EDIÇÃO #5 | INVERNO 2020
COTIDIANA
\\ SOBRE A EDIÇÃO
\\ CARTA AO LEITOR Chegamos ao inv(f)erno Nesses tempos estranhos, despertamos em um ano que mal começou. Pelo menos é o que nos conta o Tomás Fiore Negreiros, cujo poema espelha este editorial. O Despertar em Março não chega a ser tardio em tempos de Coronavírus, mas precisamos saber nos despedir do passado e ver o presente com olhos menos ansiosos, projetando catástrofes mais tímidas. Continuamos unidos, sem pegar na mão de ninguém e mantendo a tal “distância social”, bom para o corpo, e ruim para as saudades. E
com
esse
espírito
arrefecido,
em
Adeus,
Abril, que nosso editor Matheus Lopes Quirino tenta colocar em palavras o que está engasgado.
\ sobre nós Fundada com o propósito de democratizar o acesso
Não mera despedida, é sobre a falta que ele discorre na crônica, quando, inspirado em uma das clássicas pinturas urbanas de Edward Hooper, vê o céu de maio chegando, pelo fresco da manhã.
à cultura, a Frentes Versos busca compreender a
Esse inferno vai acabar, pode pensar o leitor
produção artística e cultural independente da
mais astuto, folheando essa revista digital em
cidade de São Paulo. Acompanhando as estações
casa. Mas o toque faz falta. A vida, também, só
do ano, a cada três meses, escritores, artistas
que um pouco menos. Talvez estejamos já dentro
e entusiastas de diversas áreas se debruçam
de uma distopia de Ray Bradbury – basta olhar
na efervescência da grande selva de pedra e
o curral político – ou uma realidade paralela,
a digerem para trazer a você, leitor, o mais completo conteúdo sobre o lado B do que é dito no lado A. Em cada edição, distribuída digital e gratuitamente, nos dedicaremos a um tema, uma faceta, das inúmeras formas presentes na cultura contemporânea.
\ entre em contato
quando ela parece ter vindo da obra de Ian McEwan.
Nesta
edição,
além
de
resenhas
dos
últimos livros do autor lançados aqui (Máquinas Como Eu e A Barata), André Cáceres discorre sobre como o autor inglês se mantém lúcido, ousando cada vez mais em sua obra. De
volta
ao
centro
da
edição,
nossos
colaboradores refletem não só sobre a realidade, mas tentam colocá-la em pé de igualdade com a ficção. André Vieira, Bruno Pernambuco e Giovana Proença
costuram
alternativas
ao
noticiário
do Coronavírus, imaginando causos improváveis de queridos personagens literários, enquanto Lia Petrelli conversa com o musicista Chico Bernardes. A edição de inverno de Frentes Versos se despede das folhas amareladas do outono, um adeus tardio para quem não tem capa de chuva. Um abraço de nossos lares, A redação.
Tomás Fiore Negreiros
DES PER TAR
Despertamos em março que mal acabou. A janela em quadro. Dia se pinta em raio, reverberando no quarto o que radia em verão. As maritacas, condolentes, pincelam o mar em núvens diante de vidros transparentes. Em coro, cantam: À’lamedasmosqueadas ementregasaladas dasfilasquimétricas gondolasvaziadas TROVÃO De manhã, ainda é dia. Grama testemunha e orvalho clama: “há pouco chovia”. Das varandas, a cidade. Sonoridade ainda cinza, sólida, concreta, ereta. Acostumado ainda’via.
EM
Lá ao fundo, dizendo que ainda é mundo o vento uuuuuiva na esquina. Mas sinto estranha presença da tua ausência. Nem sabia existia. Naquilo, que parecia concreto, duro, ultero, mundo; acordamos.
MARÇO
Despertamos em março que mal acabou, e ninguém sabia.
\\ PERSONAGENS São Paulo, 20 de maio de 2020 Querida Jane, Sinto sua falta. Espero que esteja passando bem e encontrando algum entretenimento. Está melhor
do
resfriado?
Ficamos
todos
muito
preocupados em saber de seu mal-estar. Como fico descontente em pensar que estamos tão próximas e mesmo assim não podemos nos ver! Uma baldeação e quinze estações separam a Penha de Pinheiros. Quando você saiu de casa para passar uns dias, não contávamos com essa situação. Passo
os
dias
entre
os
livros
para
me
distrair, a maioria Literatura Inglesa do século XVIII,
gostos
peculiares,
mas
sei
que
você
entenderia. Escrever e receber cartas têm sido um grande consolo. Coloco a máscara e caminho aos Correios, única oportunidade de sentir o vento que bate leve no rosto. Os problemas financeiros têm se agravado por aqui. Isso nos privou de outra diversão, os
passeios
de
carro.
Precisamos
economizar
gasolina. Mas era tão bom andar pelas ruas vazias, reparar em cada canto desconhecido pelo turbilhão de passantes do cotidiano. Passávamos pelas ruas do centro, descíamos a Consolação. Descíamos viadutos aproveitando as vistas dos rios (só as vistas, porque os cheiros...)! Mande notícias! Por favor, nada escreva sobre um certo ‘Darcy’. Desde que brigamos e eu o chamei de arrogante, nada mais falamos. Talvez ele seja o tipo que prefere resolver as coisas cara a cara, quem sabe? Sua irmã, Elizabeth Bennet.
Ficamos desolados. A hora ainda não tinha chegado. Nada a fazer. A mesma súplica vaga, se repetindo, era o que ele tinha nos mandado e nós obedecemos. Toda aquela rua era uma grande súplica vaga − era? você discorda? − era, enfim. Um grande lamento onde não estamos e para onde voltaremos amanhã? Não acha? Não teve discordância. O que quer que aconteceu, se tiver acontecido , foi a melhor coisa que podia nos acontecer, não temos mais discordância. Nada a fazer. Não pensamos em muitas coisas, nem nas mesmas.
As
coisas
estiveram
basicamente
as
mesmas, a menos que me escape agora alguma diferença. Vai tudo bem, tirando pela falta de histórias novas. Precisamos de pessoas para poder contar as histórias, e quem sabe quando elas a ouvirem ela vire uma nova. Por aqui vamos só reciclando as velhas. Nada a fazer. Muitas coisas fizemos. Aprendemos mais de linguagem com o cachorro que veio nos visitar que com os vultos perdidos que apareciam às vezes.
Numa pedra de sabão esculpimos estátuas
melhores que aquelas ao nosso lado. As perdi quando precisei tomar banho. Abri três vezes a porta da casa, mas não tinha ninguém querendo entrar. Um indigente quis roubar a comida podre que tínhamos guardada, mas fomos mais espertos e pegamos de volta. Nada a fazer. Nenhuma palavra sobrou para ser dita, então ficamos com a boca fechada. Sinto que dormimos comemos e andamos bem. Somos as únicas pessoas que fazem sentido aqui. Vladimir e Estragon
PERSONAGENS //
Relato Antes de viver, após a minha morte, uma pandemia, vivi outra, que não sei exatamente onde está, não sei se está no meu retorno a Portugal, em algo que se alastrava na alma dos homens, corrompidos por um tempo duro e pelas botas sujas do fascismo, se estava no vapor que deixava um porto brasileiro com destino a Lisboa, num menino que caía doente durante a viagem, e que morria, com seu rosto febril e vermelho, no quarto da família. Carreguei comigo
esta
memória
discretamente,
e
agora
vivo intensamente as minhas reflexões, trancado em quarto de hotel, ou as viveria. Do lado de fora de minha janela habita o mundo, ou a praça da República, e nela vejo pouco do movimento habitual, a não ser pelas almas que estão
perdidas.
Ainda
estão
todos
presos
à
vida, por conta disso a segurança mantém-se, na distância às ruas, e não se enxergam mais as mesmas cordialidades, e as mesmas trocas que partem de lugar nenhum e a ele chegam. Deixo de ver
aqueles que acostumei a habitarem a
minha tarde e a minha noite, em meu quarto novo próximo à Praça da República, e me sinto só. Não me encontro no meio da peste, e sem me sentir ameaçado me sinto só, distante dos outros homens, e dessa vez como se eu não pudesse conhecê-los. Sinto-me separado, compreendo que toda a cidade está
separada.
Não
sei
onde
se
encontrarão
encontros, agora ou depois que agora passar, que homens ainda existirão, como existirão, e se poderei encontrá-los, ou eles se encontrarão, e talvez cumprimentem-se, e passando o cumprimento talvez seja possível começar um dia, e talvez começado, a partir desse dia o homem que habita em cima de mim volte a se preocupar com vendas desodorantes,
condicionadores
sabonetes
e outros bens, e a mulher volte a atravessar a praça com um passo rápido, sob o meio-dia, buscando algo que, imagino, ela encontra depois de desaparecer na esquina seguinte, e talvez voltem a se preocupar com trocas, escambos, erros de cálculo, salário dos funcionários e perda de mercadorias. Abro a janela do meu quarto. Acostumei-me a um cotidiano luminoso silencioso e azul. Ricardo Reis
Foto por Lia Petrelli - Acervo pessoal
de
\\ PERSONAGENS
Quem dá luz a cego é bengala branca. Mas que inferno! ‘Cabou o café de novo? Toda vez que fazem a rapa aqui em casa, quem sobra pra pagar o pato, morder a verdinha, entregar
dá uma relaxada, quem dá luz a cego é bengala branca”. Oxalá, Exu, Saravá, me faz uma mandiga de
o ganso, sou eu. Pois sou! Cada vez que aquele
livramento
lustradinho do Bonner vem pra tevê ler te-pê e
notas na Amazônia, pedidos do Anastácio, cartas
inventar um monte de num’ sei o quê; Pois eu
de Paranaguá — ahh, Paranaguá. Olheiras roxas,
sou! A poloquear meia dúzia de charadas chiques
mãos trementes, músculos atrofiados, intestinos
em prosa difícil pra besta bater palma, panela
à amostra e um futuro nas mãos dum bicheiro que
e na minha cara quando vem a cheirosa me pedir
bate ponto na editora: puta que pariu. Dessa
adiantamento
sou
vez fui longe. Ganhei na loteria, quase. No
eu! ‘Cê acredita? Cada inferno que a gente se
andejo de tanto zé-ninguém (eu próprio), de
mete quando fica trancando em casa, vendo pornô
tanto pé rapado
barato e telejornal diário — ai, ai, ai minha
meter com o ‘homi’ que me apresentou esposa
filha ‘cê me para de ficar usando o 3G que papai
e fecundou problemas. Bem, que eu não tenho
tem prioridades em casa, viu? Não é por que
vocação a nada — fora birita e mastigar capim
mamãe trabalha na enfermaria do hospital que o
com bigorna —, não tenho, mas olha: desde que me
servicinho aqui em casa não diminuiu, viu?”
mudei pra deixo da escada e comecei a dieta de
pelo
telefone:
“Alô!
Pois
desses
textos.
Artigo
do
Paraná,
pra confiar futuro, fui me (re)
Duas e trinta e seis da manhã, e elas a
miojo com sarsicha não poderia estar melhor: os
mil: “Porra Zé, para de bater à máquina uma hora
vencimentos não fecham, as meninas não choram,
dessas, num’ ‘tá na hora de ‘cê pregar os olhos e
a internet não para, o sossego não vem e, como
te enrolar no lençol?” Gente chué num tem outra
costume, o telefone não toca —Arlindo, cê me
não, não senhor: cê cria as pestes, dá farinha,
paga, safado.
arroz, e laptop e tem que ouvir coisa dessas
Se eu fô dá uma dica pra essa primeira
a hora daquela; pai solteiro preso em casa é
quarenta — porque se seguir o Palácio quer, só
pior que presídio público.
príncipe e amigo do rei vão poder andar na rua
revisor
na
cola,
jurídico
Editor no cangote, já
pra
suspender
—, ficamos nos crássicos de sempre: beba muita
contrato por falta de promoção do material:
água, se exercite, não veja Netflix, não beba
“vem ou não vem, José”; “Meu considerado”, falo
todo dia, não veja televisão ou qualquer tipo
com gentileza com o doutô que nunca bateu uma
de mídia, se possível fique em casa e ligue pros
laje na vida, “com quatro em casa, esse livro
familiares, e, de preferência, não beba álcool
é última coisa dos meus pesadelos. Já pensou o
em gel nem use a máscara de cara como tapa sexo.
sinhô, barrigudo, velho, carrancudo tendo que trabaia quinze horas e meia por dia pra’ menina
Um grande web-beijo pros cês,
ficar vendo vídeo de coreano gay? Ô companheiro,
João Antônio.
