EDIÇÃO #7 | VERÃO 2021
CANCELADA
\\ SOBRE A EDIÇÃO EDITOR: André Vieira CAPA: Victória Novais CONTRACAPA: Lia Petrelli AUTORES: André Vieira, Lia Petrelli e Tomás Fiore Negreiros PROJETO E PRODUÇÃO GRÁFICA: Victória Novais ILUSTRAÇÕES: Victória Novais
\\ CARTA AO LEITOR Riscam-se feriados,
os
dias,
aniversários,
comemoram-se
happy
hours
e
os
mais alegres até amigos secretos, mas o tempo não parece passar no relógio. Só não parece. Trezentos e sessenta e cinco dias depois do surgimento de uma pandemia que acometeu grande parte
do
planeta,
familiares o
e
levando
colegas
significado
de
consigo
queridos,
máscaras,
amigos,
aprendemos
distanciamento
social e os usos — e desusos — de litros e litros
de
álcool
gel
com
papel
higiênico.
De dentro do casulo, também redescobrimos
a importância de nossos lares. Em ambiente home-offíco-culinário — para aqueles que puderam, claro —, ressignificamos o termo multitarefa e voltamos nossas atenções a rituais e hábitos que
passavam
em
branco
de
nossas
corridas-
-rotinas: se nas ruas o surto era de Covid-19,
\ sobre nós Fundada com o propósito de democratizar o acesso à cultura, a Frentes Versos busca compreender a produção artística e cultural independente da cidade de São Paulo. Acompanhando as estações do ano, a cada três meses, escritores, artistas e entusiastas de diversas áreas se debruçam na efervescência da grande selva de pedra e a digerem para trazer a você, leitor, o mais completo conteúdo sobre o lado B do que é dito no lado A. Em cada edição, distribuída digital e gratuitamente, nos dedicaremos a um tema, uma faceta, das inúmeras formas presentes na cultura contemporânea.
nas
redes
(e
lives)
yogues,
escritores
e
chatos quânticos das good-vibes foram a febre. Agora foi
uma
do
alguns,
coisa
calor
que
sentimos
humano.
Tanto
é
verdade
abraço
e
desesperados
ansiosos
pelo
falta,
mesmo, que
por beijos, não puderam guardar as saudades dentro
de
aqueles
Já
casa que
e
foram se
carnavalizar.
mantiveram
firmes
na
solidão, felizmente a maioria, o clima também esquentou em threads, teclados e telas: fossem os destaques do BBB, os memes d’A Fazenda ou as disputas acirradas pelas prefeituras ou os absurdos do Planalto, os dedos não pararam um único instante de interagir em plataformas, perfis, posts e personalidades — ou cancelar seus envolvidos. Influencers,
professores,
intelectuais,
escritores, cantores, funcionários públicos e
\ entre em contato EMAIL: frentesversos@gmail.com SITE: www.frentesversos.com INSTAGRAM: @frentesversos MEDIUM: www.medium.com/frentesversos
até trabalhadores comuns, aparentemente ninguém passou incólume do radar altivo dos grupos de cancelamento. Através de um crivo duvidoso, ora referendando pautas inclusivas, invisíveis ao status quo, ora cerceando a voz do outro por puro revisionismo histórico, essas hordas de ambientes digitais desvelaram a fabulosa ideia do símbolo incriticável — não se passa pano pra racista. Mas em termos de cancelamento, sejamos justos, tem coisa pior que censurar idas ao shopping em busca de presentes, proibir a vinda dos bons velhinhos e escutar piadas do pavê a distância?
Frentes Versos é uma revista sem fins lucretivos produzida e editada por entusiastas da produção cultural independente brasileira.
Uma ótima leitura e por favor, como 2020
não nos cancelem. Equipe FV.
LIA PETRELLI
No limiar palavra questiona contesta silencia mata conversas mudas em que se diz o quê
se diz ?
Ao final ressoa “do que se trata” Cancelam a terra fúnebres máscaras impedem respir ação asfalto pano pé motor fogo ferro zinco cloroquina A a A a A a A a A a A a não! A coisa ocorre no limite no quase entre discussão “Justas” zoadas rasas gaseificadas liquidas, diriam Desculpa, a ressaca tá braba Difícil pensar algo melhor cancela apaga logo Vai, volta digita acelera lê depressa sem demora É manchete sensacionalista mas vê se clica! Vai que dá match qualquer coisa, grita.
ESTRANHOS NA TRIBO
ANDRÉ VIEIRA
ENSAIO //
As tochas se acendem, se inflamam os
História ao descortinar da cortina de ferro
animais: todos, homens, mulheres, crianças e
prol de valores civilizatórios e sobretudo,
chifres de ossos e reverberam as peles de anciões se reúnem em torno da flama que parece arder a noite inteira ao rufar de tambores e
bradar de pulmões, pulsando em quase-êxtase
a alegria de estar acolhido pela família. Mas ao fundo, junto ao teatro de sombras da
parede, se pode jurar que existe mais alguém além daquela cena: um estalo, um grunhido,
um sentimento estrangeiro manifestado pelas
costelas magras, os rostos cadavéricos e os olhos brilhosos, sedentos por fogo. Uma
legião sem rosto e sem nome acampa à margem da civilização.
No
parágrafo
acima,
eu
poderia
ter
falando sobre qualquer tribo, sobre qualquer tempo e em qualquer lugar do planeta em mais de 300 mil anos de espécie humana; mas, ainda
sim, algo nos parece estranhamente familiar.
Alguma coisa sem-nome, quase enigmática nos atrai e aproxima à sociedade pós-moderna de hoje em dia, quase dois mil anos depois da morte de Cristo. Não é curioso? Para
um nipo-americano não seria. Afinal, desde
1989, com a derroca final de um império já em ruínas e a reorganização de seus espólios
por meio de mentes inteligentíssimas — as mesmas que não preveriam a bolha imobiliária
norte-americana — de Wall Street, a história humana teve seu desfecho final.
Inspirado pela concepção hegeliana de
fim da história, Francis Fukuyama evocou que “Estado homogêneo universal”, representado pelas
altivas
Águias
de
Washington,
não
só garantiria os direitos e liberdades de
seus governados sanando todas contradições inerentes
ao
jogo
político
democrático,
como protegeria e apoiaria seus aliados e parceiros, mediante vassalagem —
conhecido
também como Consenso de Washington. Neste mundo perfeito, haveria o fim dos embates políticos ideológicos e os frutos do progresso e da bonança humana[1] seriam repartidos igualmente
entre
os
países,
seguindo
as
leis e os protocolos dos mercados, de acordo
com as especificidades de cada região. O conto de fadas caiu no colo do Anjo da
e logo, entendeu-se: foi a união global em econômicos,
que
deu
contemporânea.
cara
à
Pax
Romana
Entre os mitos que correm à boca solta
pela tribos, poucos tratam em aplacar a violência
e
dar
cabo
a
disputas
locais
da aldeia; em verdade, como Octavio Ianni
muito bem sublinhou[2], uma “aldeia global” é antes de tudo um acordo entre diferentes comunidades
por
uma
unidade:
“[a
aldeia
global é] sistema comunicacional que molda
uma cultura de massa, um mercado de bens culturais, universos de signos e símbolos,
um conjunto de: linguagens e significados que povoam o modo pelo qual uns e outros
se situam no mundo, ou pensam, imaginam, sentem
e
agem”.
