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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano 8, número 1, 2018 ISSN: 1984-7157 FOTO DE CAPA DESTA EDIÇÃO: Título: Philosoph Peter Sloterdijk. – (c) imago/Leemage Resolução original: 1152 × 691 Fotógrafo: (desconhecido) Disponível em:
https://diepresse.com/home/kultur/literatur/5279909/Symposion_Globart-ueber-Ordnung-und-Unordnung
GT – Pragmatismo e Filosofia Americana REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Paulo Ghiraldelli Jr. – UFRRJ e Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) Susana de Castro – UFRJ Adriano Naves de Brito – Unisinos Gabriel Palumbo (Universidade de Buenos Aires – UBA) Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo Luiz Eduardo Soares – UERJ Jurandir Freire Costa – UERJ Cerasel Cuteanu – CEFA James Campbell – Universidade de Toledo Leoni Maria Padilha Henning – Universidade Estadual de Londrina Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” Inês Lacerda Araújo – PUC-PR Heraldo Silva – UFPI Maria José Pereira – UCG Vera Vidal – Fiocruz Ronie Silveira – UNILAB Reuber Scofano – UFRJ Cristiane Maria Marinho – UECE Narbal de Marsillac – UFPB Baptiste Grasset – UNIRIO Ricardo Corrêa de Araújo – UFES Marcelo Barreira – UFES Edna Maria Magalhães do Nascimento – UFPI Aldir Filho – UFMA Juliano Pessanha – CEFA e USP Marcos C. Lopes (Unilab) Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Filosofia ISSN 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr, Frederico Graniço e Ricardo Mantovani. Editores Executivos: Paulo Francisco M. Ghiraldelli e Francielle Maria Chies. Editores Adjuntos: Naiana Carvalho da Cunha, Hugo Lopes de Oliveira, Diego Aquino Horta, Giovane Martins Vaz dos Santos.
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano 8, número 1, 2018
Sumário Editorial --------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 4
Artigos Animais de segunda ordem: identidade e identificação ------------------------------------------------- 7 (Thomas Macho) Subjetividade moderna: Agostinho, pecado e acrasia -------------------------------------------------- 27 (Paulo Ghiraldelli Jr.) A questão do observador neutro na obra Morte Aparente no Pensamento de Peter Sloterdijk: gênese, desdobramentos e morte ------------------------------------------------------------- 36 (Fábbio Cerezoli)
Tradução Da Ironia à Serenidade Robusta – Políticas Pragmáticas sobre Religião depois de Rorty ----- 54 (Martin Mueller)
Resenha Para Ler Sloterdijk (Paulo Ghiraldelli Jr.) ------------------------------------------------------------------- 74 (Thiago Ricardo de Mattos)
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EDITORIAL (Revista Redescrições, Ano VIII, nº 1)
Bem-vindo amiga e amigo leitor ao 8º ano da revista REDESCRIÇÕES. Depois de uma breve pausa, retomamos nossa publicação quadrimestral em 2018. Neste NÚMERO 1 organizamos a apresentação dos artigos no sentido uma compreensão da própria capacidade compreensiva humana ao longo da história. Achou complicado? Dá uma olhada! Abrindo este número trazemos o artigo de Thomas Macho, ANIMAIS DE SEGUNDA ORDEM: IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO, com uma explanação bastante informada sobre alguns dos contextos de surgimento e desenvolvimento do que se chama “técnicas culturais” – as tecnologias humanas de autorreferência, que permitiram o desenvolvimento da arte; ou “técnicas de segunda ordem”, na medida em que se distinguem das técnicas primárias que visam uma ação específica no mundo que não permite autorreferência a si própria enquanto técnica. – como a caça e a produção dos alimentos. As técnicas culturais incluem pintura, escrita, canto, e todas as capacidades expressivas humanas. Thomas Macho caracteriza alguns contextos do surgimento primitivo de algumas destas técnicas, vinculando-os a características identitárias dos povos e quiçá da humanidade de um modo geral. Avançando um bocado na cronologia, o artigo de Paulo Ghiraldelli Junior distingue a interioridade antiga da interioridade moderna, agora tomada como subjetividade
egóica.
Em
SUBJETIVIDADE
MODERNA:
AGOSTINHO,
PECADO E ACRASIA, Ghiraldelli discorre sobre uma distinção entre a interioridade platônica clássica e a moderna prenunciada por Santo Agostinho, agora tomada como subjetividade. A distinção consiste principalmente no surgimento de uma perspectiva subjetiva possivelmente egoísta e, por isso, pecadora – o que cria o fenômeno da akrasia, a fraqueza da vontade. Ghiraldelli nos explica que em Platão o conhecer a si mesmo era visto como um se aproximar de uma objetividade exterior – a razão; enquanto que para Agostinho de Hipona, prenunciando os dilemas modernos, surge a ideia de uma vontade subjetiva que poderia sabotar constantemente a verdade, aqui tomada como Deus. Mais adiante, no terceiro artigo, trazemos uma crítica mais contemporânea que serve para questionar tanto a metodologia platônica clássica, quanto o pensamento
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religioso e mesmo a filosofia moderna. Em A QUESTÃO DO OBSERVADOR NEUTRO NA OBRA MORTE APARENTE NO PENSAMENTO DE PETER SLOTERDIJK: GÊNESE, DESDOBRAMENTOS E MORTE, o jornalista e estudante de filosofia Fábbio Cerezoli reconstrói o questionamento do filósofo Sloterdijk à tradição platônica de um “observador neutro” na construção teórica, seja filosófica ou científica. Para tal recorre ao conceito de “Morte aparente no pensamento”, que dá título à obra traduzida de Sloterdijk, e recorre ainda às diversas concepções históricas em torno da ideia de prática – na medida em que a prática supostamente frustraria aquela neutralidade observacional. Na seção de TRADUÇÕES voltamos ao diálogo com a religião, mas sob o ponto de vista do filósofo contemporâneo Richard Rorty. Apresentamos o artigo do filósofo alemão Martin Müller, traduzido para o português exclusivamente para a revista REDESCRIÇÕES. O título: DA IRONIA À SERENIDADE ROBUSTA – POLÍTICAS PRAGMÁTICAS SOBRE RELIGIÃO DEPOIS DE RORTY. Aqui Müller reconstrói a preocupação de Rorty em relação ao ímpeto essencialista do discurso religioso, apresentando a transição da posição de Richard Rorty de um ateísmo para um anticlericalismo, motivada por diferentes circunstâncias: como por exemplo uma auto avaliação do próprio filósofo e o contato com perspectivas religiosas antifundacionistas, como o caso da proposta hermenêutica de Gianni Vattimo. Müller critica alguns aspectos do anticlericalismo de Rorty, principalmente no que tange a seu aspecto individualizante da religião – o que frustraria algumas pretensões do discurso religioso; Müller propõe então o que chama de um “pluralismo pragmático”, onde múltiplas crenças podem coexistir com as instituições políticas desde que estejam acordadas em não coagirem as relações públicas a partir de crenças individuais ou somente setoriais. Fechando este número da REDESCRIÇÕES retomamos o pensamento também contemporâneo de Peter Sloterdijk. Na seção RESENHA Thiago Mattos apresenta o livro PARA LER SLOTERDIJK, do filósofo brasileiro Paulo Ghiraldelli Junior, o qual, a propósito, assina o segundo artigo desta revista, sobre Santo Agostinho e o platonismo. A resenha de Mattos assume uma característica interessante, pois apresenta um livro que, em alguma medida, é também uma apresentação – da perspectiva filosófica contemporânea de Sloterdijk. Sendo assim Mattos sintetiza a forma como Ghiraldelli caracteriza a filosofia de Sloterdijk, num diálogo com a filosofia antiga de Platão e Aristóteles e também com a filosofia contemporânea de Heidegger e Habermas. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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A filosofia de Sloterdijk dialoga com a condição humana desde seu nascimento, buscando no que eu poderia chamar de uma “pragmática da gestação” (ou do “ser no mundo”) algumas formas simbólicas gerais do pensamento humano que o acompanham desde o nascimento. Aqui a filosofia dialoga com a psicologia, a psicanálise, e também com aspectos da linguagem enquanto ato compreensivo; e isso sem que possamos estabelecer qualquer primazia ou determinismo simples. Divulguem a revista REDESCRIÇÕES em suas redes sociais! Não deixem de enviar também vossas contribuições! Até a próxima!
Os editores.
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ANIMAIS DE SEGUNDA ORDEM: IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO SECOND-ORDER ANIMALS: CULTURAL TECHNIQUES OF IDENTITY AND IDENTIFICATION
Thomas Macho1, Traduzido por Luma da Silva Miranda2 Do texto traduzido por Michael Wutz3
RESUMO Este artigo explora a tese de que o conceito de técnicas culturais deve ser limitado estritamente às tecnologias simbólicas que permitem recursos autorreferenciais. A escrita permite que alguém escreva sobre a própria escrita; a própria pintura pode ser retratada na pintura; filmes podem expor outros filmes. Em outras palavras, técnicas culturais são definidas pela habilidade de tematizar elas mesmas; elas são técnicas de segunda ordem opostas às técnicas de primeira ordem como cozinhar ou cultivar um campo. Para ilustrar sua tese, Macho discute uma sequência de exemplos históricos desde sinais corporais e máscaras mortuárias a código digital e documentos de identificação. Esses exemplos servem para reiterar outra proposta básica que já está anunciada no título do artigo. As qualidades recursivas e auto-observantes das técnicas culturais fazem delas uma tecnologia do eu e, por isso, tornam-nas indispensáveis para a geração, repetição e manutenção da identidade. Palavras-chave: técnicas culturais, identidade, observação de segunda ordem, técnicas de escrita. ABSTRACT
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Humboldt-Universität zu Berlin, Institut für Kulturwissenschaft, Georgenstr. 47, Raum 4.29, Berlin, 10117, Germany. Email: thomas.macho@cms.hu-berlin.de http://www.sagepub.net/tcs/. Thomas Macho recebeu seu PhD da Universidade de Viena em 1976 e completou sua habilitação na universidade de Klagenfurt em 1983. Em 1993, ele foi nomeado professor de História Cultural na Universidade Humboldt em Berlim. Entre suas maiores publicações estão Todesmetaphern. Zur Logik der Grenzerfahrung (Frankfurt 1983), Das zeremonielle Tier. Rituale – Feste – Zeiten zwischen den Zeiten (Viena 2004) e Vorbilder (Monique 2011). 2 Doutoranda em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Formou-se em Bacharelado e Licenciatura em Letras com habilitação em Português/Inglês pela mesma instituição. Lecionou Língua Portuguesa e Literatura no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Atualmente, desenvolve uma tese de doutorado sobre a relação entre a prosódia e as expressões faciais na discriminação de sentenças no português brasileiro. 3 Michael Wutz (PhD, Universidade de Emory) é professor distinto presidencial Brady no departamento de Inglês na Universidade Estadual de Weber e editor de Weber: The Contemporary West. Ele é co-editor de Reading Matters: Narrative in the New Media Ecology (Cornell University Press, 1997), co-tradutor do Gramophone, Film, Typewriter de Friedrich Kittler (Stanford University Press, 1999, com Geoffrey Winthrop-Young), e autor de Enduring Words: Narrative in a Changing Media Ecology (University of Alabama Press, 2009). REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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This paper explores the thesis that the concept of cultural techniques should be strictly limited to symbolic technologies that allow for self-referential recursions. Writing enables one to write about writing itself; painting itself can be depicted in painting; films may feature other films. In other words, cultural techniques are defined by their ability to thematize themselves; they are second-order techniques as opposed to firstorder techniques like cooking or tilling a field. To illustrate his thesis, Macho discusses a sequence of historical examples, from body signs and death masks to digital code and ID papers. These examples serve to reiterate another basic proposal that is already announced in the paper’s title. The recursive, self-observing qualities of cultural techniques make them a ‘technology of the self’ and thus render them indispensable for the generation, repetition and maintenance of identity. Keywords: cultural techniques, identity, second-order observation, writing tools.
Animais simbólicos
Desde Aristóteles, humanos tem sido vistos como animais capazes de falar e inventar, ordenar e manipular signos. Ao contrário da maioria dos outros animais, eles fazem uso de alfabeto, sequências de número, notação de sistemas ou códigos: eles praticam técnicas culturais. Esse termo não engloba todas as técnicas que uma cultura tem a sua disposição, mas estritamente aquelas técnicas que fazem o trabalho simbólico possível. Cada cultura é fundamentada em inúmeras técnicas que garantem sua sobrevivência, como as técnicas do fogo, caça, confecção de roupas e ferramentas, nutrição e culinária, agricultura, economia ou organização social. Primatas, também, estão em posse de algumas dessas técnicas, é por isso que Franz Waal (2001) atribui corretamente o termo cultura para eles. Culturas humanas, entretanto, não são simplesmente compostas dessas múltiplas técnicas, mas evoluem de sua concentração simbólica. Esse trabalho simbólico é dotado de outras atividades com significado específico delas; isso dá ordem ao mundo e habilita as culturas a desenvolverem conceitos de autorreflexão. O trabalho simbólico requer técnicas culturais específicas, como falar, traduzir e compreender, formar e representar, calcular e medir, escrever e ler, cantar e fazer música. Técnicas culturais se diferem de todas as outras técnicas através de seu potencial de autorreferencialidade, uma pragmática da recursão. Desde o início, a fala pode ser falada e a comunicação ser comunicada. Nós podemos produzir pinturas que retratam pinturas ou pintores; filmes frequentemente expõem outros filmes. Alguém só pode calcular e medir com referência ao cálculo e à medida. E alguém, é claro, escreve sobre
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a escrita, canta sobre o canto e lê sobre a leitura. Por outro lado, é impossível tematizar o fogo enquanto se faz fogo, assim como é impossível tematizar sobre o cultivo enquanto se cultiva, cozinhar enquanto se cozinha, e caçar enquanto se caça. Nós podemos falar de receitas ou práticas de caça, representar o fogo de uma forma pictórica ou dramática, ou esboçar um novo prédio, mas para fazer isso precisamos nos beneficiar das técnicas de trabalho simbólico, ou seja, nós não fazemos fogo, caça, culinária ou prédios naquele momento específico. Usando uma expressão tirada da teoria de sistemas, podemos dizer que técnicas culturais são técnicas de segunda ordem. Como técnicas de segunda ordem, técnicas culturais tem desde o início funcionado como técnicas de autorreflexão, formação de identidade e identificação. Mesmo hoje, a maioria das técnicas culturais servem como veículos de autodescrição, autolegitimação e autenticação, seja em forma de imagens, escritas ou números: sejam elas autorretratos ou fotos de passaporte, sinais do corpo (como impressão digital), selos, carimbos, brasões ou logotipos, assinaturas e placas, ou códigos numéricos (desde o número de segurança social e privado de uma pessoa até o código PIN no caixa de autoatendimento eletrônico). Técnicas culturais sempre foram praticadas como tecnologias do eu (no sentido de Michel Foucault, 1988). Elas constituem sujeitos que evoluíram da multiplicidade de recursão e meio, não simplesmente de um ‘estágio do espelho’, como em Lacan (2002 [1977]).
Sinais do corpo
A história dessas ‘tecnologias do eu’ começa na escuridão pré-histórica. Quando cavernas de culto Paleolíticas na França e na Espanha foram exploradas pela primeira vez, os cientistas não viram somente representações realísticas e impressionantes de animais numerosos. Essas marcas ou eram positivas, através da qual uma mão pintada era pressionada sobre a rocha, ou eram negativas, significando que os artistas traçaram o contorno de uma mão esticada com um pouco de cor ou um tubo de sopro. (Ver, por exemplo, as marcas nas cavernas de Pech-Merle, Gargas, El Castillo, Tibiran, Bayron, La Baume-Latrone, Rocamadour, Bernifal, Font-de-Gaume, Le Portel [cf. LeroiGourhan, 1982], ou em Chauvet no Ardèche Valley, que não tinha sido descoberto até 1994 [[cf. Chauvet et al., 1995: 30, 112]). Às vezes essas marcas apareciam isoladas, outras vezes apareceram em conjunto. Em Gargas, por exemplo, cientistas identificaram 150 mãos vermelhas e pretas, 50 em El Castillo, e 12 em Tibiran e Peche-Marle. Originalmente, o pré-historiador Henri Breuil assumiu que praticamente todas as REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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impressões eram de mãos esquerdas; mais tarde, cientistas reconheceram que essas impressões continham algumas que eram feitas de mãos direitas (com os dorsos). Muitas dessas mãos são tão pequenas que pensaram inicialmente ser impressões de mulheres e crianças (ideia que ganhou credibilidade pelo fato das cavernas de Niaux, Aldène ou Perch-Merle conter numerosas impressões de pés de crianças em solo argiloso). O mais intrigante foi a impressão de mãos em Gargas: um número substancial de mãos parecia ter dedos mutilados ou trocados, que foram originalmente tidas como evidências de práticas arcaicas de amputações ritualizadas. Somente mais tarde – assim como frequentemente é o caso de pesquisas pré-históricas – os cientistas puderam corrigir suas observações dramáticas: sob um escrutínio minucioso, tornou-se evidente que os dedos daquelas mãos que tinham sido colocadas com a parte do dorso delas contra a rocha estavam dobrados para dentro e, em alguns casos, retocados e encurtados depois. O significado dessas marcas de mãos e as práticas performativas permanecem um mistério. Elas estão conectadas a símbolos abstratos, varas ou espirais que André Leroi-Gourhan classificou como indicações de gênero? Elas foram produzidas no curso de rituais mágicos de ‘renascimento’ de animais ou humanos, como foi conjecturado por Max Raphael (1979) ou Hans Peter Duerr (1984)? Ou essas marcas de mão eram de fato os primeiros sinais de origem, como Martin Schaub assume:
Os artistas das cavernas pré-históricas isentaram-se quase completamente de seus trabalhos. Porém a marca de suas mãos está em toda parte: como cumprimento, memória, assinatura?... Os artistas nessas cavernas escreviam ou assinavam suas obras de arte? Qual é a significância das mãos ‘mutiladas’ que alguém pode ver de vez em quando? Elas são inscrições de caça, sinais ‘sacerdotais’, a comemoração de uma visita, uma comunicação com os mortos e descendentes, sinais de recordação, traços de rituais, sinais de empoderamento mágico, inscrições de sepultura? Muitas teorias têm avançado, mas nada é conclusivo exceto pelo gesto orgulhoso que diz ‘eu’ e ‘aqui’. Eu, minha mão, e aqui está o testemunho disso (1996: 84).
Já na Antiguidade era comum assinar contratos com a impressão dos dedos, mas como um meio de detecção de crime – como uma técnica moderna de identificação pela polícia – ‘impressões digitais’ não foram popularizadas até o final do século 19 (Galton, 1965 [1892]). Naquele ponto, elas não operavam mais como ativos, mas sinais passivos do corpo – eles têm sido usados há milhares de anos, quando se tratava de criar gado ou fazer escravos ou prisioneiros.
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11 Selos, carimbos e brasões
A partir de uma perspectiva técnica, a história dos sinais do corpo pode ser vista na história de ‘impressões’, que sempre precederam expressões. O que está sendo ‘impresso’ são ou partes do corpo (como mãos ou dedos), ou objetos sobre uma superfície (gesso, argila ou cera). A técnica de ‘impressão’ não se diferencia entre corpos e artefatos e o uso de objetos que estendem o corpo. Cada impressão requer um ‘suporte ou um substrato material, um gesto que produza aquela impressão específica (normalmente, um gesto de impressão, ou pelo menos um toque), e um resultado mecânico, ou seja, uma marca saliente ou identificada’ (Didi-Huberman, 1999: 14, ênfase no original). Essa impressão, no entanto, não está atada a objetos específicos. No caso de uma autenticação, a impressão deve produzir uma marca que aponta para seu fabricador – um sinal que não deve ser confundido por um vestígio não intencionado, mas que deve ser decifrável e legível como uma assinatura específica e individual. Enquanto os seres humanos frequentemente se preocupam em não deixar traços ‘detectáveis’, essas impressões, pelo contrário, devem por definição indicar quem as fez. Talvez tenha sido essa intenção estratégica que serviu para desconsiderar sinais do corpo, por causa da dificuldade de discernir se um traço de um corpo, uma mão, um dedo, ou um pé foi produzido por acidente ou por design. Quem sabe se não foi por essa mesma razão que marcas de mãos paleolíticas tinham que ser retocadas depois do fato? A história dos desenhos e da escrita podem, por isso, ser contadas como a história dos instrumentos necessários para fazer impressões: estênceis, lápis, pincéis, caneta de tinta de pena. Os primeiros sinais de autenticação foram impressos sobre tábuas de argila ou urnas com selos e carimbos já em 4000 AC. Primeiramente, pessoas usavam ossos esculpidos ou pedras para deixar padrões específicos, ornamentos, ou marcas na argila; somente mais tarde eles usaram metais ou pedras preciosas. Os selos deixaram marcas individuais e inconfundíveis; se eles serviram como emblema pessoal, eles foram frequentemente desgastados como ornamentos: elementos estáveis e confiáveis em um corpo cujas expressões orgânicas foram capazes de produzir somente vestígios fugazes e ambíguos. No Oriente, por exemplo, pessoas gostavam de usar sinetes como braceletes – pinos pequenos, cilíndricos com desenhos ou escrituras cuneiformes. Anéis de sinete com a impressão de seus usuários se tornaram populares na Grécia Antiga. (Nós, também, aliás, gostamos de usar nossos instrumentos de escrita preferidos próximo de nós, nos bolsos de peito ou bolsas.) REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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As autoridades seculares e eclesiásticas da Idade Média, por parte delas, desenvolveram sistemas diferenciados de sinais como um índice de status e afiliação. Dinastias reais, famílias nobres, cavaleiros, mas também papas, cardeais, bispos e mais tarde grêmios usaram cores e sinais que tinham que ser compostos em brasões, seguindo a arte da heráldica. O código da heráldica distinguiu um conjunto de sete cores primárias: as ‘cores da laca’, vermelho, azul, verde, e preto, os ‘metais’ de ouro e prata, bem como roxo (violeta), que podem ser usados tanto como laca quanto como cor de metal. Brasões foram montados de acordo com a regra para alternar cores de laca com metais. Eles foram usados não só no serviço de representação, mas também identificaram amigos e inimigos durante a guerra.