PERSONAGENS //
Quem fui eu amanhã? Quem sou eu ontem? Quem
de paralelepípedo — anseio —: por vozes na casa,
serei ele hoje? Os tempos e os espaços parecem
barulhos da cozinha, bagunça na cama e caos nos
uma irrelevância, um pequeno choro miúdo de
pensamentos: de cachaça barata, de ansiedade
pássaros do-lá-fora, frente ao que habita a
inexata, de comida estragada do beco da esquina.
alma esburacada e os sentidos embasados, rotos,
Mas remedeio. De pés descalços na lama do
todos, viciados, tomados pela promessa do ontem
pátio em ruínas, me aventuro na ferrugem das
e pela possibilidade do antes.
argolas de ferro do balanço bambo. Já no chão,
Mas não tenho fé não. O que eu tenho é um
aperto o penduricalho entre os dedos e o boto
relicário, daqueles que a gente bota no pescoço
contra o peito, enquanto as lágrimas escorrem
e passa a vida inteira admirando o passado. Na
pelos olhos vidrados no entardecer sereno do
foto da criança de dente torto, em retrato mal
outono. “Pelo menos, pôde sorrir”, reconheço.
cortado, do fotógrafo safado que saia com mãos
De volta ao lar, calço botas couro trinta e
bobas com a mãe de saias — e papai nunca soube
cinco, preencho o cachimbo de papai com cinzas
disso. É no pequeno retrato que guardo os anos
da madrugada, boto a chaleira no fogo e, me coroo
passados de esperanças esquecidas, cuja dor é
com o chapéu de cangaceiro porreta que esquenta
um pouco maior do que o esquecimento que povoa
o sangue no escuro infinito. Verto meia cinco um
a maturidade e preenche o vazio de ser grande.
e, só de cuecas —afinal, faz frio em São Paulo
E todo é dia. Eu, terço em mãos, três
—, me sento na poltrona estacionada em cento em
quartos, uma luz, uma foto de três por quarto.
vinte três canais a cores monocromáticas: mais
O Pai, O Filho e O Espírito da Pomba Maldita.
uma noite de insônia familiar e lágrimas de
Nós quatro acampando sob as estrelas e fritando
travesseiro com clássicos do Velho-Oeste.
marshmellos, roubando cachaça na dispensa do pai e namorando escondido nas janelas de ruas
Ninguém em casa.
Foto por Lia Petrelli - Acervo pessoal
Ninguém em casa [Giovani Lucarelli]
ANDRÉ VIEIRA Escrito em curtos capítulos, como breves fragmentos do cotidiano, obra encarna dilemas pessoais em tempos de transição política
Foto por Lia Petrelli e tratamento por Victória Novais
COMO HABI TAR O OUTRO
RESENHANDO // O que uma ocupação de sem-teto no centro,
uma década entre homem e mulher. Nesses momentos,
um pai adoentado por uma crise pulmonar grave e
fica claro como os pensamentos e as memórias
uma esposa que vive a angústia do não engravidar
de Sebastián são invadidos pela presença das
teriam a ver com o título do novo romance de
personagens em cena e de como seus gestos, suas
Julián Fuks, A Ocupação? Com exceção do primeiro
falas e seus silêncios são ressignificados pela
exemplo, que conversa diretamente com a temática
própria experiência do escritor, dando novos
e dá contornos concretos para a ambientação da
contornos às passagens e aproximando leitor e
obra, os dois outros não se encaixariam numa
autor, como se este fosse um amigo querido que
primeira
não ouvíamos falar há tempos.
virada
de
páginas
ou
numa
leitura
distraída que busca relação direta entre ato
Por esse motivo, o maior trunfo do romance
político, moradia digna e procura pela identidade
talvez seja a maneira simples, fluida e viva
em meio ao caos urbano. Com esses temas, mais
com que a escrita de Fuks nos ocupa a mente e
do que dar ao leitor a impressão de lermos uma
nos conecta a sentimentos difusos, às vezes,
autoficção de Fuks, aos olhos de Sebastián, seu
ambíguos por si só, mas que fazem parte do tecido
alter ego, desvendamos a sutileza que é ocupar
incerto da vida, à medida que são ilustrados
e ser ocupado pelas palavras dos outros a nosso
por histórias do cotidiano urbano, num misto de
redor.
otimismo e desesperança, dor e superação. E é
Na mesma linha de seu premiado romance,
por isso, por retratar ambientes tão próximos e
A Resistência, Fuks resgata ao longo de uma
ainda sim tão distantes, por meio da interseção
prosa simples, de frases fortes e marcantes
do eu-escritor com a universalidade do eu-homem,
a literatura presente no contato com outro e
eu-filho, eu-pai, eu-humano que A Ocupação nos faz
com ambiente em que ele é colocado. Um relato
repensar o papel da literatura em nossas vidas,
de
depoimento
em como a contação de histórias, e o relato de
de haitiana sobrevivente de um terremoto, e
experiências levam nossas memórias adiante, mas
a descrição das larvas, dos ratos e do homem
também nos fazem reconectar às pessoas e aos
tomando um apartamento habitado por uma gata
ambientes em que elas se encontram, colocando
felina e por uma Rosa humana são alguns dos
em foco o sentimento próprio que nos singulariza
momentos em que o texto abarca as palavras e as
filhos, pais, irmãos, maridos e esposas, como
histórias compartilhadas no Hotel Cambridge e
pessoas, e antes disto, como seres humanos.
guerra
de
sírio
refugiado,
o
as faz ecoar ao longo da narrativa, seja como
Assim, tendo como pano de fundo a alegoria
em pequenos intervalos em que o intimidade de
de um hotel em destroços, num país em cacos,
Sebastián é deixada de lado para abertura de outras
com vidas em ruínas, A Ocupação se desenrola
janelas dentro do romance, seja, ao contrário,
num caminhar de múltiplas narrativas, que ora
em momentos em que a própria subjetividade de
reafirmam a fragilidade da vida com grande dose
autor é ressaltada pelo contraste com o outro,
de descrença no cenário político-social, ora
que passa, agora, a ser tratado com o mesmo peso
se apegam a uma ínfima luz no fim do túnel, que
e a mesma importância do que o eu-escritor.
deslumbra um futuro incerto e tumultuado, mas
Na
narrativa,
essa
característica
do
ainda sim possível, por meio das histórias e das
“contágio”, tanto por sentimentos e como por
experiências que vivemos e compartilhamos entre
vozes, entre personagens e narrador é talvez
nós. Essa é a linha que o escritor moçambicano,
mais acentuada quando Fuks se propõe a narrar
Mia Couto, defende na carta publicada a Fuks no
as visitas ao pai no hospital, e quando expõe o
livro,
íntimo de seu apartamento de palmeiras verdes e
que nos escorre por nossos dedos: “A literatura
redes de balanço, friccionado pela expectativa
deve afirmar sua própria soberania e inventar
do filho que não vem e pelo desgaste da relação de
aves que, por sua vez, inventam um outro céu”.
que é preciso ter fé nesse filete de luz
UM RE
de suas viagens senão com princípios simples da geometria euclidiana, com linhas retas ou com curvas ilustradas por um compasso. Descrições iluminadas por uma luz simples e aconchegante, como a das lamparinas de rua da cidade que recebe um viajante compõe essa viagem circular,
TRAÇO
como o passeio por uma escada em caracol que aos poucos aprofunda-se na memória, desce pelo arquivo de livros num encontro de registros topográficos que desde sempre existiram, e que retratam esses espaços sob os pés do caminhante, aqueles que ele construía com sua caminhada. Momento em que o escritor está liberto da
DE
organização da história, da encadeação, ou dos acontecimentos,
As
Cidades
Invisíveis
é
uma
criação positiva dessa ausência, uma exuberância de vida. Dizia ítalo Calvino que “As Cidades Invisíveis
continua
a
ser
aquele
meu
livro
em que penso haver dito mais coisas, talvez
MAPAS
porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas”, e o que se enxerga em sua obra é de fato esse movimento − traduzido naquilo que faz a individualidade do autor − que escapa à racionalidade pura. Negando um tempo positivista
ANTI
ou objetivo ao resgatar uma forma literária do diário de viagens e do relato íntimo, As Cidades Invisíveis é uma viagem a essa vida que se repete, que rumina lentamente, e que se afirma mesmo pela calma dessa digestão. Não que ela se trate de um retrato com endereço preciso de
GOS
uma vida interiorana; essa vida exprime algo que todos conhecemos, nos pondo,
também, na
posição de conhecer o próprio passado através da visita dos lugares desconhecidos. A forma como a prosa do livro reflete esses movimentos é a grande invenção poética de Calvino, e também
BRUNO PERNAMBUCO
seu trabalho muito apurado. É por conta dessa simbiose, do impensado com a descrição do signo,
As Cidades Invisíveis pouco diz sobre uma cidade — sobre sua estrutura, seus habitantes, sobre a vida que nela existe − e, assim sendo, simultaneamente diz tudo. É através da
prosa
mágica de Ítalo Calvino, que se esculpe a imagem a partir da simplicidade da linguagem, e da objetividade das observações e reflexões de seu Marco Polo, esse narrador que, pela sinceridade absoluta, se faz pouco confiável, que se afeta profundamente pelas cidades e que carrega sua emoção em sua ciência; que não desenha os mapas
de tudo isso com a reflexão artística e laboriosa que se confunde com a reflexão dos acontecimentos da vida, que é dificílimo, senão impossível, pensar a figura do autor a partir de uma obra como As Cidades Invisíveis. Nela se confundem movimentos, inspirações e figuras literárias, e se enxergam
muitas marcas da prosa de uma
geração italiana da segunda metade do século XX, assim como uma continuidade das obras anteriores de Calvino, em seus personagens, temas, e época visitada, assim como uma quebra com essas mesmas obras, nessa descoberta de outros símbolos e
RESENHANDO // formas narrativas. Trata-se do encontro
que
o pouco que tem através daquilo que não tem e
desde o princípio, por sua apresentação, pela
que nunca terá, logo não se poderia imaginar um
ternura das palavras escolhidas e da precisão
narrador melhor para essa narrativa, pois ele é
das descrições, nos convida para dentro daquele
quem se faz e compartilha viagens, e convidando
mundo,
linguística
o leitor a vive-las consigo. Para deixar que
permite que ele continue a se abrir, renovando-
essas cidades provoquem em quem lê o efeito de
se. O leitor dessa obra vê à frente um livro que
ser um viajante que a elas chega, e que dentro
fala profundamente ao e com o coração, e nesse
de cada um desses mundos aprofunda-se em suas
sentido é inútil partir dessa análise literária
lembranças pessoais − e naquilo que de si descobre
rigorosa, embora As Cidades Invisíveis tenha
com esse encontro−, é preciso que o guia seja
muito a ensiná-la.
esse que segue a mesma caminhada, e que, não se
e
com
essa
mesma
beleza
A cidade, por toda a obra, é sempre desenhada
dirigindo em seus escritos nem a si próprio, nem
pouco a pouco. É demorada, e é dada pela medida
a quem o lê, faz aflorar esses encontros através
do humano, a construção desse símbolo, desse
da narração da sua própria descoberta, pois sua
conflito, como mais uma vez admite o próprio
memória pessoal é o convite que a ele estendeu
autor, entre “a racionalidade geométrica e o
cada cidade, e sob ela está o conhecimento de
emaranhado das experiências humanas”, que se
que uma cidade só existe pelos olhos através dos
irresolve em imagem poética. Colocar onde está a
quais é vista. É, também, sublime a forma com
cidade enquanto espaço na escrita e na recepção
que o autor descreve as próprias consciências,
de um livro como esse é perguntar como que esses
e a reflexão de Marco Polo e de Kublai Khan, e
poemas podem ser habitados, e na leitura essa
ao tecer esse imperador curioso, preocupado,
questão está de certa forma resolvida, pois
misterioso em seu estoicismo contemplativo de
há algo em nós que habita esses lugares, que
seu
habita essas histórias, essa indefinição, uma
para
simultaneidade entre presente e passado − o
de um espaço único de possibilidade, que não
passado enquanto invenção, ou enquanto algo que
teria lugar na realidade − ao mesmo tempo que
aprendemos a partir da invenção. Me comovo até
nunca nega completamente a possibilidade de ser
as lágrimas acompanhando simplesmente a toada,
aquele verdadeiro factual, como a revelação de
sob esse ritmo lento da história, contemplativa
um segredo muito bem guardado sobre a vida de um
e, simultaneamente, direta, pois é narração dos
império e de seus personagens. A história também
acontecimentos, mesmo em sua confissão do não
é utilizada com maestria por Ítalo Calvino,
acontecido, sua divagação entre as imagens das
assim como a geometria e a arquitetura para
imagens.
a construção desses lugares existentes, assim
O romance histórico transforma, também, Marco Polo e Kublai Khan em personagens literários.
império, esse
As
Cidades
caminho
Invisíveis
fantasioso
e
convida
elaborado,
como sua irmã no plano linguístico, a sintaxe, ordenação dos elementos, para descrevê-los.