Em
outras
palavras,
a
condição primeira para ser aceito para tribo é estabelecer uma hierarquia entre ideias e
valores locais — regionalistas, decadentes, atrasados — e aqueles que emanam desse polo pujante, dito central, por vezes cópias da cultura de grupos dominantes.
Ora, a própria ideia de agrupamento
global, não teria uma essência violenta?
Aquelas populações, grupos, países, nações
que aceitariam — ou não aceitariam — fazer
parte da alcateia teriam outra escolha além de se juntar aos lobos? Ou aqueles povos
que disseram “não” aos ditames da selva e leis dos xamãs, conseguiram se manter de pé frente ao cerco de Rapinas de Washington?
em
Para Marshall McLuhan, figura carimbada
faculdades
de
comunicação,
a
própria
ideia de aproximação de culturas e povos historicamente
antípodas
é
providencial
para germinar a discórdia: “o conceito de
cidadezinha não impõe a existência de relações cordiais. Nas aldeias as pessoas criticam, espiam, odeiam [...]; é como uma família: não há ambiente mais selvagem do que o de
uma família”[3]. Rodolfo Londero e Michelle do Nascimento, em artigo sobre Cyperpunk
contemporâneo, vão além e argumentam que a
derrocada Fukuyamista é inerente ao próprio projeto de “aldeia global”: “São as minorias
\\ ENSAIO
em busca dos direitos ou, simplesmente, da
hierárquicos e, em muitos casos, sanguíneos
idílica
definitiva
sobrevivência, que apagam a falsa imagem da
transparecer
aldeia o
que
ambiente selvagem”.
global ela
para
deixarem
realmente
é:
um
Mas, vamos voltando ao nosso carneiro,
caro leitor: o que o silêncio dos arrependidos
tem a ver com nossa violenta experiência
de tribo? Quando assistimos os esfaimados
nos faróis, os pedintes, muitas vezes ainda
guris, na frente do mercado, e suas mães, prenhas de uma prole estrangeira sem futuro,
não vemos uma aldeia impiedosa?, e quanto aos tantos, tantos e tantos carroceiros, ambulantes,
flanelinhas
e
engraxates
que
deixam o manto da invisibilidade de lado
quando viramos a cara e encaramos a vergonha de nossa tribo: suas dores, seus amores e suas
histórias não são dignos de serem contadas
em sessões de conforto ao redor da fogueira? Ou seus corpos (e suas sinas) só podem ser significadas
a
partir
de
suas
violentas
tentativas de sobreviver ao inferno de suas vidas, encarrada por nós como atos odiosos,
a título de indignação pública e escárnio tribal? E eu e você, caro membro do conselho
da tribo, já refletimos por que ficamos mais chocados com o furto de leite e margarinas do que com os excessos e omissões de nossos líderes?
Em primeiro lugar, se nós, habitantes
centrais da tribo sentimos raiva, ou no
limite, cólera de conselheiros, chefes ou até o mesmo o xamã, é mais pela maneira como
aquelas figuras lidam com suas obrigações, do que de fato pelas pessoas que são e os cargos que representam — e o pleito das últimas
eleições municipais não me desminta. Assim, quando líderes se fazem errantes e calamidade
se instaura na aldeia ceivando milhões de
vidas, podemos cobri-los de vários nomes: incompetentes,
irresponsáveis,
pulhas,
apátridas e quiçá, assassinos; no entanto, a proximidade de nossos laços históricos,
impede
que
ou
certeira.
cultivemos lancemos
Podemos
—
e
qualquer
qualquer
devemos,
opinião
conclusão claro
—
tecer juízos de valor acerca da moralidade
individual de nossos governantes, no entanto,
colocar em questão a legitimidade da tenda de conselheiros, do casebre do xamã e da
choupana do líder é levantar da voz contra nossos avós.
Se
a
ideia
da
aldeia
global
se
sustenta, concatenando todas qualidades dos diferentes povoamentos da terra e esmerando
nossas mentes a pensar rigidamente de uma única
forma
a
buscar
sempre
os
mesmos
sonhos, é natural que não haveria espaços para todos. Sejam ricos, pobres, classe-
-médias ou paupérrimos o senso comum que nos
congrega,
a
despeito
dos
preceitos
católicos mais simples, é sempre o de impor-
-nos a comparações injustas para entender se estamos dando o rumo certo em nossas vidas. É neste momento que Jean-Jacques Rousseau fala do ódio como um dispositivo necessário
para o homem sobreviver em sociedade, uma
vez que o focalizando em figuras ou conceitos, esse pode descarregar seus medos, vontades e frustações, muitas vezes abstratas, em um único objeto; logo, se “o homem é bom [por
natureza] e a sociedade o corrompe”, o ódio
se torna uma droga necessária para viver em sociedade[4].
Mas, cara-pálida, isso não responde ao
seu dilema: afinal, posso muito bem concentrar minhas angústias na figura de algo próximo a mim, inclusive, não faltam exemplos de famílias,
namorados,
ex-
-funcionários
e
amigos que não dão mais as caras após algum
desentendimento, a fim de evitar frustações. Concordo em parte, meu caro. Embora seja,
sim, possível que esse sentimento perdure por anos, é improvável que reduziremos essas
pessoas a apenas a manifestações puras de nosso ódio. Preferir o ranço depois que
ENSAIO //
algo tenha abalado nossas relações é algo
“Também eu me sinto
fundo de nossas lembranças, ainda guardemos
pronto a tudo reviver.
Como se esta grande
completamente
plausível,
se
bem
que
no
sentimentos de ternura sobre aquela pessoa.
Diferente, por outro lado, é quando
confessarmos ódio como fé.
É o que conta
Jean-Paul Sartre[5]: quando raiva não se
cólera me tivesse limpo
problemas terrenos, nutrimos o ódio pelo
do mal, esvaziado da
poderia
esperança, diante desta
sustenta mais como um alívio para nossos
outro para nos salvarmos. De quem, você se
perguntar?