Objetos falantes
Selos, sinetes e carimbos foram (e são) objetos que dão voz a outros objetos. Até hoje, a função mais importante deles consiste em combinar textos, imagens, objetos com um eu ou uma pessoa em um ato de fala. Com a ajuda de um selo ou um carimbo, um ato de fala é transferido para um objeto; o artefato resultante proclama, por exemplo, quem o fez ou o autorizou (à parte da ideia principal que representa em sua imagem, texto e materialidade). Basicamente, selos funcionam do mesmo jeito que atos de fala em relação ao texto escrito ou à figura pintada; o selo e o carimbo representam – seja como um objeto ou um ornamento – a voz externamente materializada de autoridade ou o autor. É por isso que ‘guardar um selo’ nas avançadas civilizações antigas foi confiado aos funcionários públicos de ranking mais alto, porque a ‘custódia do selo’, de certo modo, exerceu controle sobre a voz do rei, o ‘segundo corpo’ dele. O atual Lorde chanceler, antigamente o presidente da Casa dos Lordes e cabeça do judiciário, se originou da ‘Custódia do grande selo’, e França e Itália retiveram esse título para o ministro da justiça deles também. No Sacro Império Romano, o Margrave de Mainz serviu como ‘Arqui-chanceler’ e ‘sigilli custos’ até 1806, e mesmo nas burocracias de hoje os carimbos que trazem o assim chamado 'selo oficial' são guardados a sete chaves. A história dos selos (e mais tarde do sinete na Grécia Antiga) pode ser associada com o desenvolvimento de objetos inscritos – i.e. vasos ou estátuas – que se tornaram um interesse dos arqueólogos. O especialista de epigrafia italiana Mario Burzachechi descreve os artefatos como ‘objetos falantes’ ou ‘oggetti parlanti’ para considerar o curioso fato de que a maioria das inscrições estava em primeira pessoa e – por causa das palavras estarem todas juntas – faz sentido somente quando lidas em voz alta (1962: 3REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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54). A leitura em tal arranjo pode ser entendida como uma espécie de ‘esmagamento’ do leitor pela estátua falante ou artefato, como Jesper Svenbro argumentou.
O objeto de inscrição é denominado na primeira pessoa, o escritor, pelo contrário, na terceira. (Objetos nomeando o autor na terceira pessoa foram somente encontrados datando de cerca de 550 AC, e eles fazem isso, em parte, para esconder a real autoridade identificada por um Eu. A ânfora do sexto século pode servir de exemplo: ‘Eu fui feita por Kleimachos e eu pertenço a ele (ekeínou eimí)’. Quando você ler isso, Kleimachos não estará mais aqui; ele terá ido, o que é comunicado claramente pelo pronome demonstrativo ekeínos. (Ekei-nos é o pronome demonstrativo da terceira pessoa que aponta para o fato de que a pessoa não está ‘aqui’, mas ‘lá’, ‘longe daqui’ (ekeí)). A ânfora mesma, pelo contrário, está aqui. Ninguém pode dizer o 'Eu' da inscrição. Kleimachos não pode fazer isso. Ele escreve sobre a ânfora dele, porque ele já antecipa sua ausência futura (senão, não valeria a pena escrever isso). (1999:74).
Autorretratos e máscaras mortuárias
Retratos e autorretratos estão entre as mais importantes técnicas de autorreflexão. O que não é claro é quando precisamente humanos começaram a retratar seus próprios rostos. As cavernas Paleolíticas continham poucas representações de humanos, muito menos retratos. Por alguns milênios artesãos pintaram exclusivamente animais, mas praticamente nenhum humano; se as representações humanas eram gravadas nas rochas, elas tipicamente não apresentavam características faciais. Os artesãos da Idade da Pedra tinham ‘uma variedade de materiais a seu dispor e um arsenal de imagens poderosas da vida cotidiana, com a qual eles transformaram cavernas em locais sagrados’, mas eles não fizeram retratos dos membros de sua própria espécie. ‘O repertório de imagem foi encontrado em seu auge nas galerias magníficas e ricamente produzidas em Lascaux na reigão sudoeste na França. Lascaux tem sido chamada de Capela Sistina da Idade da Pedra. É um lugar sagrado onde o pensamento espiritual se externalizou, onde o drama da vida imaginativa é retratado. E, ainda assim, nessa caverna, dentre centenas de imagens, não há um único exemplo de face humana’ (Landau, 1989: 189). Nos anos sessenta, durante suas escavações no sítio da cidade Neolítica de Jericó, a arqueóloga britânica Kathleen Kenyon descobriu uma série de caveiras humanas que foram decoradas artisticamente. Através da aplicação retrospectiva de camadas de cal e gesso, um levantamento de face foi dado a esses rostos, por assim dizer, para combater os efeitos da decomposição facial. Terry Landau escreve que ‘cada face é distinta e fortemente individual. Cada uma é feita com um propósito. Esse propósito era perpetuar a vida após a morte ao substituir a carne transitória por algo REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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mais duradouro’ (1989: 192). A carne se decompõe, mas os ossos permanecem; a pele pode ser conservada; ao contrário das entranhas. A qualidade de vários materiais como pedra, metal, madeira, argila, gesso ou cera corresponde a essas diferenças, e essas qualidades determinam como e de que maneira a materialidade de um cadáver pode ser transmutada sob a forma de uma pintura ou estátua. Georges Dibi-Huberman, por exemplo, assinala que as máscaras de ouro famosas dos túmulos reais de Micenas, datadas do século 16 AC, foram aparentemente ‘feitas diretamente da face’ e representam a ‘tridimensionalidade da cabeça’; eles reproduziram ‘a sugestão da semelhança através do toque’. Ao mesmo tempo, ‘a atenção para a modelagem e o trabalho de martelo’ evidente nessas máscaras também indica ‘um sólido esquematismo’ que atesta ‘a predominância do pensamento ornamental na representação da forma humana.’ O que tem que ser levado em conta é que o ‘tratamento dialético de toque e ornamento físico’ seria impensável ‘se o prato de ouro como metal transportador não fosse tão extraordinariamente flexível como é, e se o processo de impressão não fosse inerentemente flexível. O prato de ouro pode ser trabalhado em ambos os lados’ (1999: 34, ênfase no original). Hans Belting conectou o paradoxo fundamental do morto – a ‘ausência presente’ dele – com os impulsos mais antigos das artes plásticas e visuais.
O real significado de um retrato está na sua representação de algo que está ausente, e só pode estar presente na forma de retrato. Faz visível, não o que está no retrato, mas só pode aparecer no retrato. O retrato de um morto, nesse sentido, não é uma anomalia, mas o nosso significado do que é o retrato está em primeiro lugar. O falecido sempre é uma ausência e a própria morte uma ausência insuportável cujo vazio a imagem serviu para preencher e tornar suportável.
Mas esse segundo retrato é somente uma resposta ao primeiro retrato, como Belting nota (pace Maurice Blanchot):
A própria morte já está presente na imagem porque o cadáver já se transformou em uma imagem que meramente se assemelha ao corpo da pessoa viva...a pessoa viva não é mais um corpo, mas somente a imagem de um. Ninguém pode se assemelhar a ele mesmo. Ele [ou ela] faz isso somente em uma imagem ou como um cadáver.
Morrer, nesse sentido, significa ser transformado na ‘imagem de si mesmo’.
O terror da morte reside no fato de que um corpo falante e que respira se transforma, de uma só vez e na frente de todos, em uma imagem muda....
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15 Humanos estavam indefesos expostos à experiência da vida se deslocando para sua própria imagem na morte. Eles perderam o cadáver, que participou na vida da comunidade, para uma mera imagem.
Belting argumenta que foi somente essa experiência contingente de ‘torna-se uma imagem’ que levou os humanos a fazerem retratos ou estátuas por conta própria.
Agora era uma imagem artificial que contradizia a outra imagem, o cadáver. Através do ato de fazer imagens humanas se tornarem ativas na tentativa deles de resistir a experiência do terror da morte. (Belting, 1996: 94)
Mais tarde tornou-se uma prática comum fazer uma impressão dos rostos do cadáver. O termo em latim ‘larva’ designa a máscara de um ator bem como o fantasma de uma pessoa morta. Esse significado duplo não é coincidência; refere-se ao costume bem conhecido de deixar os mortos reaparecerem como portadores de máscaras. Os Romanos rotineiramente criaram impressões de cera e máscaras de figuras proeminentes na vida pública, que foram preservadas como efígies e exibidas durante vários desfiles. De acordo com o historiador Políbio (segundo século AC), tais impressões de cera foram usadas pela primeira vez durante cerimônias funerárias, mais tarde montadas em galerias de retrato ancestral, e exibidas publicamente (e decoradas) para ocasiões apropriadas. Em funerais e cerimônias de sacrifício, ancestrais poderosos foram representados ou através de efígies vestidas ou atores vestindo as respectivas máscaras mortuárias. Rômulo e Pompeu participaram desse jeito no funeral do Imperador Augusto, ao lado do próprio imperador (Von Schlosser, 1993:21).
Imagens de espelho e sombras
Humanos e animais se transformam em sua imagem não apenas na morte, mas também com cada reflexo e em toda sombra. É certamente verdadeiro que reflexos e sombras não produzem sinais duradouros, como Umberto Eco enfatizou (cf. Eco, 1995: 9-37). Talvez seja por essa razão que ambos foram vistos com suspeita na antiguidade. Naquela época a maioria dos espelhos foi construído não com superfícies planas mas como espelhos convexos ou côncavos adequados para experimentos ópticos. Reflexos não tiveram status legítimo nem na vida cotidiana ou em experimentos científicos, que podem bem ter sido atribuídos a materiais a partir dos quais espelhos foram construídos. Os espelhos de Arquimedes, assim como outros espelhos datados do século 4 AC, eram presumivelmente feitos de bronze; mais tarde, quase qualquer outro metal concebível
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foi usado para fazer espelhos, desde que fosse adequado para raspar e polir. A Grécia teve sua primeira escola para produtores de espelho cerca de um século após o nascimento de Platão, onde artesãos foram ensinados a como suavizar e polir uma placa de metal com areia sem riscá-la. Romanos e Etruscos tinham preferência por espelhos de prata. Começando com o primeiro século AC, espelhos de ouro fizeram parte de um meio de pagamento preferível para funcionários entre as classes superiores. Como uma regra geral, espelhos de metal não eram particularmente grandes; eles foram concebidos como espelhos de mão (incluindo uma alça) ou espelhos dobráveis (com um suporte). A profundidade de campo e a fidelidade da cor dos espelhos de metal podem ser dificilmente comparadas aos padrões de qualidade dos espelhos de hoje. Foi somente no século 14 que os primeiros espelhos baseados em vidro foram feitos em Veneza, o centro do sopro de vidro europeu. A razão para esse atraso, especialmente dado que óculos, recipientes de vidro e janelas foram feitos por séculos, são evidentes: ao contrário do metal, vidros não podem ser alisados ou polidos. Os painéis de vidro devem ser moldados perfeitamente, geralmente como cilindros vazios que precisam ser separados depois. Os primeiros espelhos de vidro não se aproximam de uma reflexão não distorcida. Todavia, espelhos de vidro quase instantaneamente tiveram uma entrada triunfante nas famílias europeias. Na Veneza do século 14, mulheres e homens ricos
começaram a usar ostentosamente espelhos de vidro sobre o pescoço em correntes de ouro como joia de pingente. Enquanto a imagem no vidro pode ser decepcionantemente pobre, a imagem de quem usa o espelho aos olhos dos outros era uma afluência inconfundível. Homens carregam espadas com pequenos espelhos colocados no punho. A realeza coletava conjuntos de espelhos de vidro emoldurados em marfim, prata, e ouro, que foram mais exibidos do que usados. Os primeiros espelhos tinham mais brilho do que função, e devido à qualidade reflexiva pobre, eles provavelmente serviam melhor como bric-à-bac. (Panati, 1989: 230)
O avanço na produção de espelhos não ocorreu até o século 17. Em 1687, o fabricador de vidro francês Bernard Perrot garantiu a patente para um processo uniforme de laminação de painéis de vidro. Desde então, foi possível produzir não só espelhos ópticos ou espelhos de mão ou dobráveis, mas também espelhos de tamanho real para paredes e bancadas. Graças a essa tecnologia, espaços podiam ser bem literalmente ‘representativos’, como O Grande Corredor de Espelhos em Versalhes, que foi construído em 1686. Graças a nova tecnologia de produção de espelho, a mágica dos espelhos pode ser definida de uma nova maneira. Anteriormente, a mágica tinha REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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fascinado luminárias em formas como o espelho côncavo de Arquimedes, Lorrain-Glas, a magia naturalis medieval, e o teatro catóptrico de ilusões no Barroco: se espelhos antigos produziam a mágica da transformação, distorção, refração, transmissão, combustão, redução e ampliação, os novos espelhos (começando na segunda metade do século 17) fizeram ser possível a mágica da duplicação, semelhança enganosa, reprodução e representação. Se a decepção no caso de um antigo espelho produzia a aparência de um objeto em forma distorcida e no lugar errado, o efeito enganador de um novo espelho produziu um objeto em sua forma natural e no lugar certo, exceto que ele aparecia em um espaço simetricamente recíproco, isto é, invertido. Simplificando: a ‘cabine dos espelhos’, um labirinto desorientador que é ainda uma característica de alguns carnavais, foi superada pelo salão de espelhos, que demonstra a reprodução em série do rei (como pode ser visto na página de título do Leviatã de Thomas Hobbes de 1651). A mágica da transformação foi colocada em segundo plano pela mágica da repetição, assim como a mágica do artesanato foi colocada em segundo plano pelas máquinas milagrosas do consumo industrial. Os monstros de Ovídeo na Metamorfose (de lobisomens a sereias) foram ultrapassados pelo doppelgänger do período Romântico. A história das sombras prosseguiu diferentemente. Enquanto uma reflexão podia, em essência, ser feita em uma representação estável e real somente com o advento da fotografia, consertar uma sombra já era possível na antiguidade. Em sua História Natural, Plínio, o Velho conta a seguir o bem conhecido mito da origem da pintura:
Nós não temos nenhum conhecimento seguro sobre o começo da arte da pintura... Os egípcios afirmam que foi inventada entre eles, seis mil anos antes de passar para a Grécia; um vaidoso vangloriar-se, é muito evidente. Quanto aos gregos, há quem diga que foi inventada em Sicião, outros em Corinto; mas todos eles concordam que se originou em traçar linhas em torno da sombra humana. O primeiro estágio da arte, eles dizem, foi esse, o segundo estágio foi o emprego de cores únicas; um processo conhecido como ‘monocromador’, depois tornou-se mais complicado, e que ainda é usado nos dias atuais...Sobre pintura nós já dissemos o bastante, e mais que o bastante; mas será apenas apropriado acrescentar algumas considerações da arte plástica. Butades, um oleiro de Sicião, foi o primeiro que inventou, em Corinto, a arte de modelar retratos na terra que ele usou em seu ofício. Foi através de sua filha que ele fez a descoberta; que, estando profundamente apaixonada por um jovem rapaz prestes a partir de uma longa jornada, traçou o perfil do rosto dele, como jogado sobre a parede pela luz da lâmpada. Ao ver isso, o pai dela preencheu o esboço, ao comprimir a argila sobre a superfície, e assim fez um rosto em relevo, que ele endureceu pelo fogo junto com outros artigos de cerâmica. (Livro 35, caps. 5, 43)
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Deve ser apropriado mencionar que o jovem rapaz foi para a guerra e não voltou, mas a sombra dele (que disseram ter ido viajar no submundo) foi capturada e presa como uma imagem antes da morte dele. A técnica de pintar sombra (ciografia) era muito popular na Grécia. Essa técnica está intimamente ligada com técnicas culturais de geometria e astronomia, onde o elenco de sombra por um eixo de sombra (gnomon) foi retraído e usado para medição (de relações temporais e especiais):
Um eixo de relógio de sol ou gnomon lança sombras no chão ou na face do medidor de acordo com as posições de estrelas e do sol ao longo do ano. Desde Anaximandro, aparentemente, os físicos gregos sabiam que essas leituras indicavam certas ocorrências no céu. A luz de cima descreve na terra ou na página um padrão que imita ou representa as formas e as posições reais do universo, através do intermédio da caneta.
Como ninguém naqueles dias precisava realmente de relógio, e como as horas variavam enormemente desde os dias de verão até o inverno, qualquer que seja a duração ou brevidade deles, foram sempre divididos em doze, o relógio de sol foi raramente usado para contar o tempo. Portanto ele não foi substituído pelo relógio, mas foi usado como um instrumento de pesquisa científica por direito próprio, demonstrando um modelo de mundo, dando o comprimento das sombras ao meio-dia nos dias mais longos e curtos, e indicando os equinócios, solstícios e latitude do lugar, por exemplo. Era mais um observatório do que um relógio. Nós não sabemos exatamente por que o eixo ou o pino é chamado de gnomon, mas nós sabemos que essa palavra designa o que entende, decide, julga, interpreta ou distingue a regra que faz o conhecimento possível. A construção do relógio solar traz luz natural e sombra em jogo, interceptada por esse soberano, uma ferramenta de conhecimento.
Para este fim, [os astrônomos] foram capazes de construir uma regra tão precisa quanto a caneta que escreve. A tinta preta na página branca reflete sombras antepassadas lançadas pelo sol através do ponteiro ou do relógio de sol. Este ponto escreve sem ajuda no mármore ou na areia como se o mundo conhecesse ele mesmo. (Serres, 1995: 79-80)
Técnicas culturais como tecnologias do eu: mesmo as tabelas fisionômicas de Johann Caspar Lavater trabalham com contornos sombrios para representar traços faciais individuais (e ainda tipológicos).
Sinais e assinaturas REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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Selos e carimbos produziram ‘objetos falantes’ muito antes de epígrafes entrarem em cena, e eles serviram como precursores não só de sinais, mas também de marcas registradas. Já, em 50 AC, cerâmicas romanas circularam como terra sigillata através do mundo civilizado. Impressões de selos davam a informação sobre o fabricante e o artesão que faz o produto. Peças individuais recebiam uma assinatura, nesse sentido: um nome funcionava como testemunha do fabricante, e mais tarde do proprietário. Naquela época, claro, quase ninguém assinava nada. Na Antiguidade Romana, com suas altamente diferenciadas leis contratuais, a impressão de um polegar era frequentemente suficiente. Na Idade Média, pessoas marcavam contratos com três cruzes. E ainda, já em 439, uma lei romana estipulou que uma vontade poderia ser assinada se seu conteúdo fosse mantido em segredo das testemunhas presentes na assinatura; contratos de venda também foram assinados por nome de vez em quando. Nas comunicações reais, selos – bem na Idade Média – eram favorecidos sobre as assinaturas de mão, que eram relativamente raras, ou três cruzes, que certamente possibilitou as famosas ‘falsificações’ de numerosos documentos merovíngios ou a Doação de Constantino. O sistema moderno de uma assinatura pessoal em sua própria mão pressupõe não só a alfabetização abrangente (pelo menos da elite), mas também de um sistema judicial que inclui direitos civis e pessoais e, acima de tudo, uma consciência aguda do significado dos nomes próprios como marca de individualidade e distinção. Durante a Idade Média era mais frequentemente que roupas, joias, brasões ou atributos relacionados indicassem a hierarquia ou o status social de alguém, bem menos o nome próprio. Por essa razão, qualquer história de assinaturas é mais conectada às técnicas de catalogação e sistematização de nomes próprios do que qualquer investigação histórica ou social sobre a evolução do sistema europeu de nomeação (a maneira como marquêses, leigos ou santos ganharam seus títulos). ‘Tão impressionante quanto a evolução da identidade pessoal pode nos chocar com algumas fontes medievais, a identificação escrita de uma única pessoa não foi apenas o triunfo individual, mas antes de tudo o resultado de seu registro’ (Groebner, 2004: 51). Manter listas de nomes pessoais começou no século 13. Listas confessionais mantidas por autoridades da igreja logo foram seguidas por listas de infratores da lei (tanto sentenciados quanto em geral), hereges e pessoas queimadas em estacas – e eventualmente por uma lista de contribuintes do século 15. A palavra ‘assinatura’, de fato, não apareceu até 1536; o sistema jurídico inglês ancorou o princípio da assinatura REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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em seus estatutos no século XVII. A popularização gradual da assinatura no início da modernidade é também atribuída à invenção da imprensa, que (depois de séculos de caligrafia perfeita) facilitou o processo gradual de caligrafia individualizada e, até à data, inspira ocasionalmente crianças (e seus adultos homólogos) a praticar sua própria assinatura.
