EDIÇÃO #4 | OUTONO 2020
ERÓTICA
\\ SOBRE A EDIÇÃO EDITOR-CHEFE: Matheus Lopes Quirino EDITOR-ASSISTENTE: André Vieira CAPA: Lia Petrelli CONTRACAPA: Layla Loli TEXTOS: Bruno Pernambuco, Giovana Provença, Lia Petrelli e Mauricio Detoni. PROJETO E PRODUÇÃO GRÁFICA: Victória Novais
\ sobre nós
\\ CARTA AO LEITOR Olá, tudo bem? Deixe me apresentar a você, caro leitor. Me chamo André, tenho vinte e cinco anos recém-formados e sou um dos editores da Frente & Versos, uma pessoa sisuda desde às 8h, e que já no primeiro badalar das 18h bate ponto na esquina do bar. Logo, garanto a você, caro leitor, que a Frente & Versos não é mais uma daquelas revistas sérias, de pessoas chatas que escrevem texto protocolar e matérias monótonas que dão vontade de enfiar a cara no sofá. É pensando em tornar a vida mais leve, e nem por isso menos interessante, que reunimos pessoas
das
vivências
e
mais
variadas
experiências.
tribos É
e
porque
turbas, queremos
conhecer, juntamente com você, caro leitor, um mundo que também nos é novo, e que ainda passa invisível a nossos olhos, telas, lentes e dedos. Queremos assim, antes de mais nada, conhecer a
Fundada com o propósito de democratizar o acesso
história de pessoas e movimentos singulares,
à cultura, a Frente & Versos busca compreender
que esperam, ansiosos para serem descobertos
a produção artística e cultural independente da
por nós principalmente por você, querido leitor.
cidade de São Paulo. Acompanhando as estações
E como vamos fazer isso, você deve estar
do ano, a cada três meses, escritores, artistas
se
e entusiastas de diversas áreas se debruçam
colonizadores,
na efervescência da grande selva de pedra e
Apostamos no diálogo com as artes e na conversa
a digerem para trazer a você, leitor, o mais
direta com você, porque acreditamos que a melhor
completo conteúdo sobre o lado B do que é dito
forma de nos conectarmos é construindo uma ponte
no lado A. Em cada edição, distribuída digital
que
e gratuitamente, nos dedicaremos a um tema,
sonhos. É uma troca. Que fala mais alto de que
uma faceta, das inúmeras formas presentes na
valores financeiros e que simboliza o que melhor
cultura contemporânea.
temos a fornecer a vocês, a nossas famílias, e
perguntando?
liga
Neste
invasores
gerações,
percurso ou
opiniões,
não
somos
conquistadores.
experiências
e
à sociedade.
\ entre em contato EMAIL: frentesversos@gmail.com SITE: www.frentesversos.com INSTAGRAM: @frentesversos Frente & Versos é uma revista que não tem fins lucrativos e sim pedagógicos. É produzida e editada por estudantes e entusiastas da literatura, cultura e artes.
Assim, sem mais delongas, vamos ao menu da edição: nas folhas 3 e 4, abocanhamos com olhos e dentes a deliciosa matéria de Matheus Lopes Quirino. Na carta de entrevistas, Lia Petrelli acompanha a multiartista Layla Loli na doce conversa sobre seu livro. O prato principal ficou à cargo de Bruno Pernambuco e Giovana na quiche à Hilda Hist, e de sobremesa, as hábeis mãos Matheus, teclam sobre a arte de Keith Haring. Bom apetite, André Vieira, Editor.
PLAYBOY, LADO B Fotografia homoerótica desnuda a intimidade do corpo masculino na Internet. Publicações miram no poder das redes sociais de disseminar trabalhos e desmistificar tabus da masculinidade
POR MATHEUS LOPES QUIRINO | FOTOS CIRO MacCORD
PÁGINA EM BRANCO // Para
começo
fotógrafo
e por pouco não descartei meses de pesquisa
gesticulava muito, enfático, explicando, com
mergulhado em material homoerótico. Não segui
brilho
daquele
com a reportagem, jogaria a toalha. Foi quando,
apartamento miúdo poderia ser útil para um bem-
no fim daquela (quente) semana, descobri que
-sucedido enquadramento. Ainda vestido, o jovem
uma
Ramiro* aparentava insegurança, enrubescendo,
a Cactos Magazine, realizaria um ensaio para
logo de cara, quando foi apresentado a este
seletos convidados em seu estúdio. Seria uma
repórter, à época fazendo um frila para um
corrida contra o tempo mudar toda pauta. Não
grande
teve jeito.
nos
de
olhos,
jornal.
conversa,
como
“Por
cada
o
canto
favor...”,
tartamudeou,
revista
virtual
de
fotografia
masculina,
“Pensei que ia ser algo pequeno, não quero que
Se fosse morrer na praia, que fosse na
meu pai veja meu bilau na capa da Ilustrada,
de nudismo. Liguei para o editor da Cactos, o
enquanto toma café da manhã”. E a decisão coube
Luiz Meloc, pedindo um voucher para a sessão.
exclusivamente ao estudante de cinema de uma
Desenhei na imaginação um requintado ensaio,
faculdade privada de São Paulo. Ele persistiu,
com luzes grandiosas e muito laquê disperso nos
despindo-se,
uma
ares, algo com pé no psicodélico, como em Pink
estátua no canto da sala, com o celular desligado
Narcissus, um clássico do cinema gay (1971),
a pedido dos dois.
cujo
enquanto
me
transfigurei
em
livro
editado
pela
Taschen
inspirou,
Durante quase duas horas de observação,
através das décadas, gerações de idealizadores
fotógrafo e modelo estabeleceram uma intimidade
da fotografia homoerótica. Meloc ainda tentou me
formidável. O homem com a câmera se contorcia
vender um ingresso da sessão que ocorreria no
como uma bailarina na ribalta, a fim de captar
sábado. “É pegar ou largar”.
detalhes não convencionais daquele corpo ora
Sábado, 17 de agosto de 2019. A sessão começou
magricelo, ora na estica de um dândi paulistano.
às 14h, num sobrado da Vila Mariana. Fui recebido
Ao fim do ensaio, já escurecia e Ramiro, de
por Meloc e um pug, animalzinho de estimação
cueca box branca Calvin Klein, abafava com as
do casal que cedeu a casa para o ensaio. Ao
mãos nodosas um risinho tímido, “Apaga essa,
subir o lance de escadas daquele estúdio-casa-
estou horrível”, pedia ao já amigo fotógrafo,
-emprestada, tudo não passou de uma sala, com
enquanto crivava o resultado parcial daquele
uns cinco homens em círculo, constrangidíssimos
ensaio, pouco antes de sairmos do local e cada
ao serem anunciados ao repórter. Eles lá estavam
um tomar seu rumo noite adentro.
na condição de mecenas de um projeto que, nos
A experiência ocorreu nos idos de agosto de 2019. De lá para cá, abril de 2020, houve
moldes de hoje, caberia como uma “Playboy, lado B”.
uma queima de arquivo. Tanto o fotógrafo, como
O
pug
passeava
livremente
pelo
estúdio
o modelo mudaram de rumo na vida. Um partiu ao
improvisado. Aos poucos, perguntas iam surgindo
exterior para cursar MBA, o outro deu-se por
dos
vencido pelas pressões da vida “de adulto”.
ambientou
Ao que sei, arrumou um trabalho convencional.
de sua trajetória como fotógrafo experiente,
Como prometido, não voltaríamos ao assunto. Do
desmistificando o nu, sem omitir causos divertidos
acordo de cavalheiros, fui autorizado a escrever
dos bastidores de editoriais que participou em
omitindo
revistas como a Vogue.
nomes,
em
ipsis
litteris
dos
dois
“garantindo total sigilo”.
moços,
cada
bem
a
vez
menos
sessão,
tímidos.
mesclando
Meloc
histórias
O que começou na experimentação, tornou-
No dia 14 de agosto entreguei uma primeira
-se um bem-sucedido projeto. A Cactos Magazine
versão desta matéria ao jornal. Já sem pressões
tem mais de quinze mil seguidores no Instagram.
editoriais
Mesclando modelos amadores e profissionais, a
autoimpostas,
abaixei
a
guarda
\\ PÁGINA EM BRANCO revista, que teve início em junho de 2018, conta
penas, como antigamente, as revistas passam de
com dezenas de apoiadores. Detalhe, conta Meloc:
mão em mão. De tiragem modesta, tendo várias
“Hoje, um pouco mais da metade é o público
delas tirado menos de mil exemplares, não é em
masculino, mas não era assim, as mulheres eram
qualquer banca que se encontra uma revista de
o público consumidor em maioria”.
homem pelado.
Segundo
o
fotógrafo,
o
projeto
cativa
O atendimento é personalizado e, geralmente,
por mesclar um apelo erótico a algo casual
o fotógrafo conhece a história do seu consumidor
e elegante. Na preparação das sessões, Meloc
e modelos. Para além da interação virtual – pois
gosta de brincar com luz natural, com objetos de
no inbox alguns deles trocam de figurinhas a nudes
improviso (banquinhos, caixas, panos), e por aí
–, estas publicações acabam parando em livrarias
vai (des)artificializando seus modelos. “Prefiro
alternativas, espaços dedicados à fotografia e
que eles cheguem com pelos, sem essa estética do
arte, como é o caso da feira Tijuana, com edições
limpinho, arrumadinho”.
em São Paulo e no Rio, onde o trabalho de João
Na sessão, ele fez questão de testar as
Penoni, fotógrafo e idealizador da revista Dot
habilidades acrobáticas de dois Brunos, xarás
Zine foi bem recebido pelo público de carne e
que já haviam participado de outras edições
osso.
do ensaio de Meloc. “A segunda vez já é bem
Penoni
fotografa
na
praia
de
Ipanema,
mais tranquila”, conta um deles, morador do
como fez Alair Gomes (1921 – 1992). Pioneiro
bairro da Consolação, enquanto justificava-se ao
na
já consternado fotógrafo, “Por que você fez a
civil de janela indiscreta, morador da Prudente
barba, porra?”, brincou Meloc.
de Morais, cuja vista através dos prédios da
fotografia
homoerótica,
aquele
engenheiro
A bacanal das fotos requer habilidade. Dos
Vieira Souto lhe renderam lendários cliques de
contorcionismos entre dois esguios bancos de
banhistas besuntados em óleo bronzeador, com
madeira, ao abaixar e levantar num minúsculo
bíceps fortes e até tanga de crochê. Lendário,
jardim de inverno, os Brunos, dois homens nada
Gomes é referência para quem hoje fotografa
esguios, se mantiveram na pose de modelo, com
homem pelado.
nariz em pé. Interagindo com a turma, cada vez
Entre
pornografia
e
arte
a
fronteira
é
mais atenta a outros detalhes dos modelos além
tênue. Os trabalhos frequentemente esbarram em
do nariz, os olhos trocam os pontos de fuga.
algoritmos que censuram imagens, sem critérios
“Aquilo lá é apenas um detalhe, nariz não é
subjetivos para pautar esse ardil conservador,
documento”, brinca o sorridente Meloc.
