela Igreja. [3] (360a) – Não entravamos para Igreja senão depois de grandes tarefas e longos desejos. [4] (360a) – Hoje, nela nos encontramos sem nenhuma dificuldade, sem cuidado e sem tarefas. [5] (360a) – Nela então, só éramos admitidos depois de um exame muito exato. [6] (360a) – Agora, somos admitidos antes que estejamos em estado de ser examinados. [7] (360a) – Não éramos recebidos senão depois de ter abjurado a vida passada, de ter renunciado o mundo, a carne e ao diabo. [8] (360a) – Agora, entramos antes que estejamos em condição de realizar alguma destas coisas. [9] (360a) – Enfim, outrora era preciso sair do mundo para ser recebido na Igreja, ao passo que hoje entramos na Igreja ao mesmo tempo que entramos no mundo. [10] (360a) – Assim, conhecíamos por este procedimento uma distinção essencial do mundo com a Igreja.
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PASCAL, Blaise. Comparacion des chrétiens des premiers temps avec ceux d’aujourd’hui, p. 361a, parágrafo [27]. 19 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999, 29, 2123-2128. 20 Numeração do manuscrito Périer.
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[11] (360a) – 4. Considerávamos o mundo e a Igreja como dois contrários, como dois inimigos irreconciliáveis o qual um persegue o outro sem interrupção, e cujo mais fraco em aparência deve um dia triunfar frente ao mais forte, de maneira que dentre estes dois partidos contrários, abandonávamos um para entrarmos no outro. Abandonávamos as máximas de um para abraçar as máximas do outro, nos despojávamos dos sentimentos de um para nos revestirmos dos sentimentos do outro. [12] (360b) – 2. Enfim, abandonávamos, renunciávamos, abjurávamos o mundo, de onde tínhamos recebido nosso primeiro nascimento, para nos consagrarmos inteiramente à Igreja, de onde recebíamos nosso segundo nascimento, e assim, concebíamos uma diferença espantosa entre um e outro. [13] (360b) – 3. Ao passo que hoje nos encontramos, quase ao mesmo tempo, dentro de um e de outro, e ao mesmo tempo em que nascemos para mundo, renascemos na Igreja, de forma que ocorre à razão não fazer mais uma distinção daqueles dois estados e daqueles nascimentos tão contrários. A razão edifica-se e forma-se dentro de um e de outro conjuntamente. Comungamos e gozamos dos prazeres do mundo, etc. [14] (360b) – Assim, em vez de vermos, como em outras épocas, uma distinção essencial entre o mundo e a Igreja, os vemos agora misturados e confundidos, de forma que praticamente não os discernimos mais. [15] (360b) – 7. No tempo da Igreja nascente ensinávamos os catecúmenos – isto é, aqueles que pretendiam ser batizados – antes de atribuir-lhes o batismo, e não os admitia na Igreja senão depois de uma instrução completa dos mistérios da religião, depois de uma penitência de sua vida passada, depois de um grande conhecimento da grandeza e da excelência da profissão de fé e das máximas cristãs onde eles desejariam entrar para sempre, depois de marcas eminentes de uma conversão verdadeira do coração e depois de um extremo desejo do batismo. [16] (360b) – Sendo estas coisas do conhecimento de toda Igreja, lhes outorgávamos o sacramento de incorporação e de regeneração pelos quais eles se tornavam membros da Igreja; [17] (360b) – ao passo que nesta época, o sacramento do batismo tendo sido outorgado às crianças antes do uso da razão, por considerações muito importantes, aconteceu que a negligência dos pais deixou os cristãos envelhecerem sem nenhum conhecimento da grandeza de nossa religião. [18] (360b-361a) – 8. Quando a instrução precedia o batismo, todos eram
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instruídos. Agora porém, que o batismo precede a instrução, o ensinamento que era necessário tornou-se voluntário, em seguida, negligenciado, e enfim, quase abolido. [19] (361a) – A verdadeira razão desta conduta é que estamos persuadidos da necessidade do batismo, mas não estamos da necessidade da instrução. De maneira que, quando a instrução precedia o batismo, a necessidade de um fazia com que recorrêssemos ao outro necessariamente; [20] (361a) – ao passo que hoje, o batismo precedendo a instrução, já que nos tornamos cristãos sem termos sido instruídos, acreditamos poder continuar cristãos sem sermos instruídos... [21] (361a) – 5. Disto podemos concluir que, antigamente, não víamos entre os cristãos senão pessoas muito instruídas; [22] (361a) – ao passo que, agora, elas estão em uma ignorância que causa horror. [23] (361a) – 9. Se os primeiros cristãos testemunhavam tanto reconhecimento para com a Igreja através de uma graça que ela não concedia a eles senão por longas preces, hoje os cristãos testemunham tanta ingratidão por esta mesma graça que esta boa mãe lhes concede antes mesmo que estejam em estado de pedi-la a ela. [24] (361a) – E, se a Igreja detestava fortemente as recaídas dos primeiros cristãos, embora tão raras, o quanto deveria abominar as quedas e recaídas contínuas dos últimos, embora sejam muito mais devedores, já que ela os tirou muito mais cedo21 e mais generosamente da condenação onde estavam ligados por seu primeiro nascimento. [25] (361a) – 10. Ela não pode ver, sem sofrer, o abuso da maior de suas graças, já que aquilo que a Igreja fez para garantir a salvação destes homens torna-se uma ocasião quase certa da perda deles; porque ela não mudou o espírito, embora tenha mudado de costume. [26] (361a) – 11. Entretanto, usamos do costume de maneira tão contrária à intenção da Igreja que não podemos nem pensar nisto sem horror. Quase não refletimos mais sobre um tão grandioso benefício, porque jamais o desejamos nem o solicitamos, já que nunca temos nem mesmo a lembrança de tê-lo recebido. (Não lembramos que somos obrigados por voto...).22 21
A Igreja retirou os cristãos atuais da condenação muito mais cedo, pois os homens são batizados nos primeiros dias de nascimento. (N.T). 22 O texto entre parênteses foi rasurado no manuscrito Périer. (N.T).