Dos
malvados,
é
claro. Na dicotomia sartriana o objeto da minha repulsa deve ser radicalmente contra
noite carregada de sinais
quadrinhos. É por meu ódio, que ganharei
e de estrelas, eu abria-me
com sucesso, meu lugar na tribo com meus
pela primeira vez à terna
da floresta: enquanto a natureza foi natureza
indiferença do mundo.
de odiosos e odiados serão necessários para
Por o sentir tão parecido
lembra Sartre: odiar o outro não é apenas
comigo, tão fraternal,
de fantasmagorizar o outro.
senti que fora feliz e que
mim, tal qual um vilão caricaturesco dos
o reconhecimento de meus pares e firmarei, semelhantes. Essa matemática não é mera magia
e a humanidade composta de homens, exércitos
enfatizar quem somos e quem não somos, como uma forma de ascensão pessoal, mas também,
Agora sejamos francos — de verdade —, não
vivemos mais em uma tribo. Nossa comunidade internacional, originários,
malgrado
tem
estado
nossos cada
defeitos
vez
mais
ainda o era. Para que tudo
entrelaçada, resolvendo questões críticas
ficasse consumado, para
transformando a vida de milhões. Sem falar
que me sentisse menos
e
só, faltava-me desejar que
e
seculares
com
dedicação
e
temperança,
nos avanços expressivos no campo científico tecnológico
além
de
prolongar
vidas,
como também encurtam as distâncias sociais
e educacionais, expandindo horizontes nos
houvesse muito público
nossa aldeia deslocada de seus instintos
no dia da minha execução
integrantes como unidades deslocadas, mas
e que os espectadores
dentro de um estado supranacional, haveria
me recebessem com
gritos de ódio
últimos
anos.
ímpios,
e
Portanto,
seus
hoje
participantes
entendendo não
mais
sim como representantes globais amalgamados espaço para a cultura do ódio?
Deste lado da discussão, só posso me
pôr ao lado de Albert Camus[6]
A CULTURA DO
CANCELAMENTO
FALA ALGUMA
COISA SOBRE ÉTICA?
sobre
A cultura do cancelamento muito diz
invadem
a
velocidade
as
telas
de
de
informações
nossos
que
celulares,
tablets, computadores, óculos de realidade virtual e os demais aparatos tecnológicos
que já fazem parte do dia a dia de cidadãos contemporêanes ao redor do globo.
Para
informações
quebrar
a
seriedade
jornalísticas
dessas
frenéticas,
“inventaram” o meme, que pode ser comparado
às tirinhas de jornais (né?), só que adaptadas
para o ambiente virtual, ampliando um humor que veio lá do politicamente correto. Não à toa o Tiktok, o Reels e semelhantes têm
ganhado os corações da chamada geração Z, ao redor do globo.
Durante esse período caótico mundial,
comecei a tentar entender quais seriam as reais funções de um meme, pequenos vídeos, muitas vezes em gif, ou imagens paradas. O
humor da atualidade chega carregado de uma
superpolitização, mas surgiu da “chacota” que, por vezes, beira o absurdo.
LIA PETRELLI
O humor meme ganhou força nos períodos
políticos,
quando
comecei
a
realmente
DOSSIÊ //
relacionar a estética do que se reproduz,
alguma coisa estrutural, nossa, que insiste
repercute e para quem seria tal produção
forma de gif.”
junto
com
a
mentalidade
quem
produz
e
seria veiculada. Percebi que a lógica era confusa
o
bastante
para
que
a
o
limite
entre brincadeira e a violência pudessem
andar em paralelo, sutilmente ultrapassando fronteiras.
Foi quando, em maio de 2020, encontrei o
vídeo Resíduo, de Pedro França[1], artista e
membro da Cia. Teatral Ueinzz, no Instagram. O vídeo é a narração do interlocutor acerca
do que seria o gif em fala-fluxo, refletindo sobre o que diz ao mesmo tempo em que diz.
“Então, ‘tava pensando sobre gif, né?”,
começa Pedro, dizendo que o gif é gostoso de ser admirado no começo, mas conforme o tempo passa, dá gastura ao olharmos. França chega à conclusão de que “se o trauma tem uma forma, a forma do trauma é o gif.”
Acompanhando
o
pensamento
que
o
artista constrói, percebemos que os eventos
traumáticos marcam o corpo e a memória de uma forma quase incessante, em looping, até o momento em que pudermos parar e encarar,
de fato, o que estamos sentindo em relação a isso. Pedro, em sua costura interna continua:
“O gif não tem antes nem depois, acho que
é a única imagem que existe totalmente no presente.”
Diferentes linguagens demandam alguns
tipos de interpretação conjuntas. A mesma
sensação do trauma pessoal também reflete nos traumas vivenciados pela sociedade, assim, a sensação de presente proposta pelo gif, interfere no modo como encaramos o tempo,
atualmente, com a sensação de estarmos presos no passado quando nos deparamos com tantas
declarações e ações conservadoras vindas do governo, especialmente neste fatídico ano.
“Quando você vê o Ustra sendo homenageado
pelo presidente. O que é isso? O tempo não passa.
Quando
você
vê
o
sufocamento
da
Comissão da Verdade, que tentaram fazer – esse é o tempo que não passa. Ou a repetição
das estruturas racistas no país, desde a
época da escravidão – porque a gente tem
em repetir, que não passa, que tem essa
Comentando sobre a Guerra de Canudos,
que aconteceu na Bahia, no final do Século XIX, França relaciona o episódio histórico com
o
apagão
por
Getúlio
de
memória
das
cidades
de
Canudos e Antônio Conselheiro, instaurado Vargas,
em
1969,
quando
a
construção do Açude de Cocorobó, inundou as cidades. Antes, pontos físicos de memórias de luta, com o tempo foram desarticulados
da vivência social. Aquelas cidades foram canceladas.
Recentemente, o baixo volume de água
fez reaparecer algumas ruínas do que foi a igreja original de Canudos, e para o artista,
isso seria “uma repetição, um gif em escala
geológica, um gif em escala histórica”, sem
a habitual velocidade frenética que estamos
acostumados a acompanhar através das redes.
E isso tudo me levou a pensar sobre os
motivos de cancelamento, se isso realmente é algo que existe, como afeta, o que faz com que seja uma escolha social plausível. Ao
cancelarmos,
reproduzindo
um
também
gif
—
o
não
estaríamos
governo
Vargas
segrega muitas partes do país, cancela a existência da memória, e os outros governos
continuam isolando recortes de acessos à história, como no caso do Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32, também conhecido como Obelisco
do
Ibirapuera
ou
Símbolo
da
Revolução Constitucionalista de 1932, que guarda os corpos e memórias dos estudantes Martins,
Miragaia,
Dráusio
e
Camargo
(o
M.M.D.C.) – mortos durante aquele episódio – e de outros 713 ex-combatentes.
O monumento teve seu acesso dificultado
pela passagem dos carros na Avenida Pedro Álvares Cabral, quando o Parque do Ibirapuera
foi dividido pelo governo Kubitschek em 1960, sem sequer atribuir uma faixa de pedestres
para que os visitantes pudessem chegar ao local
em
segurança.
Posteriormente,
no
governo Fernando Henrique, o Obelisco foi fechado por 12 anos, a contar de 2002.
\\ DOSSIÊ
direito a fala e memória
nos
Nós, seguindo a lógica traumática que
foi
concebida
ao
longo
da
história,
continuamos também silenciando os debates, os diálogos, o embate. Seria possível cancelar
esse ano, através das gargalhadas e de um “2020 não aconteceu”, ou temos mascarado um trauma
social, que a maioria da população tem sentido inclusive em instâncias “reais”, analógicas, sociais e corpóreas?