a cruzada moral é travada no Instagram, estando
Improvisados, de
zines
masculino
editores
Internet, seu trabalho amplificado a públicos
editoriais da grife de praia Bannanna, cujas
diversos. Virtuais e impressas, as publicações
sungas e tangas viraram objeto de cobiça entre
encontraram, principalmente no Instagram, um
os homens, sobretudo, homossexuais. E, mesmo
canteiro sedutor para florescerem. Páginas como
em ensaios comerciais, onde o apelo erótico
a Cactos conquistaram milhares de adeptos de
é necessário, muitas vezes, para alavancar as
todas as idades, entre fãs e haters.
vendas do produto, o fotógrafo desabafou em
revistas
têm,
virtuais,
graças
o artista visual à mercê do algoritmo. Curador da Uncut, Gianfranco Briceño realiza
de
nu
e
à
Além
sobre
fotógrafos
publicações
sua conta, colocando, a contragosto, tarjas em
conhecidas no meio, como a Uncut ou The Lonely
imagens vigorosas, porque o algoritmo tem pau
Project, o impresso também dialoga como troféu
pequeno.
para os fotógrafos. Celebrando a conclusão de um
processo
muitas
vezes
realizado
a
duras
Só e nu em pelo, o performer Ciro MacCord começou
a
se
fotografar,
de
início,
como
um
experimento. Conhecendo melhor os limites de seu corpo, ele logo percebeu a potência da linguagem que estava manipulando e criou a Tropocorpo – A nude (self)photographer. Em meses, ele ganhou milhares de seguidores, ao passo que também foi acossado pelos argumentos do Instagram, que suspendeu sua conta. Hoje, ele debandou ao Twitter e lá recupera gradualmente seu público. O nu ganha holofotes por onde passa. Da Origem do Mundo, pintura de Coubert cujo realismo traçado a óleo causou furor nos salões da alta sociedade francesa no século XIX às vaias dos quatrocentões de São Paulo por causa da escultura do Beijo em frente
ao
Largo
de
São
Francisco,
o
discurso
puritano pouco muda, a poeira só se acumula. No
caso
da
foto
artística
e
erótica,
os
trabalhos femininos ganham notabilidade maior. A mulher é centralizada como objeto de desejo e, ao longo da história da imprensa, foi a Playboy que mais se afamou nesses moldes. O lado B deste cenário está na fotografia homoerótica, cujos artistas passaram a fotografar homens em cenas viris, em menor escala. A ideia do homem viril vem desde a época das luzes na Europa. Os afrescos de santos carregavam traços verossímeis, pinturas de Caravaggio e Da Vinci perseguem a perfeição do corpo, estando a escultura Davi como centro do mundo, com os holofotes em si. Desconstruir a figura do corpo sacro muitas vezes pode soar agressivo ou dissonante. Pôr em xeque esse padrão é um feito moderno. Em seus retratos, o fotógrafo Ciro MacCord se amarra com cordas e fica à mercê de arames. Colocando suas formas sob a incerteza dessas amarras mundanas, apela ao contorcionismo, o corpo é dessacralizado e sua beleza se torna terrena. Com jogos de luzes arroxeadas, amareladas e vermelhas, ele se distância do cânone azul, plácido, claro.
Arrojado,
verte
ao
profano,
buliçoso,
quente, remetendo seu jogo de sombras ao Eros. Logo, a estética áurea, o jogo de luz uniforme cai. Em suas performances, MacCord explora cores quentes, associadas ao mistério, como o roxo e o magenta. Amordaçado, em posição fetal, a vulnerabilidade proposta em seus trabalhos desconstrói o esquema de virilidade que seu corpo dá ideia. Hércules cai, mas ganha seguidores.
ESCAMO TEEI-ME ANDRÉ VIEIRA
Dois olhos amarelados me devoravam pelo outro lado da mesa. Franzi. Estremeci. Amoleci. Da penumbra do salão de jantar insone, uma mão pegajosa se aproxima de meu braço pálido, desnudo pelo avançar das horas e pela chegada da salada insossa; sinto calafrios nas pernas e suor na nunca, enquanto sua pele escamosa serpenteava por meus quadris esguios e meu tronco carnudo: uma voz me chama como no primeiro dia que encontrei a Deus: “Shhhhheus olhos, shhhhsão tão bonitoshh, lindinha. Voshhhcê é a Eshhh-tella?” De princípio, estranho a lagartixa que fazia pose de jacaré, daquelas que nunca saíram do esgoto no fim da rua ou daquelas que vivem trancafiadas no zoológico da mãe delas, assistindo séries pornográficas ou jogando aquelas porcarias de I-Sports que transformam verdadeiros marmanjões, gorilas crescidos de mais de um metro e oitenta
ESSA HISTÓRIA // e três, em verdadeiros desmiolados dos câpi-
riqueza que os outros não veem. E aquele peixe-
nudes que só pensam em bilde, bãfe, combo, item
boi lagartixa cabeludo duas-peles me vem falando
e penta-kill. Mas como a música tocava — ou
sobre o racha que tira com os amigos em Campos
melhor, eu ia ficando mais e mais embriagada com
do Jordão... Me volto pro papo de faria-limers e
a fartura de cachaça —, reconheço que aquele
santa-ceciliers — mano, quem é que inventa essas
cara era o Kadu06, pseudônimo de Carlos Eduardo
porra de nomi??? — e fico remexendo o canudinho
Siqueira Homem de Mello: estudante das novas
da cachaça quente, já aguada pelo balanço morno
tendências quânticas-digitais dos brôgui das
da conversa fiada e pela máxima imemorial do
digital-esferas, dono de Pipoca, Lilica e Lulu,
macho-dinossauro pica-d’ouro — se pelo menos
seus
todo
a picareta d’ouro chegasse ao fundo da mina...
carinho e atenção que não tivera dos pais, e
—, enquanto o lagartinho ignora meus suspiros e
fanático por Jonatan Peterson e Ben Shapiro, seus
olhares mais caridosos, de fulana puta em noite
“ídolos incontentáveis para redenção da raça
falida, como se quisessem dizer: “meu filho,
masculina e resgate da masculinidade perdida
vamo’ cortar com o papo e partir pra toca do
” — e sim, amigos e amigas, eu estava bêbada,
jacaré, melar os dedo’ no pântano e trepar no
perdida e desesperada. Ô gódi.
Carandá? Mas a crocodilagem só continuava....
“filhos
inestimados”
que
recebiam
Uma caipirinha socada no glúten — não me
Da cozinha, ouço o estremecer do chapeiro
perguntem como — e no açúcar me chega aos dedos
fechando
rechonchudos, e mais e mais, eu simpatizava
preguiçosos e presunçosos recolhendo o queijo
com aquele fedelho do queixo fundo e de olhos
ralado e os esqueletos magros das finadas fatias
brilhosos; e mais e mais ele ia me enrolando
de pão: e aquele filha duma puta que só mastigava
com aquele “papinho” de aplicativos de namoro,
as palavras, sem sair daquele papo graúdo de
de desempregado do século vinte e um: “’miga
macho
dos animais ou vilã dos vegetais?
Você é mesmo
Num átimo de pouca-vergonha ou muito tesão — ou
sagitariana? Feminismo é mesmo o inverso do
muita embriaguez e muita tensão —, arrasto a
machismo?
O que é ser um ChernoBoy ou um boy
cadeira pra perto do lagartinho e pulo pro pé
lixo no seu conceito? Bela, recatada e do lar
d’ouvido do sujeito, já agarrando a cobra do
ou bela, depravada e do bar? Qual personagem do
cabra e sussurrando um encantamento pra serpente
fren-diz (Friends) você tirou na lista do Bãzz-
vexada: “é hoje que tu sai da toca, tatu, ou tá
fidi?” — Nunca esteve tão difícil trepar nesta
difícil vir pra brincar?”.
cidade, ainda mais se você escolhe um lagartão desses pra lista do abate. Puta que me pariu.
Na
a
escotilha,
seguido
dos
alfa-vem-me-dourar-a-pílula?
arrancada,
o
fusca
travou
garçons
Pois
bem.
enguiçou
pifou partiu: morreu. Sei lá. Só sei que quando
O tédio m’arrebatava. E, de soslaio, no
arrematei a conta da mesa com um cinquentão
ritmo embalado daquele nhé-nhé-nhê de milenial
trocado em notas de dez, o lagartixa ainda
chato-pra-caraio, encaro a janela escura que
‘tava por lá, na cadeira. Desmaiado, esticado e
dá com a Ibirapuera, com as pessoas simples e
estirado. Mais branco que massa forrada naquele
sonolentas que são passadas pelos carros, ruas,
restaurante italiano de serventes e assistentes
estradas, portas e portões e
já nem sabem de
prazenteiros e risonhos — sobretudo vendo o pinta
onde vêm e por onde vão; apenas reconhecem nas
lá, gelado, com o pinto pra fora. Fascinante. De
rugas que correm o rosto e no sorriso transeunte
volta ao lar; rímel borrado, batom desbotado,
que fere o semblante o caminho que a vida lhes
pés com dores desumanas; e mais uma lição de
toma e lhes entrega na sua romaria incessante
(mais uma) noite com zé-punheta: escolher os de
de fazer do latão, do cobre, e do alumínio a
sangue quente.
O TEMPLO DA CARNE
só intelectuais, como físicas. Em descrições minuciosamente esculpidas, o autor potencializa a
figura
com
do
corpo
esculturas
masculino,
gregas,
ora
emulando-o com
ora
pinturas
expressionistas. Spender dá a este corpo (Templo) que tanto deseja não só pulsão carnal, como
MATHEUS LOPES QUIRINO
também uma aura de sacralidade, desvinculando da luxúria a devoção pelos contornos e formas do homem. Comungam neste templo todos os jovens que abstraem o conceito do pecado. Na República de Weimar, jovens ingleses homossexuais passavam férias
irrigados
por
raios
solares
e
água
salgada, contemplando as paisagens, nadando, flanando, experimentando técnicas de escrita, pintura, fotografia, mas também frequentando a vida noturna das cidades; ao caso de Paul, o oposto da (em tese) ilibada Londres, aquela que baniu Ulysses, de James Joyce, e também criminalizava a homossexualidade. O ano é 1929, é verão, e Paul Schoner, um jovem e promissor poeta, parte de Oxford rumo a Hamburgo, naquele paraíso perdido que era a República de Weimar. Diferentemente da Inglaterra de Churchill, onde a repressão se fazia presente da vida privada à cultura, aquela Alemanha
pós-primeira
guerra
era
o
terreno
ideal para que vicejasse inspiração para um escritor iniciante, como também experiências cosmopolitas e libertárias. Em O Templo, Stephen Spender narra o périplo do
personagem
a
partir
das
descobertas
não
O
escritor
Sérgio
Augusto
bem
definiu
Spender, em relação ao livro Diários de Sintra, que o escritor publicou em vida “[a reunião de correspondências com seus amigos W.H Auden e Christopher Isherwood] deixou mais ou menos claro que a opção sexual de sua geração era menos um destino manifesto do que uma válvula de escape à misoginia alimentada pelo puritanismo britânico”. Em meados dos anos 1920, Oxford tinha seus dândis, bem como seus poetas para retratá-los. Vê-se isso nas obras de contemporâneos seus, como Auden e Isherwood.