Uma narrativa histórica, mas, mais do que isso,
Uma síntese − da mesma forma que esse
que se apropria da história conforme aquilo
símbolo da cidade sintetiza muitas possibilidades
lhe é interessante, aproveitando um pretexto
diferentes, muitas aberturas para a história
para contar uma história que é tão invisível à
− de fluentes históricas, poéticas, cotidianas,
oficial quanto essas terras do império de Kublai
precisas
Khan são a seu governante. Aí não se trata
cosmopolitas, As Cidades Invisíveis resume ser
diretamente daquele saber ou daquela vida que é
uma grande realização poética na simplicidade da
perseguido diretamente pela regulamentação, mas
escrita de uma obra transbordando de coração em
dessa história memoriável que surge a partir das
seu trato da língua, e da rememoração daqueles
nossas perguntas − aquelas cujas respostas que
caminhos feitos, daqueles reencontros com o que
cada cidade nos dá é o que dela guardamos. Não
foi visto e dos encontros novos que, fazendo a
conhecemos desse Marco Polo nenhuma personalidade
lembrança, inventando o passado, são, também,
exceto sua paixão pelas viagens, sua existência
por eles feitos. O que essa obra poderá dizer
como uma folha em branco que é preenchida pelo
a respeito da cidade será, talvez, a lembrança
que anota em seus diários, e sua lealdade com
içada em quem a lê, que alimenta novos modos de
o imperador. Homem que, como admite, reconhece
habitar-nos e de habitar em conjunto.
e
universais,
provincianas
e
FLUXOS OU
VI VOCÊS NUMA QUINTA E ACHEI QUE FOSSE SÁBADO TOMÁS FIORE NEGREIROS
ESSA HISTÓRIA // naquela
São
Paulo,
trazida
por
para trabalhadores sérios e bêbados largados.
novembro. Endossada pelo coro-alado multicolorido
Nevava
a
heterogeneidade
da
clientela,
de aves invisíveis, dia já era. Promessa de um
escorrendo na minha face pinceladas sintéticas de
sol opaco, pálido, lento e morno; Preguiçava mais
gelo. Escorria-lhe o fino nariz vermelho, Danilo
e mais ao se desvencilhar das nebulosas cobertas.
chorava lágrimas laranjas, e, das maçãs chupadas
— Duvido que estaria assim se tivesse acompanhado
do rosto, escorria
nosso andarilhar noturno. Ela pensava.
e
glitter;
A
maquiagem,
Nevava daquele lado da rua, mas podia ser em
nascia
uma mistura de azul, prateada arco-em-íris
confeccionada
pela
por
manhã.
Joana,
agora
qualquer outro. Repentinamente, bancas de café
esboçava aquele distorcido e ambíguo momento. Um
da manhã irrompiam ao nosso redor. Provocando
quadro-rosto que esbanjava em borrões de hoje as
gritos
reminiscêntes pinceladas de ontem.
e
berros
dos
paralelepipedos
recém-
-desadormecidos: “um pão de leite pro moço ali.
Nevava,
escorrendo
tinta,
glitter,
suor
Um cafézinho pra moça aqui; faz pra viagem, que
e álcool ao nascer do sol. Nevava na cinzenta
o onibus pra Pirituba já tá vindo, dona! O jovem
calçada sobre os meus pés, nevava na mesa vermelha
vai querer o bolo de laranja… se cair no chão
de plástico com o logo da Itaipava, nevava sobre
não tem problema qui’ as pomba’ comem; troco
o cinzeiro em que batia as cinzas do meu cigarro.
pra cinquenta? Vixe, moço, só se tu me compra a
Nevava no copo de Danilo, decantado flocos de pele
fornada!”.
ao fundo; não que ele se importasse, continuava
Joana
acompanhava
e
desacompanhava
os
indiferente ao líquido da quentura e da cor de
pedidos ao pé do ouvido. As vozes das vendedoras
mijo. Talvez ingerir um pouco da escamação das
me levavam para passear longe de Rafa, de suas
placas brilhosas. Não parecia problema àquelas
opiniões irrelevantes sobre as próximas eleições
alturas. Afinal, nevava.
municipais, de suas impressões sobre sua última
Noss’ mano, tá abafado pra caralho! A breja
viagem ao Jalapão, de suas falhas tentativas de
até já esquentou … nem meu mijo tá tão quente
formular uma frase que fizesse sentid... - caralho,
assim. Do outro lado da bancada, Joana exalava
como ele fica chato quando bebe.
em ombros esfumacentos sua indiferença irônica.
Nevava naquela manhã, impregnada do calor sufocante
da
noite.
minhas
dando contorno aos seus pensamentos inquisidores.
axilas,
Essas hora’ da manhã e você quer reclamar da
descendo pela minha virilha, desaguando em meus
temperatura da cerveja? Franzia a testa enquanto
pés empoçados, alcançando o meu copo vazio… Ahhhh!
jogava um cigarro na boca. Parecia que havia anos
Nem cerveja pode com o calor do dia.
desde ontem, quando Joana fazia do ato de fumar
sobrancelhas,
Suava
escorrendo
por
por
entre
Seu olhar frio esquentava, mais ainda, meu copo,
minhas
Os pequenos cristais luminosos dançavam a
um ritual delicado. Quando passava o filtro pelos
forma do ar: planando, cintilando, queimando sob as
seus lábios, e deixava na seda as marcas de batom.
luzes do sol e os raios da noite. Eram incansáveis
Toda dramatização acontecia quando entreabria a
diante dos ditos proféticos alvorados: “já haviam
boca e liberava aquela serpente de fumaça quente,
visto anomalias e monstruosidades piores na noite
aquela que escalava sua garganta às unhadas.
que se findara” — li uma vez em algum livro — “não
Hoje já não havia mais aquele jogo de cena, mas
iriam apagar agora”.
outro mise en scène; uma nova performance, mas
Nevava tão
bem
paulistana
no de
nariz bardaria.
daquela Um
espécie
híbrido
que
democratizava o balcão entre os espíritos da noite e as almas do dia; ditos que vinham e cujos que iam. Recinto que não distinguia as
ainda sobre o mando de seu constante diretor de abstinência de nicotina… Nóis já deu sorte só de encontrá esse pico aberto, não reclama. Ah, sim. Mas mesmo assim, cerveja choca não dá. Cara, foda-se! Se não quiser não toma.
idas das vindas. Onde se pode comprar a primeira
Ignorei Joana virando-me para Danilo e seu
fornada de pão francês enquanto se termina a
copo, que afogava-se mais e mais em pó de arco-
última dose de Ypioca. Estabelecimento inclusivo
-íris e líquido borbulhante. Naquela situação
Foto Rafaella Pozza - Acervo pessoal
Nevava
\\ ESSA HISTÓRIA teria pedido outro recipiente, jogado a cerveja
sua guinada cambaleante. Tentava conter a risada
na calçada, feito uma cena ali mesmo no meio-fio,—
diante daquela cena mordendo os lábios, mas não
provocado todo um alvoroço antes do meio-dia ...
era muito exitosa em conter-me, deixando vazar
mas Danilo não. O modo como seus olhos devoravam
alguns risos comedidos às beiradas. Ela hilária,
o mundo parecia desfocar sua mente; adensava-os
de tão ridícula, a situação daquelas três figuras:
gradualmente na parede de tijolos à moda da Vila
claramente bêbadas e viradas da noite, fedendo a
Madalena. Não se importava. Na verdade, não me
álcool, suor, glitter, cigarro, um festival de
importava muito com nada. Mas Rafael, sim. Vô
roupas coloridas e palhaços decadentes no velho
pegar uma cachaça. Já deu de cerveja quente pra
centro urbano cinza. Destoávamos das pessoas que
mim hoje.
passavam ali pela rua, em direção ao trabalho,
Cê que sabe...
às suas obrigações com o mercado, às exigências
Seus dedos, finos e amarelados, agarraram-se
das galerias e investidores, à vida sóbria e bem
aos braços da cadeira plastificada — “de pé, a
regrada do mundo das pessoas sérias da distopia
bebida desce; embriaga não só a cabeça mas também
de arte & ofícios.
os pés”. As pernas polietilenizadas envergavam
Que se foda o trabalho, que se foda a arte!
sofridamente ao peso ébrio. A cadeira se esforçava
Usava como seu lema...pelo menos, parecia
para não ir ao chão. Com os braços ergui-me. Deu
um bom mote para aqueles momentos de nada. Pelo
uma batida forte com o joelho sob a mesa estampada.
menos o copo mantinha-se cheio.
Afligiu a nós, os copos americanos, e a garrafa
Ahhh que se foda.
de 1 litro, que quase desfaleceu imaginando-se
Sério? Nada.
estatelada em cacos cristalinos no chão. Puta
Os dois homens perceberam o olhar de Joana e
que pariu Rafael, toma cuidado caralho! Estava
a rebeldia de sua risada em conter-se. Comentaram
prestes a lançar o cigarro em sua direção...
algo entre si.
Pensando melhor. Não valia o desperdício.
Buz-buz-bunda-buz-buz-buzceta-
buz-buz-busto-buz-buz-bucha….
o
trânsito
da
Estava longe; tanto quanto a marca que indicava o
Mourato Coelho não permitia conversas de mais de
fim do tabaco, da nicotina, e de todas as toxinas
4 metros de buzbuzbuzzes. Mas seus olhos falavam:
que vinham de brinde ao meu peito. Puts, mals
“ei lindinha, ei, psiu! Não quer dar um gás na
aí.... Meio sem jeito, meio arrependido, meio que
bagunça de vocês? Por que não mostrar pra gente
por uma questão de decoro dos bêbados. Relevei.
o que você guarda ai?!”.
Àquela altura da noite já havia abrido mão de
gritavam, PEITOS, e berravam ao decote, PEI-TOS,
qualquer tentativa de argumentação, só queria
do seu top, do meu top, P-E-I-T-OS, na vã esperança
tomar minha cachaça, ir pra casa e parar de ouvir
de estabelecerem um diálogo. Cês perderam alguma
a voz rouca e irritante de Joana.
coisa
Virou seus
as
passos
costas tortos
e
riscou
a
até
dentro
do
estabelecimento,
dois
homens
caralho?
Seus
escroto’!
Vão
fica’
calçada
com
olhando assim pra pUta que te pariu! Gritava-me
boteco
que
inflando o peito em puro ardor rouco.
encarava a rua. Não éramos os únicos: na porta do
aqui
Falavam não, PEITOS,
apreciavam
a
Nem
meu
próprio
corpo
consentia
minha
breve rebeldia contra o patriarcado. Me doíam os
agitada crônica urbana dos copos transeuntes.
pulmões fumantes. Cometi-me a colocar
Pá-pê-Ahhhh,
nós,
vento para cortar sua visão, suas fantasias e,
bebericavam em copos americanos, rodeados pelo
de preferência, o pau daqueles fudidos. Puxei a
estabelecimento, imersos no clamor do dia
cadeira para próximo de Diego.
vem-ca
fé.
Faziam-no
como
—
meu corta
diferentes meios para os mesmos fins … ou será que
Não que ele fosse ajudar naquele estado,
era o contrário? Tanto faz, acho que ainda havia
mas esses caras geralmente afinam quando tem uma
dia para todos. O páreo era duro àquelas horas
outra rola por perto. Bizolhei com a ponta do
da matina; imagine tentar manter uma linha de
olho pra ver se ainda estavam lá… ufa, já tinham
raciocínio condizente ... por quê estou pensando
entrado e sentado numa mesa ao fundo do bar. Cadê
nisso mesmo?
o porra do Rafa?
FODA-SE!
Voltaram-se para Rafa, fuzilando desaprovadamente
Esticou o pescoço com mais
liberdade e o avistou de costas, expondo sua
ESSA HISTÓRIA // camisa florida marcada pelas manchas de suor que
e o líquido transparente caindo ao som das minhas
desciam das axilas em direção à sua bunda. Não
batidas sem ritmo. Ia abrir uma escola de samba
havia casaco amarrado em sua cintura, nem pendiam
com o bigode e colocá-lo como porta-bandeira da
as exigências de ser uma bela, recatada e dó-lar.