A cultura do cancelamento tem ganhado
espaço de debates que nos fazem perceber as
E não é essa a lógica do cancelamento hoje?
Comecei
a
pensar
sobre
a
quantidade
de
violência velada que vem à tona em situações como esta. Por que meus ouvidos aprenderam a negar a escuta? Qual comportamento me foi passado ao longo da minha educação para que
aprendesse que ignorar o que o outro diz, porque diz diferente?, tal comportamento não
seria tão violento quanto amordaçar alguém com uma toalha para impedir que fale?
O silenciamento me parece costurar os atos
mais sutis inseguranças do outro, o embate e
de abaixar o volume, passar os stories, ler
que gritam mais alto do que as ordens que
documentário, ler apenas uma página do livro,
o diálogo desapareceram para crianças mimadas
lhes são dadas. Maria Homem [2], ao falar sobre essa cultura, menciona alguns tipos de
cancelamento, dentre eles o “Eu destituo sua
palavra”, “Abaixo o volume e não escuto mais nada” e “Eu berro mais alto”. Essas táticas
infantis, nas palavras da psicanalista, mostram
a clara imagem da criança que tem dificuldades em lidar com a castração, de encarar o limite, que precisam do grito para tapar a lei. Claro, a maioria das castrações são impostas durante a infância, pelo simples fato de mantermos
crianças sentadas dentro de salas de aula, já estamos impedindo que cada articulação se
apenas a manchete, assistir só um minuto de um quando na verdade, inúmeros outros livros estão contidos neste – as referências que nos
levam a articular o pensamento crítico também
incluem os tipos de relações que mantemos fora das redes.
“Com o intuito declarado de proteger
minorias,
a
geração
superprotegida
e
superpolitizada [e superchatas] que chegou às universidades na segunda década do século 21
implementou
paranoides”.
interdições
Consagrou-se
e
entre
proibições eles,
por
exemplo, o conceito de “microagressão”, como aponta
o
dossiê
Cultura
do
cancelamento,
cancelamento da cultura, feito por Jerônimo
desenvolva livremente. O processo civilizatório
Teixeira na edição de junho
caminhos que podem ser mais apropriados para
lugar onde o discurso tenha de ser articulado
de
agressivos, mas o ego de quem demanda algo,
inclusive
de sutilezas que já não pode suportar mais
A pessoa com a qual divido a casa tem
violência é estrutural, como a grande maioria
opostos aos meus; por vezes me vejo ignorando
“no poder” – seja no âmbito político, ou
repetições (a fala em looping acerca de um
Instagram, Youtube, Tiktok – continuam impondo
acelerada), ora pelo simples fato de que o
inevitavelmente, chegaria em algum momento.
específico.
preocupada em procurar algum tipo de justiça?
Revista Cult.[3]
muitas vezes veda a possibilidade de encontrar
essa ou aquela pessoa.
de uma forma mais clara não precisem ser tão
Depois
de
assistir
esse
vídeo,
Talvez, algumas ações que apontem para o
Maria Homem, comecei a prestar atenção nos
busca uma resposta de bate-pronto, ausente
fora do ambiente digital.
jogos de injustiça. A justificativa para a
cancelamentos
que
reproduzimos,
realmente
dos problemas sociais. As pessoas que estão
o que estava sendo dito – ora pelo excesso de
aqueles com o maior número de seguidores no
mesmo assunto, o disco riscado, a monotonia
castrações de mobilidade. A revolta social,
assunto estava sendo dito por essa pessoa em
Mas
ações,
reações
e
funcionamentos
será
que
essa
revolta
está
realmente
\\ DOSSIÊ
o réu cancelado
Conversando sobre o assunto com Evandro
Rodrigues, comediante e roteirista, perguntei se ele sentia que a cultura do cancelamento poderia estancar algum nível de criatividade, visto que trabalha diretamente com o humor. Assumi que os riscos de se fazer uma piada que caia no lugar do cancelamento pudesse ser preocupante, mas para minha surpresa Evandro não vê essa barreira.
O humorista relembrou o caso de Rafinha
Bastos e me explicou que o “cancelamento”
Deve ser por isso mesmo que a figura
polêmica central d’A Fazenda não tenha sido excluída do programa ainda. Enfim, não quero fazer deste um palco para agressores.
“O padrão que já vimos repetidos milhares
de vezes, é sempre o mesmo. Um patrulheiro dá o alarme após detectar aquilo que, na sua sensibilidade identitária, é uma violação de suas crenças. Em seguida, se caso já não tiver sido o caso, uma voz autorizada™ acionará que
sua
rede,
compartilham
composta
por
dogmaticamente
pessoas as
suas
de 2011 tinha mais a ver com o poder de
crenças, para a denúncia do comportamento
quem foi insultado do que a piada em si. Na
inadequado, para a exposição do infrator ou
época, Rafinha fez uma piada (de mal gosto) com Wanessa Camargo, casada com o empresário Marcus Buaiz — responsável pelo dinheiro que entra e sai da Rede Bandeirantes, sendo este do
justamente
humorista:
o
motivo
quem
do
controla
afastamento o
dinheiro,
controla também os rostinhos de quem está nos destaques. Tanto é verdade que depois do episódio, Rafinha fez mais algumas piadas
para envergonhá-lo publicamente.”, reflete Wilson Gomes [4] em ensaio na Ilustríssima.
A fácil manipulação das redes sociais,
e falta de leis dentro das conexões digitais, inibe o corpo de atuar de acordo com regras mínimas
de
registrado
civilidade: e
gravado
que
fica
declarado,
desde
a
piada
mais idiota à anedota mais espetacular pode e será usado contra você no tribunal da internet. O posicionamento consciente parece
machistas, mas que de longe não houveram as
ser a melhor das opções para prevenção do
mesmas repercussões como neste antigo caso.
cancelamento, mas isso também demanda que
Estes fatos não excluem a adequação
moral que a sociedade tenta pregar, o tal politicamente correto, mas Evandro me fez perceber que piadas ofensivas cujo alvos se
encontram
privilegiadas,
em
camadas
raramente
sociais chegam
menos a
uma
repercussão barulhenta camarguiana. “Fazer piadas com negros, nordestinos, homossexuais quase nunca provocam tanto quanto piadas que
a educação seja restaurada socialmente, já que os termos e noções de justiça ainda são nebulosos.
Talvez, para se redimir do cancelamento
bastasse fez
que
errado,
a que
pessoa se
admitisse
posicionou
de
que forma
equivocada, que feriu ela, essa, e aquela outra pessoa e/ou classe, mas como podem perceber
esses
equívocos
sem
educação
e
humildade para entender que nem tudo é ok
ferem o ego de homens héteros e brancos”, me
de ser dito e feito nas redes? Além disso,
contou.
existem sim muitas formas de nos protegermos
DOSSIÊ //
através da justiça, mas o Brasil já está tão afundado na desinformação e na descrença que posições articuladas escapam o conhecimento da maior parcela da população (e até quando figuras públicas tentam apontar os caminhos seguros para evitar bate-boca e lutar pelos direitos dentro da justiça, acabam sendo injustamente “canceladas”, como foi Gabriela Prioli — de longe uma das mulheres mais bem intelectualizadas sobre os temas políticos atualmente — ao explicar o caso jurídico de Mariana Ferrer[5], em novembro).