RESENHANDO // Paul caiu de paixão pela Alemanha. Em sua
chante le coq gaulois!. Paul é uma paixão não
primeira passagem pelo país em 1929, quando
correspondida para Ernest, assim como outras
estava em Hamburgo, ele se hospedou na mansão
tantas neste Templo da carne. Eles continuam a
do pernóstico e sentimental Ernest Stockman. Na
excursão pelo Báltico.
mira dos olhos cerrados da mãe, Hanny, que logo
Tendo
escrito
poesia,
contos,
ensaios,
percebeu a persuasão do poeta sob seu filho, o
romances e também sido jornalista, editando
clima esquenta enquanto Ernest enaltece Paul, e
revistas icônicas como a Horizon (1939 – 1941) e
mais: apresenta-o aos amigos Joachim e Willy –
Encounter (1953 – 1966), cuja versão brasileira
que Hanny não via com bons olhos.
foi batizada de Cadernos Brasileiro, Stephen
A
em
Spender foi um escriba de mão cheia. Não só
Lenz,
ao que compete o labor, mas também o amor, ele
burguês herdeiro do comércio de café, uma das
foi amante de homens e mulheres, como o pintor
personificações do fotógrafo Herbert List, membro
Lucien Freud, a psicanalista Muriel Gardiner e
laureado da tradicional agência de fotografia
a pianista Natasha Litvin, com quem teve dois
um
convivência
vernissage
no
do
quarteto
estúdio
pelo
Joachim
neorealista
filhos.
italiano e fotógrafos como Man Ray, List, assim
Em
Magnum.
Influenciado
de
começa
cinema
seu
círculo
íntimo,
Stephen
Spender
como Joachim Lenz, tirava fotos de homens nus,
manteve boas relações com Isherwood e Auden,
era um jovem abertamente homossexual, tendo se
seus companheiros de vida, bem como também Cyril
refugiado em Paris durante ascensão do nazismo.
Connolly (que também editou a Horizon), Louis
O protagonismo de Lenz ultrapassa a ficção.
MacNeice e T.S Elliot.
Da amizade com o autor de O Templo, cuja viagem às
Inicialmente
rejeitado
por
seu
editor
margens do rio Reno inspirou a segunda passagem
Geoffrey Faber, por ser considerado pornográfico,
do romance, Rumo a Escuridão, quando Lenz se
O Templo, escrito nos anos 1930, foi publicado
apaixonou por um querubim da Baviera e adiante
pela
Paul toma seu rumo para voltar à Alemanha três
gaveta da Universidade do Texas, que comprou
anos depois. Em 1932, a semente do nazismo já
o manuscrito original de Spender, o livro foi
estava plantada no país e o otimismo de Ernest
reeditado pelo autor e saiu nos estados unidos
(que era judeu e classificava o estado nazista
em 1988.
como uma distopia) se vê catapultado.
primeira
vez
meio
século
depois.
Na
Neste bildungsroman, Spender, que se filiou
Nesta bem cuidada edição, fotografias de
ao Partido Comunista e lutou contra a Ditadura
List fazem alusão a cenas imantadas por libido.
Franco, não só critica o puritanismo inglês, como
Na República de Weimar de Spender, moços e moças
também alerta sobre a cegueira que contaminava
tomam banho de piscina e de sol, vivem seminus,
os adeptos do nazismo. Em suas descrições, ele
se tocando, flertando, observando as curvas,
busca
os contornos, as formas, desejando homens e
excertos dedicados à arte) trabalhando no texto
mulheres, e quando não os dois de uma só vez.
como um escultor. De seu repertório, o escritor
a
verossimilhança
(principalmente
nos
É o caso de Paul Schoner, que depois de
elenca uma série de referências, não só a jovens
perder a virgindade com Ernest Stockman, vaga
leitores, como aos mais experientes. Entretanto,
por uma praia deserta e topa com a jovem e bela
já no final da vida, Spender estava deprimido.
Irmi, os dois fazem amor e Paul, entorpecido
Não acreditava que sairia da nova geração de
pela libido, volta ao hotel com os seguintes
escritores da Inglaterra boa literatura. Certo
versos de O Saisons, ô châteaux, do poeta Arthur
ou errado, ele deixou um best-seller, reeditado
Rimbaud na cabeça: O vive lui!/ Chaque fois/ Que
no Brasil em ocasião de seu centenário (2019).
PRESSÁGIOS DA OBSCENA SENHORA
HILDA HILST É um equívoco analisar a obra de Hilst como idealizações amorosas e
devaneios de uma dona de casa e senhora da década de 1970. Em uma época de forte repressão nos âmbitos políticos e sociais no país, que refletiam na delimitação do papel da mulher, a autora foi capaz de antecipar a libertação que viria na década seguinte.
GIOVANA PROENÇA E BRUNO PERNAMBUCO
DESTAQUE // Do contraste entre a postura introspectiva
temática elementos do viver e da essência “Que
da jovem loura de olhar penetrante ao sorriso
amanhã Cristina vai morrer porque ama a vida”, “Eu
travesso da madura Hilda Hilst haveria um hiato na
amando todos que sofrem/ Eu... essência”.
vida da autora, algo presente na própria vivência
Nos trechos, revela-se uma das facetas mais
na Casa do Sol, que Lygia Fagundes Telles, amiga
marcantes
da
obra
poética
hilstiana:
o
amor
de longa data, descreveu como “o tempo madureza”.
como palco para desejos, decepções, ensejos e
A própria Hilda, jocosa e atalhada como sempre,
contradições.
resume a frase da amiga ao simples axioma da:
literários da época, recebendo aclamação de Cecília
“Madureza? Velhice!”, firmando, categoricamente,
Meireles, que considerou promissora a voz da jovem
o aspecto ímpar de sua obra e de sua vida como
poeta. “Não sabem que o amor é amor e a natureza
escritora, construído durante mais meio século.
é um mito”, escreveu ela.
O livro foi bem aceito nos círculos
Depois de ser autora homenageada na Festa
As heranças familiares marcaram a trajetória
Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2018,
da debutante poetisa: fruto do segundo casamento
o marco dos 90 anos de um dos mais provocantes
da
nomes da literatura nacional trouxe uma série
estilo de vida emancipado para época, e tendo como
de
recentemente
figura paterna o fazendeiro, poeta e jornalista,
realizou-se no Museu da Imagem e do Som (MIS) a
Apolônio de Almeida Prado Hilst, essencialmente
exposição Revelando Hilda Hilst e a reedição pela
ligado à literatura. Sua figura foi crucial para
Companhia das Letras de um de seus mais célebres
Hilda seguisse no caminho trilhado pelo pai, além
livros, A Obscena Senhora D.
de configurar uma das maiores ambições da então
programações,
Com
dentre
reedições
as
quais
voltando
à
praça
desde
que a autora paulista foi destaque na FLIP, o
mãe,
Bedecilda
Vaz
Cardoso,
que
levava
um
jovem escritora Hilda: ser reconhecida como seu semelhante no mundo da escrita.
reconhecimento de sua produção – que Hilst almejou
Os
pais era
de
Hilst
criança,
separaram-se
no
decorrer
quando
de
sua
ela
tão fortemente em vida – vem como alento para que
ainda
vida,
o leitor entenda as escolhas da autora em suas
a escritora descrevia a relação dos dois como
fases na vida literária, com
destaque para sua
relação intensa, marcada de briga e paixão. Em
prosa classificada como “pornografia cult”, que a
1935, Apolônio foi diagnosticado com esquizofrenia
deixaria mais conhecida.
paranoide, doença que causou surtos que deixariam
Diferentemente do numeroso time de notáveis
lembranças na jovem Hilda Hilst, retornando como
nomes da literatura que tem como lacuna a falta
temática recorrente em sua literatura a desrazão
de uma biografia publicada, o misticismo da obra
e a loucura, essencialmente em figuras paternas.
hilstiana, que mesclou-se à imagem da escritora reclusa
e
outsider,
vivendo
em
seus
Ainda que, por conselho da mãe, tenha graduado-
próprios
-se pela Faculdade de Direito da Universidade de
devaneios e impactando no reconhecimento tardio
São Paulo, não exerceu a profissão, renunciando-a
de sua atuação, principalmente pela visão externa,
pela
foi revelado no livro Eu e Não Outra---– A Vida
iniciais na lista de escritores advindos do Largo
e Obra de Hilda Hilst, resultado do trabalho das
São Francisco, entre eles Lygia Fagundes Telles,
pesquisadoras Laura Folgueira e Luisa Destri.
com quem compartilhou além da amizade, o título
vocação
literária,
cravando
suas
duplas
O nascimento em Jaú, cidade do estado de São
de voz da literatura contemporânea e a habilidade
Paulo, no efervescente 1930, ano de revoltas e
em esmiuçar os ínfimos sentidos a partir do estilo
revoluções, é um prenúncio do que representaria
concreto.
a visão sobre a obra da escritora nos âmbitos
O laço firmado na juventude e ainda nos primeiros
literários, tratando-se de uma mulher que procurou
anos de Hilda como escritora - enquanto Lygia já
respostas
gozava de certo reconhecimento como contista –
em
sinais
ocultos
e
deixou
extensa
produção enevoada de sutis vidências. Não por coincidência, sua primeira publicação carrega o título Presságios, aos 20 anos, na qual surpreende pelo alto teor reflexivo, tendo como
é registrado por inúmeras fotografias, com ambas sorridentes ao lado uma da outra, o que duraria a vida toda de Hilst. Trafegando entre a elite paulistana em um
\\ DESTAQUE estilo
de
vida
cosmopolita
internacionais,
roupas
regado
A
escritora
construiu
sua
residência
nas
proximidades de uma figueira, no terreno de sua
suntuosos, a escritora estreante gozava de certa
mãe em Campinas, vivendo envolta de um notável
independência
número de árvores e vegetações, em sua nova casa,
autonomia,
em
e
viagens jantares
e
chiques
a
meio
à
boemia
majoritariamente masculina de sua juventude. O
estilo
libertino
conjugado
à
com traços de monastério, cercada por janelas de
beleza
madeira e arcos.
estonteante levariam a uma coleção de amantes e
A decisão de Hilst abandonar a intensa vida
casos tórridos, que deixava escandalizada a alta
social na metrópole em ascensão e recolher-se na
sociedade, entre eles o poeta Vinícius de Moraes,
Casa do Sol teria vindo da leitura do escritor grego
a quem dedicou um poema do livro Balada do Festival
Níkos Kazantzákis, com a finalidade de dedicar-
com o verso “Porque fui mais amante do que amiga.”.
se exclusivamente à literatura, sem distrações
Na Europa, aos 27 anos, namorou um dos maiores
mundanas.
artistas do século passado, o ator americano Dean
Entretanto, a mudança do modo de vida de Hilda
Martin e tenta até mesmo uma investida em Marlon
colaborou para reforçar o estereótipo do escritor
Brando.
como alguém hermético e isolado, absorto em próprios
“Já não sei mais o amor/ e também não sei
pensamentos. Esta visão, sobretudo propagada pela
mais nada./Amei os homens do dia/suaves e decentes
imprensa da época, reforçou o estigma da obra de
esportistas./Amei
poetas
Hilst como “enigmática” e “confusa” e colaborou
melancólicos, tomistas,/ críticos de arte e os
com a pouca divulgação do nome da autora, após seu
nada.”
refúgio na Casa do sol.
os
homens
da
noite/
Em 1963, conhece o escultor Dante Casarini, aquele
que
seria
seu
marido
e
companheiro
na
Ainda que a poética de Hilst exalte os versos como expressão dos anseios e busca dos sentidos,
Casa do Sol por dezessete anos, compartilhando o
quando
espaço de criação artística e a vida comum. Eles
Brasil, não hesitou em responder “Uma merda!”
questionada
sobre
como
é
ser
poeta
no
teriam trocado telefones por atitude da poeta,
Além de dividir o ambiente imaginativo da
que se interessou por Dante ao vê-lo numa loja de
Casa do Sol com o marido escultor e as dezenas
calçados na rua Augusta, casando-se com ele dois
de
cachorros
anos depois, em 1965.
na
residência,
A literatura de Hilda Hilst, essencialmente lírica,
delineava-se
após
seus
três
que
teve
nos
localizada
40 no
anos Parque
que
morou
Xangrilá,
Hilst também recebeu ilustres hóspedes, amigos e
primeiros
interessados no espaço criativo e mítico, entre
livros: Presságios, Balada do Festival e Balada
eles o escritor Caio Fernando de Abreu, que chegou
de Elvira; dedicados respectivamente a sua mãe, ao
a refugiar-se no porão de Hilda nos sombrios anos
seu pai e à amiga Lygia Fagundes Telles.
da ditadura e chamava a amiga carinhosamente de
Entre os traços marcantes de sua fase inicial
Unicórnia.
destacava-se a predileção pela balada na disposição formal
dos
versos.