Autógrafos
Com o aumento da assinatura como uma marca distintiva de personalidade e identidade, selos e carimbos foram substituídos mais uma vez por sinais do corpo: assinaturas, afinal de contas (ao contrário de selos e carimbos), tem que ser feitas manualmente, em sua própria mão. Eles dotam a caligrafia geralmente com uma qualidade icônica, não apenas as assinaturas de artistas que se acumulam exponencialmente começando no século 15: um ‘tipo de letra’ que não é juridicamente obrigatório, mas também pode ser entendido como um traço do indivíduo, um sinal de caráter. Em 1622, o doutor italiano e professor de medicina Camillo Baldi publicou o primeiro tratado sobre o significado da caligrafia na universidade de Bolonha, com o seguinte título: Come da un lettera missiva si conoscano la natura e qualità dello scrittore (1992). Claro que levará um tempo para esses primeiros passos se desenvolverem na direção da grafologia. Mais imediatamente, conhecimento de caráter – um tipo de protopsicologia – inaugurado na fisionomia, o estudo de faces. No terceiro volume de Fragmentos Fisiognômicos (1777), Lavater ilustrou cinco tabelas em seu estudo com exemplares de caligrafias correspondentes, mas ele permaneceu cético em relação à variedade de interpretações de caligrafia. Antes da caligrafia ser associada com a interioridade do sujeito, os povos da Europa tinham que ser alfabetizados. Hegel em Fenomenologia do Espírito comparou a caligrafia de alguém com sua voz:
As linhas simples da mão, então, o anel e compasso da voz, como também a particularidade da língua usada: ou, novamente, a idiossincrasia da linguagem, como expressada onde a mão lhe dá uma existência mais duradoura do que a voz pode fazer, por exemplo, na escrita, especialmente no estilo particular de ‘caligrafia’ – tudo isso é uma expressão do interior (1949: 343).
As variadas representações (e expressões) dessa ‘interioridade’, entretanto, tiveram de ser primeiramente registradas e decodificadas. Um ano antes de Fenomenologia do Espírito aparecer, Moreau de la Sarthe, um doutor e professor de
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medicina de Paris, publicou uma tradução de Fragmentos Fisiognômicos de Lavater; os desenvolvimentos das ideias de Lavater influenciaram um número de clérigos franceses que estavam subsequentemente preocupados com a interpretação da caligrafia. Système de graphologie de Abbé Jean-Hippolyte Michon apareceu em 1875, precisamente cem anos depois da publicação do primeiro volume Fragmentos de Lavater. Esse trabalho, que primeiramente introduziu o termo grafologia, foi seguido por Méthode pratique de graphologie em 1878. O sistema de Michon foi baseado na relação semiótica de sinais gráficos – de idiossincrasias quirográficas que foram associadas com ‘signes fixes’ com disposições correspondentes de caráter. As publicações que saem da escola de pensamento de Michon, tais como o Traité pratique de Graphologie em 1885 por Jules Crépieux-Jamin, o filho de um fabricante de relógio, foram rapidamente traduzidas para o alemão. A sociedade de Grafologia alemã foi fundada em 1896 por Ludwig Klages, Laura von Albertini e Hans Heinrich Busse. Entre 1900 e 1908, a sociedade publicou o Graphologische Monatshefte. Em 1917, Klages publicou o tratado Handwriting and Character. Quase nenhum outro trabalho de um filósofo alemão e psicólogo permaneceu
tão
popular
quanto
esse:
ainda
está
na
impressão
como
Gemeinverständliche Abriß der graphologischen Technik (‘Um esboço acessível de técnicas gráficas’), e, a partir de 1989, passou por 29 edições, incluindo numerosos exemplos e amostras de manuscritos.
Assinatura digital e códigos numéricos
As revoluções tecnológicas da era do computador causaram um desemprego de imagens e caligrafia. Hoje em dia, quase ninguém pratica caligrafia pessoal, ratificando o que Georg Simmel (em A Filosofia do Dinheiro, 1990[1990]) notou sobre a máquina de escrever: ‘Escrita, uma atividade concreta externa, mas que ainda possui uma forma tipicamente individual’, é contrariado
Em favor da uniformidade mecânica [da máquina de escrever]. Por outro lado, isso tem uma vantagem dual: primeiro, a página escrita agora apenas transmite seu conteúdo puro sem qualquer suporte ou distúrbio de sua forma escrita, e em segundo lugar, evita revelar o elemento mais pessoal, que muitas vezes é verdadeiro em caligrafia, superficial e sem importância, bem como nas comunicações mais íntimas (1900 [1900]: 509).
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Enquanto isso, a ubiquidade e racionalização estratégica de várias formas de escrita eletrônica empurraram a caligrafia ainda mais à marquem do que Simmel jamais antecipou. Por essa mesma razão, os traços preciosos do ‘elemento mais pessoal’ foram reformados como antiguidades e raridades e (tal como autógrafos) se tornaram itens de colecionadores altamente desejados em leilões que provocam guerras de licitação. Para fotos e autógrafos de estrelas, os dados de computador e e-mails ainda não são correspondentes. Retratos fotográficos e assinaturas se tornaram documentos raros hoje em dia, fetiches de VIPs. Mesmo no mundo cotidiano, a propósito, as pessoas assinam cada vez menos. Os sinais físicos da própria destreza manual são cada vez mais substituídos por um novo tipo de selo e carimbo: a assinatura digital. Transações financeiras são processadas e autorizadas pelo código PIN e números de roteamento; códigos numéricos facilitam todas as ordens, compras e vendas imagináveis. Contas, seguros, dados pessoais, linhas telefônicas e identidades são todos expressos em sequências de números. Códigos numéricos empurraram os nomes para segundo plano. Assinaturas digitais evoluíram da criptologia (militar) e foram introduzidas no início de 1980. Nos últimos dois anos, eles gozaram praticamente do mesmo status legal que uma assinatura manuscrita. Tais leis foram aprovadas nos Estados Unidos, como acontece com o ‘Ato da assinatura digital de Utah’ de 1995, e depois na Alemanha (o ‘Ato da assinatura digital’ de 1997). Assinaturas digitais servem cada vez mais nas sociedades de conhecimento global. Elas cumprem as exigências de ‘privacidade e autenticação’ não mais empregando mãos e rostos, mas sim através do uso de memórias e mnemotecnologias. Quem esquece seu código é desconectado – porque um código deve ser lembrado e nunca deve ser anotado (como os bancos e empresas de telecomunicações nos lembram uma vez ou outra). Para dizer sem rodeios: se você quer ser um indivíduo hoje, você tem que ser capaz de memorizar sequências numéricas.
Identidade e Identificação Como tentei ilustrar nos exemplos anteriores, o quadro epistemológico deste artigo pressupõe que técnicas culturais – tais como falar, traduzir, escrever, ler, pintar, calcular e medir – podem refletir sobre si mesmas: na fala sobre a fala, na escrita sobre a escrita, nas pinturas sobre pinturas, em várias recursões de números ou baseadas em
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medidas. Somente por serem recursivas as técnicas culturais podem se alternar e se referir umas às outras. Uma pessoa que escreve pode ser pintada, e uma pintura ou operação podem ser escritas. E, claro, nós podemos falar de escrita, calcular e medir, e nós podemos medir o ato de falar (com a ajuda de, digamos, um medidor de água) ou retratá-lo (com uma legenda) ou simplesmente anotá-lo. Entendidas como técnicas recursivas de trabalho simbólico, técnicas culturais podem ser descritas e praticadas como ‘tecnologias do eu’ num sentido Foucaultiano, ou, mais precisamente, as técnicas de identidade. Em certo sentido, elas geram os sujeitos que, retrospectivamente, compreendem a si mesmos como pré-condições e pontos nodais de suas próprias operações. Entretanto, a estrutura das sentenças que articulam a identidade autorreflexiva – a autoconsciência aporética da filosofia idealista, por assim dizer – não é autoidêntica ‘Eu = Eu’. Entretanto, eles codificam a proposição ‘Eu sei que eu p’, como Ernest Tugendhat (1979) demonstrou em suas aulas de linguística sobre a autoconsciência e a autodeterminação. Trinta anos atrás, Tugendhat (junto com Wittgenstein) assumiu uma ‘virada linguística’. A mudança de paradigma tem, nos útimos 30 anos, sido substituída ou complementada por séries de outras ‘viradas’, como a ‘virada pictórica’ ou ‘virada sônica’, mas tem elevado o nível de generalidade técnicocultural. As possíveis recursividades de técnicas culturais são o que geram questões de identidade e identificação em primeiro lugar; elas produzem relações recursivas, o que difere das tautologias na medida em que elas requerem meios: telas e espelhos, papéis e livros, instrumentos de medida e cálculo, equipamento de som e visual, computador. Técnicas culturais não podem ser praticadas sem meio, mas elas também não podem simplesmente ser reduzidas às tecnologias dos meios de comunicação. Mesmo que não seja claro qual técnica cultural deve ser considerada a primeira, é seguro argumentar que as técnicas culturais são sempre mais antigas do que suas mídias e que certamente são mais antigas do que os termos que surgiram delas. Pessoas escreveram muito antes de qualquer noção sobre a escrita ou do alfabeto ser concebido; pinturas e estátuas não inspiraram a ideia de uma pintura até milhares de anos mais tarde; até à presente data, algumas pessoas ainda cantam ou fazem música sem qualquer concepção de tom ou sistema de notas. Contar, também, é mais antigo do que os números. As culturas mais conhecidas, sem dúvida, contavam ou realizavam certas operações matemáticas, mas não derivavam necessariamente a noção de um número dessas operações. Já na época do Paleolítico, as pessoas registraram formas de contagem, o que é evidente a partir de REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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vários ossos entalhados. No entanto, não sabemos quais eventos ou objetos foram contados: registros de caça, o surgimento da lua, ciclos de menstruação (cf. LeroiGourhan, 1993: 370; Marshack, 1991; Barrow, 1992: 31–33; De Mause, 1982: 272–3)? Era bem possível contar sem palavras ou sinais correspondentes, como, com a ajuda de entalhes em ossos, dedos ou pedras que representavam o objeto a ser contado: animais em rebanho, soldados ou distâncias (como com o Hodômetro grego). A técnica cultural de contar não força necessariamente a criação de sistemas abstratos de números. Algumas línguas, por exemplo, usam numerais diferentes para diferentes classes de objetos. Em 1881, Franz Boas publicou uma tabela de numerais usados por povos nativos no Canadá, na qual ele documentou os sistemas de números para objetos planos, redondos e longos, e para humanos, canoas e medidas. Em seu catálogo, ele deixa claro que qualquer hipótese sobre a evolução das abstrações matemáticas deve ser abordada com cautela; os povos canadenses, afinal de contas, estavam familiarizados com números simples e termos de medida também. A história da escrita cuneiforme, de fato, sugere (mesmo) que os números simples podem ser mais antigos do que os números fixados a objetos concretos. Isso leva à conclusão de que o uso do número simples é independente da definição de qualquer noção abstrata de números. Códigos, ao que parece, podem não precisar de nenhum fundamento sistemático para funcionar com precisão.
Nota
Esse artigo foi publicado anteriormente como ‘Tiere zweiter Ordnung. Kulturtechniken der Identität’ em Über Kultur. Theorie und Praxis der Kulturreflexion, ed. Dirk Baecker, Matthias Kettner and Dirk Rustemeyer (Bielefeld: Transcript, 2008): 99–117.
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SUBJETIVIDADE MODERNA: AGOSTINHO, PECADO E ACRASIA MODERN SUBJECTIVITY: AUGUSTINE, SIN AND ACRASIA Paulo Ghiraldelli Jr.4
RESUMO O presente artigo visa apresentar a originalidade do pensamento de Agostinho de Hipona no que diz respeito à reflexão sobre a akrasia (fraqueza da vontade). Se em autores como Sócrates a akrasia é, no limite, impossível – já que, segundo o filósofo grego, os indivíduos só agiriam de acordo com aquilo que consideram ser o melhor –, em Agostinho ela toma contornos de um verdadeiro drama, na exata medida em que possibilita o pecado. Como se verá, para o bispo de Hipona – neste ponto, influenciado pelo apóstolo Paulo – o fato de reconhecermos o bem não garante, em absoluto, que nossas ações estarão em sintonia com ele. Palavras-chave: Sócrates, Agostinho de Hipona, acrasia, vontade cindida.
ABSTRACT This paper aims at presenting Augustine of Hippo’s originality of thinking in relation to the reflection about akrasia (weakness of will). If the akrasia is, in authors such as Socrates, on the edge, impossible – as, according to the Greek philosopher, individuals only act according to what they consider to be the best –, in Augustine it takes on a shape of a true drama to the extent that it enables sin. As it will be seen, to the bishop of Hipona – influenced by the apostle Paul at this point – the fact that we recognize the good does not guarantee, not at all, that our actions will be in tune with it. Keywords: Socrates, Augustine of Hippo, acrasia, split will.
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Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA). É professor pesquisador convidado na Faculdade Paulo VI, da Igreja Católica, em filosofia.
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Alcibíades era um homem exibido, em um sentido antigo do termo. Era um homem belo que se punha publicamente como belo, excêntrico, tomando atitudes que até mesmo os habitantes de Beverly Hills, hoje, achariam um tanto idiossincráticas. Mas demonstrou um traço quase moderno: vergonha5. Não a sentia diante de ninguém, no entanto, confessou ser assaltado por esse incômodo quando diante de Sócrates. Claro, ele havia sido uma promessa falhada de Sócrates, e sabia bem que, em boa medida, era por seu próprio desempenho que as coisas se deram do modo que se deram. O sentimento de vergonha, vindo de um grego, era bem diferente do moderno. Raramente vinha associado a um elemento de culpa, de estremecimento psicológico do qual se espera arrependimento, como o que se sente quando se tem o destino em mãos e realiza tudo o que não se deveria realizar, frustrando o futuro. O grego e o romano précristão viveram sob um plano relativamente determinista, ou ao menos sob a imagem de um mundo de ocorrências fora do controle de cada indivíduo. Isso se acentuou mais ainda quando os tempos clássicos se foram e a filosofia oficial da elite romana se tornou o estoicismo (com traços ora céticos ora epicuristas). Tanto é verdade que o estoicismo desenvolveu a doutrina da auto-retirada do mundo mesmo estando no mundo. Uma maneira de ter uma última potência, sobre si mesmo, ao reconhecer a impotência quanto ao exterior. Compreender o funcionamento do cosmos por meio de uma física, como fizeram os estoicos, não tinha outra finalidade que não aquela de poder ver claramente o quanto o mundo exterior não está sob o controle humano. Tendo claro isso, o estoico se vê à caminho da sabedoria à medida que não se frustra com os infortúnios. Deve estar preparado para os revezes da vida, uma vez que sabe que não pode controlar o mundo e que este tem seu próprio traçado. É fácil acostumar-se com o que é bom e prazeroso, o difícil é se acostumar com a desgraça; e o estoico crê que tem uma vantagem sobre todos, a de saber que há a desgraça na porta, que ela não raro ultrapassa a soleira, e que então, se ocorre, não o pega sob a regra dos lamentos, mas sob uma resignação férrea. Não o apanha, uma vez que ele, anteriormente, já teria sido treinado em privações maiores. Essa preparação estoica, individualista, surgiu como uma filosofia democrática, à medida que podia ser adotada pelo rico e pelo pobre, pelo livre e pelo não livre. Assim ocorreu. Estoicos foram o escravo Epíteto, em Roma, e também um imperador, Marco 5
O episódio aparece em O banquete, de Platão. Comento o ocorrido em: Ghiraldelli Jr., P. Sócrates: pensador e educador. São Paulo: Cortez, 2015. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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Aurélio. Foi uma filosofia não à toa foi adotada por escravos, gladiadores e reis, uma vez que punha nas costas de cada um destes, os mais possíveis atingidos por infortúnios, uma maneira de tentar passar ao largo dessas vicissitudes. No seu caminho de valorização individual, o estoicismo fez uma abertura da filosofia para uma linguagem de dicotomia que Sócrates, Platão e Aristóteles não utilizaram, a do “interior” e “exterior”. É certo que Sócrates, na obra Alcibíades I, tenta mostrar ao seu aluno um eu que se identifica com a alma e não com o corpo, que deve ser cultivado e que, enfim, tem uma melhor parte, a razão, que é ligada ao Cosmos. Nesse sentido, há parte do divino no “eu”. Mas o eu, nesse caso, está longe de ter profundidade uma vez que parece não provocar ou criar grandes dramas. Sócrates não toma decisões após uma dramática luta consigo mesmo. No máximo, se algo o contraria no que faz, censurando-o, nada é senão o que vem do deus que fala nele, o seu daimon. Mas o daimon socrático nada diz que não seja um simples “não”. Aliás, é bom lembrar, não há nenhum episódio de Sócrates que o coloca como o estoico Sêneca, criando um ritual teatral para sua morte, e muito menos há na vida de Sócrates dramas de luta interior como a que é relatada no retiro do Deserto, levado a cabo por Jesus. O que digo aqui é que Sócrates nunca apareceu como um “dois em um”? Não! Claro que Sócrates, como ele aparece aos olhos de Hannah Arendt, é um inaugurador do “dois em um”, mas isso em âmbito do pensamento. Trata-se de uma estratégia condizente de reflexão de quem se percebe um duplo e usa disso para o exercício do elenkhós. Mas o “dois em um” aí funciona em harmonia interna. Sócrates diz ao sofista Hipias que ele tem um amigo em casa, que precisa explicar as coisas para ele, e então tem de fazer as perguntas a Hípias do modo que as faz, de um jeito que o sofista toma como simplório e rude. Apresenta-se como dois em um, sendo que esse seu amigo, seu duplo, nada é senão sua própria consciência. Ora, o “dois em um” com características mais completamente modernas, que é diferente do “dois em um socrático”, Arendt nota, só se revela com o homem cristão. Aí sim o duplo não está somente presidido por relação da colaboração, uma ressonância que amplia a esfera de atuação da dupla, mas também uma ressonância conflitiva. Nesse caso, está em jogo não a razão, mas a vontade. Faz-se necessário, nesse caso, colocar na trilha dessa história o filósofo Santo Agostinho, que, segundo Arendt é o primeiro “filósofo da vontade”.6
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ARENDT, H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 347. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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Para Arendt, como ela explica em A vida do espírito, os estoicos deram uma certa onipotência à vontade. Epíteto é exemplo mais claro. Como ela mostra, Epiteto é o homem que diz: ‘tenho que morrer’ (…), mas tenho que morrer gemendo?”. A ideia aí e de uma vontade férrea que não se pode acorrentar, de modo que alguém só se sente ofendido se consente a ofensa.7 Mas, não se trata disso em Agostinho. Agostinho inaugurou a filosofia do querer, a filosofia que se obrigou a notar o abaulamento do eu para dentro, como disse Nietzsche8, criando uma alma dramática, uma psique moderna, uma consciência preenchida por um duplo conflituoso, aquele que quer algo decididamente e, no entanto, termina por fazer outra coisa. É o fenômeno da fraqueza da vontade, da akrasia, que está então posto diante de Agostinho. É analisando-o em sua própria vida, então já como quem se imagina podendo relatar experiências subjetivas, que Agostinho quer entender as dilacerações do homem, ou ao menos as dele mesmo. O agente acrático, impossível ou explicado de um modo intelectualista em Sócrates e Aristóteles, se faz presente de modo pleno em tempos cristãos. Afinal, Adão, ou seja, o homem original (portanto o Homem) foi um acrático. Ele trouxe o pecado ao mundo. Fenomenologicamente o pecado foi justamente isso: sabe-se o certo e mesmo querendo fazer o certo se faz o errado. Num mundo assim, a luta interior, a noção de que há alguém dentro de cada um de nós que às vezes age como se não fosse nós mesmos, torna-se uma realidade subjetiva com força objetiva. É esse homem que é Agostinho e é esse homem que precisa ser explicado, pensa ele. Agostinho viu tal questão abordada por São Paulo. Mas este colocou a divisão do homem como um cisão entre a carne e o espírito. Agostinho, por sua vez, não achava isso uma divisão, mas um erro pauliniano de percepção do conflito. O verdadeiro conflito nunca se deu, segundo ele, entre o espírito e a vontade ou o homem e o seu corpo. O corpo não tem vontade, diz Agostinho. A vontade fala a si mesma. O problema está na complexa estrutura de algo como a vontade; ela é o elemento que produz o querer e ao mesmo tempo o não-querer. Arendt comenta, colada em Agostinho, que “são sempre necessárias duas vontades antagônicas para se chegar a ter vontade; ‘não é, portanto, monstruoso querer em parte e em parte não querer. O problema é que é o mesmo ego volitivo que simultaneamente quer e não quer”. Assim, era eu o que queria e era eu o que não queria; eu mesmo. Não era um querer total nem tampouco um não-querer completo’ – e isso não significa que eu 7 8
Idem, ibidem, p 342. NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Cia das Letras, 2005, § 16, p. 73. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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tivesse ‘dois espíritos, um bom e outro mau’, mas que o tumulto das duas vontades em um só espírito ‘dilacerava-me’.9 A vontade cria situações em que o espírito quer e, ao mesmo tempo não querendo, realiza o que não se quer. Essa situação de “dois em um” conflituoso, paradoxal, é que Arendt nota como estando em Agostinho. Nós aproximamos essa situação ao que é uma subjetividade moderna. Notando Sloterdijk falando sobre a nossa subjetividade como um duplo, e como tendo de encontrar elementos desinibidores para agir de um modo e não de outro, vemos que estamos diante de um sujeito que, para ser melhor descrito, não pode prescindir do conflito da vontade exposto por Agostinho. O conflito de Agostinho tornou-se claro para ele próprio. Nas Confissões ele diz que quando escolhia fazer algo e efetivamente realiza o que quer fazer, sente que é seu próprio eu que estava envolvido com o querer. Sente que é ele mesmo, e não outra pessoa, que fez o ato em questão. Todavia, se quer algo e realiza o que não quer, ou seja, quando se põe contra a sua vontade, parece ter seguido algo que não é ele mesmo, e essa ação então lhe vem antes como uma punição que como uma falta. Sua questão então é simples: se ele é uma criatura de Deus e este é perfeito, e é também alguém que aplaude internamente a disposição de Deus, então quem teria colocado essa vontade dentro dele? Qual seria a natureza desse seu poder que, enfim, pode dominar seus desejos?10 O problema da fraqueza da vontade em Sócrates praticamente não existe. O agente acrático não tem permissão nenhuma de se fazer presente. Para Sócrates, alguém que tem crenças corretas age corretamente. Caso venha a agir de modo errado, isso não se deve à akrasia, à fraqueza da vontade ou incontinência, mas ocorre porque a crença correta não estava verdadeiramente na posse do agente. Agostinho, por sua vez, vê o agente acrático existente nele mesmo. Vê também que o ideal do homem estoico não se realiza. Então, muda o foco da conversa ao sair do campo da discussão entre paixão e razão, para tratar de algo não muito considerado pela filosofia de Platão ou Aristóteles: a vontade. O que ele vê na base das ações é uma libido dominandi.11 De modo que não se deve considerar que se as paixões dominam alguém, seus atos serão errados. A história se mostra repleta de vícios que construíram boas coisas. Ele sabe disso. Desse modo, faz-se necessário, para ele, reconstruir a noção de desejo racional, vindo da 9