“Para o linchamento e o cancelamento
digitais se requer, antes de tudo, uma multidão unida por algum sentido de pertencimento recíproco, motivado pela percepção de que todos estão identificados entre si por algum aspecto essencial da sua própria persona social. Um recorte comum, por meio do qual são separados e antagonizados, de um lado, o “nós’’, de dentro do círculo, e, do outro, ‘’eles’’, os de fora.”, aponta Gomes.
A constante atualização ética e moral
deveria fazer fluir a convivência com o outro, de acordo com os aprendizados sociais. É uma via de mão dupla: não dá para ser um cabo de guerra ora sendo puxado para a direita, ora para a esquerda — até porque a cultura do cancelamento atinge igualmente os dois extremos,
por
isso
ambos
devem
ceder
e
dialogar.
“O
ataques,
que
me
assusta,
é
a
enorme
em
todos
esses
complacência
e
cumplicidade da esquerda na tentativa de tornar nobre aquilo que, no fundo, é um discurso e um comportamento de um tremendo autoritarismo”, acrescenta o jornalista.
\\ DOSSIÊ
o outro, o limite?
De acordo com o escritor e especialista
O Politicamente Correto é a evolução anterior
em marcas, Arthur Bender[6], o que a cultura do
deste Pokémon chamado Cultura do Cancelamento.
cancelamento coloca em jogo tem muito a ver com
As
a prevenção de outres, a liberdade de expressão,
coerência, a priori, estariam interessadas em
a própria ética e moral do sujeito.
fazer com que as empresas, inclusive influencers,
Para o autor, a cultura do cancelamento
quaisquer que sejam, resguardassem as produções
deveria funcionar como um “indicador de limites,
artesanais, locais e comunitárias – tratando com
para dizer e alertar quem passou da linha”,
cuidado o que será produzido, dito, pensando –,
a
os
como modos de evitar danos aos meios sociais,
“canceladores de plantão”, aparecem gritantes
alimentícios, naturais, ecológicos, e por toda
quando
enquanto
a extensão do que sabemos, enquanto sociedade,
consumidores (e aqui a coisa complica, porque
que tem sido extrapolado pela maneira pretadória
hoje as pessoas também são produtos – como bem
do capitalismo.
sabemos do caso de Gabriela Pugliesi: a má
repercussão de uma decisão impensada arrancou
não resolveram as pautas, a articulação muda para
diversos patrocinadores da renda fixa da blogueira
a abordagem violenta. Mas e quando a articulação
do dia para a noite.).
violenta também não funciona?
violência
e
os
demandam
esforços seus
que
empregam
direitos
O que reflito aqui é o real motivo para
demandas
de
uma
política
articulada
com
Como reverter isso? Se demandas cuidadosas
Apesar de não ficarmos sabendo, algumas
que isso tenha acontecido. Será que a ética
pessoas afetadas por tal cultura, que não estão
de Pugliesi mudou a partir deste acontecimento
próximas
midiático? A massa canceladora alcançou o seu
sendo canceladas quando entram em conflito com
objetivo de conscientizar a influenciadora? Algum
determinados grupos que discordam de algumas
caminho alternativo de reeducação foi apontado,
posturas e condutas. Existe uma parcela social
indicado?
que utiliza a superpolitização para repreender
o outro através de conceitos contemporâneos,
“a
Segundo Bender, na cultura do cancelamento, massa
anônima
horizontal
com
os
passa
a
ter
produtores,
uma
relação
mostrando
que
existe um jeito de derrubá-los, sim.”.
articulação
celebridades,
sofisticados
demais
para
seguem
serem
compreendidos por todes.
O linchamento aparece mais uma vez na forma
popular desde a circulação da famigerada lista
aniquilação do outro não se satisfaz no block.
de cancelados, em 2019, que passou a trazer
Conversei com um amigo de longa data para tentar
as imagens atreladas ao riso do meme, tenha
compreender a visão de quem utiliza as redes
ultrapassado os limites da liberdade sobre a
sociais como um ambiente de convívio; Ricardo
fala do outro.
é analista de projetos e seu Instagram não é
indicativo
deveria
dessa
das
do gif, que introduzi no começo deste texto, a
O
a
vezes,
mundo
cultura,
Talvez
muitas
ao
estar
baseado
na
o foco central da sua renda. Genuinamente pedi
educação ética das relações sociais. Balançando
para que me explicasse o que sente, entende,
numa corda bamba infestada de perfis falsos,
pensa sobre a cultura do cancelamento:
atitudes deploráveis, infantis, carregadas de
ódio e ressentimentos, muitas vezes, fora de
não têm que ter o poder que têm hoje em dia
contexto, o horizonte deste movimento perde o sentido.
de cancelar uma pessoa. Existem cancelamentos
“As pessoas da internet, os influencers,
DOSSIÊ //
que concordo para caralho, o cara tem que se
posturas “éticas e morais” de algum influencer,
foder mesmo, tipo o caso do PC Siqueira – o
ou aqueles que cegamente apoiam os que “fazem a
cancelamento dele não foi nem tão pesado assim,
justiça com as próprias mãos”, também se tornaram
porque o cara já tá aí de novo, né mano. Mas
robôs
existem cancelamentos por aí que são pesados
discursos e quereres sem entender o que fazem?
porque a galera começa a atacar na internet e
Lugar de fala, lugar de escuta, protagonismo,
de repente vira um bagulho que foge totalmente
preconceitos
do controle: as pessoas começam a ameaçar. Vi
nomenclaturas,
um caso que chegou a ponto de alguém ir até o
discursos
trabalho da mulher do cara que estava sendo
vivemos uma realidade que aproveita brechas de
cancelado para ameaçar. É meio doentio, insano,
situações extremamente delicadas, complicadas e
e com isso não concordo. Se alguém fez algo
complexas para diminuir o outro, se validando
errado, temos a justiça para isso, vivemos numa
do que comumente chamamos de “razão”, sem ter
sociedade que tem leis, e se o cara fez algo fora
maturidade suficiente para lidar com determinados
da lei, tem que ser punido pela lei, né? [...]
ambientes
Também me gera uma sensação de, por exemplo,
jurídicas para destencioná-los.
“eu não gosto de pessoa X, vou cancelar” – tem
um monte de influencerzinho que com certeza tem
polis:
treta com um ou outro, e qualquer coisa que você
lava-roupas digitais, servem para denunciar,
tire de contexto que a pessoa fala, já é motivo
militar, ganhar likes - e, em outras situações,
para cancelamento. Imagina que o Influencer X,
criar ambientes de aceitação e acolhimento.
não gosta do Y – ele pega um vídeo, ou um story,
Segundo
alguma coisa do Influencer Y, tira de contexto
pernambucano
aquilo e fala: gente, vamos cancelar esse cara
texto A Cultura Do Cancelamento Não É Um Meme
aqui, e a galera cola em peso e cancela a pessoa.