Os
temas
hilstianos,
por
A vida bucólica que a Casa do Sol proporcionou a
Hilst
colaborou
com
sua
intensa
produção
excelência, como o amor e a morte também começam
poética, que exaltou, mais do que nunca o tom do
a encontrar forma na lamentação de um eu-lírico
sagrado-profano, sendo a escritora uma conhecedora
acometido pela solidão e pelo anseio, deixando
profunda de elementos religiosos devido a seus
resíduos da relação entre presença/ausência.
primeiros anos de formação em colégios católicos.
“Ah ternura dos dias/ que prometiam alguma cousa./ Ah, noites que esperavam vida.” Em
1965,
com
um
número
considerável
Outros dois grandes temas de sua obra, erotismo amoroso e a morte, adquiriam diferentes caminhos
de
nos próximos anos após a abertura de Hilda para
publicações poéticas, Hilda Hilst mudou-se para
outros gêneros literários. “(...) acredito que só
o lugar que a ascenderia à posição de uma quase
em situações extremas a poesia pode eclodir. Só em
lenda, tornando-se um de seus principais símbolos
situações extremas é que interrogamos esse grande
na época e ainda bem marcado nos dias de hoje: A
obscuro que é Deus com voracidade, desespero e
Casa do Sol.
poesia”.
Foto reprodução. Portal SESC-SP
\\ DESTAQUE A autora em cena
geralmente envoltos por uma cenografia mínima,
É, por diferentes motivos, muito delicado, além de muito interessante, falar de uma Hilda Hilst dramaturga. Em parte, isso se dá pelo quanto seu legado, popularmente, cristalizou-se numa figura da “poeta, poeta”, aquela que, através da linguagem poética elevada, trabalha os extremos do sagrado e do pornográfico – predisposição que, às vezes, pode engessar leituras suas. No entanto, há também dificuldade que é, com efeito, uma das marcas mais interessantes desses textos. Numa obra de cruel liberdade, que atravessava sem pudor as definições do gênero textual, como é a de Hilda, o seu grande período de produção dramatúrgica, no final dos anos 1960, se mostra um laboratório privilegiado para essa experimento de redesenho das fronteiras estabelecidas, e sua análise desemboca no encontro com uma vanguarda artística, distante dos parâmetros do teatro burguês. Hilda foi sempre uma tradutora de opostos – marca que está presente em toda a sua obra – e talvez em nenhuma seção de sua antologia isso se apresente mais claramente que no quinteto de peças publicado entre 1967 e 1969. Essa produção é muito colorida pelos mesmos temas que habitam já
na
fase
inicial
da
poesia
da
autora.
A
exploração do sagrado, do elevado metafísico e da natureza do amor perpassam também esses textos dramáticos, mas, na tradução desses ideais para a pobreza do palco – inescapavelmente externo, limitado pelo tempo e pelo espaço – Hilda exerce uma reviravolta moderna e uma deliciosa ironia. Essas inspirações, que encontram eco na tradição da poesia lírica, e foram assumidamente pela autora alimentadas por leituras como as de John Donne e de autores do trovadorismo português, são
trazidas
para
o
teatro
sob
uma
forma
essencialmente moderna, num rompimento com a lógica clássica da ação dramática. Os personagens desse conjunto funcionam, via de regra, como figuras universais, representações de
grandes
ideias
ou
sentimentos,
e
estão
que coloca no diálogo entre eles a centralidade da ação dramática. Esse é um dos momentos em que, deliberadamente ou não, Hilda mais se aproxima de Beckett – essa é uma comparação bastante feita durante sua vida, que, ao que parece, não lhe agradava especialmente, e que foi dito por Caio Fernando Abreu, numa carta à amiga em 1969, como insuficiente. Importante é notar como essa criação é multifacetada. Há parte desse processo que trata de uma “superação” da forma teatral, como modo de um reencontro com a poesia, e como maneira possível de encontrar aquilo que, em Hilda, ainda busca tradução em sua obra inicial, e que será retomado na forma versificada com Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, primeiro livro nascido após essas experimentações. (é esse movimento que Edson Costa Duarte lê ao dizer que nesse momento da produção de Hilda, “o dramático migra para a poesia, esta para o drama, este para a prosa”). Essa busca poética é que aparenta ser o motor para a invenção linguística, e assim a transformação vanguardista e a minúcia da lírica, como é natural na obra hilstiana, caminham de mãos dadas. É interessante, também, pensar a fase final da obra de Hilda, com a publicação da tetralogia pornográfica, sob a luz dessa produção dramática. Por um lado, textos como O Caderno Rosa de Lori Lamby ou Cartas de um Sedutor, celebrados como uma mútua contaminação entre poesia e prosa, são, também, de uma dramaticidade rara dentro da obra de Hilda, se prestando à encenação de uma forma diferente, por conta da centralidade do personagem, do monólogo e da autorreflexão. Por outro, é importante olhar para a forma como o erotismo se colocava já na produção da autora nos anos 1960. O desejo está presente nessas obras
de
forma
subsumida,
sob
a
repressão
familiar, ou existente na experiência de outros extremos, como a loucura dos prisioneiros na cela de Auschwitz ou a experiência da devoção fervorosa ao sagrado (que presume a repressão
DESTAQUE // desse mesmo desejo). Marca da memorável, embora
transcendência dos temas, na qual a aproximação
curta, escrita teatral de Hilda Hilst, é nessas
de opostos como a ardência e a calmaria, o clamor
situações que ele pulsa, é através desse extremo
e a confidência, a distância e a proximidade
que se tem o encontro possível com Deus – afinal,
constroem a vastidão temática metafísica.
aquilo que como diz a própria Hilda, mais se aproxima do erótico.
idealizações amorosas e devaneios de uma dona de
A estreia de Hilda Hilst na prosa marcou a
multiplicidade
É um equívoco analisar a obra de Hilst como
três
forte repressão nos âmbitos políticos e sociais
modalidades após sua produção dramatúrgica e
no país, que refletiam na delimitação do papel
corrobora com a dificuldade criada para definição
da mulher, a autora foi capaz de antecipar a
de gêneros puros na obra hilstiana, uma vez
libertação que viria na década seguinte, expondo
que
os desejos íntimos de um eu-lírico feminino, de
Hilst
da
compõe
escritora
para
engenhosamente
as
casa e senhora da década de 1970. Em uma época de
uma
prosa
essencialmente poética em Fluxo-Floema (1970). O livro é dividido em cinco contos e usa de
modo que o sexo também participa ativamente de sua poética, em tom ainda transcendental.
elementos da literatura contemporânea precedente e
Hilst
como
o
sendo
no conjunto da obra, elevando o ser amado, o
Samuel Beckett apontado como um dos principais
sentimento, a devoção, os atos de amor e a morte
influenciadores.
Fluxo,
a uma dimensão quase divina, do sagrado/profano.
percebe-se a presença do escritor isolado como
As veias eróticas da literatura hilstiana
personagem recorrente, retrato da visão sobre a
se revelariam em A Obscena Senhora D. (1982),
própria Hilda.
aproximando-se da pornografia pela qual viria
Fluxo-Floema
fluxo No
de
consciência,
O místico permeia toda a poesia expressa
primeiro
reforça
conto,
ainda
o
pensamento
a ser conhecida. O uso do fluxo de consciência
geral de que Hilda Hilst era uma escritora
constrói a narrativa metafísica no desvendamento
difícil de ser lida, deixando-a novamente à
da relação entre Hillé, narradora em conflito
margem do reconhecimento almejado pela agora
interno e Ehud, com o sexo e os desejos sendo
não apenas poeta.
expostos livremente.
Datado de 1974, Júbilo, memória, noviciado
Mesmo com a aclamação da crítica, coroada
da paixão, o primeiro livro de Hilst após sua
pelo Prêmio Jabuti em 1994 por Rútilo Nada,
expansão para a prosa, traz marcas das influências
o
do gênero para a maturidade poética adquirida.
atravessou toda sua trajetória na escrita ainda
Dividido em seções, poeticamente nomeadas e
que
espelham
as
palavras
reunidas
anseio
de
Hilda
Hilst
por
ser
lida
que
não havia sido saciado, visto que os editores
nessas
ainda surpreendiam-se pelo fato de que as obras
que formam uma colcha de retalhos do livro,
da escritora não vendiam quase nada, a despeito
costurando temas como o convite e súplica à
de seu sucesso nos fóruns e crítica literários.
pessoa amada; os anseios da paixão; a espera
Levando
em
conta
a
ideia
geral
que
pelo encontro e a saudade; a celebração da vida
veiculava de uma escritora difícil de ser lida
como combate a inevitabilidade da morte; e seus
e essencialmente culta, Hilda despede-se do que
temores e homenagens a grandes figuras do tempo
chamava “literatura séria”, afirmando que o que
da autora.
vendia era a pornografia.
Na fase mais madura da obra hilstiana é
A década de 90 marca o início da Hilda
claro que um dos grandes trunfos de sua extensa
Pornô Chic, cujo livro de estreia O Caderno
produção é a dosagem entre palavras diretas
Rosa de Lori Lambi, relato obsceno dos diários
e a subjetividade, que aliadas levam a uma
de
uma
menina
de
oito
anos
em
situação
de
Foto reprodução. Portal SESC-SP
\\ DESTAQUE
prostituição. Colocando em xeque valores morais,
de fases anteriores para o físico obsceno nesse
o livro escandaliza os meios literários por
breve volume poético.
sua vulgaridade explícita e até mesmo editores recusaram-se a publicá-lo. A
chamada
tetralogia
A morte, tema que trespassou a obra de Hilda Hilst, marcaria também sua vida. Na Casa do Sol,
Hilda
usando de aparelhos sonoros, estudou o Fenômeno
Hilst seria composta ainda pelos volumes Contos
da Voz Eletrônica. Na busca por ouvir a voz dos
d’escárnio/
um
mortos, chegou a afirmar uma vez que captou um
Sedutor e Bufólicas, sendo esse último um volume
sinal que se assimilava a seu nome. As tentativas
de poesias.
e buscas de Hilst foram retratadas no filme Hilda
Textos
obscena
grotescos,
de
Cartas
de
Bufólicas destoa dos outros livros de poesia da Hilst ao apresentar um verso mais livre e
Hilst pede contato, de 2018, que estreou na FLIP — na qual era a autora homenageada.
o vocabulário explícito e próprio da temática sexual, transportando-se da metafísica erótica
O encontro de Hilda com a morte aconteceria em
2004,
aos
73
anos.