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[27] (361a) – 12. Disto podemos concluir que nos primeiros tempos aqueles que foram regenerados pelo batismo e que tinham abandonado os vícios do mundo para entrar na piedade da Igreja recaíam muito raramente da Igreja para o mundo, ao passo que agora não vemos nada de mais comum do que os vícios do mundo dentro do coração dos cristãos. [28] (361ab) – Portanto, agora a Igreja dos santos encontra-se totalmente suja pela mistura com os maus, e seus filhos, que ela conheceu, carregou e nutriu, desde a infância, no seu ventre, são estes mesmos que levam dentro do coração, até participando em seus augustos mistérios, o mais cruel dos inimigos, ou seja, o espírito do mundo, o espírito de ambição, o espírito de vingança, o espírito de impureza, o espírito de concupiscência; e o amor, que ela tem por seus próprio filhos, a obriga a admitir até dentro de suas entranhas o mais cruel de seus perseguidores... [29] (361b) – 13. Mas não é à Igreja que devemos imputar estas desgraças que acompanharam uma mudança de disciplina tão salutar23, já que ela não mudou de espírito, embora tenha mudado de conduta. Portanto, tendo visto que a dilação do batismo deixava um grande número de crianças dentro das maldições de Adão, a Igreja quis livrá-las desta massa de perdição, acelerando os socorros que concedia a elas. Esta boa mãe não vê senão com um extremo desgosto que aquilo que ela arranjou para a salvação de seus filhos torna-se ocasião de perda aos adultos. [30] (361b) – Seu verdadeiro espírito é que aqueles que a Igreja retira em uma idade tão tenra do contágio do mundo apropriam-se de sentimentos plenamente opostos àqueles do mundo. Assim, ela antecipa o uso da razão para antecipar os vícios onde a razão corrompida os aprisionaria e, antes que seu espírito possa agir, ela preenche seu espírito, a fim de que eles vivam em uma grande ignorância do mundo e em um estado tão distante do vício que jamais o teriam conhecido. [31] (361b) – 14. Isto aparece pelas cerimônias do batismo, pois a Igreja não outorga o batismo às crianças senão depois que elas declaram, pela boca dos padrinhos, que o desejam, que acreditam, que renunciam ao mundo e a Satã. E como ela quer que as crianças conservem estas disposições na continuação de toda vida, a Igreja lhes ordena expressamente de guardá-las inviolavelmente, e ordena aos padrinhos, por um mandamento indispensável, de instruir as crianças de todas estas coisas. Porque ela não deseja que aqueles que ela nutriu em seu seio desde a infância sejam hoje menos 23
O batismo entre os primeiros cristãos era realizado nos adultos, mas no século XVII as crianças são batizadas ao saírem do ventre das mães. Eis a mudança de disciplina. (N.T).
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instruídos e menos devotos que os adultos que ela admitiu outrora ao número dos seus. A Igreja não deseja uma perfeição menor naqueles que ela recebe. [32] (361b) – 15. Porém, como é evidente que a Igreja não solicita menos devoção para com aqueles que foram familiarmente elevados na fé quanto àqueles que aspiram-na no futuro, é preciso colocar diante do olhos o exemplo dos catecúmenos, considerar seu ardor, sua devoção, seu horror pelo pecado, sua generosa renúncia ao mundo: se não os julgavam dignos de receber o batismo, sem estas disposições, aqueles que não se encontravam nestas disposições os catecúmenos...24 [33] (361b-362a) – 6. Portanto, é necessário que os cristãos de hoje submetam-se a receber a instrução que eles teriam tido, se começassem a entrar em comunhão com a Igreja. [E é necessário ainda que eles se submetam a uma penitência tal que não tenham mais desejo da rejeitá-la e que tenham ainda menos aversão pela austeridade de suas mortificações de modo que não encontrem encanto no uso das delícias viciosas do pecado.]25 [34] (362a) – Para dispô-los a se instruir é preciso fazê-los entender a diferença dos costumes que foram praticados na diversidade dos tempos. [35] (361b-362a) – É necessário que se coloque diante dos olhos o exemplo dos catecúmenos e que considerem seu ardor, sua devoção, seu horror pelo mundo e sua generosa renúncia a todas suas pompas. Porque se os catecúmenos não se julgavam dignos de receber o batismo sem estas disposições, será justo que aqueles que não se encontram nelas depois de tê-lo recebido façam todo esforço para formarem tão generosos sentimentos, se submetam a uma penitência salutar no resto de seus dias e que tenham tão pouca aversão por uma vida totalmente crucificada que não encontrarão encanto no uso das delícias envenenadas do pecado.
REFERÊNCIAS CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 10ª ed. Petrópolis: Vozes. PASCAL, Blaise. Comparaison des chrétiens des premiers temps avec ceux d’aujourd’hui. In: ___. Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 360 – 362.
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Primeiro rascunho de um parágrafo que poderia será retomado posteriormente no parágrafo [35]. (N.T). 25 Esta passagem entre colchetes se apresenta enquadrada no manuscrito Périer. Sem dúvida, trata-se de uma primeira redação do texto que reencontraremos adiante. (N.E).
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