Salinas. Recebeu o copo, brigado, paguei com as
A camisa continuava semiaberta e expunha os pelos
moedas. Enfia no cu essa porra de 5 reais. Recebi
nus de seu peito.
de troco, um hmm e um olhar de peixe morto que
Dentro da bardaria, um balcão de mármore,
fazia jus aos demais. Cara chato da porra, nunca
iluminado pela meia luz proeminente da rua, me
mais volto aqui. Bom dia pro sinhô, qualquer
encarava da
coisa eu volto. Hmm. Virou-se. Virei-me.
entrada do estabelecimento e dava
bom-dia aos fregueses; — bom dia, caralho —
uma
Era
impressionante
como
ainda
não
havia
vez que o senhor bigodudo por trás do balcão
me deparado com o dia escancarado do lado de
não o fazia. Enquanto me dirigia ao bigode que
fora do bar: suas paredes e a cobertura faziam
secava copos americanos, já vislumbrava a estufa
com que o interior à meia-sombra clamasse pela
transparente e aquilo que ela guardava.
claridade envergonhada das 6h30. Esfreguei os
Esse aqui é do que amigão?
A redoma de
olhos ardentes.
vidro exibia meia dúzia de fritos e assados ao
A manhã já carregava consigo os fluxos, as
mesmo tempo que esquentava a ponta do meu dedo.
idas e vindas, a correria, OS GRITOS… já Jo se
No adesivo colado à parte metálica da estufa,
encontrava em seu mesmo assento, na companhia de
o aviso: “Cuidado, metal quente”. Croquete de
outro cigarro e Diego estava atônito, copo em
bacalhau; Pastel de forno de escarola; Risole
mão, cigarro queimando, olhando sabe-se lá pro
de presunto… A fome era tanta que apenas relevei
quê. Tomei um gole; sentindo os arenosos grãos
a monotonia de sua voz. Pensei em cada uma das
coloridos dissolvendo-se na cana. Um motorista
opções: mastiguei, saboreie e degluti na língua
de ônibus esguelava a buzina na nossa direção:
do portuga. Senti subir à garganta o frango assado
estávamos na contramão?
da … quando foi a última vez que comi mesmo?
Rafa
submergiu
estabelecimento;
dos
do
já era suficiente por aquela noite. Croquete de
contemporâneo, puro retrato do espírito daqueles
bacalhau; Pastel de forno de escarola; Risole
dias: homem-branco-médio-alto-um metro e setenta
de presunto, ronronava e repetia sem qualquer
e
mudança na tonalidade monótona. Revirava-me os
nos
olhos do estômago.
“calculadamente
calça
joelhos,
jeans
ergueu
trevosos
Não tem coxinha? O enjoo causado pela bebida
sete,
se
domínios
apertada,
amarrotada
e
desarrumado”
como
rota,
alçada. da
O
quadro
rasgada famoso
bolha-oeste-
Nem pão de queijo tem? — Última tentativa,
-paulistana. Manchas roxa-radioativas confundiam-
prometo —. Croquete de bacalhau; Pastel de forno
-se com as manchas floridas coloridas, marchando em
de escarola; Risole de presunto... Foda-se. Eu
direção ao casaco preto já manchado e respingando,
nem mais lhe existia. Retiro o que disse sobre
babando em cores vívidas, sobre as manchas úmidas
como a voz da Joana é irritante. Mas, ainda tinha
na região superior da coxa inferior da virilha
sede. Ótimo. Tem Salinas? Não, só cincum. Ele tava
(a noite manchava cada vez mais as intenções de
me testando. Tranquilo, vai ser a dose então. 5
se ir ao banheiro), que deixaram manchas-mechas
pau. Além mal-humorado o bigode também é careiro.
sob os olhos, manchando o dia de sono enquanto a
Tirei algumas moedas do bolso e comecei a
bebida manchava a memória do que por ali ficava. Os
fazer um som batendo uma delas no balcão: o som
espíritos manchados bebiam as memórias daqueles
metálico
dias de calor infernal.
contornava
o
mármore,
preenchendo
o
estabelecimento com seu tiq-taq-ar abafado. O
Apertava os olhos na vã esperança de proteger
portuga me olhou torto. Agora que eu continuava
seu copo polimérico, dourado agora pelo brilhor
mesmo, quero ver ele fazer alguma coisa. Estava
do sol. Às costas, um bar, uma padaria, um reduto
praticamente compondo um samba enquanto o bigode
boêmio, o ponto de início do trabalhador. Não
virava a dose de cachaça no mesmo copo que secava
sei ao certo, fazia horas que a bebida já estava
quando entrei. Observava cada golada da garrafa
confundindo a minha cabeça. Desde a faculdade que
Foto Ana Beatriz Fagundes - Acervo pessoal
ESSA HISTÓRIA // não analisava um quadro modernista tão de perto —
dotadas de sentidos, cores … com certeza era
Estava bêbada? Fodasse, o Rafa sim, estava. Ahn,
a primeira vez naquele dia que se encontrava
cê ta bem?
naquela mesa de bar naquela Mourato Coelho.
É, eu estava bêbada. Sim, a bebida
dourada está quente.
O que cê’ tá olhando mano? Tamo aqui conversando
Hmmm quÊ? Ahhh to sim hmm. Podia cronometrar
desde que a gente chego e cê’ tá aí parado olhando
o tempo que levava para formular cada frase.
pro nada…tua cerveja tá esquentando aí a mó cota.
To cuma puta fome. Será que tem algum méqui
Ahh, verdade. Agarrei o copo com o polegar e o
aberto por aqui? Me recusava a responder aquilo.
indicador, mas logo percebi pequenos grãos de
Nem conseguia mais manter contato visual, ele
areia brilhante no fundo. Desisti do gole em meio
balbuciava enquanto olhava para o símbolo da
a sua execução. Deixará cair glitter na bebida.
Itaipava estampado na mesa. Dava pra perceber como ele estava lutando para se manter desperto
Já não nevava mais sobre a mesa de bar.
… mais estampado que o próprio logo, logo eu via
Descomprindo todas as suas promessas passadas,
e me divertia com o esforço rárárárá. Hmm dá umm
o liquido dourado não satisfez a garganta com
cigarro, po’ fava.
o sútil arranhar de suas bolhas de gás. Mesmo a
Puta que pariu, de novo? Cara odei-u quando
temperatura do líquido se opunha completamente às
você fica bêbado e começa a fuma’ os meus cigarro’!
garantias entregues pelos comerciais de tevê. O
Porra! ou fuma e compra os seus cigarros, ou
valor pago de “5 paus” não valia nem as imagens
não fuma e não pede pros outro’ … falava mas
da loira gelada, morena [de] devassa..
sabia que não ia fazer diferença nenhuma: Rafa ia
Já não nevava mais naquela manhã, marcada pelo
continuar fumando atendendo o chamado da bebida,
amargor no céu da boca. Coberta e completamente
e eu ia continuar reclamando, atendendo o chamado
tingida
do bêbado balbuciante.
loucura esperar por flocos de neve na ponta da
por
glitter
multicolorido,
parecia
língua. O gosto áspero intensificava-se conforme Ela parecia puta — como sempre ela parecia — mas ela ia me dar um cigarro — como sempre eu
o calor e o bafo urbano se agarravam aos nossos tornozelos e subiam pelo pescoço.
cedia pra ele. Jogou o embutido de nicotina na
Já não nevava naquele lado da cidade. Os
mesa. Tomou um grande gole de cerveja, fazendo
olhares das pessoas nos ônibus atravessavam às
com que suas mechas vermelhas recaíssem sobre
rajadas, em fuzilamento, a mim, e ao meu copo
sua nuca enquanto inclinava a cabeça para trás
coberto pela camisa florida. A moça negra que
— a sede que assola o fundo da garganta requer
carregava uma bolsa marrom e um guarda-chuva de
movimentos intensos. Retomou o copo ao seu antigo
10 reais que se espremia no veículo abarrotado de
posto, agora vazio, mas levando como lembrança
corpos; o homem de nariz grosso e marcado, que
uma marca de beijo com batom, relembrando aquela
fumava café enquanto desconfiava do dia; o mendigo
antiga visita aos seus lábios. Sob a cortina da
que puxava o carrinho de mercado de três pernas e
fumaça exalada pelo cigarros, goleei a cachaça.
meia, trazendo seus papelões e restos dos corpos
Ohhh Dieeego! Que que cê’ ta olhando mano?
de obra; o vira-lata dourado que batia asas pela
Cutuquei um de seus ombros magros e ossudos -
calçada em direção ao mercado de Pinheiros — vai
enxergava o dobro do que costumava esperar em
saber o que há de bom pra lá….
uma pessoa - , o que respondi como se despertasse
Já não nevava naquela manhã de sexta-feira,
de um sono profundo, distante. Olhou-me com um
afinal não havia mais tempo para aquilo. As ruas
olhar meio atordoado, meio torto, aquele típico
corriam os ônibus, as pombas caçavam suas sombras.
brilhor ressacado que remetia a outros dias de
A cerveja derramada seguia seu fluxo, engolida pelo
glória, a carnavais de outras eras, a feriados
bueiro fundo e escuro, despedindo-se das três
mais prolongados. —
Que dia era mesmo hoje?
figuras que continuavam sentadas no bar. Joana
Ahhnn. Que foi? Que foi o que? A voz
tomava seu cigarro com cerveja, Rafael bebericava
recém-chegada de outro plano, de uma região onde
a possibilidade de um salgado que aliviasse sua
o tempo era mais lento, onde as coisas eram mais
embriaguez, e eu, e eu nevava em São Paulo.
Sexta?! —
Fotos Lia Petrelli - Acervo pessoal
CHICO BERNARDES Texto e ilustrações por LIA PETRELLI
ARTISTAS FALAM //
O álbum de lançamento de Chico Bernardes
a
canção.
O
recém-lançado
Distante
(2020),
– que leva seu próprio nome no título – compõe
dirigido por Patrick Hanser, busca referências
imagens sonoras que tocam a familiaridade da
e
residência, ou melhor dizendo, da resiliência. O
Bernardes, que parece não se descolar nunca de
que sentimos em nossos corpos diante das notas
sua poética pessoal.
preferências
analógicas
adotadas
por
Chico
tocadas ora apresentam o dourado do sol refletido
Nos encontramos virtualmente pra a entrevista
em janelas, ora a própria vista da janela, de
que não conseguiu ser configurada em perguntas
dentro pra fora e de fora pra dentro. Ora como
exatas, levando em conta o vigor da obra de Chico
espectadores do músico dentro de seu próprio
Bernardes. Portanto, adentramos uma conversa que
ser, ora também como personagens das descrições.
passeia pelas experiências atuais do musicista,
Arrisco dizer que o álbum é necessário pra o
revelando um pouco de sua personalidade, e que
momento de reclusão. As letras, escritas tempos antes do recolhimento social, parecem descrever o fôlego necessário pra que atravessemos este
fluí os modos de composição do álbum.
Frentes Versos: Como foi o começo da sua
produção? Como você se reconheceu na música ?
delicado momento com certa paz. Nada do que
Chico Bernardes: Desde pequeno sempre tive
está exposto é fácil de ser digerido, mas a
contato com a música, aqui em casa. Meu pai
sensibilidade com que Chico consegue contornar
é músico, meu irmão é músico. Eu não era tão
tais
serem
atrelado à música, mas ouvia muita música, então
explicados – torna a jornada sonora extremamente
eu sempre tive uma memória emocional musical
leve. As habilidades musicais do jovem artista
muito forte E uns 5 anos atrás, em 2015, mais
por vezes parecem projetar o futuro dentro das
ou menos, foi quando comecei a tocar violão.
suspenções instrumentais e vocais, não deixando –
Já tocava um pouco de bateria, mas tudo muito
espetacularmente – de se comunicar com o passado,
despretensioso. Quando comecei a tocar violão,
nos mesmos instantes.
comecei
assuntos
–
densos
demais
pra
a
inventar
músicas,
compor
melodias,
A busca de Chico parece lacear lugares que não
compor coisas, e em 2016 eu comecei a escrever
estão dispostos fisicamente, muito embora algumas
em cima dessas coisas que eu fazia. Eu pensava
músicas possam sugerir que o lugar físico também
“Puts, tá legal isso, tá bonito, mas falta algo,
esteja na perspectiva de tais buscas poéticas,
falta uma letra”. Eu sempre gostei muito de
que podem soar melancólicas pra alguns, mas que
escrever, sempre fui muito ligado nas aulas de
também alcançam suspiros existenciais, já que
redação, no colégio. Era um momento que eu achava
a imagem do eu-lírico pode se confundir com a
muito proveitoso escrever. Nunca fui lá o melhor
própria imagem do ouvinte.