Uma
das
vozes
mais
Foto reprodução. Portal SESC-SP
DESTAQUE //
transgressoras
da
não
pelo trabalho do Instituto Hilda Hilst, cuja
gozaria em vida do reconhecimento que tanto
sede localiza-se na Casa do Sol, atualmente
ansiava, sentindo que suas obras não eram lidas.
museu memorial; os livros da autora têm sido
Entretanto,
literatura
nos
últimos
brasileira
anos
vê-se
uma
popularização da produção hilstiana, elevando-a para o cânone da literatura contemporânea e até
reeditados e programações paralelas culturais vêm dado visibilidade à produção de Hilst. A
trajetória
de
Hilst,
como
mulher
e
mesmo apontada como escritora cult, reconhecendo-
escritora, pode ser definida como uma procura –
se para além do Pornô Chic, sua extensa obra
por público, pelo amor, pelo sagrado, espaços
poética constituída ao longo de 50 anos.
físicos e metafísicos, seu lugar literário, pela
Em
2020,
continuando
o
acaloramento
do
morte, e acima de tudo, por contato. Nos versos
debate entorno da obra de Hilda, suscitado pela
poéticos de Hilda Hilst “Se te pareço noturna e
FLIP 2018 – na qual foi autora homenageada,
imperfeita/ Olha-me de novo.”
além de ser tema de grande número de mesas – e
\\ RESENHANDO
ILHADO, INFANTE E EXASPERADO Clássico do romance de formação italiano, “A Ilha de Arturo – memórias de um garoto” forja infância solitária de menino em um território sem mulheres Referência de Elena Ferrante, Elsa Morante tem obra-prima republicada no Brasil e nos E.U.A depois de décadas de esquecimento
MATHEUS LOPES QUIRINO
Incompreendido em sua geração, o escritor
italiana Elsa Morante, o menino Arturo viaja
John Doone afirmou que “nenhum homem é uma ilha”,
ao redor de si, explorando as praias, grutas,
excerto tirado de um de seus célebres poemas,
bares e cafés do porto de Prócida.
entretanto, não é assim que o jovem Arturo
Uma expedição em busca de si mesmo, Arturo
Gerace se sente. Talvez Arturo, do alto de seus
vive em um castelo arruinado, uma construção que
quatorze anos, partilhe com o poeta somente a
é guardada pelas lendas do espírito de Romeo,
mesma incompreensão, motivo que o faz narrar
o Amalfitano, antigo dono da propriedade, um
com grandeza pueril as histórias passadas na
cidadão notável na comuna, tanto por suas festas,
sua ilha de Prócida, no sul da Itália.
quanto
por
seu
aspecto
hostil.
Entretanto,
Arturo passa a maior parte do dia lendo
essa hostilidade era direcionada a mulheres.
livros de histórias do mundo antigo, bem como
Misógino e solitário, já na velhice avançada
contos de cavalaria e outras aventuras. Sonha
ele encontra em Wilhelm um porto-seguro, e entre
em se tornar um explorador, muito inspirado
os dois floresce uma relação de cumplicidade e
no pai Wilhelm, que vive ausente descobrindo
interdependência.
os prazeres do mundo. É com essa idealização
Com a morte do Amalfitano, a devoção de
da errância que Arturo galopa da infância à
Wilhelm lhe rende a Casa del Guaglioni. Lá, o
juventude,
em
retrato do Amalfitano sustentava uma maldição de
de
quinhentos anos, que naquele castelo nenhuma
Arturo, romance vencedor do Strega da escritora
mulher poderia habitar. Tendo ciência disso,
desbravar
venerando outros
Wilhelm
continentes.
e Em
sonhando A
Ilha
RESENHANDO // o jovem Arturo remói o vaticínio de Romeo e o
Elsa
Morante
faz
de
Arturo
seu
pequeno
coração aperta quando lhe surgem pensamentos de
édipo, colocando-o na fronteira do que sente
sua mãe, morta durante o parto. Dela, o menino
pela madrasta, cujas impressões ao longo do livro
guarda um amor profundo e delicado, talvez a
vão vicejando. Afinal, embora sejam personagens
única figura a cativar a criança e, ao mesmo
maduras, ainda são teens, o menino está com
tempo, acalentar seu solitário coração.
quatorze e Nunziata com dezesseis. Arturo, ao
Nos primeiros anos da infância, Arturo foi
ver a mão aos beijos com o filho se contorce de
criado por seu babá Silvestro, um homem rústico
ciúme, une os sentimentos de falta e saudade
e nada maternal. Ele guiou o menino em sua
de sua amada mãe e, ao mesmo tempo, o desejo
fase inicial da infância e, com exceção das
de ser beijado. A ilha se torna uma metáfora
passagens aleatórias do pai pela Ilha, Arturo
de si mesmo, Arturo se vê encastelado por suas
cresceu sozinho, criou-se como um selvagem se
próprias angústias.
inspirando em Wilhelm (as maneiras de falar,
“Não
sabia
que
era
possível
beijar-se
se portar, pensar), sonhando em se tornar uma
tanto neste mundo: e pensar que eu nunca tinha
grande figura, como os reis do Oriente, como lia
dado nem recebido beijos! Olhava aqueles dois
nos livros deixados por um estudante que, há
que se beijavam como se olharia, de um barco
anos, hospedou-se na Casa del Guaglione.
solitário
Na companhia da cadela Immacolatella, Arturo
escreve
no
mar,
Morante.
uma
E,
terra
de
inalcançável”,
repente,
esse
beijo
não se sente tão só, entretanto, isolado do resto
move Arturo rumo ao seu primeiro amor, enquanto
da ilha, ele não vê com bons olhos os procidanos,
Wilhelm, cujo retrato do Amalfitano lhe enche de
execra-os
sozinho
devaneios, engalfinha-se com Stella, prisioneiro
por anos. Ao longo da história, o garoto vai
de Prócida, primeira personagem realmente capaz
aprendendo com a ausência, vai amadurecendo e o
de possuir a dedicação do loiro.
como
o
pai,
mantendo-se
tempo passa nessa lânguida solidão, entrecortada
O
escritor um
brio
Calvino especial,
conferiu
à
por pequenas aventuras, das quais, Elsa Morante
Elsa
carrega singelos momentos de pai e filho à beira-
a narrativa de Morante como despertadora de
-mar, como quando o relógio de Wilhelm sai do
simpatia e admiração pelo gênero humano. A Ilha
pulso e Arturo, com espírito errante, põe-se a
de Arturo, já em 1957, foi bem recebido pela
nadar entre as pedras da praia, liquidando todo
crítica italiana, torando-se um clássico romance
medo em nome de grandes sonhos e da presença de
de formação, ainda hoje lembrado no país.
seu pai.
Morante
Ítalo
classificando
Morante, que começou a carreira na literatura
Chamado de mourinho pelo loiro Wilhelm, o
ainda menina, publicando histórias em suplementos
menino deseja partir com o pai de Prócida rumo
literários direcionados ao público infantil, nos
ao desconhecido que tanto o atrai. Logo ele,
grandes jornais, também desenhava e chegou até
impetuoso infante, acaba se deparando com outro
atuar. Casou-se com o escritor Alberto Moravia,
desconhecido, tão íntimo e próximo
com quem viveu tórrida paixão e grandes crises,
que será
sua madrasta, a católica Nunziata, que enche
sempre
seu quarto de imagens de as madonas que devota,
Itália, naqueles anos como Pasolini, Visconti,
prostrando-se ao simulacro da família cuja mãe
Siciliano e Natalia Ginzburg. Morante, autora
Violante tanto sonhou para a garota. Aos poucos,
de quatorze livros, além do Strega, recebeu o
essa figura feminina que adentra o templo do
prêmio Médicis estrangeiro, um ano antes de
Amalfitano parece vencer a maldição e, não muito
morrer.
depois, Arturo ganha um irmãozinho.
ladeada
por
personagens
especiais
da
LAYLA LOLI POR LIA PETRELLI | FOTOS VICTÓRIA NOVAIS
ARTISTAS FALAM //
Ler Layla Loli é como denso mergulho nas
que clamam por voz.
entranhas de si. A História do Gozo e Outros
Poeta, atriz, artista plástica e dramaturga,
Canibalismos fala da sexualidade socialmente
Layla sabe bem como envolver aqueles que não
renegada,
estão
entendem o gozo só pela imagem que emana. O
Layla
carnal abre espaço para os outros lugares de
desatentamente, isso porque, essencialmente, o
atuação, mas sem antes participar explicitamente
livro é a autêntica veracidade do que o compõe
do desejo, movendo as imaginações através de
enquanto corpo e, sendo assim, não poderíamos
tudo aquilo que ultrapassa palavras e encontra
deixar de participar desta composição, que se
liberdade de gozar com figuras bem descritivas
estende para além da autora, se materializando
–
em diversas linguagens, como seus versos e as
artista que, hora ou outra, nos surpreendem
fotografias que ilustra esse volume.. É preciso
dentro do livro.
fadados
a
a
qual
nossos
sustentar.
Não
corpos
todos
podemos
ler
contrastadas
por
fotografias
analógicas
da
entrar na leitura tal qual entramos em uma
Layla saúda a revolução do sujeito que tenta
sala cheia de espinhos pontiagudos, com devida
se adaptar ao mundo contemporâneo se esquivando
atenção para não se machucar, tendo plena noção
indevidamente de sua natureza. Como manda nas
de que, com a dor, foi o próprio pé ao encontro
entrelinhas, as excitações borbulham o corpo,
dos espinhos, nunca o contrário.
se convertendo justamente no gozo do encontro
O
livro
parece
dar
voz
à
consciência
de
tamanha
sensibilidade
intelectual.
Seu
contemporânea, que nos arrasta para pensar sobre
erotismo mostra a que veio e assim podemos, com
comportamentos sexuais planejados, esperados e
bastante cuidado, desfrutar de suas memórias
ensinados. Como em labirintos de linguagem que
escancaradas,
antes impediam a compreensão de fluir sem destino,
encarar o âmago da feminilidade contemporânea.
a dança-escrita-corpo-estrutural pede para ser
Temos muito a aprender com outros tipos de
balançada. Afiadas, as palavras parecem ter sido
canibalismos, os tantos habitados por palavras,
escolhidas a dedo para afastar os desinteressados
modos, estruturas.
se
estivermos
dispostos
a
e atiçar os famintos. À primeira vista, com
Foi no domingo chuvoso pós-carnaval que
olhar radical, ouvimos as vozes das mulheres
me encontrei virtualmente com Layla Loli para
todas lutando para sobreviver com pensamentos
entender melhor a abordagem artística da História
politicamente renegados. Comportamentos sociais
do Gozo e Outros Canibalismos.
são claros e Layla grita por isso a céu aberto,
FRENTE & VERSOS: Seu livro é multigênero,
decisivamente provocativa, atingindo inúmeros
você aborda várias questões ao mesmo tempo: o
lugares de uma só vez, com o que parecem ser
feminismo, o aborto, a estrutura social, até a
os dedos individuais de todas as mãos femininas
psicanálise.