Idem, ibidem, pp. 357-8 HUNDERT, E. J. Augustine and the sources of divided self. Political Theory, vol. 20, n. 1, fevereiro 1992, pp. 86-104. 11 Idem, ibidem, p. 89. 10
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filosofia clássica. A análise do episódio de sua infância, o do roubo das peras, lhe dá condições de criar sua teoria a respeito dos conflitos do eu e fornece parâmetros para explicar a akrasia. Nas Confissões, Agostinho lembra o episódio do roubo das peras. Ele e amigos roubam peras não por outra coisa que o prazer do roubo. Mas que prazer era aquele? O prazer ligado à satisfação da vontade. Qual? A “vontade de fazer o mal por passatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejo de vingança! Só porque sentimos vergonha de não ser sem-vergonha quando ouvimos; ‘Vamos! Façamos!’.”12 A análise desse episódio leva Agostinho a concluir que um tal ato não vinha de algo completamente alheio a Deus, pois o que se queria ali era, de certo modo, imitar Deus. O intuito era exercer a vontade contra qualquer coisa proibida, rompendo a proibição. Esse seria o prazer do pecado, buscar em pequenas coisas exercer a vontade de modo não a se saciar, pois o sentir-se pleno e definitivamente satisfeito ocorreria se a vontade estivesse em direção a grandes coisas, as coisas perenes, divinas. Mas, buscar saciar-se no passageiro levaria, sempre, a querer mais e mais, gerando o vício. Eis aí então o pecado como a incapacidade de voltar-se senão para si mesmo, em uma roda que gira em falso, pondo o orgulho pessoal, de ter realizado uma façanha, acima de tudo, inclusive daquele algo que é obtido, coisa fácil uma vez que o obtido pouco importa. Eis que na busca de satisfazer uma vontade que não está voltada senão para a sua própria satisfação momentânea, o que se ganha não é a liberdade, como em Deus, mas a escravidão, pois a saciedade é momentânea, o vazio se faz sentir, e logo a vontade cobra novo ato de igual medida. É também nesse sentido que podemos entender a observação de Alain de Libera dizendo que a subjetividade moderna emerge com Agostinho não positivamente, mas negativamente.13 Agostinho diz como certa individualidade que se pensa autossuficiente se põe como um interior aparentemente pleno, e, desse modo, realiza-se como algo que não deveria ocorrer, pois isso é o pecado. O pecado é o amor-próprio em um sentido específico. Exerce-se não por uma ação ou as suas consequências. Não vem pelo roubo da pera ou pelo prejuízo causado ao proprietário, mas pela intenção que se liga à satisfação do amor-próprio mostrado em termos de egotismo, ou então, digamos, até de narcisismo. Assim, os atos são neutros, possuem um número enorme de consequências, mas se tornam malignos se o objeto deles é a satisfação do orgulho, no sentido da 12 13
(Cf. AGOSTINHO, 1987). LIBERA, A. Arqueologia do sujeito. São Paulo: Fap-Unifesp, 2013, pp. 72-5. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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satisfação virada para o próprio eu como um eu que trocou o obtido pelo feito pelos aplausos obtidos no feito. Pois esses desejos, o de romper com barreiras para vangloriarse, são falsos e insaciáveis. Nenhum roubo de peras ou de qualquer outra coisa iria preencher duradouramente um eu que precisa alimentar seu orgulho ao romper a lei e ser então aplaudido. São esses desejos imaginados, falsos, que não possuem a qualidade dos objetos que uma boa vontade procuraria. Rodam no vazio. São insaciáveis e, nesse sentido, são exemplificados também pelas compulsões como as da luxúria. Há aí na busca de se exercer a vontade livremente, como o que Deus faz, a real consequência: a infelicidade da escravidão e o distanciar-se de Deus; o ver-se preso pelo impulso que cobra saciedade a todo o momento. Voltar-se para si e encontrar os objetos perenes, como só Deus pode mostrar (Agostinho lembra que até a vingança de Deus é uma Vingança, enquanto a vingança dos homens se torna mais um ato de egostismo), é uma boa tarefa, mas ao voltar-se para si de modo descuidado pode-se estar apenas alimentando a soberba, a arrogância de se achar quebrador de barreiras. Há uma tênue diferença, portanto, entre a virtude da humildade cristã, que é uma doutrina, e a humildade como ideologia. A humildade como doutrina se põe contra o orgulho de realização pessoal por meio de vícios. Esse tipo de realização pessoal se consegue no exercício que busca falar amém para uma vontade que quer antes de tudo a sua satisfação pelo espetáculo da façanha, como que guiada pelo egotismo, e não o obtido pelo resultado da façanha. A humildade como ideologia, por sua vez, é cobrada como um abaixar de cabeça, como uma servidão, um instrumento de dominação. Termina por proibir todo e qualquer orgulho, mesmo aquele legítimo, que surge pelo resultado próprio da façanha. Assim, um estudante que estuda para aprender e de fato aprende, e não estuda visando aplauso algum ou qualquer sensação de se achar superior, é rebaixado porque em algum momento ficou feliz pelo seu feito. É posto para cultivar uma humildade que é a sua anulação. Esse tipo de humildade não é doutrina, é ideologia. Considerando essas questões, pode-se ver que voltar-se para o interior, como Agostinho aconselha de modo a se buscar Deus, ou seja, os elementos perfeitos e perenes, para os quais a vontade deveria se por como uma vontade de boa vontade, é o correto. O erro é voltar-se para o interior no sentido de alimentar o individualismo associado ao egostismo, o individualismo que quer massacrar rapidamente o “dois em um” que está ali e que pode ser buscado. O “dois em um” conflituoso da vontade dupla dá alimento para o “dois em um” de uma vontade que provoca a boa vontade, a ligação REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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entre o eu e Deus. O “dois em um” massacrado, que é a vontade de má vontade, leva à busca do isolamento, a independência ou, melhor dizendo, o que é falso. Pois a independência solitária não existe. O amor próprio egotista é um falso patamar de desenvolvimento, tanto é que a vontade logo se manifesta intencionando fazer mais coisas, reproduzir um ato de quebrar barreiras em função do auto-engrandecimento, do orgulho sem objeto, do mostrar-se. Agostinho lembra bem que se estivesse sozinho não roubaria as peras, que a companhia em forma de plateia o ajudou a fazer o que fez; que a companhia alimentava sua falsa impressão de estar sendo livre ao fazer algo proibido. Ter a clara consciência de ser errado não o impediu de fazer o erro, muito pelo contrário, saber que o erro é um erro é que o colocava na direção de executá-lo. O pecado é exatamente isso. O agente acrático, portanto, é explicado como possível. Como então, em Agostinho, se evita o pecado? Por uma decisão da vontade em ser uma boa vontade, e aí entra a graça. Deus coloca indícios que podem ser utilizados para se escapar do vício. Mas são indícios, não ordens. Alguns estão cegos demais com as aventuras repostas de vício em vício e não se desviam disso, outros podem por algum momento – a graça – tropeçar e parar, perguntando-se sobre a razão de nunca estarem satisfeitos com o ego inchado obtido a cada maldade realizada. Assim, se em Platão, no Alcibíades I, há um movimento em busca de um “conhece-te a ti mesmo”, este não implica senão em encontrar a razão divina como parte da alma humana, e então se ver como pertencente à harmonia do universo. Na terminologia moderna diríamos: ao adentrar o subjetivo encontra-se o objetivo. Ora, não se encontra nenhuma divindade em um retorno a si mesmo, diz Epíteto; o que se faz de correto, então, é a imitação dos deuses, na sua independência. Agostinho, por sua vez, pede uma volta para o interior em busca do divino, e assim, à primeira vista, tem a ver com um neoplatonismo, mas em seguida mostra que essa volta para si é uma volta no sentido de evitar uma saída para o cosmos ou uma fixação no próprio eu; trata-se de uma interiorização para querer o bem querer, ou seja, querer algo que é da ordem das virtudes, da excelência, do que é perene e belo, Deus, e não o cultivo do ego inflado pelo aplauso alheio. Todo o problema da interioridade em Agostinho é, portanto, o de fugir do aplauso alheio, da pseudo satisfação da vontade. Uma vez girando em falso, a roda da volição mostra-se compactuada com a inflação do ego, o orgulho vazio, a emergência de certa arrogância. Um episódio interessante do clima medieval inaugurado por Agostinho revela-se no diálogo de O Nome da Rosa, tanto no livro de Umberto Eco quanto no filme REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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correlato. O sacerdote que faz a investigação das mortes ocorridas no convento, em determinado momento, é acusado por seus rivais como quem está muito mais preocupado em provar sua tese como certa, mas antes de tudo por orgulho, para satisfazer seu ego, e não para efetivamente resolver o caso para o bem do Convento. Apesar dessa acusação ser usada maldosamente contra ele, o sacerdote é tocado por ela, pois sabia muito bem que ele poderia estar sim chafurdando nesse pecado e, então, entrando pelo vício. É fácil se desencaminhar do objeto e caminhar para um objeto falso, o de alimentar a glória pessoal no sentido de mostrar-se quem tudo consegue. Essa é uma questão de psicologia profunda, de dramas de vivência que não encontramos no mundo grego clássico, nem mesmo em uma personalidade como Alcibíades, alguém capaz de sentir vergonha, ao menos na presença de Sócrates. A interioridade agostiniana é uma interioridade que abre a noção de subjetividade para sua história moderna.
REFERÊNCIAS Ghiraldelli Jr., P. Sócrates: pensador e educador. São Paulo: Cortez, 2015. SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores).
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A QUESTÃO DO OBSERVADOR NEUTRO NA OBRA MORTE APARENTE NO PENSAMENTO DE PETER SLOTERDIJK: GÊNESE, DESDOBRAMENTOS E MORTE THE QUESTION OF THE NEUTRAL OBSERVER IN THE BOOK THE ART OF PHILOSOPHY: WISDOM AS A PRACTICE BY PETER SLOTERDIJK: GENESIS, UNFOLDMENTS AND DEATH Fábbio Cerezoli14
RESUMO O presente texto tem em vista expor a história do observador neutro tratada na obra Morte Aparente No Pensamento do filósofo contemporâneo alemão Peter Sloterdijk (1947). Também procuraremos explicar o que o autor entende por observador neutro e morte aparente no pensamento. Buscaremos interpretar o texto supracitado a partir destes conceitos e sua relação com as práticas cognitivas que, segundo o autor, surgiram na Grécia antiga, e suas diversas mudanças no decorrer da História Ocidental. Para cumprir com este objetivo, buscamos através de obras do próprio autor e comentadores, compreender o que Sloterdijk entende por prática bem como observador neutro. Palavras-chave: observador neutro, morte aparente no pensamento, prática.
ABSTRACT The present text exposes the history of the neutral observer treated in the book The art of Philosophy: Wisdom as a Practice by the contemporary German philosopher Peter Sloterdijk (1947). We will also try to explain what the author understands by neutral observer and suspended animation. We seek to interpret the above text from these concepts and their relation to cognitive practices that, according to the author, appeared in ancient Greece, and its various changes in the course of Western history. To fulfill this objective, we seek to understand, through texts of the author's own and commentators, what Sloterdijk means by practice as well as neutral observer. Keywords: neutral observer, suspended animation, practice.
Do que trata o livro O livro Morte Aparente no Pensamento, no original Scheintod in Denken [Suspensão da vida em pensamento] é resultado de uma preleção de Sloterdijk, feita em 14
Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e graduando do curso de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
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2009, na universidade de Tubinga, num evento organizado pela Scientiarum da Universidade de Tubinga, e que tinha como tema: a antropologia nas discussões científicas (CIVILOTTI, 2014, p.75). Mas afinal, do que pode tratar um livro com o título Morte Aparente no Pensamento? Seria um tratado médico sobre catalepsia? Ou um texto de conteúdo místico sobre experiência de quase morte? Os títulos de Sloterdijk comumente oferecem pistas falsas. Não parece que temos em mãos, como promete a sinopse, um texto sobre a prática acadêmica do fazer filosófico ou científico. O que de fato trata o texto é da história do observador neutro. O morrer em pensamento é a atividade comum dos fazedores de teoria. Esta descreve a atitude comum daquele que fica, como Sócrates, paralisado enquanto pensa. Tal terminologia é próxima do que Arendt chamou de estar em lugar nenhum (ARENDT, 2000, p. 149). Este procedimento se aproxima do que se diz no vocabulário do dia a dia “o indivíduo que vive em outro mundo”, ou, “ficar no mundo da lua”. Assim, entendemos que o fazer teoria, na filosofia e em partes na ciência, é o lidar com o mundo de maneira conceitual. No filosofar, por exemplo, isto ocorre de maneira clara. Pois, é próprio desta atividade o manejo de conceitos. Desde o começo da filosofia se fala em “a justiça”, “a virtude” “o belo” “o bom”. É comum ao filósofo fazer universalização de situações particulares. O cientista, mesmo que sua atividade seja mais empírica, também faz teorias universalizantes. As teorias científicas são universalizações do mundo. O cientista que propõe uma teoria faz proposições universais: “Toda criatura que possui coração também tem rim”; “Todos os corpos sofrem ação da gravidade”. É neste sentido que o autor pretende tratar o fazer teoria. Sloterdijk compreende que o fazedor de teoria foi durante boa parte da história aquele que observava com certo distanciamento o mundo. A vida teórica – bíos theoretikós – é chamada por Aristóteles de vida contemplativa. E, é segundo ele o modo superior de vida. Mesmo Aristóteles, muito mais realista que Platão, concluiu que a vida ativa (vida política) era menos virtuosa que a vida contemplativa (EN, X. 8 11178b 2028). O estagirita dizia que o fazer teórico só é possível com o ócio, portanto mais livre que a atividade política que requeria do cidadão compromissos com a pólis (EN, X. 8 11178b 20-28). O fazer contemplativo aproxima os homens dos deuses. É próprio das divindades a observação do espetáculo do mundo. É próprio de um deus ver de um ponto de vista privilegiado o que se passa no mundo. A etimologia das palavras gregas
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theorien, theatron e mesmo theomai (comtemplar), possuem a mesma raiz de theos (deus) (ARENDT, 2000, p.99). Mas como sabemos o estereótipo do homem de teoria como observador neutro já não é mais comum na atualidade. Sloterdijk diz que a história deste observador – o morto aparente em pensamento – chegou ao seu fim com Husserl, o ultimo defensor da neutralidade teórica. Após este a história das ideias tomou outro rumo. Toda teoria epistemológica do século XX até os dias recentes impossibilitaram a existência do observador neutro. Entramos
na
era
dos
ismos:
existencialismo,
feminismo,
marxismo,
pragmatismo. Escolas, ou correntes filosóficas, compromissadas com posições políticas. A grafia destas escolas de pensamento nos é sugestiva. O sufixo “ismo” diz respeito ao agir, ao engajar-se numa determinada postura política. O autor de Morte Aparente no Pensamento percebe que esta nova forma engajada de fazer teoria é um rompimento brusco com a tradição milenar inaugurada por Platão. E que ainda não sabemos suas reais consequências (SLOTERDIJK, 2014, p.105-106). Sloterdijk pretende com esta narrativa dos desdobramentos do observador neutro recontar a história das ideias, mas com uma narrativa distinta das já apresentadas por epistemólogos e historiadores da ciência. O que Peter Sloterdijk propõe é ao invés de fazermos: “[...] a habitual história da ciência como história de problemas, discurso e resultados, poderíamos seguir o desenvolvimento das práticas e exercícios que permitiram a ciência, e assim narrar uma história de autosuperação que permite que pessoas que até aí utilizavam “linguagens normais” pré-teóricas entrem para a confederação do pensamento teórico” (SLOTERDIJK, 2014, p.20)
Mas, antes de começarmos a falar da história do observador neutro é importante elucidarmos o que Sloterdijk entende por prática.
A noção de prática na teoria de Sloterdijk Para um primeiro entendimento, a palavra prática no vocabulário sloterdijkiano é o mesmo que treino. Ela é o repetir, o praticar, o exercitar-se; a disciplina. Esta atividade é antes o acúmulo de know how do praticante e menos o resultado que ele tem com essa prática. Ele lembra que na cultura letrada do ocidente há certo desprezo em relação ao praticar (SLOTERDIJK, 2014, p.16). No seu vocabulário:
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“A prática, ou exercício, é a forma mais antiga e mais rica de consequências duma práxis autorreferente: os seus resultados não confluem em circunstâncias externas ou objetos, como quando trabalhamos e produzimos, desenvolvem a própria pessoa que pratica e põem-na “em forma” como sujeito-que pode”. [...] "O resultado de praticar mostra-se na “condição” atual, ou seja, no estado de capacitação do praticante. “Conforme o contexto, descreve-se como constituição, virtude, virtuosismo, competência, excelência ou fitness” (SLOTERDIJK, 2014, p.16-17).
Em Tens de Mudar a Tua Vida (2009), ainda não publicado em português15, Sloterdijk retoma a noção de prática. Para ele toda prática é uma antropotécnica, ou seja, "[...] formação da pessoa como ação prática sobre si própria [...]" (SLOTERDIJK, 2014, p. 23). Ainda no livro supracitado o autor pretende fazer narrativa do homem enquanto um ser da prática. Ele afirma que homem gera a si próprio. O gênero humano se faz como tal mediante o praticar (BRÜSEKE, 2011, p.163). Sloterdijk é contrário das definições de trabalho (tal como define Marx), comunicação (Habermas) ou interação (Arendt) como formas de autoprodução humana (SLOTERDIJK, 2010, p.15). Tens de Mudar a Tua Vida, aparentemente um título de autoajuda, diz muito sobre as atividades humanas de superação ao longo da história, sobretudo aquelas do atual século. “Você deve mudar tua vida” é comumente repetido por profissionais de várias áreas: médicos, nutricionistas, personal trainers, professores. Todos estes profissionais nos cobram melhorias de quadros mentais e corporais (BRÜSEKE, 2011, p.163). Em todas as épocas os homens buscaram melhorar seus rendimentos, pois, “[...] os seres humanos são inevitavelmente sujeitos a uma tensão vertical, em todas as idades e em qualquer espaço cultural” (SLOTERDIJK, 2010, p.17, tradução nossa). Para compreendermos o que é tensão vertical temos de prestar atenção que todas as culturas e subculturas são formadas por edificações (superações) pautadas em diferenças norteadoras. Ou seja, nas culturas religiosas prevalece a diferença entre o sagrado e o profano. Na cultura cognitiva o conhecimento versus a ignorância. E, na política a diferença entre o poder e impotência (BRÜSEKE, 2011, p.163). Também temos que notar os dois polos verticais nos exercícios. Eles são: os de manutenção; e de desenvolvimento. Os primeiros são aqueles que o praticante faz para manter o seu nível. A manutenção do praticante caracteriza-se pela repetição constante. 15
No prelo pela editora Estação liberdade. Vide:, http://libre.org.br/noticia/234/peter-sloterdijk-teranovo-livro-lancado-pela-estacao-liberdade> Acessado em 16/05/2017.
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Já os exercícios voltados ao desenvolvimento são os que o praticante faz em busca de melhorar seu desempenho (SLOTERDIJK, 2014, p.16). O homem se exercita para superar um estado determinado e chegar numa superioridade ainda não alcançada (BRÜSEKE, 2011, p.163). Sloterdijk nega a tese Nietzschiana de que todo o ascetismo é a manifestação advinda do ressentimento. Este disse que o homem de religião e o fazedor de teoria são representantes da negação da vida e da hostilidade aos sentidos (NIETZSCHE, 2007, p.105). Os indivíduos religiosos, segundo Nietzsche, por serem ressentidos, por não aceitarem a dor, a inconstância da vida e o sofrimento, inventam ficções para fugir deste mundo. Os escritos de Nietzsche sobre o ascetismo marcaram a cultura dos dois séculos posteriores de tal maneira que poucos acadêmicos ousam contrariar suas teses. Esta negação da prática acontece, sobretudo, em autores como Heidegger e os membros da teoria crítica. Intelectuais tecnofóbicos ou que costumam ver repressão em todo lugar. Mas é chegada a hora de olharmos os ideais ascéticos com outros olhos. É importante notarmos a sua dimensão positiva. Em outras palavras, faz-se necessário que notemos o quanto os ideais ascéticos têm de afirmação da vida (SLOTERDIJK, 2014, p.17-18). Com estas explicações do que Sloterdijk entende por prática podemos avançar em sua narrativa acerca do morto aparente em pensamento.
Gênese do observador neutro Sloterdijk busca tratar da gênese do observador neutro. Ele diz que a bíos theoretikós – vida teórica -
surge na Grécia Antiga. E, tal origem tem como
caraterística quatro mudanças significativas. O autor oferece quatro argumentos para tais alterações. São eles: 1) argumento psicopolítico; 2) psicológico ou caracterológico; 3) sociológico; 4) teoria dos media (SLOTERDIJK, 2014, p.56).