De internet para o linchamento falta perdão.
[...] Esse tipo de comportamento dá poder para
“Estamos tão ensimesmados com nossos próprios
a internet e para as pessoas fazerem coisas
problemas e vivências que não somos capazes
que não é papel delas fazer. Se existe um real
de superar os fatos que nos machucam – e nos
motivo para a pessoa ser cancelada, a pessoa tem
sentimos agredidos o tempo todo porque recebemos
que se ver com a justiça. Não sou eu na internet
informações demais.”
que tenho que dizer, ou mandar, ou destruir, ou
linchar a pessoa.”
cancelamento quase como o vento provocado pelas
Os
fóruns
de
debates
da
internet
aliados
As
que
simplesmente
estéticos, são
as
canceladores.
sociais, redes
Instagram,
armas
outras
preferidas
Infelizmente,
são
Twitter,
Caio e
entre
tampouco
sociais
reproduzem
o
tomar novo
Braz[7],
apresentador
de
ainda
medidas palco
dos
da
viraram
jornalista TV,
em
seu
Numa mistura de lógicas, o Meme atravessa o
são
asas das Fake News, e se transformam também em
manifestações genuínas de algum tipo de civismo
armas linchatórias, ardilosas o bastante para
que nossa atual democracia representativa deixou
se confundirem com o humor, o preciso ponto de
escapar ou, ao contrário, têm se tornado um lugar
escape de ferozes verdades, principalmente no
onde paixões e afetos se tornaram truculentas o
Brasil, onde o humor inteligente é sobreposto
bastante para legitimar a egrégora de seguidores
por humores maldosos e agressivos – das mais
de algum influencer? Esse movimento representa
diversas formas, visto que, justamente, temos
a vontade real de internautas, motivados por
um meme como presidente.
D O I S ÉLLES QUATRO PA R E D E S TOMÁS FIORE NEGREIROS
CONTO //
Vamlá
Marcião,
já
coloca
o
nome
no
nos japonês’ aí: os caras não são fracos não,
formulário. “Mar-ce-lo Sil-va”. Se bem que..
tem um potencial bom.
faz seguinte: duplica o élle.
Sillva?
sucesso fora dos karaokê da Liberdade? Esses
Isso! Dá uma gringaiada no nome. Os caras
japas só sabem falar de animê e onde eles querem
mal vão terminar meu nome na folha de inscrição e
meter os hashis deles no sushi; isso se eles
já vão esperar por um cavalo raça pura ‘spagnol’.
tiverem chumbado’ no saquê, senão nem sai nada...
Coloca “Marcel Sillva” então.
Fica tranquilo que aqui não é mimimi étnico que
Porra Marcião, manera também. Tá querendo
ganha o boi não. O negócio é pensar em algo que
me passá por bixona francesa? A ideia é chegar
toque em todo mundo, que futuque o cu de todos
incomodando antes mesmo do número, não sugerir
e todas.
um afago no croassant dos recrutadores. Vai na
minha: hoje em dia o ramo artístico tá todo das
Já tem alguma ideia ou deixou pra discutir teu
boas vontades com quem tem nome simples ou quem
número com todo esse pessoal aqui esperando?
tem nome de hyppie; chamar “Silva”, “Jade” ou
Exatamente, já chama os bigodudos à la Bechior
“Gramamendoim” já é meio passo pra ser amado.
ali
Coloca “Sillva” com dois élles, pra eles já
sentadas do lado da porta… Porra Marcião, me
lerem com cara de nojo.
ajuda, né caralho!
concretizado ainda; mas quem seria Marcelo Silva
Porra Marcelo, não vai inventar mêo. Cê fica
Ahhh
bobagem.
Cê
já
viu
japonês
fazer
Cê’ que sabe, cara. Mas tá pensando no quê?
do
lado
do
bebedouro
e
as
patyzinhas
Tô com alguns esboços, nada
com essas suas pseudoteorias… Tem que lembrar
sem Marcio Julião, seu grande estagiário?
que isso daqui não é televisão, não é aqueles
programas chanchada que você fazia. Olha quanta
não fosse por mim, cê ainda tava se apresentando
gente aqui, a Zona Oeste inteira deve ter visto
em churrascaria de boca de estrada. Sem dizer
aquele anúncio que você me mandô: tá cheio de
das inúmeras vezes que eu salvei esse teu rabo
pomba moderninha em cima do coreto esperando
magro dos “incidentes” no motel de 50 pila.
pra caga na careca alheia; lembra que pomba
velha não dá as mesma rajada qui’as nova.
ao meu assistente de produção. Melhor, ao meu
Lógico que não, bicho. Fica tranquilo que
Estagiário é a putaquetepariu Marcelo. Se
E por isso que eu sou eternamente grato
braço direito, ao meu irmão do peito.
eu sei o que tô fazendo. Cê acha que esses caras
têm alguma chance por aqui? Essa molecadinha
não, viado! Bróder de cu é rola. Desenrola logo
não faz ideia do que tá fazendo; eles chutam a
qu’eu já tô ficando entediado...
flor já abraçando o caule… capaz de se cagarem
tudo na frente do recrutador. E outra, isso
entediante nisso. Vai ser uma surpresa trágica,
daqui é bem melhor que televisão: não tem a
uma inesperada injeção de filhadaputice, sabe?
porra do diretor cortando seu barato, não tem
Uma melada na cueca emprestada, uma bela brochada
patrocinador encalçando seu trabalho, não tem
com a mulher do melhor amigo, um porre de Pitù
nego
pra
no batizado do sobrinho, uma chorada no colo da
esculachar, não tem ex-mulher exigindo pensão...
puta, sipans enveredar pra biolagem, broderagem…
isso daqui é puro processo criativo, meu filho.
morô?
Pá pum auge.
Hmmm sei não mêo, se eu fosse você ficaria
linguagem aí e foca na história porque o pessoal
esperto pra não entrar de salto alto nessa. Fui
já tá fazendo fila na frente da porta e logo mais
pegá uma água lá no canto e dei uma bisbilhotada
vão começar a chamar os nomes.
te
esperando
fora
dos
bastidores
Vem com esse papinho mole pracima de mim
Fica tranquilo que não vai ter nada de
Captei porra nenhuma. Manera nas figuras de
\\ CONTO
Certo, certo. E se a gente começá naquela
os
caras.
Só
sei
que
vieram
de
Curitiba
e
piada do moleque gordo no metrô? A gente dá
trabalham com conteúdo digital. Mas, fora isso,
uma
já
são completamente desconhecidos, até pra mim
tá pronta pro abate… coloca ele com os amigos
que tô nessa parada há vinte poucos anos… não é
bixa’, a camaradagem millennial e as porra’ de
o tipo de gente que você encontra nas biqueiras
glitter e pronto! Tá pra vitrine do Conjunto
da vida ou que ronda uns fetiches estranhos nos
Nacional!
inferninhos da cidade.