\\ ARTISTAS FALAM Depois de o ler, tive vários insights, comecei a ver as coisas de uma forma bem diferente.
completamente distante, mas vou considerar essa visão sócio-política.
a
F & V: Todas essas abordagens têm um ponto
Pensamentos
em comum que tem muito a ver com o corpo-privado
muito fortes sobre a liberdade sexual, não só da
que se torna corpo-público, já que o próprio
forma convencional que, socialmente, acordamos
corpo do poema diz muito sobre ele. Como foi
em ter.
externalizar a vontade de revelar sua intimidade,
A
primeira
expressão
sensação
política
foi,
dentro
sem
dele.
dúvida,
A segunda sensação, numa segunda leitura,
mesmo que de certa forma velada?
foi a de estar preparada para digerir essas
Loli: Sim. Acredito que uma das principais
informações e olhar mais profundamente paras
características do livro seja esse trânsito entre
imagens que você compõe nos poemas. Quase como
o público e o privado, tendo o corpo como centro,
houvesse um tempo de gestação poética dessas
núcleo, dessa discussão. Mais precisamente o
ideias.
corpo-fêmea, que é como eu me refiro aos corpos
Qual foi sua experiência de ter tornado presente, justamente aquilo que está ausente já que você fala sobre o aborto?
femininos cis gêneros no livro. Quando se escolhe tratar o abortamento, por exemplo, é muito complicado escolher como, fazer isso com delicadeza, uma vez que é um
Layla Loli: Sobre a construção das presenças,
tema essencialmente de saúde pública, então é
achei muito interessante essa forma de olhar,
sim um tema público. Mas muitas vezes acabamos
porque nunca havia considerado. Acredito que
esquecendo que antes de ser público, ele é um
isso se deva muito por conta do meu contato com
tema privado, porque carrega infinitas camadas
o teatro.
de intimidade, de subjetividades.
Eu venho do teatro, das artes cênicas e a
Tiveram momentos no processo de construção
minha matéria-prima, hoje, é também a dramaturgia.
do livro que eu tive que eleger, tomar algumas
Então acredito que no processo do livro eu acabei
decisões de como eu faria para que o público e o
adotando
privado não se anulassem, ou não sufocassem um
muitas
ferramentas,
muitos
métodos
da dramaturgia, mesmo que inconsciente para a construção de alguns discursos, ou de todos os discursos [risos].
ao outro – pensando no livro enquanto produto. Enquanto eu tratava do abortamento no lugar público, enquanto um discurso mais político,
Para além disso, o livro tem um lugar da
mais de ativismo, mais debochado, mais revoltado,
intimidade, mesmo que tocando pautas políticas.
tudo estava mais sob controle, por assim dizer.
Houve momentos em que eu também precisei
Até o momento em que eu resolvi dar um passo a
decodificar, assimilar, construir ou reconstruir
mais e me colocar como o agente privado dessa
algumas imagens pra mim mesma. Então, antes de
temática, como uma personagem dessa autoficção
saber exatamente o que eu queria falar com o
que eu estava construindo.
poema, eu construía a imagem para mim mesma. Antes de ser para o outro, que vai ler em um segundo momento, eu sinto que foi uma construção de ideias meio que ao vivo.
Aí as coisas começaram a ficar muito mais delicadas, dolorosas, complexas. Houve até situações em que eu não conseguia finalizar um poema, porque toda vez que eu o
Sinto que podem ser coisas relativas. Coisas
pegava, eu começava a chorar. Escrevia uma linha,
que para mim são muito nítidas (tem imagens que
chorava e chorava, até o caso de eu ter que
para mim estão muito presentes nos poemas), e
ligar para alguns amigos, que também escrevem,
que para outras pessoas são tidas como algo
e falar “Olha, o quê que eu faço nessa situação?
ARTISTAS FALAM // Isso é um sinal de que “porra, esquece essa
não tenha efeito rebote.
poesia mesmo”, ou eu tô chorando e tô sofrendo
Não acredito que valha o choque pelo choque,
tanto - isso tá sendo tão dolorido, justamente
uma iconoclastia desenfreada, só pra chocar o
porque eu preciso dizer algo com aquilo, nem
outro, só para incomodar. São armas também,
que seja só pra mim mesma, mesmo que não vá pro
claro, hoje são ferramentas de resistência, de
livro, depois”.
ter voz, de dar voz, mas não acho que caiba
É muito complicado você não só expor essa
sair mostrando imagens e reproduzir discursos
intimidade, como também vestir essa intimidade
chocantes, que chocam os nossos “opositores”
e assumir: você está publicando o seu trabalho
(entre várias aspas), se não temos uma mensagem
para o mundo! Uma vez que está no mundo, pode
muito bem delineada que queremos passar com
parar na mão de qualquer pessoa.
aquela ação.
O
mais
complexo,
não
só
assumir
essa
No
caso
do
livro,
quando
eu
trato
do
intimidade, mas como assumir que é uma intimidade
abortamento, da sexualidade feminina, que vai
sua, antes de qualquer coisa, se colocar como
pra além do erótico, acho que em alguns momentos
uma protagonista daquele ambiente privado que
resvala muito no pornô, mesmo, numa coisa mais
você está mexendo, colocando dedos em feridas, e
crua, que é obvio, algo hoje ainda rejeitado
ainda equilibrar isso, com o público, né? Afinal
socialmente, ou até mesmo quando eu falo do
de contas, é uma obra. É um objeto de cultura.
amor romântico, mas que ainda assim, não é o
Acho que essa dinâmica requer um equilíbrio
amor convencional, o amor normativo. Tudo são
entre os dois lugares, porque acredito que se
decisões. Primeiro é se considerar o que você
fica muito só no privado, também não chega no
quer expor, por que você quer expor aquilo e
outro. Então, é saber justamente costurar esses
como você pode expor de forma produtiva, de
caminhos: de tocar na intimidade do outro.
forma que vai fazer pelo menos sentido, que vai,
Você tem que, primeiro, tornar o seu privado
no mínimo, ser leal com a mensagem que você quer
público, para que ele possa novamente se tornar
passar, mesmo que a mensagem não chegue de fato.
privado para o outro. É como se fossem três
Ser leal com sua intenção em expor algumas
tempos.
coisas que sabemos, pelo menos num primeiro
F & V: As formas que seu livro adquire
momento, que vão ser rejeitadas, vão ser vistas
falam sobre o momento político atual, que tem
com repulsa. Para alguns assuntos, nem sempre
se
o choque, o desvelar dos medos da sociedade
inclinado
para
o
conservadorismo.
Nesse
sentido, acredito que A História do Gozo e Outros
pode
Canibalismos tenha uma voz de resistência bem
estamos vivendo, acredito que sim, é uma das
forte,
importantíssimas.
ferramentas, das nossas armas mais fortes: tanto
Você pensa que a sociedade precisa daquilo que
de defesa, de preservação, quanto de contra-
ela rejeita?
-ataque. É necessário saber como fazer, até
trazendo
discussões
ser
a
melhor
opção.
Nos
tempos
que
Loli: Sim, eu acredito que sim, e é algo
pela preservação de si mesmo e do discurso, para
que eu pretendo levar não só para minha poesia,
que nosso discurso também não seja corrompido
mas muito também para o teatro, o audiovisual,
em prol de uma estética.
porque acho extremamente necessário que sejam reveladas todas as possiblidades para que a gente
F & V: Bom, agora você tocou em questões muito importantes:
possa escolher a que melhor nos cabe. Junto a
Quando lemos seu livro, é muito claro a sua
isso, é um processo extremamente delicado, que
abordagem multifacetária dos assuntos abordados
tem que ser muito bem elaborado, pra que a gente
ali, tanto em termos poéticos, quanto técnicos.
\\ ARTISTAS FALAM Imagino que isso tenha a ver com suas diversas funções no meio cultural, já que você é poeta, artista
plástica,
dramaturga,
atriz.
Você
pensa que o termo “artista multimídia” explora exatamente essas questões que você traz, ou a singularidade de cada parte desses nomes tem uma potência unificada? Loli:
vinte-vinte. F & V: O que representa para você a finalização do livro? Ou melhor, ele está finalizado? Loli: Não vou saber te responder isso com exatidão. Eu sei que não pretendo trabalhar pontualmente essa mesma temática, pelo menos esteticamente
Acredito um pouco nos dois. Gosto
não da mesma forma, mas acredito que o corpo
muito do termo artista multimídia, por conta
sempre vai estar presente, sempre vai ser o
dessa pluralidade de tecnologias e linguagens,
protagonista na minha produção, e o feminino
que temos hoje e acho que é um termo que dá
também. Mas não acredito numa continuação desse
conta de forma muito pontual dessa pluralidade
livro, não enquanto livro materializado, talvez
e movimentos loucos que fazem os artistas hoje
ele se torne uma performance.
em dia. Somos quase que obrigados a dar conta
Existe uma peça que estou escrevendo, que
várias áreas, de várias linguagens, de várias
o eixo temático é o mesmo do livro – embora
ferramentas, então acho importantíssimo. Gosto
não venha diretamente do livro –, e alguns
muito do conceito, e utilizo vez ou outra [risos],
discursos são muito semelhantes, porque foram
quase que sem querer. É um lugar que também
escritos quase que ao mesmo tempo, apesar da
requer um certo cuidado porque é um termo que
peça continuar sendo escrita. Mas o segundo
vem sendo empregado, também, de forma cada vez
livro que eu também já comecei a movimentar, a
mais genérica, menos cuidadosa, acho que é um
escrever uma coisa ou outra, a eleger um poema
ponto a se considerar. Ao mesmo tempo, eu também
ou outro, também aborda muito o feminino, também
tenho muito apreço por essa singularidade dessas
o lugar do afeto, da intimidade, mas ele não é
outras categorias, dessas outras áreas. No meu
explicita, assumidamente uma continuação desse
caso, não acho que são dissociáveis as minhas
livro.
áreas de atuação. Eu não acreditaria na minha
Principalmente porque A História do Gozo
dramaturgia, se não fosse minha poesia; como eu
pra mim foi quase uma missão de vida, sendo bem
não acreditaria na minha atuação, se não fosse
dramática [risos] e bem clichê. Foi algo que eu
minha dramaturgia, e por aí vai. Mas é porque eu
tinha que finalizar concretamente, sabe?
mesma fui trilhando um caminho consciente, fui
Foi uma promessa que eu fiz pra mim mesma, em
migrando de uma área pra outra, de forma muito
que eu trabalharia comigo mesma os assuntos que
planejada, com o que eu queria que se tornasse
estão ali tratados, pra que assim eu conseguisse
a minha produção, com o tipo de artista que eu
encerrar um processo de luto que eu estava
queria ser.
vivendo, e acho que dei conta disso quando o
F & V: Ainda bem que existe hoje em dia essa
livro veio ao mundo e mais do que quando ele veio
necessidade contemporânea de alcançar diversos
ao mundo: quando ele passou a ser lido, passou a
lugares, misturando, mesclando, parece ser o
gerar movimento, quando passou a existir troca.
movimento mais gentil que a democratização pode
Para mim o livro foi encerrado aí.
ter
no
âmbito
cultural:
misturar
percepções
sobre um mesmo tema. Loli: Total, acho essa democratização de ferramentas, de linguagens essencial dentro da arte, da cultura, principalmente no nosso Brasil
Em questão temática, em questão estética, talvez ele ainda tenha alguns apêndices, não sei se necessariamente como livro, ou enfim, como produções em outras linguagens. F & V: Uma vez você comentou comigo que
ARTISTAS FALAM // prefere que outras pessoas leiam seus poemas,
produção, de descentralizar, de tirar um pouco
você saberia verbalizar porquê isso acontece?
do ego, e saber desses movimentos mesmo, redes
Loli: Sim, eu reflito bastante sobre isso.
de
trocas,
por
mais
efêmeras
que
sejam.