Argumento psicopolítico. A alteração psicopolítica tem como marco a fundação da Academia. Platão, com quarenta anos, após voltar de sua viagem da Sicília, em meados de 387 A.C, constrói num terreno no bosque de Hekádemos a sua Academia. Este ambiente, um tanto afastado de Atenas, foi erguido dez anos após Sócrates ter ido para julgamento. Platão, nascido em 428 A.C, teve sua juventude marcada por guerras. A democracia ateniense já não predominava na sua época. É certo que o pai da academia REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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tenha visto com maus olhos os frutos da vida política ateniense. Viu, ao invés de discussões moderadas, hostilidades e discordâncias inflamadas no ambiente público. Sua teoria é uma tentativa de negar este ambiente de discordâncias. O discípulo de Sócrates demonstrava não gostar da vida na ágora. Para ele as opiniões discordantes, as meras opiniões (doxas), eram responsáveis pela geração dos problemas da pólis. A cidade perfeita da teoria platônica seria aquela onde não há divergências de opiniões. Há nesta cidade ideal espaço apenas para o conhecimento verdadeiro (episteme). Afinal, aqueles que estão diante da Verdade não podem discordar. A guerra é acima de tudo causada por discordâncias. É justamente isto que Platão combateu (SLOTERDIJK, 2014, 56-57). A fundação da Academia pode ser lida como uma fuga, uma negação platônica de engajar-se na vida política. Ele parecia não conseguir se enquadrar na vida política do ambiente da pólis. Sua saída foi a de adotar o amor pela sabedoria, um sentimento próprio de um romantismo do perdedor (SLOTERDIJK, 2014, p.57). Platão foi responsável por tornar sua inaptidão para a vida na ágora em vitória no campo da sabedoria. O exemplo máximo desta derrota tornada vitória está registrado no diálogo Fédon. É neste texto que Sócrates, momentos antes de morrer, diz aos seus discípulos: “[...] em verdade estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia, e o próprio pensamento de estar morto é para ele, menos que para qualquer outra pessoa, um motivo de terrores! ” (PLATÃO, 1972, P.75 §68a).
Platão torna a derrota do último momento de seu mestre numa vitória. Este amor pelo saber requer do filósofo suspensão das emoções, ou seja, negação das coisas corpóreas. O amante do saber precisa colocar-se num ambiente afastado para fazer seus exercícios de desprendimento. O lugar específico para isto é o ambiente da Academia. Nietzsche percebe nesta negação do corpo - o que ele chama de ideal ascético - a característica de um ressentido. O filósofo alemão do século XIX percebe esta postura como sendo comum dos filósofos e que aparece de forma extremada na figura de Sócrates. Nietzsche retratou o ateniense, não como herói, mas como um doente, um negador da vida por excelência. É o próprio Sócrates que diz, e não seu detrator do século XIX, que fazer filosofia é um preparar-se para a morte (PLATÃO, 1972, p.75). Sua frase, dita para Críton no Fédon, “Devo um galo a Esculápio”, é sintoma daquele que vê na vida uma doença (NIETZSCHE, 2001, p.14). Pois era comum aos gregos que
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se curavam de uma doença fazer oferenda ao deus Esculápio. Sócrates via na morte uma cura para sua doença que era a vida (SLOTERDIJK, 2014, p.58). Platão, por intermédio de seu personagem Sócrates, buscou solucionar o problema da contingência do mundo. Para tal inventa a teoria da existência da alma imortal e do mundo transcendente em que as coisas existem por essência, ou seja, o mundo das ideias. Porém, esta passagem do sábio morrente que fala com toda a certeza da imortalidade da alma e da existência do mundo das ideias é um artifício de Platão. Este faz seu mestre dizer coisas que certamente não teria dito em vida. Sócrates, como sabemos, foi sempre o sábio de postura cético que perambulava pela ágora fazendo perguntas sobre o bem viver. Sócrates parece ter sido um pensador muito mais engajado politicamente que seu discípulo fundador da Academia (SLOTERDIJK, 2014, p.82). O Sócrates vivo parece ter sido o último cidadão da pólis que não quis estar vivo em outro lugar que não sua cidade e sob as leis desta. Foi por este motivo que negou fugir mesmo após ter sido condenado a tomar cicuta (SLOTERDIJK, 2014, p.58). O artifício platônico pode ser julgado de muitas maneiras, mas o que importa é o legado deixado por ele. A manobra de Platão marcou profundamente a cultura ocidental. As suas teses da defesa da imortalidade da alma, dos ideais ascéticos e do mundo das ideias são posteriormente aproveitadas em diversas frentes ao longo de boa parte da cultura ocidental. A atitude escolástica de afastamento da vida em sociedade e da negação do corpo não teria sentido se não fosse a precedência de Platão. Ou seja, o afastamento social dos escolásticos faz sentido se olharmos para a doutrina filosófica de Platão de defesa do ascetismo e da imortalidade da alma. Platão também é responsável por elogiar a “disposição antissocial” (SLOTERDIJK, 2014, p. 60). Podemos apontar desdobramentos das defesas contidas no Fédon – sobretudo o ideal ascético do homem de teoria – não somente nos escolásticos, mas até meados do século XX. Pois, como é sabido surgiram na história do ocidente incontáveis mortos aparentes dedicados à vida teórica em formas diversas: monástica ou laicizada; professoral e civil; ética e estética (SLOTERDIJK, 2014, p. 83). Após o esgarçamento do tecido social da pólis, a cidade de Atenas tornou-se um aglomerado de grupos de interesses. Já não existia a relativa harmonia. A filosofia entra em cena para trazer um novo sentido para a despedida da vida. A morte já não é oferecida orgulhosamente para a pólis. Morrer passa a ser: “[...] um objeto de
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especulação romântica, ocasionalmente um brinquedo de lasciva metafísica” (SLOTERDIJK, 2014, p.60). De acordo com o argumento psicopolítico, a vida voltada à teoria é resultado dos problemas da pólis. Surge assim um novo agrupamento de homens sem compromissos políticos. Estes falam do que se passa no intramuros da cidade de uma posição superior. Neste contexto surge a ideia de cosmopolitismo (SLOTERDIJK, 2014, p.61-62). A filosofia vive na Antiguidade certa decadência dando lugar para a ascensão da teologia. O romantismo do perdedor perde espaço para os imperativos funcionais do período monárquico. Vemos exemplos fracassados e isolados de homens, como Marco Aurélio e Juliano – o Apóstata – que tentaram juntar num só homem a soberania imperial e filosófica. Os reis querem súditos, cortesãos e não discípulos. Outros monarcas queriam sacerdotes e não filósofos: durante mil e quinhentos, anos o papel do soberano está claramente definido (SLOTERDIJK, 2014, p. 64). Já na Renascença há a crescente emancipação da filosofia em relação à teologia. Reaparecem sinais sintomáticos do romantismo perdedor. Já na modernidade notamos outra mudança: não ocorre tanto a busca por autodomínio de éticos como Sócrates, mas o domínio do mundo por meio da ciência. Após a retomada do Romantismo do perdedor na Renascença há um novo romantismo do perdedor nas democracias dos séculos XIX e XX (SLOTERDIJK, 2014, p.65). O elogio ao engajamento político é próprio desse período. O engajar-se é um imperativo do mundo acadêmico da nova democracia. No século XX, Hanna Arendt foi responsável por dar a vida política maior importância do que a teórica. Mas, Sloterdijk lembra que mesmo Arendt tinha em sua teoria resquícios do romantismo do perdedor. Pois, estruturou sua teoria, mesmo que num contexto democrático, em certo elitismo inspirado na constituição americana. A constituição estadunidense, como lembra o autor, definiu a vida política enquanto uma atividade de amadores abastados (SLOTERDIJK, 2014, p.66-67). Peter Sloterdijk diz que até o presente momento não houve filosofia política que não visasse retardar perdas ou propor utopias. Filosofia e política como vimos não são contemporâneas nem na origem nem em épocas posteriores (SLOTERDIJK, 2014, p. 67). É preciso salientar que Peter Sloterdijk visa apontar que na contemporaneidade todo o fazer teórico é, de alguma forma, político. Todos os problemas teóricos, não só na filosofia, mas em todas as áreas do saber, são reduzidos às questões políticas. Qualquer exegese textual tem como fator imprescindível que o leitor tenha em mente a REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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posição política do autor. Muitos se referem ao século XX como o século da linguagem. Época que tanto continentais quanto analíticos trataram de problemas filosóficos como problemas de linguagem. Mas este período poderia ser facilmente entendido como século da política. Os desdobramentos do século da política persistem no atual XXI. A filosofia, no contexto dos séculos XX e XXI, já não é mais o saber que declara a primazia do fazer teórico. Há na primazia da vida política um brusco rompimento com a tradição filosófica iniciada por Platão. Como exemplo maior deste rompimento, temos o exemplo de Richard Rorty. O filósofo do pragmatismo americano, declaradamente antiplatônico, defendeu em seus escritos o primado da democracia sobre a filosofia (SLOTERDIJK, 2014, p. 67). Os defensores da democracia devem, segundo o pensamento rortyano, rejeitar ironicamente a tentativa teórica de fundamentar a democracia através de uma verdade redentora (cf. RORTY, 2007). Na sua perspectiva, uma pessoa que tem preocupação com causas sociais tem melhores perspectivas para o futuro do que alguém que escreveu uma tese sobre Kant (RORTY, [2008], p. 8). Na atualidade a filosofia perdeu a guerra e seu posto de rainha para a política (SLOTERDIJK, 2014, p. 67-68). Toda a atividade filosófica que nega a posição privilegiada torna-se política.
Argumento caracterológico ou psicológico. A gênese do homem capaz de epoché não fica restrita ao desapego em relação aos assuntos da pólis. Os fazedores de teoria têm como característica psicológica comum a melancolia. O homo theorétikós guarda certo distanciamento do mundo por ser aplacado por uma tristeza sem causa aparente (SLOTERDIJK, 2014, p.68). Foi Hipócrates em seu tratado dos fluídos disse que a melancolia era causada por excesso de bílis negra no sangue. Daí sua etimologia mélas (negro) + kholê (bílis). Outros exemplos, ainda na época grega, mostram o filósofo como esta figura triste tomada pela melancolia. Heráclito de Éfeso é descrito como o filósofo chorão. E, Aristóteles chegou a dizer que todos os gênios foram pessoas melancólicas (SLOTERDIJK, 2014, p.69). O tratado dos fluídos foi posteriormente substituído pela “ciência” dos corpos celestes (Astrologia), que descrevia o melancólico como aquele que tinha sua vida regida pelo signo de Saturno (SLOTERDIJK, 2014, p.68). Evágrio Pôntico, já no contexto cristão, chamou este mal característico da atitude teórica de o demônio do meio dia (SVENDSEN, 2006, p.53).
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Argumento sociológico Neste argumento Sloterdijk fala do surgimento da instituição Paidéia. É em solo grego que florescem as instituições pedagógicas. É sabido que a pedagogia surgiu de rebentos da sofística, ou seja, da retórica voltada para a política. Na época democrática anterior a Platão era mais importante vencer um debate com falas empoladas do que estar diante da verdade redentora. Esta era uma das atividades sofísticas que Platão mais desprezava. Era comum nesta época oradores competirem por discípulos. Platão, como sabemos, combatia, muitas vezes injustamente, estas práticas também atribuídas aos sofistas (SLOTERDIJK, 2014, p.70). Nas instituições pedagógicas surgidas na Grécia Antiga os jovens rapazes eram orientados a treinarem a audição. Estes teriam de sentar aos pés do mestre e decorar a lição. Mas, este treinamento não é mera imitação, é o início de uma inteligência autônoma (SLOTERDIJK, 2014, p.70). Os exercícios de recepção auditiva são acompanhados pela paralisação da motricidade: o discípulo fica imóvel diante de seu mestre. O sentar-se aos pés do mestre era um remédio psicoativo 2500 anos antes da criação da ritalina. É daí que surge a ideia do homem sedentário no sentido escolástico do termo (SLOTERDIJK, 2014, p.71). A cultura é em grande medida um sedativo. A passagem da quietude diante da lição para a quietude diante do destino não é longa. Para isso, basta o indivíduo imaginar que o cosmos é uma grande escola. Tal atitude teve seu auge com a filosofia estoica e seu ideal de apháteia (SLOTERDIJK, 2014, p.72). A instituição Paideia também contribuiu para o desenvolvimento do homem teórico, pois o aluno em “tempo escolar” ficava liberto de outras obrigações. O estudo no mundo grego era privilégio de poucos homens que gozavam de total ócio. A proximidade entre as palavras gregas ócio (scholé) e escola (schola) nos ajuda a entender este contexto sócio-histórico.
Argumento da teoria dos media Sloterdijk quer apontar as mudanças das atitudes mentais provocadas pelo surgimento da cultura da escrita. Estas mudanças subjetivas são as novas formas de “ler” o mundo causadas pelo contato com a cultura alfabética. Há já na cultura grega alfabetizada a analogia entre o mundo e o livro. Pode ser dito que a experiência neste
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contexto estava moldada – pré-configurada – pelos adestramentos gramaticais. O homem letrado é levado a perceber o mundo no seu entorno como se este fosse um livro e os acontecimentos capítulos. (SLOTERDIJK, 2014, p.74). A ideia sugerida é que os leitores de livros e leitores do mundo tenham “[...]apriori a disposição de observadores que guardam distância” (SLOTERDIJK, 2014, p.74). O homem de leitura é adestrado para manter distância, ter capacidade de epoché (SLOTERDIJK, 2014, p.73). A maneira de ler o mundo através da analogia mundo-livro permanecerá por muito tempo. E só sofrerá mudanças com a Renascença e sua pintura em perspectiva. Os quadros desta época que mostram imagens em profundidade parecem corresponder melhor à realidade do que letras postas numa superfície de papel ou outro material. Outra invenção moderna que contribuiu para o fim da analogia entre mundo e livro foi o surgimento da cartografia. Ela possibilitou que o mundo fosse percebido como um globo (SLOTERDIJK, 2014, p.72-73). Esta nova percepção de mundo é marcada pela época das navegações. Mas, o fim de fato desta analogia mundo-livro ocorre com o aparecimento da era da informática. As telas dos computadores causaram uma alteração nunca vista na maneira de perceber o mundo (SLOTERDIJK, 2014, p.7273). Com esta exposição da gênese do observador neutro é possível avançarmos para os seus desdobramentos.
Desdobramentos do observador neutro O primeiro desdobramento da morte aparente fora da Grécia ocorre em terras romanas trezentos e cinquenta anos após a fundação da Academia de Platão. Sloterdijk diz que o responsável pelo surgimento do homo theoretikós em Roma foi Cícero. Este homem foi responsável por introduzir a cultura helênica em Roma (SLOTERDIJK, 2014, p.84). Cícero nas suas Discussões Tusculanas (cf. CÍCERO, 2014) retoma a divisão, já conhecida em terras gregas, dos homens entre os que buscam a honra (timóticos ou políticos); os que buscam dinheiro (eróticos ou crematísticos); e os que buscam a sabedoria (filósofos e teóricos). Da mesma maneira que Aristóteles e Platão, Cícero eleva o último grupo à aristocracia ontológica (SLOTERDIJK, 2014, p.85). Após mais de quinhentos anos a teoria da transmigração das almas e das várias vidas se fizeram presentes na cultura romana. Após este período, já sob o domínio do cristianismo, implantou-se a ideia de que se vive e se morre apenas uma vez. Assim, se
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disseminou a concepção de que todos os bons atos morais devem ser feitos nesta única vida (SLOTERDIJK, 2014, p.86). Sloterdijk fala da época medieval escolástica. Ele entende que neste período houve desdobramentos da cultura helênica e apropriações das teorias platônicas e aristotélicas. Havia no intelectual medieval de vida monástica a busca por integrar-se, ainda em vida, o grupo das santidades. O autor diz que há um novo desdobramento do morto aparente na modernidade do século XVI (SLOTERDIJK, 2014, p.87). Sloterdijk recorda que a Modernidade é lembrada nos textos de história das ideias por ser a época do domínio da natureza. Mas, as narrativas convencionais das ideias deram pouca atenção ao fato de nesta época os intelectuais, associados à burguesia em ascensão, queriam se destacar dos demais criando o que ele chama de aristocracia artificial (SLOTERDIJK, 2014, p.89). Também é importante lembrar que a Renascença é marcada pelo culto da genialidade, um substituto da santidade cristã. Tanto a genialidade neopagã quanto a santidade cristã são reinterpretações típicas da morte aparente. Os intelectuais, tanto da Idade Média quanto na alta Idade Moderna, tinham de depor o eu mortal em vista de um ego intelectual e espiritual indestrutível. Este homem de teoria séria o santo do tempo medieval ou o homem da nobreza artificial da Renascença (SLOTERDIJK, 2014, p.89). Há na Renascença a passagem do modelo do teórico meditativo para o élan criativo (SLOTERDIJK, 2014, p.90). Como exemplo dessa defesa da nobreza intelectual temos o escrito de Giordano Bruno, Das Paixões Heroicas, onde o sábio italiano interpreta o mito de Acteon, transmitido por Ovídio. A história narra a caçada do jovem Acteon pelo bosque. Ao se aproximar do lago, surpreendeu Diana nua no banho. A deusa tomada pela fúria jogou água no caçador e transformou-o num veado que foi devorado por seus cães. Giordano Bruno interpreta o mito dizendo: “Assim Acteon com seus pensamentos, seus cães que buscavam fora de si o bem, a sabedoria, a beleza, a besta selvagem, por este meio veio a sua presença; fora de si por tanta beleza arrebatado, converteu-se em presa, se viu convertido naquilo que buscava e percebeu-se transformado em presa de seus cães, de seus pensamentos, pois em si mesmo encontrava a divindade, já não era necessário buscá-la fora de si.” “[...] de homem vulgar e comum como era, torna-se raro e heroico, tem costumes e conceitos raros e leva uma vida extraordinária” (BRUNO, 1987, p.74-75 tradução nossa).
Na tradição neoplatônica o mito era lido como a passagem do olhar profano - do que observa vulgarmente as coisas divinas - para aquele que apreende a verdade divina
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e nela se transforma. Ou ainda, o homem que deixa o corpo mortal e ingressa na vida intelectual do espírito (SLOTERDIJK, 2014, p.88). Bruno, no entanto, lê esta passagem como o morto aparente dotado artisticamente, que possuído pelo gênio artístico, transborda talento (SLOTERDIJK, 2014, p.88-90). A morte aparente sofre outra transformação com Fichte. Da mesma maneira que Bruno no século XVI, o pensador idealista no começo século XIX oferece um modelo renovado de intelectual. Ele toma o eu penso de Kant e o torna o eu-puro. Este eu proposto por Fichte deve prescindir de toda a externalidade objetiva e aprender mediante um puro exercício de voltar à atenção para si. “A partir daqui o homem sábio é um puro funcionário do absoluto"(SLOTERDIJK, 2014, p.91). Após o século XIX, o último representante da morte aparente em pensamento é Edmund Husserl. Este criticou o cientificismo e o psicologismo de sua época. Pretendeu criar
uma teoria fundamentada em evidências indubitáveis. A sua nova ciência - a
fenomenologia-deveria descrever fenômenos que aparecem para a consciência após o observador fazer a epoché, ou a suspensão do juízo como diziam os céticos pirrônicos (SEXTO EMPÍRICO, 1997, P.116). Fazer epoché, para o pai da fenomenologia, diz respeito ao pôr em parênteses as convicções mal fundamentadas. O que aparece à consciência sem interferência dos juízos pré-formulados são as essências eidéticas. A nova ciência de Husserl é a área do saber que pretende tratar dessas essências eidéticas e não de fenômenos externos. O fenomenólogo husserliano é aquele que consegue, por meio da observação desinteressada, se despir dos preconceitos e das obviedades em busca de compreender universalmente. Este lida com ideias universais e não com particularidades. Husserl quer com sua teoria propor um intelecto puro que se distancie de qualquer posicionamento existencial seja ele levado pelo sentimento ou vontade. Sua proposta de não misturar reflexão e vida ordinária é um desdobramento do platonismo em pleno século XX. (SLOTERDIJK, 2014, p.28). Segue a partir daqui a lista dos assassinos do observador neutro. Estes são os responsáveis por extinguir a possibilidade de qualquer forma de neutralidade.