Foda. Devem ser novos no ramo.
tá entendendo a situação aqui, meu velho… você
Tanto faz mêo, foca aí porque já tamo
não tá se apresentando pra plateia paga com
estourando no prazo.
claque que reage a qualquer bosta que você fale;
aqui cê tem que arrancar algo do público, e tem
bicho. Puta lugar abafado! Será que não tem uma
que engatilhar de primeira, não tem essa de
ala pra fumantes, um londgezinho pra eu dá uma
“começá”; tem que botar o pau na mesa e falar “é
checada mais de perto no material da ruivinha
isso e é isso PORRA”. É coisa séria, caralho!
gostosa
E outra: dependendo da plataforma, você não
conhecer mais o trabalho dela, ver do que ela é
tem nem espaço pra gordo encontrar metrô nem
capaz...
livraria.
Porra, esse número sempre dava uma aquecida
você pensando em cigarro e buceta? Faz seu trampo
no público quando… Cê sabe, é aquela piada do
e depois você pode se acabar naqueles puteiros
gordinho que desce as escadas do metrô correndo…
sujos que cê adora; cê não tem tempo pra isso
Me poupa, Marcelo. Tô com você faz uns 15 anos,
agora não, chefe. Ó só: tá vendo a minazinha
eu já sei esse número de cor e ao contrário
magrela de cabelo tingido ali no canto? Do lado
recitado em hebraico. Deixa eu desenhar pra cê
da ruiva…
vê se entende: tá todo mundo aqui na mesma merda,
Outra delícia.
tá todo mundo aqui preso no olho desse furacão
Tanto faz. Cabei de dá uma procurada aqui
de quatro paredes. Você tá vendo alguma coisa
no tuíter…
que não seja parede e aquela porta descascada
alí? Cê não tem aquecimento, não tem começo, cê
trabalhado nas redes digitais…
tem uma chance pra falá teus troços e torce pra
que te abracem de Judas. Então, foca na porra
passada
da porta e pensa em algo pra gente sair desse
pernilongos que ficam no lado norte do Rio Tiête…
cu abafado.
Pernilongo?
requentada
pós-moderna-lacrex
nela
e
Livraria? Sério Marcelo? Acho que você não
Fica tranquilão que a gente já saiu de
Hmmm, é que esse calor tá foda mesmo,
ali?
Troca
de
conhecimentos
rápida,
Ah, vaitomanocu, Marcelo! Essas hora’ e
Agora Cala
eu boca
ela
gostei e
me
soltou
hein
escuta, um
Marcião! caraio:
comentário
Todo semana
sobre
os
Pois é mêo, a mina deu um jeito de comparar
piores Marcião. Somo’ macaco velho nessa porra,
os bichos com o povo de Santana. Resultado: a
a gente sabe os caminho’. Cê não conseguiu o
tingida, e o raio dos pernilongos, ficaram um bom
contato com ninguém da produção, nenhum ghost
tempo na boca do povo da Zona Norte.
ou desempregado pra gente pegar umas dicas?
Alguns podres dos recrutadores? Molhá a mão do
horas rárárárá.
algoz às vezes ajuda na sede do condenado…
Já disse que não, nunca ouvi falar desse
essa e 2 horas depois já havia sido chamada
pessoal na minha vida. E olha que eu fui atrás
pelos grandões, além de ter virado persona non
de tudo que é contanto pra descobrir mais sobre
grata no Tucuruvi. Mesmo o baixinho careca ali:
Se bobear, tão mastigando asa até essas Fecha no exemplo Marcelo. A mina soltou
você não dá nada, mas o cara tá há 3 semanas
do momento... pronto, o pessoal se esgoelava.
no topo por causa de uma propaganda, esses
Era o auge. Fora as festas, a paparicação, a
narigudos tão ligados qual qu’é a boa; falô a
conta sempre recheada, a farinha em dia e os
vida inteira sobre o direito dessas minas com
pães quentinhos no camarim… sei lá, cê meio que
suvaco cabeludo, mas só foi Splashar na UOL
fica mal acostumado Marcião.
depois de uma propaganda de gillette feminino.
Você tem que focar nos detalhes, às vezes é uma
e autopiedoso de titio, mas sua batata já ta
coisinha qualquer que passa batida e pode ser
derretendo faz umas horas. Você pensa que é
seu grande nicho, teu ticket pra fora desse
o único? Todo mundo ficô mal acostumado: eram
inferno.
os tempos das vacas gordas; quem conseguiu se
Hmmm e se eu falar sobre religião?
consagrou, e quem chegou atrasado na festa ainda
Fala mais, Valdemijo…
tá tentando pelo menos o ingresso pro açougue.
Sei lá, um padre encontra um rabino no
Agora para com essa merda e pensa em alguma
Marcelo, sem cortar seu momento nostálgico
aniversário de Jesus e…
coisa. Olha que eu dou meus pulos e vô embora,
Esquece, é uma merda.
hein caralho!
Porra.
Então
não
sei
Marcião,
tô
meio
Calma lá Marcião, preciso da tua ajuda
por fora do que tá sendo produzido hoje em
aqui, bicho. Cê sabe que não tô podendo contar
dia. Antigamente era tão mais simples: você ia
com mais ninguém nessa… olha toda essa molecada
lá, soltava uma pura sobre a loira gostosa da
aqui: tem uns que tão com o rosto entupido de
academia, comentava sobre o vizinho corno do
espinha ainda, nem devem ter passado dos 20.
andar de baixo, lambia a careca de algum político
Onde tá o pessoal da nossa época? Por que não
tem nenhum rosto conhecido? Por favor, Marcião,
por favor cara, não vai não mêo, nem sei direito
mais que calejado pra saber que tem que escutar
pra onde ir depois daqui.
com meio ouvido as minhas ideias deporre; ainda
Calma
Marcelo,
respira.
Senta
a
bunda
Ahh Marcião, dá um tempo, caralho. Cê já é
mais com essa última safra pós-divórcio, um
na cadeira, pega uma água com açúcar, dá uns
quarto de ouvido já é mais que o suficiente.
tragos naquele conhaque velho que cê sempre
traz contigo, sei lá. Só para de surtar, mermão.
estamos aqui: torrando teus poucos neurônios,
Conhaque seco já foi faz tempo, Marcião.
fodendo com a minha paciência e esgarçando suas
Eu só preciso fumar um cigarro. Vôacender um
poucas chances de não queimar teu filme. Por aí
cigarro aqui mesmo, foda-se. Mesmo que a gasolina
ainda nada?
Bom meu querido, não apenas ouvi, como
esteja em falta, é importante manter o motor soltando fumaça.
Cê
que
sabe.