leitor, mas sempre gostei de literatura, sempre
Os dois videoclipes lançados pelo musicista
foi uma coisa muito próxima a mim. E sempre
reverberam ainda mais a potência imagética de
gostei bastante de poesia, também. [Acho que]
sua obra. Um Astronauta (2019), dirigido por
Estava tudo ali meio indicando caminhos: comecei
Felipe Poroger e Gabriel Rolim, brinca com as
a escrever as letras muito espontaneamente e
luzes e sombras presentes na trajetória do álbum,
conforme
não abandonando o ambiente galáctico que envolve
mais,
fui
fui
escrevendo,
percebendo
que
elaborando eram
um
pouco
coisas
muito
\\ ARTISTAS FALAM íntimas, muito pessoais, uma coisa que vinha bem
nos conhecendo, tocando junto, eles me deixaram
do fundo. Colocava bastante sentimento naquilo e
uma baita influência. Com eles me apresentaram
tinha bastante prazer em fazer. Então foi meio
sons diferentes, ritmos diferentes, foi onde me
que em torno de 2016 que eu comecei a perceber
envolvi pela primeira vez em um ambiente de troca
que era algo que eu gostava de fazer e desde
musical: de compor com outras pessoas e palpitar
então eu venho entendendo e aprimorando como
no trabalho de outras pessoas, pra construirmos
fazer isso de uma maneira simbólica pra mim: como
juntos algo que fosse um trabalho com “gênio” de
eu consigo transmitir isso de uma maneira que
banda.
realmente tem haver com o que eu senti, e possa
FV:
Essas trocas influenciam bastante sua
provocar esse mesmo sentimento no outro.
produção solo, né?
de dentro e de fora da sua casa?
essas duas dinâmicas, justamente porque quando
FV: Como foi crescer com influências musicais Chico: Dentro de casa, desde pequeno, eu sempre
Chico: Sim, acho que é legal oscilar entre
estou sozinho, eu faço o que eu quero, do jeito
tive um MP3, um DiskMen, pequenos dispositivos
que eu quero — o que é muito bacana, muito bonito
de música que eu podia pôr o fone e dar um rolê,
— mas, é importante saber trabalhar no coletivo
fazer minha zoeira e ouvir música ao mesmo tempo.
também. Às vezes trabalhar no coletivo te aponta
Sempre fui bastante curioso nesse sentido, tanto
caminhos, que você não iria descobrir sozinho.
com coisas: eu colocava o fone e ia fazer alguma
Sozinho, subjetivamente, você tem seus próprios
coisa. Quando era pequeno, meu pai fez um pen-
vícios, e a tendência é sempre circular em torno
drive pra mim, cheio de clássicos que ele falou
deles. É difícil você alcançar algo diferente
“Pô, você tem que conhecer essas coisas, você não
do que você está acostumado, se você não trocar
pode deixar passar essas coisas”, então tinha
uma ideia com outras pessoas que vão apontar
Queen, Chuck Berry, Police, Bob Dylan, Nirvana,
a maneira delas pensar. Você vai fazendo essa
Stones, Beatles, dos mais variados.
vitamina, esse shake de ideias diferentes.
Minhas raízes musicais vieram muito desses pen-drives, dos CDs que a gente ouvia no carro, das coisas que meu irmão ouvia – porque quando éramos pequenos, dividíamos quarto, e ele tinha
FV: O show que você fez na Casa do Mancha, em
dezembro de 2019, você tocou seu álbum com banda. Foi a primeira vez que você tocou suas músicas com uma banda? É diferente de tocar sozinho?
um aparelho de som. Quando ele era bem pequeno ele
Chico: Foi a segunda vez. A ideia de fazer
ouvia Red Hot Chilli Peppers, Gorillaz, coisas
o show do meu disco com banda era reproduzir os
assim, CDs que ele tinha ao alcance, e conforme
arranjos, de uma banda completa, que eu gravei
fomos crescendo, ele me mostrou muita música,
no estúdio sozinho. De certa forma é diferente,
então muito do Folk que eu conheço hoje, meu
porque estava com meus amigos ali tocando, e
irmão que me apontou o caminho. São referências
isso foi muito massa. O Theo, baterista, toca
que a gente compartilha, mas cada um teve sua
comigo na Fernê também, então já tinha esse laço
interpretação em cima daquilo – isso que eu acho
com ele. E o Gabriel, que é baixista, somos
muito bacana. Sou mais do violão de aço, ele é
muito amigos, conversamos muito de música, ele
mais de fazer arranjos de orquestra, umas coisas
faz jornalismo, mas é muito ligado em música,
diferentes, e eu prefiro uma coisa mais violão e
muito ligado em sons, timbres — tem uma percepção
voz, meio sem muita dinâmica, uma música de certa
muito massa de música. Eram duas pessoas que
forma mais parada, mas que tem uma ligação com a
eu imaginava “designadas” pra fazer essa funça.
palavra bem forte.
Quando tocamos foi como se fosse pra ser, sabe?
Depois que eu me formei, em 2016 mesmo, fui direto pra a faculdade de música, desde então fui
Uma coisa muito natural, muito orgânica. Mas
como
era
uma
coisa
que
eu
gravei
criando laços mais fortes com amizades que estavam
sozinho, e veio tudo da minha cabeça, eles meio
muito próximas da música. Comecei a tocar com a
que estavam me ajudando a reproduzir aquilo,
Fernê, que é minha banda, e amigos do colégio,
trazendo novas ideias, agregando às músicas e
alguns de colégios vizinhos, e conforme fomos
trabalhando juntos, em uma noção muito coletiva
\\ ARTISTAS FALAM
de tocar. São duas dinâmicas de banda bastante
é aquela coisa do computador, que você aperta a
diferentes, e as duas são interessantes.
barra de espaço e checa os volumes e vê se está
FV: Encarando sua forma de tocar e sua forma
de produzir arte que dialoga com o “estar em você
mesmo”, como o recurso do analógico te influencia na identificação de você mesmo?
Chico: O analógico de maneira geral, não só
musicalmente? FV:
Isso!
Porque
além
dos
equipamentos
antigos que você usa pra gravar, você também faz fotos analógicas, né?
Chico: Sim, acho que quando eu era mais
bom. No analógico tem vários botõezinhos: dá play e grava, aí dá pra mixar nos botõezinhos sem nenhuma tela, então é bem menos cansativo, nesse sentido. O que é mais prazeroso é que é um gravador dos anos 70, então ele soa da mesma maneira que os discos que eu gosto soam. Eu uso microfones antigos, gravando na fita, então fica com essa sonoridade que eu gosto, e que é uma coisa de época. Hoje
em
dia
a
tecnologia
disponibilizou
novo, era mais ligado em tecnologia atual, só
muito equipamento bom, muita coisa boa, então
que conforme as
telas e coisas foram evoluindo,
a qualidade da gravação é muito boa, mas em
foi tudo ficando muito saturado. Conforme eu fui
questões estéticas também influencia. Então, com
compondo e tocando violão, fui sacando que isso
um tipo uma câmera muito boa, você consegue ver
era uma coisa mais orgânica, mais distante da
até as rugas da pessoa. E eu não sei se quero que
tecnologia — mais distante desse cenário, sentar
ouçam as minhas rugas que eu tenho na minha voz,
num banco e tocar violão, sem nenhum celular
sabe? Acho a textura da fita bem interessante. Tô
por perto, sem nenhuma tela por perto —, era
me aventurando nisso agora.
uma coisa que me agradava muito. Até no caso da fotografia, fui buscar o analógico depois que eu tive essa sacada de que eu teria um trabalho mais
FV: Você escreve à mão ou você escreve no
computador? Chico:
Eu
escrevo
meio
ao
que
tenho
ao
interessante, mais orgânico, do que se atrelado
alcance. Às vezes eu escrevo no celular, mesmo,
a uma tela. E também, na analógica tem aquele
no bloquinho de notas. Às vezes eu gravo um áudio
processo misterioso de não saber no que vai dar,
no celular, aí já está lá e eu escrevo. As vezes
de não ver o produto final na hora que você está
eu espalho vários caderninhos pela casa. Mas
fazendo, não é uma coisa instantânea — isso dá um
tenho também uma máquina de escrever e aí quando
certo charme, eu acho, pra coisa. Tem haver muito
sinto que a letra está pronta, eu bato a letra
com o que eu gosto de experimentar, descobrir
ali pra ter o registro final e fechado da coisa.
coisas, e deixar o acaso resolver. O clipe que eu lancei em abril [Distante], foi gravado em película. A parada queimou, a gente
FV: Você está gravando coisas novas nesse
momento de agora?
gostou, e a gente usou. Também acho interessante
Chico: Tô gravando, mas como lancei o disco
deixar o acaso trabalhar quando você está usando
ano passado e já foi muito esse trabalho de
do
eu
me entender como artista, lançar, iniciar uma
descolei um gravador de cassete, que tem quatro
carreira, aprender a fazer divulgação por mídias,
canais, então eu gravo um canal, depois outro em
usar o Instagram, etc., estou aproveitando esse
cima, e outro em cima, outro em cima, e está sendo
apocalipse que, por ter o privilégio de estar
uma experiência bem bacana, de zero computador.
em casa, seguro, é um momento de respiro, na
Você só dá play, grava o canal que você quer, e
verdade, né, de cidade. Estou aproveitando pra
quando você ouve depois, está lá pronto. É uma
fugir um pouco disso. O Instagram é uma ferramenta
parada bem louca.
muito útil, mas também mexe muito com o ego das
analógico.
E
na
música,
recentemente
Você consegue escutar e mixar, depois de
pessoas e acho que me leva pra um lugar que eu
gravado. Na hora você grava usando fone, mas não
não gosto muito, sinceramente. Então estou me
ARTISTAS FALAM //
deixando mais curtir. Quando sinto que eu quero
meu processo criativo é feito pra mim e, depois,
gravar uma coisinha ou outra, eu gravo, e não por
divido ele com o outro. É um pouco da minha opção
pensar que eu tenho que produzir coisas novas e
enquanto artista.
alimentar minhas mídias, senão fica aquele “Ah, já gravei um disco, e já passou um tempo, então agora tem que sair outro, porque é assim que tem que ser.”, estou indo bem slow motion, no meu ritmo.
FV: Então, lidar com a criatividade nesse
momento é só se respeitar, né? Chico:
Exato.
É
tipo
FV: Sim, e isso reflete muito na sua música,
mesmo. Quando escuto o seu álbum tem hora que dá pra ver você tocando dentro de você mesmo, e tem hora que sou eu olhando pra mim.
Chico: Antes da pandemia eu ia tocar com
uma amiga, a Luiza Brina – uma mineira, que toca violão e manda muito bem. Estamos gravando
deitar,
ouvir
um
uma música juntos, fazendo uma parceria. Ela
disco, ver um filme, fazer nada, ler... Estou
fez uma música no violão, fez a melodia, e eu
com uns negócios da faculdade pra fazer que é
fiz a letra. Ela gravou uma demo, uma primeira
chato, que estou meio empurrando com a barriga
versão, me mandou, e estou regravando umas coisas
porque nesse momento eu estou aproveitando pra
em cima.
desacelerar um pouco do ritmo de São Paulo, e me
queremos manter essa produção dentro do espaço
entender um pouco melhor, rever algumas coisas
da parceria, sabe?. Não estamos com pressa pra
pessoais, da minha maneira de como eu me porto
lançar, estamos experimentando coisas juntos e
e pra onde eu estava indo antes dessa pandemia
isso está sendo bem legal. É algo [essa parceria],
acontecer. Estou percebendo que, talvez, a minha
que partilha desse mesmo ideal que eu tenho de
personalidade estivesse indo pra um caminho que
fazer pelo prazer de fazer, só que com uma outra
não era exatamente o que eu tinha em mente no
pessoa envolvida.
começo. Então estou aproveitando isso pra me remodelar, de certa forma, e acho que isso vai repercutir
de
maneira
forte
na
minha
É uma parceria, mas, por enquanto,
FV: Você é uma pessoa introspectiva?
Chico: Nossa. Sou até demais. O que é bom
música
e é ruim... Mas nesse momento eu estou achando
quando ela for gravada. Quando chegar o momento
até bom. Eu sou uma pessoa que gosto de ter
de gravar, eu vou sentir essa diferença. Mesmo
meu próprio espaço. Eu me considero minimamente
que eu não esteja, a todo momento, compondo,
sociável, eu sempre estou muito bem com meus
tocando, eu permaneço trabalhando. É sempre um
amigos, me dou muito bem com eles, mas eu sempre
trabalho constante.
busco um refúgio no meu espaço, sozinho. É uma
FV: Eu também sinto desta forma que você
descreveu.
Sinto
que
as
coisas
saem
mais
verdadeiras quando você se desatrela da obrigação de se fazer algo.
Chico: Exato. O ritmo paulista, essa coisa
coisa muito importante pra mim. É onde eu me desenvolvo. Eu gosto de estar sozinho, não é uma coisa que atormenta.