Morte do observador neutro O final da história, segundo o modernismo epistemológico, mostrou que o observador neutro é uma ficção. Resta ao cognoscente se recolher em sua mortificação
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artificial. Mas este ponto requer uma interpretação; afinal, o fim do observador neutro pela mão da modernidade epistemológica é benéfico ou maléfico? O final da história se mostra, para Sloterdijk, dramático. Pois, o assassinato do observador impassível é um rompimento brusco com a tradição milenar do ocidente (SLOTERDIJK, 2014, p.105106). Os rebeldes antimetafísicos cumpriram sua tarefa de matar o fantasma da era metafísica que encantava a todos. Será mostrada a lista dos assassinos, já sabendo que não foram nem devem ser julgados por seu crime, já que o crime de matar um ser sobrenatural não é descrito na lei. Estes não cometeram o crime ao mesmo tempo, porém em épocas diferentes (SLOTERDIJK, 2014, p. 107). São ao todo dez os assassinos do morto aparente em pensamento. Sabe-se que a estes malfeitores podem ser mais que dez: Se recobrarmos desde o século XVIII esta lista de suspeitos pode aumentar. O fato principal deste acontecimento é a secularização do pensamento na sociedade europeia (SLOTERDIJK, 2014, p. 107). Segue a lista dos assassinos. Ocorre a retomada da teoria na práxis, principalmente em solo alemão com os neohegelianos. É realocada a importância - priorização - da vida prática comum e política em detrimento das outras. Na democracia a intelectualidade contemplativa é relegada para formatos mais modestos. O que impera nesta era é o senso comum e o bem-estar da comunidade. A sabedoria em muitos casos é lida como busca de felicidade de indivíduos prepotentes. Um representante dessas ideias é Karl Marx. Este é o pioneiro da primazia da práxis em detrimento da vida teórico-contemplativa. Marx é o pensador que aponta a essência do real como sendo produção material e luta pelos meios de produção. A luta de classes, como é sabido, é outro ponto importante de sua teoria. Após as formulações teóricas marxianas qualquer colocação teórica seria lida como a fala de alguém proveniente de certa classe e com certos interesses inerentes desta classe. A máxima marxiana: “Onde havia contemplação, deve haver mobilização” (SLOTERDIJK, 2014, p.108). Outro personagem da morte do observador impassível é Nietzsche. O introdutor do perspectivismo na teoria epistemológica aponta sérios impasses para a existência de um observador dotado de um olho divino e que poderia ver de maneira neutra a realidade. Para ele o observador olha sempre de uma perspectiva, sua localização em relação ao objeto irá influenciar em sua descrição da realidade observada. Sendo assim,
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todo o fazer ciência é antes uma confissão do investigador (SLOTERDIJK, 2014, p.108109). Nietzsche, por sua vez, faz-nos perceber que os paradigmas da objetividade e imparcialidade são difíceis de serem sustentados. Tal complexidade se dá pois, aquele que busca a Verdade de maneira “imparcial e objetiva” é tomado pela vontade inquietante de atingir tal estado. Este “sujeito do conhecimento” demostra suas paixões, seu apetite incontrolável pela descoberta e a libertação da ignorância (FOUCAULT, 2011, p.35). Nietzsche pretende instituir uma nova filosofia que dê mais importância aos sentidos. Tal filosofia busca instituir um novo modelo epistemológico: a ideia de que o cientista observa seu objeto de estudo em perspectiva, e não de uma visão privilegiada que abrange o objeto em sua totalidade. Segundo ele, quanto mais impressões acumularmos de algo, quanto mais ângulos distintos os investigadores puderem observar maior será o conhecimento. E, não há como ter todas estas impressões de uma única vez, daí a necessidade da troca e acumulo de experiências por parte dos investigadores. Tal postura seria uma expansão do conhecimento e não castração do intelecto (NIETZSCHE, 2007, p. 98 § 8). Segue o terceiro. George Lukács. Este por colocar a importância da consciência de classe na teoria. Seu a priori seria tal consciência. Toda atividade intelectual moralmente boa deveria ter a consciência de classe em sua pauta. Este defendeu a revolução ao invés do pacifismo lógico (SLOTERDIJK, 2014, p. 109). Em quarto, o fundador do existencialismo do século XX: Martin Heidegger. Aqui se segue nem tanto a teoria do autor, mas, seu engajamento político no Nacional Socialismo. Esta incursão é sem dúvida um problema na biografia de Heidegger. Sua reputação permaneceu manchada por este acontecimento, mas Sloterdijk chama a atenção para vermos que este fato biográfico só fará sentido se relacionarmos sua incursão no nazismo e sua negação da racionalidade contemplativa. É fato que Heidegger tentou retomar no pós-guerra a necessidade de uma cultura racionalista (SLOTERDIJK, 2014, p.110). Em quinto a descrença na ciência que se instaurou no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Este descrédito se deu principalmente após o lançamento de bombas atômicas em Hiroxima e Nagasáqui. Depois deste ocorrido a física, rainha das ciências naturais, em grande medida, entrou em descredito (SLOTERDIJK, 2014, p.110). REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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O sexto da lista: o existencialismo contrário aos grandes sistemas filosóficos e a ideologização das ciências naturais (SLOTERDIJK, 2014, p.111). Esta descrença por parte dos existencialistas começa com Kierkegaard quando este acusou Hegel de fazer uma teoria que se esquecia dos indivíduos realmente existentes. Esta crítica atingiu seu ápice com Sartre e sua defesa da escolha existencial que permeia todas as situações da vida. O sétimo lugar fica com a Sociologia do saber. Este ramo da sociologia aponta, desde o início do século XX, com o pensamento de Max Scheler, que todas as ideias são atreladas a "interesses". Todo o saber segundo este teórico seria descrito como: saber de formação, de salvação e de dominação. Segue-se que todo saber pretensamente neutro é interesse. Ficam na mesma lista os nomes de Kuhn e Foucault. O primeiro com a teoria dos paradigmas e o segundo com a teoria do discurso. Não sabemos ao certo se estes escritos
são
etnologias
imparciais
ou
críticas
do
conformismo
discursivo
(SLOTERDIJK, 2014, p.112- 112). Oitavo. O surgimento da epistemologia feminista. Os estudos de gênero atacam a antiga epistemologia como um fazer ciência duma masculinidade dominante (SLOTERDIJK, 2014, p.112). Cabe aqui citar Judith Butler e seu influente estudo Bodies That Matter [Os corpos que importam]. Em nono lugar a refutação da apatia teórica pelos neurologistas contemporâneos. A atual neurologia diz que as conexões entre parte lógica e emotiva do cérebro são mais profundas do que qualquer tipo de auto-observação. “Assim, os resultados desta disciplina desembocam na exigência de que se arquive o sonho teoria apático-noética pura" (SLOTERDIJK, 2014, p.112-113). O neurologista português Antônio Damásio aponta para a impossibilidade do dualismo cartesiano da razão e sentimento. Damásio aponta para a importância dos sentimentos nos processos cognitivos. O décimo é Bruno Latour. O pensador francês é responsável por dizer que o homo academicus não é um representante de um saber externo e isolado, mas como alguém que está inserido nas relações sociais. O mesmo ocorre com a técnica. Assim, podemos entender que tanto a produção científica quanto a técnica devem ser entendidas como continuações das relações sociais por outros meios (SLOTERDIJK, 2014, p.113). Latour entende por “outros meios” as tecnologias que possibilitam a comunicação. Tais meios são, segundo a sua teoria também agentes sociais. O papel de agente social não fica restrito aos humanos, os criadores destas tecnologias comunicacionais. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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A tímida saída de Sloterdijk Sloterdijk lamenta o fim que teve a tradição milenar de mais de dois mil e quinhentos anos do homem capaz de epoché. Propõe uma tímida saída para o impasse da morte do observador neutro. Este lembra que as práticas ascéticas dos teóricos continuam existindo, mesmo havendo a impossibilidade da metafisica pretendida em épocas anteriores. Ainda nos dias atuais, com a comprovada impossibilidade da ingênua neutralidade defendida no passado, as ciências e a filosofia são praticadas como nobres atividades da vida consciente. Segundo o autor os praticantes de teoria, em certos momentos de suas atividades, parecem ser tomados por lapsos teóricos da mesma maneira que ocorria com Sócrates ao ouvir suas vozes interiores - seu daímôn (SLOTERDIJK, 2014, p.115). O autor lembra que foram criados cursos de capacitação que, mesmo desprezando qualquer metafísica, ensinam a juventude acadêmica a buscar um ponto de vista suprapessoal (neutro). As escolas fazem seus alunos aprenderem este procedimento sem que haja a necessidade destes jovens aprendizes rezarem ou jejuarem. A juventude acadêmica aprende através de uma cultura laicizada a prestar atenção no geral e no particular. Eles aprenderão o “[...] sentido para o lado formal de todas as coisas” (SLOTERDIJK, 2014, p. 102-103). Podemos inferir que a tímida saída proposta por Sloterdijk aponta para um meio termo entre a teoria (ver de longe) e o engajamento (tomada de decisão). Ele nos diz que jovens aprendizes e profissionais experientes, buscam em suas práticas teóricas a manutenção do máximo de rigor no que diz respeito a neutralidade. Entende-se então que profissionais como juízes, jornalistas, químicos ou físicos- que tem compromisso com o profissionalismo sério- mesmo tendo a plena noção da impossibilidade de uma total neutralidade, visam fazer seus relatos ou vereditos com o máximo de imparcialidade. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito: O pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Ed. Relume-Dumará, 2000. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Bauru, SP: Edipro, 2015. BRUNO, G. Los Heroicos Furores. Madrid: Tecnos, 1987.
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TRADUÇÃO Da Ironia à Serenidade Robusta – Políticas Pragmáticas sobre Religião depois de Rorty
From Irony to Robust Serenity – Pragmatic Politics of Religion after Rorty Martin Mueller16 Traduzido por Frederico Graniço17
* A Revista Redescrições agradece a Martin Mueller, à editora Brill e à revista Contemporary Pragmatism; pela atenção e permissão para publicarmos esta tradução.
RESUMO
Qual é o valor prático [cash value] da filosofia de Richard Rorty e suas políticas sobre religião? Este artigo analisa a promessa política na mudança de Rorty do ateísmo para o anticlericalismo na última década de sua vida. Busco primeiramente apresentar um sumário conciso desta mudança, e desta motivação transformativa. Então faço uma crítca a esta mudança e sugiro uma correção amigável: sua extensão a um pluralismo pragmático. A concepção rortyana esboçada de políticas sobre religião ao mesmo tempo serenas e robustas é proposta como uma resposta promissora à questão de como cidadãos liberais seculares devem reagir ao “retorno dos deuses”. Palavras-chave: políticas pragmáticas sobre religião, anticlericalismo, pragmatismo transformativo, falibilidade pragmática, ironia.
ABSTRACT What is the cash value of Richard Rorty’s philosophy and politics of religion? This paper analyzes the political promise of Rorty’s shift from atheism to anticlericalism in the last decade of his life. It seeks to deliver primarily a concise summary of this shift, and of its transformative motivation. Then a critique of this shift is followed by the suggestion of a friendly amendment: its extension towards a pragmatic pluralism. The 16
Munich Community College, Alemanha. m.mueller-mail@gmx.de.
17
Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ. Editor da Revista Redescrições.
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outlined Rortyan conception of a serene, and, at the same time robust, politics of religion is proposed as a promising answer to the question of how secular liberal citizens should react to the “return of the gods.” KEYWORDS:
pragmatic
politics
of
religion,
anticlericalism,
transformative
pragmatism, pragmatic fallibilism, irony.
1 – Introdução: Qual o Valor Prático [Cash Value] das Políticas Rortyanas sobre Religião? Como devemos reagir ao desafio do fundamentalismo religioso sem trair nossos valores liberais? As políticas sobre religião de Richard Rorty contêm uma resposta convincente para esta questão premente. Mas para isto é requerida uma reconstrução concisa, e redescrição parcial, da mudança do ateísmo filosófico para o anticlericalismo político, no seu trabalho tardio. Qualquer reconstrução do neopragmatismo de Rorty tem de considerar seu caráter transformativo. Ele é transformativo porque seu objetivo não é reconstruir nossas práticas linguísticas, mas mudá-las.18 Ao mesmo tempo, o pensamento de Rorty é melhor caracterizado pela ideia de uma coexistência pragmática de romantismo e pragmatismo. Esta estratégia de coexistência é frágil, mas, contudo, consistente. As correções requeridas mais importantes são em relação às questões de limite entre seus impulsos pragmáticos e românticos. Estas correções são necessárias mas ao mesmo tempo possíveis num espírito rortyano.19 Metodologicamente uma análise do ambicioso pragmatismo transformativo de Rorty deve seguir a máxima de John Dewey, “O pragmatismo deve tomar sua própria medicina.”20 Para alcançar as questões realmente cruciais temos de aplicar o método pragmático ao pensamento do próprio Rorty: Quais são os “frutos” de seu liberalismo irônico pragmático para a teoria e prática liberal? 21 Mas para responder esta questão em 18
O caráter transformativo da filosofia de Rorty culminou na sua concepção de filosofia como políticas culturais. Ver Rorty 2007. Gostaria de agradecer Marianne Janack. Sem seu encorajamento e ajuda, este artigo não poderia ser escrito. 19
Para estas correções e minha reavaliação positiva sobre o diagnóstico de Nancy Fraser de uma posição de partição no pensamento político de Rorty, ver Müller 2014. 20
Dewey 1983, 257.
21
Ver Müller 2014, Parte 3, para minha tentativa de uma execução compreensiva deste teste.
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relação às políticas sobre religião precisamos considerar que Rorty mudou sua visão. Ele originalmente manteve a posição filosófica de um secularismo e ateísmo militante, que incorporava na figura utópica do ironista liberal. Esta bem conhecida posição inicial é brevemente esboçada na seção a seguir. Contudo, na última década de sua vida, ele advogou sobre um ponto de vantagem instrumentalista na religião. Deve-se perguntar somente pelas consequências da “conversa sobre Deus” [God talk]. Uma reaproximação transformativa com a religião é combinada com a posição agora política do anticlericalismo. A reconstrução concisa desta mudança é o objetivo primário deste artigo. Isto é feito na Seção 3. A Seção 4 seguinte contém uma crítica e uma amigável correção desta mudança e seu alcance em consistentes políticas pragmáticas sobre religião. No capítulo conclusivo esta tentativa é colocada no contexto amplo da visão de uma falibilidade pragmática, inspirado por Richard Bernstein. Mas há ainda nesta visão um lugar para a virtude rortyana da ironia?
2 – Ateísmo, Secularismo Militante e Ironia – A Utopia Antiautoritária de Rorty de uma Cultura “Desdivinizada” Se tornar religioso não era uma “opção de vida” para Rorty. Ele originalmente manteve a posição filosófica de um ateísmo declarado e mostrou consciente indiferença e às vezes mesmo desprezo pela religião e teologia. Mas ao mesmo tempo ele era também um ateísta chato sem qualquer interesse em atacar a crença religiosa por ser demonstravelmente falsa ou irracional. As reivindicações religiosas em geral e a questão da existência de Deus em particular simplesmente não eram matéria de disputa filosófica séria para ele.22 Seu trabalho não objetivava primariamente trazer a religião pra baixo, mas sim, principalmente, seus sucessores clandestinos como a metafísica e o realismo. Ele entendia isso como a “tentativa de tirar as últimas conclusões de uma posição consistentemente ateísta.”23 Como um complemento para seu ateísmo, Rorty lutou por um secularismo militante e perseguiu o projeto de uma “desdivinização” abrangente. Em Contingência, Ironia e Solidariedade ele procurou uma cultura sem centro tanto pós teológica quanto pós metafísica. Nesta cultura radicalmente descentralizada nada seria adorado como uma quase-divindade: “In its ideal form, the culture of liberalism would be one which 22
Ver Curtis 2012, 1–2. Tarbox 1997, 319.
23
Rorty 1998b, 48–49. Ver Smith 2005, 97.
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was enlightened, secular, through and through. It would be one in which no trace of divinity remained.”24 Simplesmente não havia mais lugar para qualquer necessidade metafísica profunda de transcendência em geral e para a reivindicação teológica em particular de que Deus é uma realidade transcendente. E nada mais é necessário para substituir a religião enquanto cola para a integração normativa da sociedade.25 A visão de Rorty de uma sociedade verdadeiramente secular e liberal é incorporada pela figura do ironista liberal. Ela tem, enquanto nominalista e historicista, um senso humanista de finitude e uma esclarecida consciência da contingência do vocabulário liberal que é central para sua identidade pública.26 Com seu balanço prático de busca privada por autocriação e solidariedade pública, Rorty dá uma resposta pragmática à crise do projeto “alemão” de estabelecer valores políticos. E ele esboça um ideal de cidadania liberal sem necessidade de apoio metafísico ou religioso. Rorty continuou um militante secularista comprometido durante toda sua vida. Seu secularismo, como seu trabalho em geral, foi inspirado e motivado por uma visão profunda: um democrático antiautoritarismo deweyano. A única autoridade em assuntos públicos deve ser o consenso democrático. Autoridade epistêmica é sempre e somente uma questão de acordo social entre colegas seres humanos.27 Qualquer apelo a uma autoridade não humana é incompatível com esta visão. Esta é a razão principal para a suspeita de Rorty contra a compatibilidade da religião com a democracia. Esta crença característica e esperança de uma poderosa fonte de autoridade não humana deve portanto ser substituída pela esperança social de uma cooperação livre entre cidadãos.28 O antiautoritarismo militante de Rorty é combinado com uma narrativa deweyana de maturação. De acordo com Rorty, nós seríamos melhores se nós pudéssemos superar a necessidade de um guia autorizador, que está no coração da religião e do representacionismo. Para ele o pragmatismo está sobre os ombros do esclarecimento secular e seu objetivo emersoniano é: autoconfiança humana.29
24
Rorty 1989, 45. Ver ibid, 21–22.
25
Ver Rorty 1989, 45–46, 84–85. Para isto ver Tarbox 1997, 317.
26
Ver Rorty 1989, 73–75.
27
Ver especialmente Rorty 1999b.
28
Ver Rorty 2011, 21f. Para isto, ver Stout 2010, 540.
29
Ver Rorty 1998b, 76–83, 143. Rorty 2010b, 546–548. Para isto, ver Stout 2010, 540–541.
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3 – Reabilitação Pragmática e Transformação da Religião – A Mudança de Rorty do Ateísmo para o Anticlericalismo. Na última década de sua vida Rorty não somente deixou a figura do ironista liberal, mas também fez uma mudança em sua filosofia e suas políticas sobre religião. Mas a alegação de Jason Boffetti de que ele fez uma virada religiosa é um tanto enganosa. Ele se manteve, com Max Weber, “religiosamente dissonante”.30 De outro lado, o último Rorty surpreendentemente não somente se tornou um pensador religioso por começar a refletir sobre a dimensão religiosa da vida humana; diferentemente de antes, ele fez uma tentativa de reconciliar religião e pragmatismo.31 Seguindo Williams James e John Dewey, ele defendeu a ideia de uma posição pragmática consistente além de teísmo e ateísmo: deve-se perguntar somente sobre as consequências da “conversa sobre Deus”. No nível individual Rorty seguiu a justificação de James da religião como questão privada. No que se refere às consequências sociais da religião, ele manteve um anticlericalismo político, combinado com o projeto de longo prazo de uma pragmática religião civil nacional. Esta é uma das mais notáveis mudanças nas perspectivas de Rorty. A defesa pragmática rortyana da religião no nível individual é baseada numa interpretação instrumentalista do ensaio seminal de James, “The Will to Believe”. O pragmatismo como antirrepresentacionismo nos liberta da ideia de um dever intelectual de sintetizar todas nossas crenças numa única visão de mundo. Vocabulários e áreas da cultura diferentes são vistos como instrumentos diferentes para diferentes propósitos e são julgados somente por suas consequências. Esta visão instrumentalista da cultura permite uma coexistência pacífica entre diferentes áreas da cultura, por exemplo entre ciência e religião: “These two areas of culture fulfil two different sets of desires. Science enables us to predict and control, whereas religion offers us a larger hope, and thereby something to live for.”32 Para Rorty a tensão entre ciência e religião pode ser resolvida dizendo que elas servem a diferentes fins. O dualismo de James entre o cognitivo e o não-cognitivo é deixado e substituído pela distinção entre empenhos da cooperação social com a necessidade de justificação e empenhos de projetos de redenção privados sem esta necessidade. A reabilitação pragmatista de Rorty da religião 30
Rorty 2005, 33. Ver Boffetti 2004.
31
Ver Smith 2005, 76, 82.
32
Rorty 1999a, 153. Ver Smith 2005, 84.
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é combinada com a ideia de que a religião enquanto matéria privada não é matéria de crença justificada (justificável). Justificação é somente requerida no reino público de projetos cooperativos, tais como a ciência e as políticas. Mas no reino privado todo cidadão tem o direito de optar fora do jogo público de dar e pedir por razões. Com esta privatização instrumentalista a questão da verdade da religião é deixada de lado e a carga de irracionalismo contra ele se torna obsoleta. O que resta é somente a questão utilitária da contribuição da religião para a felicidade humana. Para [sum up] sumarizar: Uma defesa pragmática da religião, para Rorty, somente é possível para religiões adequadamente privatizadas. Elas são reconciliadas com o pragmatismo ao se tornarem um instrumento privado de autocriação.33 De acordo com Rorty, esta privatização da religião não de modo algum uma trivialização. Em Contingência, Ironia, e Solidariedade a mesma estratégia é sugerida para a filosofia como um caminho para a perfeição privada. Mas sua reabilitação não é um abraço simpático à religião, estaria mais para um tipo de tolerância benigna a ela. Isso se torna óbvio quando ele declara ao mesmo tempo esperança de que a literatura irá eventualmente substituir a religião na esfera privada como meio de redenção.34 A estratégia de Rorty de uma privatização instrumentalista da religião deve ser vista combinada com sua tentativa de uma transformação antiautoritária da religião monoteísta tradicional. O caráter transformativo de seu pragmatismo se torna óbvio em sua filosofia e suas políticas sobre religião também. E há uma analogia em relação a sua tentativa de redescrever nossa “conversa sobre a verdade” (“truth-talk”). Por causa do uso acautelatório de “verdadeiro” ele foi forçado a corrigir sua posição inicial mas ao mesmo tempo manteve seu impulso transformativo. O mesmo se aplica a sua abordagem da religião. Ele teve de reconhecer que despedir-se da religião não é possível. Mas essa “virada religiosa” não alterou sua posição transformativa. Ao contrário, o projeto de Rorty é uma transformação antiautoritária da religião, que contém pelo menos seis traços principais: 1–
Rorty adota a definição de Deus como um “símbolo de importância última”
conforme o teólogo protestante Paul Tillich. Sendo assim se torna possível que a 33
Ver Rorty 1999a, 153–155. Rorty 2005, 37–39.
34
Ver Rorty 1999a, 170. Rorty 2007, 28–30; Ver Curtis 2012, 5; Smith 2005, 84; Van Niekerk
2013, 318–319.