É
Acho que tem muito a ver com a construção estética
essencial, quase basilar para qualquer tipo de
dos meus poemas.
produção artística.
Percebo que quando as pessoas pegam para
F & V: Durante a trajetória de construção
ler poemas meus, que são quebrados, elas têm
do livro, você pensava sobre o desdobramento que
muito mais dificuldade em encontrar ali um ritmo
ele teria, em termos de publicação, estética, ou
que ela julga adequado. Tem gente que até vem
isso veio em conjunto? (diagramação, escrita,
me perguntar “Ah, mas é assim que lê? Tá certo
revisão)
isso aqui?” – em questão de ritmo mesmo, não em
Loli: Então eu sempre brinco que A História
questão de pronunciar as palavras –, e eu sempre
do Gozo é um livro que nunca quis ser um livro.
fico “Cara, não sei, para mim o certo é o que
Quando eu tomei a decisão de transformar um
está certo para minha loucura, e na sua loucura
conjunto de poemas que eu já tinha e agrupá-
vai existir uma forma correta, também.
los, como um pontapé inicial, para seguir o eu
processo de escrita e poder fechar mesmo uma obra
percebo que se abrem pra mim diversos novos
completa, eu já tinha alguns desejos estéticos,
universos, porque vira algo quase ritual. Eu
eu já sabia mais ou menos a cara que eu queria
construo os poemas esteticamente levando muito
que tivesse; mas de forma geral eu sempre digo
em consideração o ritmo, quase que como conduzir
que é um livro muito processual.
Acho
interessantíssimo
isso,
porque
uma cena, o ritmo de uma cena: “Aqui eu quero que
Tive a sorte de encontrar o Tiago e a
tenha uma atenção, já aqui eu quero que tenha
Débora, que foram meus editores, da Mocho – eles
uma pausa dramática, ali eu quero um silêncio,
foram extremamente flexíveis e abraçaram todas
lá
as minhas loucuras, frearam outras a tempo.
eu quero um grito, aqui eu quero um susto.” E
é
muito
engraçado
ver
como
Todas
as
as
decisões
subjetividades, de algo concreto, de algo gráfico
outra, muito horizontal, digo, as necessidades
ali frente. E muito também dos temas, acho
do livro eram sempre muito horizontais entre
muito bonito alguns homens que eu amo, alguns
si. E achei isso muito legal, muito bonito, amo
amigos lendo poemas meus que tocam em lugares
o resultado, não só em questão de conteúdo, mas
tão femininos, e compreender algumas coisas, ou
também a estética do livro. contrapartida,
seria
a
detrimento
desdobramentos
que para mim foi muito doloroso de escrever e
no
de conceber.
independente é necessário, claro, que a gente
porque
ficaram
do
que
Primeiro
sempre
da
quando mulheres se sentem contempladas por algo
abstrato.
publicação
os
em
muito
conjuntamente,
Em
muito
tomadas
pessoas interpretam essas entrelinhas, essas
não compreender e me dispor a trocar ideia. Ou
todas
foram
como
muito
artista
Acho isso muito mágico, é o cerne do fazer
tenha uma autoestima, uma certeza, uma segurança
artístico é isso: saber que chegou no outro
(inclusive, acho que a autoestima do artista,
de alguma forma, mesmo que de uma forma cheia
da artista é algo que deveria ser muito mais
de
esse
discutido, receber muito mais atenção), então
movimento, essa troca, para mim é o que faz
procurei muito me apegar a isso: “Vai ser legal,
valer esse meu desejo, esse meu apreço de ver os
vai dar tudo certo, estou confiando no que faço”.
dúvidas,
meio
abstrata,
mas
sentir
Mas também teve um lugar de incerteza muito
meus poemas na boca das outras pessoas. É
uma
forma
de
desmistificar
essa
minha
forte, até pelos assuntos tratados: como é que
\\ ARTISTAS FALAM eu poderia equilibrar assuntos densos, pesados,
e eu estou achando ótimo, porque é um livro
alguns que poderiam até ser lidos como apologia a
lindíssimo. Com certeza está nos meus top 5, de
crimes, e equilibrar isso com toda uma estética,
cabeceira.
com uma linguagem artística? Na minha cabeça
Diane di Prima, Memórias de uma Beatnik,
era muito difícil ter isso de forma concreta:
também foi um livro que me arrebatou, que eu já
o que poderia acontecer com essa publicação? E
li trocentas mil vezes, e todas as vezes parece
eu ainda estou vendo se desdobrar, ainda estou
que é a primeira vez que eu estou lendo...
vendo os movimentos acontecerem e estou muito
Anne Sexton, Ana Cristina César, Virginia Wolf
feliz até agora com o que foi essa publicação.
– inteligentíssima, maravilhosa, que mulher é
F & V: Quais as suas maiores inquietações literárias, os temas, escritores...?
aquela! – Hilda Hilst, que acho que nem precisa falar, é nossa desbravadora, quem abriu o matagal
Loli: “Inquietações literárias”! Adorei o
para gente – fiquei até arrepiada aqui! [risos].
termo e nossa, acho que são diversas, eu poderia
Diversas mulheres! Que não vou ser capaz de
passar horas conversando sobre isso.
lembrar agora, muitas contemporâneas, a Natasha
Em questão das minhas referências, acredito
Felix,
tenho Letícia
lido
muito.
Bassit.
Julia
Vita,
Infelizmente,
Aline
que desde eu passei a me levar a sério como
Bei,
conheço
escritora, eu passei quase que exclusivamente
mais as mulheres do sudeste, porque acho que
lendo a produção de mulheres. O que me abriu a
minha produção acaba ficando muito focada aqui e
janela desse mundo da poesia foi Roberto Piva,
consequentemente o que eu consumo, também para
mas quando era bem mais novinha, aí foi aquele
alimentar minha produção. (Não que eu esteja
deslumbre pela poesia marginal e a rebeldia e
justificando, estou falando como é um problema
os anjos, e as praças, e a cidade de São Paulo!
que eu quero resolver mesmo [risos]).
Até o momento que eu percebi que mulheres também
É sempre esse eixo dessas mulheres, malucas
faziam o que aquele boy fazia, e até melhor! Né,
e criativas, e frenéticas e geniais, tanto como
algumas até melhor, então eu passei a consumir
referências na vida, como coisas que eu consumo,
essas produções.
enquanto personalidades que me intrigam para
Tenho dedicado uma pesquisa para a Poesia Confessional,
que
dialoga
muito
com
questões
políticas
que
existem
até
hoje.
E
essa
aí vem as minhas inquietações desde: o que é
categoria: esse grupo de mulheres escritoras
o mercado editorial hoje; o que é o mercado
que se suicidaram e que, por coincidência, ou
editorial no Brasil; o que é o mercado editorial
não, as produções são as que eu mais gosto, mais
para no Brasil para uma mulher; para uma mulher
amo, mais consumo.
branca, para uma mulher negra, para uma mulher
Claro, eu não acho que seja totalmente ao
independente, para uma mulher que tem contrato
acaso [risos], mas julgo em questão do discurso
com uma grande editora, mas enfim, eu até perdi
dessas mulheres né, algumas vivendo em locais e
meio o foco da pergunta, aqui, porque eu comecei
épocas, e vidas completamente diferentes, mas
a viajar em todas essas mulheres, e acho que isso
ainda assim, a vida delas teve um caminho muito
acaba resumindo minha resposta: o feminino é a
parecido. E a produção, às vezes, também, em
minha grande inquietação literária. O feminino
questão de temáticas abordadas, enfim.
e seus desdobramentos, o feminino e todas as
A Silvia Plath, por exemplo, é uma referência
coisas das quais o feminino é privado, e as
basilar para mim, tanto pela trajetória de vida
coisas das quais o feminino é lançado – inúmeros
dela, tanto pela produção dela. A Redoma de
adjetivos que dá para a gente pirar em cima: dos
Vidro, que agora está super se popularizando
fazeres do feminino.--
ARTISTAS FALAM //
\\ CRÔNICA
A TODO VAPOR Quando dado pela primeira vez, o pum é um fator democrático para qualquer relação MATHEUS LOPES QUIRINO
Era de manhã no sábado e eles foram buscar no
lata por lata de uma promoção, cujo lote dispunha
vizinho pregos para martelar um estrado. Ali era
de compridas latas importadas de tomate pelado,
batido, pela primeiríssima vez, um martelo – no
algumas amassadas, quase todas, naquela altura do
sentido prático, pois no metafórico já ocorrera.
campeonato. Conquistados pelo preço, passaram a
“Me dá”, disse ele, com os olhos fixos no negócio,
mão nas duas últimas latas boas e voltaram para
enquanto bocejava. “Descarrega sua raiva”, falava,
casa, já tarde, na esperança de cozinhar.
agora, ele ao outro. Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Uma hora
As piras azuis da boca da frente foram se
depois, o estrado, embora meio torto, já estava
intimidando até cessarem. O gás acabou onze e
devidamente firme. Juntos, deram as mãos, e, com
meia da noite e começou a correria atrás de um
um ou outro dedo vermelho, saíram para almoçar no
bujão. “Alô, você entrega na Consolação?”, “Alô,
Balança, Mas Não Cai.
você entrega na Consolação?”. Naquela hora, com
Houve também o dia em que, mais apertados que
todas as negativas possíveis, o consolo foi tido
tubo Colgate de nécessaire de universitário, eles
na padaria da Haddock Wolf, aquela cujo preço é
juntaram os dinheiros perdidos pelo quarto para
de desconsolar. Nada de bujão. E gás, só de outra
providenciar um jantarzinho minimamente digno.
natureza.