FV: Você sente que suas inspirações sonoras
participam desse lugar?
muito rápida. Eu estava me vendo ali no meio de
Chico: Acho que é algo que reflete da minha
uma cena de artistas, e eu pensava “Bom, é isso,
introspecção. Geminiano, né? (risos) Não queria
estou me impondo como artista, então eu tenho que
apelar
ir lançando coisas pra as pessoas ouvirem, pra
aéreo e pensativo. E muito frito, sempre estou
as pessoas gostarem”. Mas isso me tira do meu
pensando em muita coisa ao mesmo tempo. Eu gosto
propósito inicial, que era fazer musica pra o
dos microdetalhes das coisas, então estou sempre
meu bom grado, e não pra o bom grado dos outros,
pensando na picuinha, da picuinha do que está
e depois compartilhar com os outros, ver o que
acontecendo, do que estou vendo, do que estou
eles sentem a partir do que eu fiz pra mim. Pra
sentindo. Esse detalhismo era uma coisa que eu
mim o mais importante é não perder de vista que o
gostava quando eu era pequeno : estava em casa,
pra
esse
senso
comum,
mas
sou
muito
\\ ARTISTAS FALAM
engatinhando, e eu ia atrás do móvel, mexer no não-sei-o-quê da tomadinha. Eu gostava de tatear essas coisas e quando eu fui crescendo virou uma coisa mais mental. Então comecei a tatear mais a
você escreve: dá pra notar bastante o jeito como
você fala do dentro e do fora, simultaneamente. O fato de estar e não estar ao mesmo tempo. Por
exemplo, na primeira frase de Um Astronauta, que
profundidade do meu pensamento.
fala “Vivendo a vida entre um sim e um não”.
é descobrir sua própria essência, né?
indo pra esse lugar, coincidentemente, porque é
FV: Então, o objetivo da sua procura interna Chico: Sim, total. E às vezes nem descobrir,
Chico: O disco, em algumas coisas, acabou
uma soma de canções que eu fui fazendo em momentos
é o próprio ato de procurar e de experimentar
diferentes, sem pensar num conceito único. Eu
e de estar buscando algo, sem ter muita certeza
fui sacando que às vezes tem contrapontos. Essa
de um resultado. É o prazer de estar fazendo,
ideia do Astronauta: eu sempre tive uma fissura
independente do que vai vir depois. E aí o depois
com o macro e o micro, e com o que estamos fazendo
é uma consequência.
aqui, no sentido de por que a gente está no meio
FV: E por você produzir coisas pra você,
que não mostra pra ninguém, você acha que isso
dá um contorno, cria uma aura, que delineia melhor aquilo que você quer mostrar pra as outras pessoas?
Chico: Acho que tem músicas que eu escrevo,
disso? Porque, acredito que a partir da nossa percepção de realidade, a gente pode ver coisas microscópicas, e coisas macroscópicas. E estamos no meio de tudo. A gente tem nossa rotina, nossa maneira
de
funcionar.
Esses
contrastes
muito
diferentes sempre me vêm à cabeça, assim como as
por exemplo, e falo, “Isso é muito, muito pessoal,
incertezas: o que você afirma, o que você nega, e
e eu não estou afim de mostrar”,mas também tem
o que tem no meio dessas coisas. Algumas coisas
coisas que eu falo “Isso é pessoal, mas estou afim
do disco, eu sentia que tinha a ver com isso.
de mostrar.”
Até quando eu fiz a capa do disco, que conversa
É difícil de definir onde passa a faca do que
um pouco com uma música que chama Novo Momento,
é pessoal e eu gostaria de mostrar, ou não. É bem
que fala um pouco de estar vendo que tem uma
do meu humor. Quando eu sinto que é pra rolar,
coisa acabando, mas também tem um futuro incerto,
rola, quando eu sinto não é pra rolar, não rola,
que está chegando e você fica ali, espremido
e eu guardo pra mim.
ano meio enquanto uma coisa acaba e outra não
FV: Agora falando um pouco sobre as letras que
começa. É meio um limbo. O que eu fiz na capa do
ARTISTAS FALAM //
disco: sou eu com duas cadeiras, duas canecas de
por causa, mas ao mesmo tempo também te faz
café e um violão, num jardim. Tem uma cadeira,
flutua por causa dos outros timbres. Em outras
teoricamente, pra mim, e uma cadeira tanto pra
músicas que são arranjadas mais pra voz e pro
alguém que ali já sentou, mas no momento em que a
violão, acho que essa soltura fica mais clara.
foto foi tirada, podemos entender a cena de outra
Eu não gravei essas faixas com metrônomo, então
forma: que não tinha ninguém e eu estava comigo
eu respeitei bastante a fluidez do andamento das
mesmo, ou ainda que mais alguém que pode vir a
músicas e acho que tentei buscar esse conceito
sentar na cadeira. Quando eu criei essa ideia de
meio “avoado”, meio rarefeito da coisa. É bem
capa, me veio muito esse conceito: de estar entre
intuitivo isso.
uma coisa e outra, e quando estou entre uma coisa
FV:
Os
devaneios
descritos
nas
canções
e outra, estou sozinho.
podem ser considerados uma “casa”, sem precisar,
você lê alguma coisa específica ou essas ideias
própria matéria-prima?
FV: Pra chegar nessas concepções poéticas,
são fruto de as coisas que você escuta, que vêm da sua cabeça? Ou um pouco dos dois? Chico:
necessariamente, do físico, já que o som é a
Chico: Acho que sim, eu me acho bastante
nesse momento que comentei de estar sonhando,
Eu não sou lá dos melhores leitores,
estar projetando coisas, e é um ambiente em que
então eu não diria que vem da leitura. Eu diria que
eu me sinto confortável, é onde eu estimulo minha
vem mais de devaneios. Eu sonho muito acordado,
criatividade.
é uma coisa que rola bastante – até tempos de escola, faculdade, eu sempre me locomovia a pé, ouvindo música e brisando muito fundo, pensando coisas, imaginando coisas que poderiam vir a ser. Até na época em que eu não pensava em fazer música, eu me projetava fazendo isso. E conforme eu fui projetando coisas, fui construindo coisas a partir dessas projeções. Então vem mais desses devaneios, e tem muito a ver com caminhar na rua e, de repente, me salta uma ideia, tipo “Nossa, isso
é
legal”,
enquanto
isso
estou
andando,
maluco, com o fone de ouvido, sem olhar o que está acontecendo em volta. É parte do processo.
FV: Acho que é por isso que dá pra perceber
alguns momentos em sua música, não só pela letra,
mas pelas notas, que você parece projetar o
futuro, de uma certa forma. Quando escutamos sua música, meio que conseguirmos enxergar o que virá logo menos.
Chico: Sinto que no disco, musicalmente, eu
tive uma busca sonora de fazer algo bem aéreo. Algumas músicas que têm bateria, e mesmo que tenham a bateria – que é um ritmo mais marcado, uma coisa mais pé no chão – elas têm um elemento mais flutuante. É bem sinestésico isso que estou falando, mas, tipo em Quando Eu Estiver, tem bateria, mas tem um teclado com reverb, tem uma nuvem, uma coisa que te mantém com o pé no chão,
FV: Bom, acho que é isso! Obrigada por ter
topado conversar comigo.
Chico: Imagina! Obrigado pelo convite!
GIOVANA PROENÇA
ESSA HISTÓRIA //
centro
a
seu nome, o “qual o seu nome?” ao “da onde você
cabeça, abrindo o olhar. A luz que chegava
é?” emendando pro “Essa cidade acaba com a gente,
oblíqua pela janela refletia no lustre, formando
não é mesmo?” As palavras escorreram e a levaram
estranha geometria na parede, onde encostado
a uma carona, o itinerário foram os seus lábios
estava
repousada
e o destino final, o beijo. Os pés dela, sem
acima. Aspirava cada detalhe como se fosse ela
sandálias, repousando no para-brisa, com unhas
própria que estivesse prestes a deixar a casa.
cada qual pintada de uma cor diferente enquanto
o
da
criado
sala,
mogno,
girou
a
sutilmente
vitrola
— Pegou tudo que precisava?
desciam a serra; granulados pela areia de quando
— Acho que peguei sim; — respondeu sem nem
voltavam da praia, salpicando o carpete do fusca
verificar a mala surrada que levava na mão, muito menos encará-la. — Ah, — foi tudo que deixou escapar enquanto, nervosa colocava uma mecha dos cabelos loiros atrás das orelhas. Olhe novamente, era tudo que queria saber pedir, veja se não está deixando
branco. Os bancos de trás do fusca branco. — Certeza que não quer mesmo a vitrola? — reprimiu o impulso de abrir a porta do carro de onde tantas vezes fora carona. — Melhor não, eu não sei onde eu vou ficar, o que é que vou fazer com uma vitrola?
nada para trás. Mas em vão, o seguiu pelos
“O que é que você vai fazer com todos os
ladrilhos que sucediam a porta, que ele deixara
discos que levou?” resumiria a pergunta não
entreaberta ao esquivar-se para fora. Um, dois,
dita. Secos & Molhados, Paralamas, Cazuza, nem
três, doze. Contou-os todos ouvindo o som ritmado
mesmo a Madonna seria poupada. De que serviria
dos sapatos de bico fino que ele usava. Parecia
uma vitrola sem discos? Imaginou a si mesma,
até que estava indo a alguma festa, prestes a
girando ao som do silêncio e ao ruído da correia,
cruzar a igreja rumo ao matrimônio.
o corpo tombando no estupor da tontura, e a sala
E lá estava ele: o fusca branco. Lembrava-
girava, girava. Nada ficou no lugar, e ela ria.
se de tê-lo visto na rua um dia, tão diferente
Ele, sério, encostou no carro, e deu-lhe um
dos outros carros estacionados em linha. Nele,
último presente, um olhar dos que já se foram.
o moço dentro, procurando alguma coisa. Passara
Ela repousou a mão no muro, que ele mesmo
por ele e sentira o olhar queimar-lhe a silhueta,
construíra.
corou. Diminuíra os passos, e assim foi, dia a
outono, tijolo pós tijolo, enquanto os ipês se
dia, ela caminhando pela rua, e ele no fusca
desfaziam, as ruas pintadas de pétalas amarelas,
branco procurando alguma coisa, o olhar, faces
— Não há nenhum outro lugar em que eu
coradas, até que ele quebrou a rotina: oie. O “oi” levou ao tudo bem, o “tudo bem?” a qual o
Todo
final
de
semana,
durante
o
queira mais morar, ele havia dito. Ela contava os tijolos como quem conta a
Ilustração: fragmento de obra de Sara Sallum
Do
quantidade de vezes que já sentira a falta do
estaria indo. Restava confiar que os oito dígitos
homem que se encontrava a sua frente: pele,
dela ainda vagassem em algum lugar, onde ela
osso, sapato de bico fino e fusca branco, com
permanecesse presente na cabeça dele. Sussurrou
os dezenas de discos que ouviram em centenas de
o número ao pé do ouvido quando ele a levara
noites, esquecidos em algum lugar do banco de
para casa pela primeira vez, preocupando-se ao
trás. Contou a quantidade de vezes que o olhar
ver que ele não anotara.
altivo dele o traiu ao piscar, como quem conta as noites em que já sabia que não poderia ligar pra ele e pedir que a buscasse, sentasse no sofá
— Sou amaldiçoado pela boa memória, nunca esqueço nada. Remexeu
nervosamente
os
dedos,
enquanto
que ela escolhera na magazine, lesse o jornal
o viu entrar no fusca, incomodando-se com a
na mesa do café repleta dos farelos de pão e
ausência no anelar. Ele abriu a janela e disse
manchas de vinho do jantar da noite anterior. O
as despedidas. “Então, até”. Agora que está
desmoronamento da intimidade implode no vácuo
indo embora, que entrou no carro, que está com
e não se pode ouvir, como num piscar, quando
as mãos no volante, quis pedir: “Me diga, se
simplesmente não se pode mais, quando o sentido
não posso te ligar quando sentir sua falta,
ruiu e tudo que resta é o olhar de um para o
devo só sentar no sofá e sentir seu cheiro pela
outro como quem passou despercebido, sem trilha
sala? Até que se torne cada vez mais distante
sonora.
e eu tenha que sentar na cadeira em que te via
— Então fica assim, a gente se liga quando
trabalhar por horas, a camisa social dobrada
sei lá, quando a gente sentir falta um do outro
nas mangas, o relógio riscado no pulso esquerdo,
— era típico dele, o metódico, falar de sentir
levantar o olhar para mim, sorri, ‘estou farto
saudades como quem marcava horas. Vou sentir
de documentos, vamos para o quarto, lá a gente se
sua falta as oito horas de uma quarta-feira, mas
entende melhor’”?. Mas perdendo-se na memória,
não as três de quinta, porque vou ter relatório
apostou no peso da mudez entalada na garganta.
importantíssimo para entregar no escritório —
Ela sabia que ele ligaria, primeiro todo
ele encheria a boca para dizer, com superlativo
dia, e reclamaria do novo trabalho, do sentimento
e tudo.
de fracasso e da locatária que não gostava de
— A gente se liga. — Não tinha certeza se
música após as dez. Ela do vazio, de andar as
ele ao menos teria um telefone seja lá para onde
ruas como quem levava o peso da incerteza. E
melhor, das bodas.
ele, que o senhor da padaria sentia sua falta,
Ele girou a chave, tirando-a de devaneios
que o gato dela parecia perguntar dele, que na
distantes sobre suas perspectivas, e sorriu um
igreja tiveram que disfarçar a surpresa quando
traço tão fraco que fosse a insistência dela de
ela anunciou que deviam cancelar, por ora, quem
não piscar, não teria captado, o que estaria
sabe daqui um tempo. Ela deligaria com medo que
ele ouvindo, se para ela tocava só o silêncio.
ele percebesse a voz embargada, e desmontaria
Pisou no acelerador e deu a primeira marcha,
no
a
depois a segunda e ganhou a rua. Ela só ficou
cama por toda madrugada questionando se fez a
ali observando o fusca sumir e os contornos
coisa certa. O contato passaria a ser semanal,
converterem-se em borrão, desses que não se
esperado, confessariam saudade e ele juraria
sabe se é de ótica ou de lágrimas. E soube, no
buscá-la e ela acharia ter quase certeza que
silêncio que vertia a ausência das frases que
desejava ir. Desligariam o telefone com um aroma
morreram em algum canto desconhecido, que nunca
de esperança e se convenceriam a acreditar que
mais o veria, era tão claro como poderia afirmar
estava tudo certo, que em breve estariam juntos
que o fusca era branco.
sofá.