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palavra “Deus” não mais corresponda a qualquer objeto supernatural. Ela seria compreendida de forma antirrepresentacionista, como um entre muitos símbolos de importância última.35 2–
Novamente se referindo a Tillich, Rorty distingue claramente entre fé e crença
com o objetivo de se concentrar exclusivamente no ato existencial da fé. Teístas pragmatistas teriam que aprender conviver sem credos, ou pelo menos com uma interpretação simbólica deles felizmente vaga.36 3–
Rorty interpreta a privatização da religião como uma individualização. Aqui
Rorty se refere a Whitehead. Ele “thinks of religion as, at its best, Whitehead’s‘what you do with your solitude’, rather than something people do together in churches.” 37 De acordo com Rorty, o ponto da religião é somente a busca por redenção individual. Sua pretensão para ser uma fonte de orientação moral tem de ser deixada de lado.38 4–
Seguindo a distinção de John Dewey entre religião e o religioso, Rorty tenta
separar dois impulsos que estão ligados na religião traidicional. “The impulse to stand in awe [se admirar com] a something greater than oneself, and the infantile need for security, the childish hope [esperança de criança] of escaping from time and chance [acaso].”39 Ele critica a última necessidade enquanto valida a primeira como o desejo de participar de algo maior, inspirando [awe-inspiring, no inglês] algo maior que nós para segurar [to hold on to, no inglês]. Redenção é consequentemente entendido como redenção do egotismo através da experiência de uma esperança, fé ou amor avassaladores.40 5–
Rorty adota o traço agapístico na Cristandade como um “freeloading atheist”
[ateu aproveitador]41. Para ele somente a adoração de um Deus do amor e não um Deus do poder é compatível com a ética pragmática de solidariedade. No que se refere à esperança de amor a nossos companheiros humanos como nosso único dever, ele começa a falar mesmo sobre santidade: “My sense of the holy [sagrado], insofar I have 35
Ver esp. Rorty 1999a, 156. Para isto ver Tarbox 1997, 328, 335. Curtis 2015, 6.
36
Ver Rorty 1999a, 156–158.
37
Rorty 1999a, 169. Ver Rorty 1991b, 13. Rorty 2005, 45–46.
38
Ver Rorty 1999a, 158.
39
Rorty 1998a, 17–18, tradução do tradutor.
40
Ver i.a. Rorty 1999a, 160–161. Para isto ver Smith 2005, 82–83, 85. Para mais sobre a redescrição de Rorty do conceito de redenção como redenção do egotismo ver o texto de Tracy Llanera neste volume. 41
Rorty 1991b, 202, tradução do tradutor.
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one, is bound up [ligado] with the hope that someday, any millennium now, my remote descendants will live in a global civilization in which love is pretty much the only law.”42 6–
O objetivo de Rorty não é defender o teísmo tradicional, mas fazer a religião
compatível com o pragmatismo. De acordo com ele o teísmo é, com seu sistema filosófico platônico, uma variante do autoritarismo. É hostil ao pluralismo, e não-teístas são melhores cidadãos que teístas. Por isso Rorty advoga por um cenário politeísta de acordo com o qual pode haver um monte [bunch] de deuses na esfera privada enquanto eles respeitarem o limite da esfera pública.43
A posição de Rorty no que se refere à questão da permissão ou não de vozes religiosas no espaço público também mudou consideravelmente. Sua posição inicial era de exclusão, a qual foi formulada num artigo famoso com o título provocativo: Religion as Conversation-stopper [‘Religião como Rolha de Conversação’]. Lá ele reivindicou que o compromisso jeffersoniano, que consiste em negociar a privatização da religião por garantias de liberdade religiosa, contém a exclusão das vozes religiosas do debate público. A razão para isto é que argumentos religiosos no debate público, onde interlocutores religiosos e não religiosos se encontram, são “rolhas de conversação” na medida em que razões religiosas não são razões públicas. Falar sobre Deus, para Rorty, é um impedimento do processo de deliberação pública numa sociedade pluralista, este que precisa ser representado num vocabulário político compartilhado.44 Depois de considerar a crítica de NicholasWolterstorff e Jeffrey Stout45, Rorty corrigiu sua posição por várias razões: primeiro, para antiessencialistas não há como alegar que a religião é essencialmente alguma coisa. Segundo, não há disponível um princípio neutro chamado “razão” para julgar quais alegações devem ser permitidas no debate público e quais não. E terceiro: a meta principal de filosofia conversacional edificante é manter a conversação. Portanto, pode-se permitir diferentes vozes na praça pública tanto quanto possível. 42
Rorty 2005, 40. Ver Rorty 1999a, 260, Rorty 2011, 24–25.
43
Ver Rorty 2007, 27–31. Para isto ver Curtis 2012, 29. Van Niekerk 2013, 301, 312. Smith 2005,
79–82. 44
Ver Rorty 1999a, 169–171.
45
Ver Wolterstorff 2003. Stout 2004.
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Mas esta notável correção não significa que Rorty abraça os argumentos religiosos na esfera pública. Em vez disso, ele insiste que referências a autoridades religiosas (e também não religiosas, claro), seja escritural ou institucional, não deve ser permitida: “What should be discouraged is mere appeal to authority.”46 Além disso, ele mantém sua posição secularista e antiautoritária e opta agora por uma “Kulturkampfposition” [posição de ‘luta cultural’]. Vozes religiosas podem não ser excluídas a priori da praça pública, mas o objetivo de sua filosofia transformativa, agora explicitamente vista como política cultural, continua sendo afastá-las do debate cultural no longo prazo: “The epistemic arena is a public space, a space from which religion can and should retreat.”47 A razão para este objetivo não é, segundo Rorty, um insight essencialista sobre a verdadeira natureza da religião, mas um resultado da experiência histórica com ela.48 No que se refere ao lugar da religião na esfera pública em geral, Rorty mantém um anticlericalismo militante. Sua reconsideração descrita se refere à distinção entre ateísmo filosófico e anticlericalismo político. Ele desejava ter usado o último rótulo para sua própria posição:
For anticlericalism is a political view, not an epistemological or metaphysical one. It is the view that ecclesiastical institutions, despite all the good they do – despite all the comfort they provide to those in need or in despair – are dangerous to the health of democratic societies. (RORTY, 2005, 33).49
O anticlericalismo é estritamente uma posição política, para a qual a racionalidade da religião não é uma questão, mas sua periculosidade política é. Enquanto ateus diriam que a crença religiosa é irracional, anticlericalistas diriam que ela é politicamente perigosa. Portanto, eles não atacam primariamente a religião, mas sim as instituições eclesiásticas. Como uma consequência de seu contínuo antiautoritarismo, para Rorty o problema é a religião organizada. Ele está preocupado com a influência que as instituições religiosas, com suas estruturas internas autoritárias e suas propensões
46
Rorty 2003, 147.
47
Rorty 2005, 36.
48
Ver Rorty 2005, 36; Rorty 2003, 142–145.
49
Ver também Rorty 2003, 143.
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à intolerância, tem nas políticas democráticas. Portanto, ele espera “that ecclesiastical organizations will eventually wither away.” [definhar].50 Como uma concessão aos colegas cidadãos religiosos, Rorty combine esta “declaration of war” [declaração de guerra] à religião organizada com a distinção entre religião no nível paroquial e organizações eclesiásticas. Como para ele é principalmente a última que causa dano à sociedade liberal, ele refinou seu objetivo anticlerical como segue: “Religion should be pruned back [podada de volta] to the parish level.”51 Como William Curtis corretamente comentou, com a reconsideração de sua posição Rorty não retrocedeu um dedo de sua posição secularista.52 Mas ele agora adotou uma consequente perspectiva instrumentalista ou utilitária sobre a religião. Além das alternativas “teísmo versus ateísmo” ele examina somente se a crença religiosa é ou não desejável para a cultura, na medida de sua contribuição para a felicidade humana. A “conversa sobre Deus” não deve ser julgada por sua capacidade de representar uma entidade possivelmente existente, mas sim por suas consequências para a sociedade liberal. E esta perspectiva permite uma resposta dupla: No nível individual, seguindo William James, Rorty justifica pragmaticamente o direito de acreditar. Mas devido às consequências sociais nocivas da religião (organizada) ele defende a posição de anticlericalismo político.53 Mas o anticlericalismo não é a última palavra de Rorty no que se refere à perspectiva instrumentalista sobre a utilidade social da religião tradicional. Seu projeto de longo prazo é sucedê-la com uma ateísta religião cívica pragmática da esperança. Algo um pouco surpreendente para muitos, Rorty começa a adotar o vocabulário religioso para a promoção de seu próprio projeto antiautoritário! Especialmente em Achieving Our Country [Para Realizar a América], ele desliza para a posição de um profeta de uma ateísta religião cívica nacional da esperança social. Na tradição de Rousseau, mas na linguagem de Whitman e Dewey, ele está agora propondo uma nova fé religiosa pública que ele quer estabelecer ao lado do politeísmo de religiões privadas. Sua variação de religião cívica como objeto de admiração religiosa e devoção
50
Rorty 2003, 142. Ver Rorty 2005, 33 Para isto ver Dann 2011, 40.
51
Rorty 2003, 148. Ver ibid, 141.
52
Ver Curtis 2012, 6. Ver também Stout 2010, 534.
53
Ver Rorty 2007, 21, 24–26.
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redescreve a democracia liberal como uma “quase-religião”,54 embora completamente secularizada.55 Rorty propõe sua religião cívica secularista como a base de um renovado patriotismo esquerdista. Aqui a Democracia Americana, como um projeto utópico, substitui Deus como objeto de devoção: “We are the greatest poem because we put ourselves in the place of God: our essence is our existence, and our exixtence is in the future... We redefine God as our future selves.”56 Mesmo que ele prefira etiquetar sua religião cívica de solidariedade humana como “romance”57, o objetivo de Rorty é cooptar a linguagem religiosa para seu próprio projeto utópico de uma sociedade liberal ideal. Fazendo isto ele por vezes soa quase como um pregador. Ele chega a falar de textos sagrados de sua religião cívica.58 Portanto, a última etapa da alegada reaproximação de Rorty com a religião deve ser examinada como uma tentativa de transformação aproveitando a própria herança cristã. Ele quer codificar a si próprio na narrativa cristã de esperança e caridade. O impulso religioso de adorar algo maior que nós mesmos não deve ser mais ultrapassado, mas sim transformado. A necessidade de transcendência é agora simplesmente redirecionada, para longe de uma realidade não humana na direção de um futuro ideal para a sociedade.59 De acordo com Rorty é esta versão pragmática da crença religiosa que deve suceder as religiões tradicionais. Este é o objetivo de longo prazo de sua estratégia de privatização e de sua posição anticlerical de substituição.
4 – Políticas Pragmáticas sobre Religião: Pluralismo Instrumentalista e Falibilismo Robusto sem Ímpeto Missionário.
54
Neuhaus 2009, 129.
55
Ver Smith 2005, 85. Curtis 2012, 3, 39–40.
56
Rorty 1998a, 22. Ver ibid, 15–22. Com sua religião cívica de esperança e solidariedade Rorty aparentase ao antiessencialista, e principalmente nacionalista, Ludwig Feuerbach. A crítica clássica de Feuerbach à religião não alvejava a crença religiosa como tal, seu objetivo é um redirecionamento humanista desta crença. – O autor-referência para Rorty para esta estratégia é, claro, seu mentor pragmatista, John Dewey. Para isto ver também Kleemann 2007, 36–37. 57
Rorty 1999a, 160.
58
Ver Rorty 2003, 144. Para isto ver também Curtis 2012, 5–6.
59
Ver4 Rorty 2005, 46. Para isto ver Kleemann 2007, 36–39.
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Há pelo menos três razões ou motivos para a reaproximação de Rorty com a religião. 1 – A razão geral: como estava escrevendo mais e mais sobre políticas culturais e sendo confrontado com o “retorno dos deuses”, ele simplesmente não podia mais evitar o tópico da religião.60 Com isto ele está em boa companhia. Há uma redescoberta filosófica da religião sendo feita por proeminentes pensadores liberais. 2 – A razão biográfica: num diálogo com Gianni Vattimo, Rorty veio a conhecer uma interpretação antiessencialista da cristandade que se baseia em seu aspecto agapístico.61 3 – Mais importante, a razão sistemática: Rorty viu a si mesmo forçado num engajamento ambivalente com a religião por conta de sua preocupação com a esperança social. Ele manteve grandes reservas com o quadro metafísico das religiões convencionais. Mas de outro lado, ele estava impressionado com o poder inspirador delas: a religião, enquanto um reservatório de esperança para a possibilidade de um mundo moralmente melhor, tem uma poderosa força motivacional.62 Rorty ao longo de sua vida se tornou mais e mais pessimista sobre a possibilidade do projeto liberal de solidariedade. Ele portanto se virou para as religiões convencionais, não vistas como potenciais aliadas, mas como objetos de exploração pela transformação. Sua cooptação antiautoritária da linguagem religiosa deve assegurar a integração normativa da sociedade com sua agência coletiva. Neste sentido Rorty quer criar uma narrativa inspiradora de esperança social como uma base motivacional para as políticas de solidariedade.63 Mas há pelo menos quatro objeções contra o engajamento transformativo de Rorty com a religião tradicional. 1 – O fenômeno de facto da religião não está totalmente compreendido: como Nicholas Smith corretamente comenta, há a questão premente “whether Rorty, in his attempt to render religion compatible with pragmatism, effectively strips religion of its distinctive content.”64 A transformação de Rorty da religião não considera a reivindicação da verdade nas religiões convencionais. E sua privatização, entendida 60
Ver Curtis 2012, 1–2.
Ver Rorty 2005, 33–40. Para isto ver Dann 2011, 47. Para este alinhamento inicial com o “pensamento fraco” de Vattimo, ver Rorty 1991a, 6. 61
62
Ver Smith 2005, 77–79.
63
Para isto ver também Curtis 2012, 5–6.
64
Smith 2005, 79. O crítico religioso John Neuhaus acusa Rorty por conseguinte de caricaturar a religião; ver Neuhaus 2009, 144–145.
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como individualização fideísta, tende também a despir a religião de sua aspiração de ser guia moral para a ação e a ignorar o fato de que ela é uma prática comunal (de justificação).65 Pode-se argumentar contra esta primeira objeção, que Rorty objetiva uma transformação da religião. Portanto, deve-se considerar sua aspiração transformativa. Mas então a questão das vagas perspectivas de seu projeto transformativo se torna virulenta. Está uma questão muito aguda para pragmatistas. E se aplica ao projeto geral de transformação de Rorty. 2 – O projeto transformativo de melhorar a religião está potencialmente em conflito com a liberdade religiosa. Rorty não considera o caso de quando teísmos ortodoxos se opõem a sua religião civil da democracia. Claro, este problema não poderia surgir no momento da realização da utopia liberal de Rorty. Mas o que acontece com o (longo) caminho de “transição” até lá? Há uma liberdade garantida em relação à religião cívica ou serão os cidadãos (religiosos) pressionados pelo governo para endossá-la?66 Rorty frequentemente se refere ao Compromisso Jeffersoniano. Mas ele não estaria de facto interrompendo isto desde uma perspectiva secular? 3 – De uma perspectiva pragmática, poderia ser melhor adotar uma estratégia de aliança em vez de uma de substituição: a pretensa virada religiosa de Rorty não mudou completamente sua posição secularista. Ele manteve até o fim de sua vida a visão do futuro como uma utopia perfeitamente secular: “Religion does indeed seem unlikely to wither away [definhar], but it is important to insist that we would be better off if it did.”67 Jeffrey Stout aproveitou a avaliação de Rorty de que as possibilidades para seu projeto secularista são vagas [dim]. Como consequência disto recomendou, de uma perspectiva pragmática, uma estratégia de aliança em alternativa. Militantes políticas secularistas para a religião têm, de acordo com Stout, consequências negativas na situação presente. Somente alimentam os fundamentalistas religiosos. Como uma alternativa à oposição entre secularismo e teocracia ele recomenda um diálogo aberto
65
Com a concessão mencionada de permitir as religiões num nível paroquial, Rorty evita principalmente esta crítica. 66
Para estas preocupações ver Boffetti 2004, 30; Wolterstorff 2003, 138.
67
Rorty 2010, 547. Ver Stout 2010, 524–525.
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entre liberais religiosos e não religiosos. Ele opta pelo mais promissor “projeto de construção coalizada.”68 Rorty reagiu à crítica de Stout do seu secularismo militante novamente fazendo uma distinção. Ele agora concorda com Stout sobre a necessidade política de construção coalizada entre não religiosos e liberais religiosos num futuro próximo [foreseeable]. Mas ao mesmo tempo, ele insiste no seu secularismo militante numa agenda filosófica de longo prazo.69 4 – Há objeções sistemáticas contra a propagação de Rorty de uma religião cívica: A fé na religião cívica pragmática da democracia é agora pensada para ocupar o centro da sociedade o qual supostamente estaria vago precisamente na cultura de sua utopia liberal. E acima de tudo: com a proposta de sua religião cívica como um tipo de romantismo público, o ideal de autocriação individual por nova-descrição, incorporado pelo poeta forte, agora se torna autocriação coletiva da Nação Americana. Com isso Rorty está pondo em perigo a frágil concepção-balança entre romantismo privado e pragmatismo público de Contingency, Irony, and Solidarity. Lá ele insistiu que, por conta dos perigos do romantismo político, projetos de autonomia devem ser confinados à esfera privada. Mas como profeta de sua religião cívica chamada “romance”, agora o próprio Rorty viola sua estratégia de privatização.70
Jeffrey Stout corretamente discerne que as políticas de Rorty sobre religião tendem a oscilar entre um pluralismo pragmático tolerante e um secularismo militante. Seguindo Stout, eu proponho construir a partir da primeira posição em direção a um pluralismo pragmático consequente sem qualquer ímpeto missionário na esfera política. Há boas razões pragmáticas para isto: sem tolerância pragmática, haveria o perigo de agravar os conflitos das religiões, contribuindo para a direita religiosa, e enfraquecendo a posição dos crentes religiosos liberais, os quais são urgentemente necessários como parceiros para os liberais seculares.71
68
Stout 2010, 529. See ibid, 526–527, 542.
69
Ver Rorty 2010, 546, 549.
70
Ver Müller 2014, 611–626.
71
Ver Stout 2004, 295. Há referências no trabalho de Rorty onde ele próprio está de facto defendendo um completo pluralismo democrático, ver por exemplo Rorty 2011, 25. – Deve ser notado que o secularismo pode ainda ser defendido por pluralistas pragmáticos, mas como utopia privada.
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Um pluralismo pragmático consequente poderia defender a rortyana reabilitação instrumentalista da religião como meio de redenção privada. Esta privatização assegura o direito de acreditar em qualquer forma de religião. E todas as vozes, religiosas ou não religiosas, são bem-vindas no espaço público, enquanto respeitarem o consenso democrático como autoridade final. Pragmatistas rortyanos “verdadeiros” não menosprezam colegas cidadãos religiosos como ‘irracionais’. Eles se absteriam de discutir questões que agravassem conflitos relacionadas à existência de Deus ou à religião verdadeira. Contudo, ao mesmo tempo, eles perguntam sobre as consequências políticas de qualquer interpretação dos textos religiosos. Defendem a cultura liberal da liberdade e tolerância contra a tentação teocrática e insistem na separação entre Igreja e Estado como um razoável preço para a liberdade religiosa. Pluralismo pragmático significa endossar a distinção entre projetos privados e públicos sem quaisquer aspirações para moldar a religião. Mesmos fundamentalistas religiosos não são vistos como irracionais. Melhor dizendo, seus projetos privados de redenção ficaram fora de controle por cruzarem o limite entre o reino privado e público. A linha entre estes reinos poderia ser traçada caso a caso e ser tratada como questão de deliberação democrática. Um pluralismo pragmático e robusto não poderia ser inocente em relação ao perigo político da religião. O principal objetivo seria manter o – potencialmente perigoso – impulso romântico privatizado. Como criticado, isso também se aplica a própria visão de Rorty de uma religião cívica ateísta. Aqui está uma das posições mencionadas acima onde é requerida uma correção de seu próprio balanceamento entre pragmatismo e romantismo, desta vez em favor de um pragmatismo pluralístico na esfera pública. Nisto não há lugar para qualquer impulso missionário (antirreligioso), mas só a aceitação serena do fato do pluralismo. Para esclarecer, o lema seria: mais Rawls que Rorty. De uma perspectiva rawlsiana o ironismo de Rorty é uma doutrina compreensível, não uma variante do Liberalismo Político.72 Enquanto a teoria de Rawls pode ser vista como um tipo de antifundamentalismo neutro sem impulso missionário, a fim de assegurar um consenso liberal soberano, o ironismo é a noção de Rorty para um antifundamentalismo ofensivo, que tende a pôr em perigo este consenso liberal como
72
Para este argumento, a despeito das invocações que o próprio Rorty faz de Rawls, ver também Curtis 2015, 22–25.
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uma base normativa de um pluralismo bem-ordenado. Portanto, devíamos redescrever a posição de Rorty na direção de um sereno, mas robusto pluralismo pragmático.