*** Mas
lembra
que
foi
você
que me ligô às 4 horas da manhã completamente
Nada, mas a cabeça ainda latejava do porre
bêbado, falando da sua grande e última volta
acumulado de uma, duas, três noites seguidas em
por cima; falando que seria eu que ia colocar o
branco tentando pensar em algo que preenchesse
nome de “Marcelo Silva” novamente no seu lugar
aquele vazio que ocupava a cabeça que em inércia
de destaque, que nunca mais seria esquecido…
seguia o filme nostálgico de anos que viram e
e agora, pablito escovar, já deu de cara com
anos que foram faziam décadas e continuavam a
a dureza da realidade? Já tendeu que num é
seguir. Seguia enfurnado naquela sala quente
dramatizando que as coisa’ funcionam por aqui?
torrante tentando reconhecer algum rosto mínimo
Parede é o que não tá faltando...
que dissesse algo que não fosse “E aí já pensou,
caralho?” ecoando a resposta negativa de mais
de mil filhasdaputinhas que vibravam o som das
próprio
sirenes que terminavam os shows e previam os
quatro porras forneadas às quatro da tarde de
tapinhas
nas
costas
seguidos
de
“muito
bom
Marcelo, muito bom! Você conseguiu de novo! Seu merda do caralho, como você fez aquilo?” etc, etc. E continuavam zunindo e redemoendo a enxaqueca cretina que apertava os olhos contra a porta descascada que pressionava mais eles enquanto abria.
Marcelo, caralho! Tão começando a chamar.
E aí porra?
Porra suada por todos os poros emporrados
tingindo toda as paredes e os cabelos lisos de todas as putas velhas e as ninfetinhas daquela sala abarrotada e quente que girava empórrecida branca que se aglutinava e entrava pelo nariz. Era branca e fria a luz que chamava da porta aberta e gritava um e um os nomes pela sala emparedada que gritava em sons “Marcelo Sillva” “Marcelo Sillva” “MARCELO SILLVA”.
Vai logo mermão! Te vira lá.
“Marcelo Sillva” realmente era um nome di’soar
por
uma
sala
emparedada
às
um mês quatro sem uma história indecente para ser contada naquele dia nem ontem nem amanhã. Tanto faz, o que realmente era escutado eram os
cochichos
inflando
questionando
“Marcelo
Sillva?” e sim, quem era Marcelo Sillva? Quem era Marcelo Silva? Quem era? O que só cessou com a resposta do primeiro passo ao chamamento luminoso daquele nome que preenchia a espera de tantas incertezas de futuro próximo e contrato redentor. Sim, o primeiro e mais difícil passo calou com o silêncio que cortava por entre os demais presentes e sinalizava o fim de uma espera que sequer sabíamos quando havia se iniciado. Que seja, era o primeiro de muitos em direção ao derradeirom fim digno para Marcelo Silva, aquele que se lançava mudo enquanto os pensamentos gritavam: “que se foda, pro inferno com essa porra toda. Espero que tudo isso seja cancelado”.
“Sillva” com dois élles mesmo?
Isso.
\\ CRÔNICA
2
0
[ponto
de
2
0
interrogação]
Os olhos se espremem como limão. A mesa à napolitana, posta desde às
seis e cinquenta e dois junto café passado e a manteiga derretida denuncia o começo do que não foi: a torre balsâmica é hirta junto ao azeitado português de guardanapos de molho. Uma manhã se torna duas, três, seis ao longo dos corredores repetitivamente cansados de hálitos de alho e noites mal dormidas junto a notícias adormecidas vindas com o peixe: “o último tabu a ser quebrado vai ser o tempo do tempo todo”.
O pó se levanta junto ao sol. Preto, marrom ou branco — por amantes de
adrenalina amanteigada — seu rastilho denuncia o começo de uma vida nova, secretada pelas anedotas do tuíter ou pelos romances do Zap, sempre descontinuados pela falta de atores destes lados da peça, e é pedir muito pro pessoal deixar o drama no Netflix? Se seriado fosse bom mesmo, não viraria conversa de sala ou fala de sala de espera de dentista — e pensar que meu incisivo ainda dói —, mas seria anedota pra pôr todo mundo: sobrinho, avô, neto.... Essa coisa de ficar pulando a introdução sempre termina com alguém perdendo a cabeça.
Na ponta dos dedos uma mensagem nasce nervosa comigo. Escrevo até esgarçar
minha teimosia e cansar minha dislexia de jograis latinos “livro, frila, ira”; o reflexo da tela revela a passagem das horas preguiçosas deitado sobre o medo de ir mais longe, de temer encontrar algo que não agrada, ou que a bem da verdade sempre vivera junto a mim nesses abusos cafeeiros dos rincões do sono profundo. A vontade mesmo é rasgar e mastigar as páginas pra ver se a dentição ainda funciona em algum lugar do texto. Ensino a Distância É uma merda
O horizonte se faz do latido. Ou da garrafa gelada da promoção de importados
do Pão de Açúcar. Se faltam sorrisos nos rostos ao fim de fatias de pães e iogurtes de água, é porque não é fome que rosna o estômago. No fim das jornadas só falta o que não se compra, ou melhor, só se contenta com o que uma vez existiu antes:
CRÔNICA //
vestir a máscara e viver sob anonimato são requisitos necessários para ser aceito na legião estrangeira. Mas o Brasil nunca foi conhecido por seu trabalho do campo: só se sabe da lua, das águas e dos mares que nos enganam a canto de sereias.
O almoço se esquece, o crepúsculo está à vista. Os dedos, os pés, a coluna,
as costas, os braços, o pescoço abunda em estralos às oito horas batidas de viagens interplanetárias por reinos desinteressantes. Cancelaram a vontade de estar errado, de saber engolir choro ou aprender com os próprios erros frente ao espelho platinado, mas também que mania, né? Olhar pra si mesmo e encontrar algo que nunca gosta, ‘num cola pra vídeo realidades de quinze segundos ou estórias de um minuto: se se sabe um pouco do nada, já se é conhecedor do mundo: e da imperfeição real dos sexo dos anjos cibernéticos: “se uma mordaça está para a lacração o que a forca estaria para a patrulha da opinião alheia?”
“Olha, mas calma: foi só uma piada. Me cancela não, ‘môre”
E nós continuamos aqui, firmes. Debaixo de um salgueiro que entendeu o sabor
da vida, me vem uma pergunta a cada dia que percorro esta terra. Giro meu olhar e desencontro os olhos de todos em busca de uma resposta bem simples, e por ser tão simples, tão boba, tão idiota quanto discutir porque vocês, meus amigos, que são pessoas irracionalmente incríveis e acolhedoras, pode ser até besteira eu chegar até esse ponto final e fazer essa pergunta. Mas, como teimoso que eu sou, e intransigente — e meus colegas o sabem bem — com os substantivos, verbos e adornos léxico-gramáticas que tornam coisas irremediavelmente beeeeem simples em labirintos de araque kafkianos vou ser breve, porque depois dessa formulação toda — se jamais vocês a entendê-la — esse negócio é puro sensacionalismo barato do show do Faustão (e seus trajes bilionários).
“Se todo escritor é um pássaro, por que preferimos gaiolas?” Entendi. Abra em mãos vazias Ápice em ponta de lápis Carta não escrita.
ANDRÉ VIEIRA
Ilustração de Lia Petrelli para Frentes Versos