“Dez de dez”, já tem um!”, “Uma de um e duas vinte
Do batuque ao estrado, é tudo uma questão de
e cinco”, “Cinco de cinco, duas de cinquenta”,
ritmo. Do bloco de carnaval ao natal é tudo uma
“Põe naquela pilha, ali”. E por assim vai. Juntaram
questão de bebida. Do pum ao assovio, é toda uma
doze reais, foram ao mercado comprar macarrão e
questão de silêncio – que colabora ou não. Aliás,
passata de tomate.
falando em pum, quando uma das partes do casal
A nudez do tomate é saborosa. R. pensava
solta o primeiro pum (em público, digo, na frente
nisso enquanto analisava com olhos de joalheiro
do outro), bem, dizem por aí que é um caminho sem
volta.
companheiro de classe superlativo, aquele que deu
Abriu-se a porteira. “Chega de disfarçar”,
uma surra no menino que surrupiou seu lanche,
disse a Maria Eugênia ao José Carlos, e completou:
era sempre o campeão, levantando a taça dourada
“Eu sei que não é o pé da cadeira que arrasta”. O
no pódio da flatulência, enquanto ria e beliscava
José Carlos bem que tentou, teve suas tentativas
alguma
de abafar o pum frustradas no elevador, quando este
geralmente um bolo de cenoura coberto com ganache
deu um tranco e a coisa saiu ruidosa. Desesperado
de chocolate.
delícia
embalada
em
papel
alumínio,
com o solavanco, no escuro, o jeito, ao sair do
O pum indiscriminado é a mais alta marca
cubículo, foi culpar a dona Otávia do 82, “É
da chancela de qualquer relação. Seja amizade,
carniça velha”, desculpa que não durou muito.
romance, coleguismo, camaradagem, ficância, chamem
Como diria vovó Ruth, “Tem gente que acha que
como quiser. Só o pum tem o poder de tirar o mais
não tem, não solta”. Referia-se a esse assunto
sério dos homens de seu trono idílico, jogá-lo em
cabeludo, o pum. Desde criança ela naturalizou o
outro trono, esse geralmente feito com porcelana
pum. “Olha o sapo coaxando!”, e ríamos os dois.
branca. O pum é um tapa na prepotência, entortando
Solta pum, prende pum, há quem ache absurdo o
grandes narizes, colocando-os ao rés do chão,
som grave de um pum soltado na calada do dia ou
despindo bam bam bans de toda a pompa e quaisquer
da noite. Sendo que esses não são os piores, em
láureas que eles enverguem se pavoneando por aí
matéria de pum, o discreto é o mais fedorento.
afora. O pum é o verdadeiro som da democracia,
Como um fole, esganiçado, sai em três pontinhos...
uns disfarçam, outros endossam, alguns, depois do
Para fechar o assunto fedorento, a farra da criançada do meu primário (os meninos, claro) era o campeonato de pum. Gabriel gordo, nosso
pum, bem, já sabemos...
\\ SOBRE ARTE
TECLAR ANALÓGICO MATHEUS LOPES QUIRINO Após 30 anos de sua morte, obra de Keith Haring ganha exposições mundo afora, ganhando também novo livro ilustrado.
No início da década de 1980, Nova York foi infestada
por
uma
bem-vinda
praga,
seu
por vezes (como a moda) o brega. A liberdade
nome
sexual era escancarada por cantores, performers,
era Keith Haring. Estava em todo lugar. Seu
artistas plásticos e visuais, escritores, atores,
cartão de visitas era simples: um bonequinho
e toda gente de expressão do mundo das artes,
geometricamente infantil, desenhado sem rosto
habitués da boate Studio 54, em Manhattan.
e maiores detalhes. Um homem, um cão, formas
Quem
também
se
perdia
pelas
pistas
geométricas esboçando emoções, Haring usou dos
fluorescentes do lugar era Haring, acompanhado
espaços urbanos para falar sobre imperialismo ou
de contemporâneos como Roy Lichtenstein, Jean-
consumo de drogas na época em que o presidente
Michel Basquiat e, já veterano e afamado, (o
Ronald Reagan apertava o cerco sob o lema “Não
assíduo) Andy Warhol, todos membros
use drogas, pratique esportes”.
multicultural da pop art. Nas antológicas noites
da corrente
Ora tratando do prosaísmo do cotidiano, ora
da boate do entrepreneur Steve Rubell, o point,
vertendo por uma militância chiclete, como no
que inclusive cedeu espaço para uma das primeiras
icônico poster For nuclear disarmament (1982),
individuais de Haring, tornou-se um gueto da
uma das primeiras intervenções de grande expressão
comunidade LGBTQ, sendo lembrado como um monumento
do artista, os signos de Haring tatuaram Nova
da afirmação sexual e da liberação, aceitação e
York. O artista começou traçando paredes e vagões
promoção dos direitos dos homossexuais na cidade.
nas estações de metrô da cidade. Suas figuras
Na década de 1980, em que a comunicação era
minimalistas
representavam
claro
contraste
à
majoritariamente analógica, Keith Haring começou
metrópole (hiperbólica, luxuosa, apelativa) e
rabiscando com giz Nova York: seu objetivo era
às tribos na moda, como os arrojados punks e os
ser rápido e preciso. Hoje, o artista é celebrado
yuppies.
em grandes exposições retrospectivas na Europa
Ceifado por complicações com a
AIDS em
e na Oceania, em decorrência dos trinta anos
fevereiro de 1990, o artista sorveu dos excessos
de sua morte. Das quais, a da National Gallery
que pôde naquela última década pré-internet.
of Victoria, juntamente com obras de Basquiat,
A cena cultural da cidade vivia em constante
Crossing
ebulição por causa de ousadias de seus moradores
jovens pintores em uma exposição que questiona
mais ilustres. A MTV estava no auge de suas
a rapidez da linguagem na era da comunicação –
transmissões, propagando virais e apostando em
considerando os artistas pioneiros, por exemplo,
formatos de comédia e shows musicais. Não só a
nisso que chamam hoje de emojis, gifs, entre
música, bem como a moda, o design, o cinema e as
outros
artes plásticas flertavam com o pop, o arrojado,
comunicação diária, disponíveis nos teclados de
Lines,
recursos
juntou
trabalhos
linguísticos
dos
básicos
dois
para
a
Foto reprodução. www.artsy.net
SOBRE ARTE //
\\ SOBRE ARTE qualquer smartphone.
podia ser visto em pôsteres da Citizen até em
Precursores, eles militavam e pressionavam
ações da revista Playboy e da Unicef. Em 1984,
feridas
expondo
Haring compôs parte do figurino de Grace Jones
preconceitos, falando de amor, chá de cogumelos,
no lendário clip “I’m not perfect”. Nos anos
discos voadores, disco music, AIDS e, também, a
seguintes, passou a militar em favor das causas
situação das minorias. Crossing Lines, portanto,
em prol da cura e da disseminação de informações
acerta ao trazer à baila todo um histórico de
educativas sobre o
as
abertas
da
sociedade,
“militância analógica” nos dias de hoje, em que essa se encastela, por vezes, na internet.
vírus HIV.
Haring e o Brasil
A curadoria selecionou obras como Ishtar (1983), de Basquiat e Malcom X (1988), de Haring,
Haring gostava de hip-hop, cores vibrantes,
cujo teor sociopolítico é evidente. Como outrora
Mickey Mouse e do Brasil. Cá esteve, pela primeira
Haring expôs em trabalhos como em Free South
vez, em 1983, durante a montagem da 17ª Bienal de
Africa (1983), criticando o regime do Apartheid.
Arte de São Paulo. Aqui, para além da ocupação
A exposição também lembra um dos motes de Haring,
no Pavilhão da Bienal, o artista norte-americano
já contaminado pelo vírus no final da vida, “viva
realizou
rápido, morra jovem”. Suas telas arrojadas e
vias públicas e muros no centro da metrópole,
repletas
como o famoso contorno (hoje, inexistente) da
de
movimento
contemplam
essa
verve
hedonista e questionadora.
intervenções
pela
cidade,
grafitando
Av. Sumaré.
Keith Haring deixou uma prolífica obra. Ele não
Nos
suspiros
finais
da
Haring
desfilava
ditatura
era um artista de grandes galerias ou discípulo
enquanto
das
desprezou
em meio a galeristas e personagens graúdos do
circuitos oficiais, enfurecia marchands e, em
mercado das artes, uma figura singela e pouco
meio a críticas dos mais acadêmicos, polemizou
falada (ao menos, hoje) era já um grande talento
ao abrir, em 1986, no Soho, sua loja de “comércio
com força de expressão na cidade de São Paulo.
popular” de arte, a Pop Shop.
Seu nome era Alex Vallauri. Etíope radicado no
Fine
arts.
Em
dados
momentos,
pelo
país
militar, tropical
Diferentemente dos ready-mades copiados e
Brasil, Vallauri foi um grafiteiro falado, antes
falsificados em grande escala, como de artistas
mesmo da moda cinza pegar em muros da capital
como Warhol – não é preciso andar muito, mesmo
paulista.
em São Paulo, para achar algo que caia feito
Durante
os
anos
1970,
ele
se
arriscou
luva para decoração de casa, do tipo a Sopa
desvirginando paredes noites adentro com figuras
Campbells ou reproduções coloridas da diva do
minimalistas
cinema Marilyn Monroe –, os produtos da Pop Shop
marcas as mulheres que traçava com botas pretas
eram exclusivos. Pensados para um público jovem,
de salto agulha e uma bandeja de frango assado.
em coleções limitadas de camisetas, tênis de cano
Tendo
(como
começado
Haring).
na
Tornaram-se
xilogravura,
suas
Allex
alto, cadernetas de anotação, broches, mochilas,
Vallauri expôs sua primeira individual em 1970,
apontadores, louças e até mesmo dispositivos
na Associação de Amigos do MASP, sendo lembrado
eletrônicos. Tudo devidamente certificado pelo
ao longo de décadas por mostras nacionais e
‘pedigree Haring’.
internacionais. Carimbos de uma época em que
Surfando
no
hype
e
na
luxúria
do
os muros significavam o panteão para artistas de
cosmopolitismo novaiorquino, o artista atingiu
rua, debaixo do guarda-chuvas de chumbo em anos
camadas populares se envolvendo em campanhas de
difíceis, enquanto as redes sociais e conexões
publicidade a projetos beneficentes. Seu traço
sem fio ainda sonhavam com seu lugar ao sol.
SABÁTICO // VIDEOGAME, A EVOLUÇÃO DA ARTE | JOÃO VARELLA Os videogames passaram da era das cavernas ao pós-moderno em meio século, das moedas para acionar máquinas de Pong em bares à realidade aumentada de Pokémon Go nos smartphones. Com ênfase em um jogo marcante em cada capítulo, passando por títulos como Super Mario Bros., Counter-Strike, Minecraft, League of Legends, entre outros, este livro revela a evolução da narrativa de uma expressão artística que conta com a interatividade como sua pedra angular. LOTE 42
ESCRITOS CORSÁRIOS | Pier Paolo Pasolini Com veia polemista, nesses artigos publicados na imprensa italiana entre 1973 e 1975, Pasolini aborda, entre outros temas, as rebeliões da juventude que se seguiram aos movimentos estudantis de 1968, a decadência da Igreja Católica, a ascensão das corporações multinacionais, as relações entre governo e máfia na Itália e, especialmente, aquilo que ele chama de Novo Poder — ou novo fascismo —, isto é: o advento de uma sociedade de consumo global, que promove um verdadeiro extermínio das formas de vida tradicionais. EDITORA 34
DEMOCRACIA - UM ROMANCE AMERICANO | HENRY ADAMS Trata-se, de fato, de uma história ficcional em torno de uma forma de governo – aquela que, na famosa frase de Churchill, é a pior, exceto todas as demais. O romance, única incursão de Adams no campo ficcional, foi publicado em 1880, sem atribuição de autor. Mesmo assim, foi um sucesso de vendas, gerando especulações sobre quem o havia escrito. O mistério só foi revelado pelo editor do romance quando o autor morreu, 38 anos depois da publicação. CARAMBAIA
DEZ DROGAS | Thomas Hager O uso de fármacos é um dos pilares da medicina. As drogas são produtos importantes não só pelos fins terapêuticos, mas também simbólicos — basta pensarmos no surgimento da pílula ou dos remédios para disfunção erétil — e, evidentemente, econômicos. Por trás do surgimento de cada remédio há uma história e também uma combinação de fatores: novas tecnologias, mudanças geopolíticas, questões culturais, sorte. O premiado autor coloca em perspectiva séculos de avanços científicos, ao mesmo tempo que conta uma história recheada de curiosidades sobre as substâncias que são parte de nossa vida. TODAVIA
Layla Loli para Frente & Versos