Conclusão: Da Ironia para uma Serenidade Robusta, Pragmática? A reconstrução da mudança de Rorty do ateísmo filosófico para o anticlericalismo político revela que seu rótulo de “virada religiosa” é incorreto somente num sentido muito limitado. Rorty mantém seu secularismo. O engajamento crescente com a religião convencional (cristã) na última década de sua vida foi motivado pela tentativa transformativa de herdá-la. Devido a seu contínuo antiautoritarismo, ele se manteve hostil, ou pelo menos cauteloso ao teísmo. O valor prático da mudança de Rorty para o anticlericalismo consiste numa atitude pragmática consequente em questões de políticas sobre religião. Estendendo Rorty, deveríamos defender um sereno e robusto pluralismo. Sereno na medida em que não reage com refundamentação ou secularismo agressivo ao “retorno dos deuses”. É ao mesmo tempo robusto porque defende nosso modo de vida liberal. De acordo com Richard Bernstein, um companheiro crítico de Rorty, estamos atualmente confrontando um conflito de mentalidades, não um conflito de civilizações. Ao
longo
da
divisão
religioso/secular,
falibilistas
democráticos
enfrentam
fundamentalistas.73 Portanto, falibilistas seculares pragmáticos deveriam reagir ao fervor religioso com políticas pragmáticas robustas sobre religião. Junto aos religiosos colegas cidadãos liberais eles defenderiam o estado constitucional liberal como a melhor solução até agora para conflitos em sociedades multirreligiosas. O lema da mentalidade falibilista deles seria: nem ironia agressiva nem fundamentalismo, mas serenidade pragmática robusta. Haveria ainda algum lugar para a virtude rortyana da ironia nesta visão de um falibilismo pragmático? Eu gostaria de pensar que a figura do ironista liberal é uma personificação útil deste falibilismo pragmático o qual deveríamos defender mesmo em contenda com o fundamentalismo religioso. Ele é um ideal convincente da cidadania democrática, especialmente em nossos tempos de terror. A ironia rortyana pode ser entendida como um passo crucial para um falibilismo moral sereno, se for redescrita. Como Bernstein e outros críticos amigáveis argumentaram, ela contém ainda muitas
73
Ver Richard 2005, 18–38.
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conotações céticas, nostalgia desapontada, e agressiva fixação na tradição metafísica.74 Mas a conclusão mais promissora desta apreciação é não abandonar a figura utópica do ironista liberal, o que o próprio Rorty ficou tentado a fazer.75 Em vez disso deveríamos redescrever a ironia como a virtude liberal para a abertura que é um complemento necessário para a posição pragmática do falibilismo político.76
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Ver por exemplo Bernstein 2016, 46–53. Schneewind 2010, 494.
75
Ver Rorty 2010a, 506.
76
Para isto ver especialmente Bernstein 2016 e Curtis 2015.
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RESENHA
Ghiraldelli Jr., Paulo. Para Ler Sloterdijk. Editora Via Verita. Rio de Janeiro, 2017. Thiago Ricardo de Mattos 77
A resenha de um livro é a apresentação dele para que outras pessoas queiram ler. Neste tipo de texto, o conteúdo é exposto na exata medida em que as ideias norteadoras são transmitidas, as filiações teóricas conhecidas, mas sem um aprofundamento que estrague a leitura do livro. Mas como recomendar este "Para ler Sloterdijk" em um texto, se este é um livro para ser falado? É um livro que fala do companheiro de cada um de nós. Você pode não perceber, mas não está sozinho. Nunca está. Paulo Ghiraldelli Jr. costuma dizer que filosofia não é a leitura de livros. Trazendo esta afirmação para este contexto, filosofia não é a leitura de livros por indivíduos que acreditem estar pegando um objeto, passando os olhos por suas letras, guardando as informações em seu cérebro e então pondo de lado o objeto, pois "aprimoraram-se". Nada disso ocorre, ou deveria ocorrer. Não com a filosofia. Não com este livro que, por exemplo, fala de um Sócrates entendido por Heidegger como o último pensador da migração. Após ele, filosofia virou texto. Segundo Luc Brisson, "Introdução à filosofia do mito", o texto filosófico tomou o lugar da oralidade da transmissão dos mitos. O falar e o escutar perdem a vez para o ler. É sobre parcerias fundamentais de cada um de nós que este livro trata. Parcerias sonoras, vibracionais. Melhor dizendo: casas que construímos para sermos quem nós somos. Eu queria estar falando essas coisas para você enquanto vejo a expressão do seu rosto. O homem é algo mal-nascido, e precisa construir exo-úteros para proteger-se e, enfim, dar seus botes, realizar seus lances de sujeito. O livro do Ghiraldelli é resultado de mais de cinco anos de pesquisa sobre a obra de Sloterdijk. É um escrito abrangente por oferecer alguns pontos de entrada para o filósofo alemão e incluir outros autores, importantes nesta filosofia, como Cioran, Buber, Nietzsche e, principalmente, Heidegger. 77
Psicólogo, graduando em filosofia pela Faculdade São Bento/RJ.
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Heidegger apontou no humanismo uma imagem essencialista do homem. O que é homem? Esta pergunta a filosofia precisa responder desviando da palavra "homem", um objeto um tanto cristalizado, e focando a palavra "é". O que é o é, o ser? O ser é algo que habita a linguagem. Em relação ao ser, o homem deve ser vizinho e pastor. Na medida em que possui linguagem, o homem coabita com o ser. Ele deve escutar seu sutil vizinho e sobre ele falar. Em Heidegger, o homem não ocupa a posição central. O homem nem recebe esse nome, mas dasein. O "homem" é o aí onde o ser se manifesta. O "homem" é uma clareira para o ser, uma abertura. A face do homem é uma clareira. Em Sloterdijk, aponta Ghiraldelli, a clareira é aproximada à noção platônica de khora. No diálogo Timeu, Platão apresenta khora como um receptáculo situado entre as formas e as coisas sensíveis, não sendo nem um nem outro. Khora não é nem intelectível nem apreensível pelos sentidos. É algo que só pode ser apreendido por um pensamento bastardo, sem aqueles vínculos. A filosofia de Sloterdijk é nova por romper com diversos vínculos teóricos. Khora é a maternidade do sensível. É um espaço surreal, tal como é o espaço que Sloterdijk entende que há na formação humana: a esfera. A esfera não é somente física, nem somente psicológica. Esfera é o modo especial com que Sloterdijk pensará o espaço da subjetividade, no qual o homem se forma como duplo. Aqui está uma superação do substancialismo aristotélico, que resultou tanto no eu penso, solipsista, de Descartes, como no homem que fala e interage por uma motivação mágica, como em Habermas. O homem é desde o início dois. Sloterdijk desenvolve uma arqueologia da intimidade para dar conta da ontogênese do homem. Tal ontogênese foi o que Heidegger deixou em aberto. O feto está dentro do útero. Mas o útero é continuação do feto. Eles compõem uma dupla, com intensa troca de ressonâncias. A esfera é um espaço surreal, que passa a existir com essa intensa troca. Com a formação da esfera é que passarão a existir propriamente o feto e a placenta. A dupla feto-placenta filtra as vibrações que vêm de fora, incluindo as provenientes da própria mãe. Um proto-psiquismo advirá dessa crítica sinestésica e auditiva. O filósofo, Ghiraldelli aponta, é um médico sanitarista da cultura, ou seja, um analista das invernadas que os homens criam para eles mesmo serem criados. O nascimento é uma separação da dupla. O frio do exterior é a ameaça do nada. Mas o bebê tem uma voz interna, armazenada desde o útero. Essa voz será o seu anjo REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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protetor. A mãe será o terceiro polo de uma nova esfera. Depois vêm a babá ou o pai. A nova esfera é multipolar. Os polos eventualmente se perdem, mas jamais esmorece a busca pela intimidade. O homem é um constante construtor de espaços de intimidade. Ele busca um exo-útero que o proteja, feito com a reposição das parcerias que perde. Ao bebê, a mãe promete que tudo ficará bem. O bebê assume esta promessa impossível, e também a faz. É a persecução de uma promessa impossível que faz o homem pôr-se de pé. O nascimento, um mal-nascimento, fica atestado pelo umbigo. É a marca de uma perda fundamental. Para a psicanalista francesa Françoise Dolto, isso é a simbologênese. O parceiro do feto era físico. Mas ele foi perdido, e ficou uma vozguiadora. O parceiro agora é simbólico. Oramos a Deus ou aos nossos mortos, em busca dessa religação. Para os antigos, o Cosmos ou Deus eram uma estrutura protetora e ampliadora. O homem buscava abrir seu interior para esse maior. O homem moderno, tão gerado no interior quanto os de outros tempos, contesta esse fato. Ele imagina ter se formado individualizadamente e diferente de qualquer outra coisa. Mas ele sente falta de suplementos, e jamais cessa de buscá-los. Ghiraldelli encontra no conto de Nabokov, "Cenas da vida de um duplo monstro", o caso de um ser que conserva fisicamente o seu duplo. Floyd e Lloyd são gêmeos siameses. Como não poderia deixar de ser, todas as experiências por que um passa, o outro também passa. Para eles, estranho e desafortunado é quem não carrega um irmão grudado em seu próprio corpo. Mas, no sentido da humana capacidade de simbolizar, é ruim que se tenha um duplo sempre concreto. A voz interna, o proto-daimon de alguém, é alguma coisa que visita, possui as chaves de casa e penetra. Mas só pode adentrar se passa algum tempo fora. Os siameses não têm esse descanso. As qualidades que o ouvido humano se utiliza para fazer a crítica dos outros sons, espíritos, incluem a coordenada de tempo. Uma esfera é um estar aqui e com. E também é ter outros polos com que tratar. Então não se fica entregue à presença constante de nenhum deles. Ulisses não era grudado a Atena. A deusa lhe aparecia oportunamente. As outras figuras míticas com que se deparou iam como vinham. Com a ninfa Calipso, Ulisses passou sete anos. Chegou o dia de sua partida, e da bela mulher Ulisses ouviu sobre os perigos que ainda encontraria em seu caminho para casa.
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Ghiraldelli aborda os comentários de Adorno e Horkheimer, e de Kafka, sobre a passagem da embarcação do herói perante as sereias. É de migração que estamos a falar aqui e, penso, é isso o que encontramos em toda Odisséia (na Ilíada, os gregos estavam fincados em Ílion!). Para os filósofos da teoria crítica, Ulisses possui uma razão incompleta: para não mover-se em direção à morte, ao ouvir as sereias, ele prendeu-se ao barco. Ulisses é então um calculador, um astuto e, por isso, completamente desencantado. Já para Kafka, as sereias cantam alguma coisa no lugar do ouvido que recebe o canto delas. Elas não cantam, propriamente, mas ativam a música que cada um traz em si mesmo. Vozes de louvor, para Ulisses, a respeito da sua atuação em Ilion, não faltavam por onde ele passava, no retorno dele. Louvores gostosos de ouvir, mas que jamais amainaram o desejo por retornar. Ele ouviria os mesmos louvores ao chegar em casa? A sua casa continuaria sendo a sua casa? E ele continuaria sendo o rei de Ítaca? Para Sloterdijk, as promessas que ouvimos ao nascer são balizas para nosso eu. Elas serão vozes incorporadas por ele. O eu ouvirá essa voz em si mesmo. Descartes, ao duvidar dos próprios pensamentos, mas adquirir a certeza de que pensa, apresentou-se como um eu de pensamento. Sloterdijk aponta a surdez do filósofo francês para o próprio pensamento. Ele não percebeu, mas seu cogito é antes de tudo sonoro. A faculdade do ver, tão notada pela filosofia, implica em se estar à beira do mundo: há um aqui e um lá, o primeiro realiza o ato se ver, e o segundo é o visto. Já a faculdade do ouvir implica estar imerso no mundo, estar envolto e inseparável de algo que, para o sujeito, tem as características de um parceiro-ampliador. Também quanto ao desenvolvimento do indivíduo, Ghiraldelli mostra as observações de Sloterdijk sobre o rosto. Em diferentes pontos de sua obra, Deleuze falou sobre organizações fortes e em processos que tentavam a mudança, "moleculares". O rosto era mais uma das coisas que se encontrava com uma "organização forte". Mesmo que bocejasse largamente, ou se puxasse o rosto para algum lado, a forma com que o rosto se fez se impunha pois obedecia a um genótipo. Os rostos de uma coletividade humana, aliás, também têm a mesma forma, assim como seus selves. Sloterdijk não adota esse clima "sociedade do controle" para descrever o homem. Bebê e mãe, simbioticamente ligados, desenvolvem-se em suas projeções trocadas: o peito e a boca formam um campo de mútuas desinibições; o bebê chora, o bico do peito se pronuncia, os lábios do bebê fazem-se habilidoso órgão pronunciado e desejante. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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A protração, desenvolvimento do rosto, é mais uma coisa que se fez durante o processo se fazer-se-com-parceria, do homem (você já reparou que "bico" é tanto o nome do que vai à frente do seio quanto da forma que tomam os lábios que mamam? Também é a dos lábios que se frustraram ou que chamam a atenção por satisfação). O homem é ser-em-com: é desde sempre participante de uma díade, em uma esfera. Sem contradizer-se, Sloterdijk também apresenta a bastardia deste ser. O homem é um animal que tem mãe, mas é um cortador de vínculos. Bem, estas duas relações não estão num mesmo âmbito. A mãe da criança não é um indivíduo, mas um componente da intimidade da qual ela também é componente. E o corte que o homem faz é com os vínculos com outros individuos. São Francisco desfez-se de todas as propriedades herdadas do pai, inclusive as roupas que vestia, para afirmar a filiação com Deus. A perda dos bens terrenos significava ganho espiritual, imersão nesta esfera. Uma vez Jesus visitou as irmãs Maria e Martha. A primeira permaneceu aos pés do mestre, enquanto a segunda ocupava-se dos serviços domésticos. Jesus pronunciou por duas vezes o nome de Martha. A interpretação canônica disto é de que esta mulher não dava atenção ao que era realmente importante. Mestre Eckart, no entanto, possui uma interpretação oposta: Martha já teve seu tempo de agir como Maria, postrando-se ao pé de alguém maior, na verdade exibindo-se para ele. Martha agora era da ação, estava com as coisas, imersa, e por isso mesmo Jesus chegava a ela como uma voz. Maria age a partir do seu eu. Martha havia se retirado do mundo para a ele voltar sem se colocar como objeto de admiração. Maria queria ser admirada. O culto a Baal é o culto ao eu e suas vississitudes. Sloterdijk fala sobre o hedonismo do consumo. Cortamos relações, somos bastardos. Há um mercado em que tudo é equivalente, participando o próprio homem. As mercadorias desfilam e o homem é espectador, como mostra Debord. Os insumos da produção das coisas são superados em muito pelos produtos. Isso é espetacular! Vivemos em abundância (a desigualdade é inaceitável porque no horizonte há a abundância). O homem atual não sente falta, mas é perturbado pelo imperativo de ter que sempre escolher. Ele vive em tédio, pois a sociabilidade virou jogo: há reality show de escritório, de luta, de domesticidade. E a propria vida também já não comporta gravidades que não possam ser suspensas. Não há mais com o que se envergonhar,
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como Tocqueville previu para as sociedades igualitárias. Não há mais com o que se responsabilizar. Sloterdijk retoma Fukuyama e seu fim de história como fim da virilidade. As sociedades democráticas conhecem uma situação não de megalotimia, ira e reconhecimento guerreiros, mas de isotimia, feitos e reconhecimentos em coisas como trabalho, esporte e criação de filhos. Eu trabalho, ou melhor, eu empreendo. Exibo a mim mesmo como um case de auto-empreendendorismo. Quero que falem sobre mim, que me cerquem com vozes confortáveis. O homem moderno é bastardo, nega ter estado dentro, mas não cessa de buscar recompor o interior. No apartamento single, os espelhos dão ao indivíduo a sua imagem. A reflexão pretendida aí é superficial, como o espelho pode oferecer. Isso dá uma pseudo-sensação de que se está com alguém. Mas nem acompanhado de si mesmo este individuo está, no sentido de estar acompanhado de algo diferente do eu, mas que com ele estaria em intrincada parceria. Os animais pertencem a um círculo de desinibição: o sapo e a mosca formam um ciclo de desinibição, pois a mosca ativa o comportamento do sapo de tentar pegá-la. O homem gera para si o seu campo de desinibição: ele elege aquilo que o desinibe, aquilo que agirá em relação a ele para que ele aja de volta, num processo de co-decisão. É próprio do sujeito a imprevisibilidade. O outro, que é o meu parceiro, é meu estimulador e ampliador. Um exemplo do estabecimento de parcerias Sloterdijk identifica nos jesuítas: através da férrea disciplina de estudos, o jesuíta constitía um Papa interno, alguém a quem obedecer e a quem se confessar. Obedecer ao Papa factual era simples, pois o religioso obedecia primordialmente ao Papa interno. A noção de sujeito que Sloterdijk deriva daí é a de que ele se autoconsulta e então se autodesinibe. Pela dificuldade em se ver como duplo, o indivíduo pensa poder contar com uma instância unificada de produção de ideias e de motivação. Mas uma parceria lhe faz falta, e ele busca arremedos disso nos chamados "consultores" ou nos gurus da mídia. O pseudo-sujeito não encontra meios para se por para agir. A ele falta a esfera, o "espaço próprio", a casa dividida com alguém mais. Um outro que perturbe, que seja, porque não, infernal (como o insuportavelmente exigente amigo que coabitava com Sócrates, a quem conhecemos no Hipias Maior). O outro para o homem atual é inimigo. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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Rousseau, no fim da sua vida, encontrou muitos inimigos. Viu a si mesmo como incompreendido, forçado a cumprir o isolamento que lhe impunham. Ele se defendia a cada importunação como um camaleão. Mas, se um camaleão só reage, qual é a sua verdadeira cor? Que rosto ele tem que não seja uma máscara? Rousseau curtiu um tempo em uma charneca isolada que lhe havia sido emprestada. Em uma canoa à deriva sobre o lago Biel, deixou-se devanear. Após os passeios, ele os relatava. Flutuando, ele não agia, não buscava ideias, não tinha sentimentos. Saiu de si, então sentiu a si. O eu apareceu-lhe nítido, quando a ação (ação defensiva, no caso de Rousseau) cessou. Se o eu mascarado é relativo à coisas com que ele se encontra, o eu que se encontra ao se sair dele é universal. O máximo de intimidade também é o máximo de universalidade. Essa pura existência é uma forma de liberdade. Uma liberdade não na desinibição e na ação, mas no não agir. Esta é uma fuga social. A moderna moral da vontade individual livre é uma outra fuga social: ser livre é opor-se ao ethos. Isto difere completamente da moral do grego antigo, onde ser livre é poder viver o seu ethos, os costumes do seu povo. O indivíduo que temos hoje é um fim em si mesmo. Sua imaturidade constitutiva, vista por Gehlen como uma receita para o pauperismo, é uma invernada, uma gestação exo-uterina que mantém este ser ocupado em novos lançamentos, melhores desempenhos. A prosperidade é eventual. O resultado sempre buscado é o aparecer. Já que se é bastardo, desfiliado, como a mercadoria, que também se exiba no grande espetáculo. Debord colocou que hoje ao ser não se opõe o ter, mas o aparecer. Os desempenhos são criadores de eus e corpos a serem exibidos. Na explosão da autoatenção, sofrimentos psíquicos ou formas físicas se tornam causas. O indivíduo e a tela, o indivíduo e o apartamento single com gadgets para que a nave voe isolada, negando mas nunca de fato se separando da nave mãe, da seguridade. O indivíduo e sua imagem refletida no espelho, imagem com a profundidade desta superfície. Não o outro senão como ameaça, jamais como inferno e desafio. Isotimicamente, buscamos pequenos ganhos. O thymos, na psicologia antiga, era a parte da alma humana que os deuses buscavam para investir sua força e então aparecerem, através do feito do herói. Como a ira responde pelo sentimento de valor próprio, um abalo neste sentimento obriga o thymos a ser racionalmente controlado. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VIII, nº 1, 2018.
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Lembre-se, no Fedro, do cavalo negro do amante, que pula afoitamente para o amado e então tem a rédea violentamente puxada pelo auriga. O cavalo sente o sangue em sua boca e se ajoelha ao lado do cavalo branco, aos pés do amante. A individualidade vinha com essa alma educada no sentimento do amor obstado. Thymos é uma emoção motivadora de indivíduos e grupos, responsável por sua busca por ver ratificado seu sentimento de valor próprio. Apesar de estranho às nossas narrativas, esse sentimento é patente, nota Sloterdijk, no mecenato de atletas, atores ou instituições. Aquele que tem dinheiro, não raro, escolhe alguém para ser ajudado. É um dispêndio sem esperar retorno. O indivíduo não objetiva o aplauso do outro. Aquiles desdenhou da aprovação dos outros combatentes. Ele sabia ser o melhor, autoelogiava-se. Apostando que vivemos antes em abundância do que em carência, Sloterdijk põe de lado as teorias eróticas, da filosofia, que vêem o homem como ser carente e que busca o ter, e erige uma teoria do aparecer, da economia timótica. Esta é uma atitude de indivíduos ou de coletividades. Ciganos cruzam a europa. Eles são os bastardos por natureza. A que país pertencem? Podem ser considerados europeus? Caso se entenda a Europa como dotada de um espírito único, eles estão fora. Uma visão realista, que até convoque a filosofia para um essencialismo, "seriedade", diria que eles são supranumerarios, trazem caos social e de abastecimento. Mas o que a filosofia pode dizer senão uma ficção de momento? Uma realidade sem realismo, sem essencialismo? A filosofia uma imunologista da cultura, analista da construção de invernadas, que são temporárias, visto que o homem nunca cessa de perder e buscar parceiros com quem fazer esferas. O homem está em trânsito, embora quase nunca o perceba. A filosofia quer melhorar sua performance, começando por fazê-lo perceber a tensão do trânsito. Viver é dispêndio voluntário. É gasto não mesquinho. Livre é aquele que pode dispor de si mesmo. Sobre a formação do indivíduo, da espécie humana e a sociedade moderna, Peter Sloterdijk apresenta uma filosofia rigorosa e imaginativa, literária. A inovação que ela traz ao pensamento atual só poderia ser apresentada ao público brasileiro pelo filósofo Paulo Ghiraldelli Jr.
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