Ele
teria
insônia,
e
reviraria
vendo o crepúsculo no Arpoador.
Quando cansou de olhar a rua, entrou na
Entretanto, nada se alteraria; e quando o
casa pela porta entreaberta, fechando-a atrás
contato fosse, por fim, cada vez mais esparso,
de si. Carregando o peso de todas as ausências,
ela teria dúvidas sobre atender e ele sobre
quis mais ver do que ouvir o silêncio que se
ligar, afinal já passava as noites com outro
pode tocar, se encaminhando para o instrumento
alguém. Até que um dia, como qualquer um dos
repousado no criado mogno. Encontrou-o porém,
outros que começava com uma xícara de café, ela
em vingador, golpe de misericórdia, na figura de
liga e anuncia que está vendendo a casa, grande
um disco esquecido. Ávida, colocou-o na vitrola
demais para uma mulher só; ele demorou a atender,
como quem pretende escutar palavra não dita.
desfazendo a mudança para um apartamento maior,
Teve ainda tempo de dar um suspiro fundo, de
com a qual se ocupara toda a semana. Em uma
quem prende o sopro como quem agarra a última
tarde de estações passadas, de tempos que já
esperança, antes do disco rodar o primeiro giro,
trocara a xícara de café pelo chá, uma amiga
preenchendo o vazio da sala de estar: entre por
questiona se ela já sabia das novas dele. Ou
essa porta agora e diga que me adora.
Ilustração: fragmento de obra de Sara Sallum
ela não diria que os amigos perguntavam por
\\ RESENHANDO
MÁQUINAS COMO EU GIOVANA PROENÇA
“Era uma aspiração religiosa abençoada pela
um exemplar do primeiro protótipo viável de ser
esperança, era o Santo Graal da ciência. Nossas
humano artificial, Adão — nomeado em termos da
ambições eram tão sublimes quanto mesquinhas
aspiração de equalizar a nova experiência do
—
mito do Criacionismo.
a
realização
de
um
mito
da
criação,
um
monstruoso ato de amor-próprio”. A proposição
A relação com a tecnologia e as implicações
à moda Franksteiniana de Mary Shelley é usada
dos limites entre o humano e o não humano são
na abertura da narrativa de Charlie, narrador e
temas recorrentes no imaginário e no catálogo
protagonista de Máquinas Como Eu. Publicado em
da cultura pop. No cinema, o filme Her,
2019, o romance de Ian McEwan aborda aspectos
indicado
já conhecidos da obra do autor britânico, a
relação pessoal entre um homem solitário e um
complexidade de relações que fogem da via comum
programa operacional de voz feminina. Uma das
e
grandes tramas de Máquinas como Eu surge porque
se
aprofundam
no
enredamento
de
conflitos
éticos.
a
cinco
Oscars
em
2014,
trata
com da
Charlie não é um homem tão solitário, mantendo
A trama de Máquinas Como Eu transcorre em
um relacionamento com sua vizinha Miranda. Ela
uma realidade alternativa. No contexto londrino
é responsável por moldar metade dos traços de
do início da década de 1980, Margareth Tatcher
personalidade de Adão, o que empolga Charlie
é
primeira-ministra,
que deslumbra que ambos estão produzindo um
aspirado pela esquerda. Para além, McEwan lança
filho juntos. Entretanto, Adão apaixona-se por
mão de não apenas manter Alan Turing, principal
Miranda, que compelida pela curiosidade,
expoente da ciência da computação, vivo, mas
se envolve sexualmente com sua cria, enquanto
também torná-lo idolatrado, recurso similar à
Charlie, assiste inerte interação física — ou
adoração por Henry Ford em Admirável Mundo Novo,
mecânica — entre eles. Juntos, o trio vive uma
de Huxley. Nessa conjuntura paralela, Charlie
dinâmica que ora configura um triângulo amoroso,
adquire por oitenta e seis mil libras o grande
ora deslancha para o poliamor.
destituída
no
posto
de
resultado dos avanços tecnológicos do século XX:
e
No meio literário, em 1950 Isaac Asimov
publicou Eu, Robô, marco na literatura de ficção
experiências e vivências que moldem seus traços
científica, na qual apresenta as três regras da
de personalidade.
robótica: um, robô não pode ferir um humano;
Máquinas como Eu é uma necessária meditação
dois, deve obedecer as normas aplicadas pelos
de McEwan que constrói uma ponte tanto com seus
humanos;
antecessores
três,
deve
proteger
sua
própria
da
ficção
científica
na
cultura
existência. Em McEwan, os robôs desobedecem a
pop, quanto com as complexidades das relações
pelo menos duas dessas asserções: Adão machuca
—
Charlie quando ele tenta desativar seu sistema
contradições políticas de nosso próprio século.
e mais curiosamente, uma onda de suicídio entre
As problemáticas éticas desenvolvidas no livro
os Adãos e Evas assusta seus idealizadores.
questionam mais do que o papel tecnologia na
entre
humanos
e
seres
artificiais
—
e
as
Em um diálogo repleto de reflexões com Alan
sociedade, recaindo sobre a própria natureza
Turing, Charlie busca a razão do desejo desses
humana: Charlie e Miranda cometem delitos morais
robôs
no
em prol de seus próprios interesses, colocando
despreparo das mentes artificiais em aceitar as
em questão se o egoísmo e a maldade não estariam
contradições e imperfeições do mundo, justaposto
intrínsecos à nossa condição, corroborando para
com
a tese de Hobbes
a
pela
desprogramação,
natureza
inflexível
encontrando-o
do
autômato,
que
“o homem é o lobo do homem”.
segue o imperativo categórico da máquina. A
A contradição foge à compreensão kantiana de
irredutibilidade
artificial
Adão, ganhando força com a adição do subtítulo
torna-se mais exposta no encontro entre Adão com
“Máquinas como eu, e gente como vocês”. Em tempos
o filho adotivo de Miranda e Charlie, revelando
em que a pandemia e a quarentena prometem uma
o quão adaptável e inventiva são as mentes
mudança em nossos modos de relacionamento, com
das crianças antes de receber o turbilhão de
o auxílio das tecnologias provando-se maior do
informações acumuladas ao longo da vida, um
que nunca, a leitura da obra de McEwan adquire
contraste com a gênese do robô, já criado com
novos contornos e, quem sabe, novos olhares
um grande acervo de dados e informações, mas sem
sobre nosso cotidiano.
da
inteligência
Ilustração: fragmento de obra de Sara Sallum
e
LAURA PILAN
RESENHANDO // Ítalo Calvino, célebre escritor italiano,
visando provocar uma miséria da qual possam se
estabelece que “um clássico é um livro que nunca
alimentar. Não lhes importa que o restante da
terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Não
população humana sofra – seus fins justificam os
nos resta dúvidas de que A Metamorfose, de Kafka,
meios. O desenrolar do enredo proporciona uma
é uma dessas histórias inesgotáveis. O conto
conclusão tão aguda quanto dolorosa: torna-se
alemão é o ponto de partida para que Ian McEwan
muito simples convencer um grande número de
crie uma sátira política afiada e extremamente
pessoas a apoiar decisões políticas insensatas.
atual. A Barata parte do processo inverso na
A elaboração do enredo partiu do processo
obra kafkiana: aqui, um grupo de baratas se
conhecido como Brexit – a saída do Reino Unido da
torna humano para realizar um propósito obscuro
União Europeia, vivenciada e criticada por Ian
de consequências desastrosas. Não se trata mais
McEwan. O acontecimento recente é perfeitamente
do microcosmo doméstico da família Samsa, mas
comparável com a conspiração das baratas neste
de um macrocosmo onde qualquer decisão causa
romance, visto que o apoio popular e de outros
impactos de proporções universais.
governantes – como o presidente dos Estados
A obra é interessante em sua totalidade
Unidos, por exemplo – conduz, tanto na realidade
e, acima de tudo, em suas minúcias. O título
quanto na ficção, à uma ruptura econômica sem
já é bastante esclarecedor: a ênfase não deve
precedentes.
ser atribuída à transformação – como nos indica
e brutal das baratas é só mais um reflexo do
o título A Metamorfose. Aqui, o foco deve ser
populismo da direita política que se aproveita da
devidamente ajustado para analisar a criatura e
opinião pública para lucrar com o empobrecimento
seus objetivos.
da população – que resulta no enriquecimento da
comensalismo
despreocupado
classe parlamentar.
ironia muito sofisticada: “qualquer semelhança
Uma vez que o reversalismo está implantado e
com baratas reais, vivas ou mortas, é mera
o caos se inicia, as baratas se encontram livres
coincidência”. A leitura atenta da obra nos
para voltar a infestar o Palácio de Westminster.
dá uma certeza bastante lúcida: não é apenas
O ápice do espetáculo mórbido é a cena final,
coincidência.
que constitui, provavelmente, um dos paralelos
O inseto que inicialmente conhecemos é
mais impactantes com a obra de Kafka. O conto
aquele que se metamorfoseia no corpo do primeiro-
alemão tem seu desfecho com a crueldade sutil da
ministro inglês – Jim Sams, um homem sem pulso
família Samsa que, descartando o corpo morto de
e incapaz de tomar grandes decisões. A barata
Gregor em um piscar de olhos, dá continuidade à
– agora de aspecto humano – demora muito pouco
própria vida. O filho de aspecto repugnante perde
para se acostumar a andar sobre duas pernas.
a importância, uma vez que não pode contribuir
Subitamente, alia os instintos de sua espécie
com seu trabalho ou seu dinheiro. Em A Barata,
a formas de controle da população extremamente
o séquito de criaturas vê um companheiro ser
atuais – como a internet e, especialmente, o
brutalmente atropelado. Do corpo fragmentado,
Twitter – a fim de concretizar um plano maior. A
verte uma substância asquerosa que serve de
manipulação é só um dos instrumentos dos quais
alimento aos demais. Extrai-se até a última
Sams fará uso, e sua presença no parlamento
gota do que pode ser parasitado e, depois, a
é apenas a superfície de um grande esquema
casca vazia é despida de utilidade.
político, sobre o qual uma horda de baratas infiltradas no governo conspira.
sugestão utópica de uma solução apropriada. Ian
O autor apresenta uma espécie de teoria econômica
com
aplicações
complexas:
Ao fim, não restam grandes esperanças ou a
trata-
McEwan expõe o problema político contemporâneo na metáfora– que, como
inseto, se infiltra
se do reversalismo – que consiste em inverter
nos cantos escuros de uma sociedade e,
o fluxo do dinheiro. Paga-se para trabalhar e
intrínseco a ela, atinge e desestrutura a esfera
ganha-se ao consumir. As criaturas grotescas,
pública. Cabe ao leitor descobrir como escapar
transformadas nos ministros mais influentes de um
dessa grande ironia – ou tragédia.
Estado, desejam a implementação da nova política
tão
Ilustração: fragmento de obra de Sara Sallum
A epígrafe presenteia o leitor com uma
O
A composição é o fator gritante que marca uma página de Instagram bem-sucedida. Eleva-se o crivo no mundo da arte, quando arquitetos e artistas visuais trabalham a esmo para promover trabalhos, mas também galerias, projetos pessoais, ongs e muitas outras inciativas. Em tempos de COVID—19, surgiu na rede social um museu. Com proposta avessa ao que as galerias chamam de passeio virtual, o hype guia o seguidor que passeia por telas diversificadas, seja pela natureza dos trabalhos prosaicos aos complexos e conceituais, nascidos da sede de retratar a pandemia, mas não só ela. Luiza Adas está radiante, ela, idealizadora do projeto, segue à risca as regras do isolamento social, conversou por telefone com a reportagem e contou como surgiu o Museu do Isolamento Brasileiro, sua página no Instagram que, desde 30 de abril, congrega mais de 20 mil seguidores. Um sucesso expresso, orgânico e espontâneo, pode-se dizer, Luiza é categórica e objetiva quanto aos méritos. Sem mistérios: são seus. Não precisou quebrar a cabeça, ela que já administrava um Instagram sobre arte (@florindolinhas), sabia do potencial. Sabia, mas se surpreendeu. “Eu
ainda
estou
tentando
processar,
em
três semanas recebi milhares de projetos, são pinturas, colagens, fotos montagens”, suspira ela ao telefone. Luiza recebe cerca de 200 trabalhos por dia, “É muita coisa para uma pessoa só, até para uma máquina”, por isso ela resolveu criar um formulário. Assim, mantém a sanidade “Antes tudo chegava por DM, mas como praticamente faço tudo sozinha, não tinha condições de administrar, com o formulário é melhor”, pondera ela. É
coisa
simples,
direta
e
fácil,
sem
as
burocracias que as grandes galerias impõem, custo zero, só não traz o amado de volta em sete dias. Debaixo da bio do Museu do Isolamento Brasileiro, está o link que diariamente centenas de artistas visuais
independentes
acessam.
Luiza,
que
é
formada em comunicação, sempre teve gosto pela arte, ela pode até pedir opinião para amigos e para a família, mas a curadoria é organizada pela
ARTE //
MATHEUS LOPES QUIRINO jovem, e não para de crescer o acervo virtual do
quase um mês à frente de seu projeto, ela conta
MIB.
já ter planos para depois da quarentena. “Quem um
artista
visual
sem
visibilidade,
sabe materializar esse Museu, seria algo muito
colocar a cara de sua obra no sol é um louvável
bacana, mas por enquanto é só uma ideia”, diz
motivo para comemoração, que, em tempos de COVID-19,
ela, reconhecendo as primeiras conversas com gente
pode puxar uma trilha melancólica e uma taça de
do mercado da arte. Mas ainda é muito cedo para
Cidra. Mas e daí? Pergunta que não pode passar
previsões, em tempos de pandemia, a ciência tem a
batido, todo mundo importa, frisa Luiza, que dá o
palavra final.
feedback para os colaboradores. Na época em que só
Por
enquanto,
Luiza
pede
opiniões
para
administrava o @florindolinhas, concentrava-se nos
familiares, troca figurinhas com amigos artistas
artistas locais, de São Paulo, do Sudeste. Hoje,
e arregaça as mangas para seguir montando seu
ela recebe arte de gente de todo o Brasil – e de
acervo
fora dele, também.
carinho para o que o pessoal do Norte e Nordeste
digital.
“Estou
olhando
com
especial
Desde pequena, Luiza Adas gostou de artes.
me manda, eles que geralmente não têm muitas obras
Estudou Relações Públicas, mas era na Fine Arts,
expostas no circuito das fine arts aqui do Brasil
em Boston, que passava as tardes de quarta-feira
[o circuito é quente nas regiões Sul e Sudeste].
aprendendo e comtemplando o acervo da instituição.
Respondendo à provocação do repórter, Luiza diz,
Do
sem se ressabiar, que não é artista, seu propósito
estágio
nos
Estados
Unidos,
ela
voltou
ao
Brasil com a pulga atrás da orelha. Como sempre
é apoiar os artistas.
esteve dentro do circuito alternativo de artes,
A utopia no país da distopia política, para
o @florindolinhas passou a dar visibilidade para
quem faz arte, é uma só: sobreviver do próprio
amigos seus, amigos de amigos, conhecidos, ou quem
trabalho. Pagar boletos. Embora a realidade pareça
mandava um DM.
contradizer e muito esse sonho, com desmontes
Inspirado no projeto The Covid Art Museum,
na
cultura,
cancelamentos
de
editais,
afronta
quem mantém uma dinâmica parecida com a versão
a intelectuais, Luiza mantém acesa a chama que
brasileira de Luiza, ele publica obras que só têm
cultiva desde menina, enquanto observava os quadros
a ver com a quarentena. Ou seja, o leque se fecha
da vovó Oadia.
um pouco para seguir fielmente a proposta, que vai
Imigrante síria, mulher e artista, essa é
bem. Há cerca de dois meses o The Covid Art Museum
a mulher que inspirou a criadora do Museu do
já publicou quinhentas contribuições, tendo mais
Isolamento Brasileiro. Aos 98 anos, a senhora se
de cem mil seguidores no Instagram. Para padrões
emocionou quando sua neta mostrou o projeto e a
de galeristas e é um número muito expressivo.
repercussão dele, e disse: “Você está realizando
“Publico
trabalhos
que
na
um sonho que nunca pude concretizar”. Luiza diz
quarentena e de antes dela também, o mercado de
ao telefone que seus olhos marejam só de contar
arte geralmente é muito exclusivista, claro, há
a alegria da avó. “Ela ia escondida ter aulas de
exceções que dão espaço e apoio para artistas
arte nos ateliês, mulher não podia naquela época,
independentes,
essa
ainda mais nas tradicionais famílias que obedeciam
ainda não é a regra”, opina a criadora do Museu
ao patriarcado”. A conversa por telefone segue
do Isolamento Brasileiro. Para ela, agora é o
o protocolo da pandemia, desejo vida longa ao
momento do setor se unir para passar com sanidade
projeto, não sem antes desejar que este inferno
o isolamento: “Só a arte tem esse poder, essa
acabe o quanto antes. Luiza concorda, afinal, a
força para manter as pessoas em casa, manter a
arte é a única razão para se manter sãos, pelo
mente funcionando...”. Luiza vai além, depois de
menos até o apagar da velha chama.
principalmente
são
hoje,
feitos
mas
Ilustração: Adrieli oliveira (@drka_visualart) - Imagem divulgação
Para
Em
A
Criança
no
Tempo
(1987),
é
o
desaparecimento de um filho que altera o cotidiano de um casal; em O Inocente (1990), uma viagem a trabalho que serve como pontapé inicial para a vida amorosa de um jovem de poucas habilidades sociais; em Amor Sem Fim (1997) é o testemunho de
uma
morte
que
culmina
no
entrelaçamento
obsessivo de duas pessoas; em Reparação (2001), um mal-entendido põe em xeque a felicidade da irmã da protagonista, que se torna ficcionista como que para compensar seu próprio erro; em Sábado (2005), é a aleatoriedade de um acidente de carro que abre as portas para o caos na vida de um neurocirurgião; em Na Praia (2007), é uma noite de núpcias que envereda por caminhos trágicos e põe fim a um casamento ainda incipiente; enfim, seus principais livros trabalham de forma consistente com as consequências de um evento traumático. Nos últimos anos, porém, para o desdém da crítica mais sofisticada — o mais proeminente crítico literário vivo, o inglês James Wood, alterna elogios à potência de suas obras e críticas ao tom, em seus dizeres, manipulativo de sua ficção — e para o deleite dos leitores, McEwan vem experimentando cada vez mais com o elemento insólito em suas narrativas. Essa tendência já havia se manifestado antes, mas ficou clara em Solar (2010), em que, utilizando os elementos literários que desenvolvera em sua bem-sucedida carreira literária, McEwan tratou um
tema
pouco
afeito
à
autoproclamada
alta
literatura: o aquecimento global. Assim como Cormac McCarthy fizera de modo mais acentuado poucos anos antes em A Estrada (2006), McEwan ousou usar um artifício proveniente da ficção científica para situar seu romance em um cenário
ANDRÉ CÁCERES
de catástrofe — claro que de maneira muito menos pronunciada que, digamos, J.G. Ballard (O Mundo
ENSAIO DE TEXTO //
Submerso) ou Ignácio de Loyola Brandão (Não
passa a interferir em sua vida amorosa com a
Verás País Nenhum) já haviam feito. Ainda assim,
vizinha Miranda, não apenas o traindo com ela,
ele começou a unir dois extremos até então
mas também vazando os segredos do passado da
aparentemente irreconciliáveis na literatura.
moça para Charlie: ela teria cometido perjúrio
salto
foi
ainda
mais
ousado
em
para incriminar um rapaz como estuprador.
Enclausurado (2016), narrado do ponto de vista
A palavra “robô” vem de “robota”, “trabalho”
de um feto, quase um Brás Cubas às avessas —
em polonês. Foi cunhada por Josef Capek, irmão
enquanto o anti-herói machadiano era um defunto
do escritor e dramaturgo tcheco Karel Capek,
autor, ou seja, estava para além da vida, o
autor de A Fábrica de Robôs, peça teatral que
protagonista de McEwan era um autor ainda não
empregou o vocábulo pela primeira vez. Em sua
nascido, antes da vida. Esse uso do elemento
origem semântica, o “robô” é um escravo, e por
especulativo alcançou seu ápice em 2019, com
isso grande parte da literatura em torno dessa
Máquinas Como Eu, que investe não apenas em um
temática abordou a questão da mecanização do
triângulo amoroso com um androide como um de
trabalho. McEwan vai além, ousando restituir a
seus vértices, mas parte para uma reimaginação
humanidade em um androide e desafiando o leitor
completa da história, com um cenário alternativo
a buscar em si próprio o que há de humano.
em que Alan Turing não cometeu suicídio e o desenvolvimento
humano
e
tecnológico
Na entrevista concedida por McEwan a este
foi
escriba, o colosso britânico chegou a dizer que
impactado para sempre — ambas as proposições,
se um robô for capaz de escrever um romance,
convenhamos, já estavam explícitas nas obras de
devemos considerá-lo tão humano quanto nós. Sua
Philip K. Dick cinco décadas antes, mas o autor
busca de décadas pelos confins da subjetividade
de Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? e
o levou a uma conclusão muito semelhante à de
O Homem do Castelo Alto não tinha uma sólida
Turing
reputação literária a zelar, como McEwan.
artificiais tem essa mesma premissa) e à da
Máquinas como Eu se passa em 1982, em pleno
(seu
célebre
teste
de
inteligências
ciência moderna de uma forma geral.
regime Thatcher, durante a Guerra das Malvinas.
Na vida real, Turing, o matemático fundador da
Funciona a Ficção, ele reflete que, “romances e
computação moderna, foi perseguido pelo Estado
contos obtêm sucesso ou fracasso de acordo com
britânico
mesmo
sua capacidade de representar, de modo afetivo
depois de ter sido um herói de guerra ao quebrar
e crível, o real funcionamento da mente humana à
a criptografia das mensagens nazistas e ajudar
medida que ela interage com o mundo real”. Pois
a virar o jogo na Segunda Guerra Mundial. No
Ian McEwan, recombinando uma miríade de tradições
livro de McEwan, sua sobrevida permitiu que
literárias, dos cânones às brochuras, reafirma a
os androides se desenvolvessem até se tornar
cada obra sua ousadia para investigar a mente
praticamente indistinguíveis.
humana a partir de seus traumas, analisando não
apenas seus limites, mas sim sua natureza.
por
sua
orientação
sexual,
Como em outros livros de sua carreira, o
trauma está na raiz do conflito de Máquinas como Eu. Charlie Friend compra o robô Adão com uma herança e logo se arrepende, pois o autômato
Retomemos James Wood: em seu livro Como
Ilustração: fragmento de obra de Sara Sallum
Seu
\\ ANTENA ARTÍSTICA
Imagem frame do videoclipe. Disponível em YouTube e Spotify.
Escrevi essa música há três anos em parceria com o Mário Wamser
e eu lançaria uma outra faixa sobre amor livre agora se não fosse a pandemia, mas achei que o momento pedia para dialogar ao invés
de apresentar um outro assunto delicado. Assim, como trabalho com áudio, trouxe meu estúdio para casa e gravei Overblue, que comunica
com as atuais pulsações. Pensei em um roteiro casual para o clipe focado em signos sutis e no registro histórico de um bairro caótico
como o meu (Copacabana), e que está praticamente deserto às dez
Imagem Avó de Vitor - Acervo pessoal
horas da noite. As cores do clipe remetem às sirenes dos carros
ÁRIDO – VITOR RESQUIN
de polícia, que também aparecem a todo momento (casualmente) pelo vídeo. É um alerta de uma violência velada e sobre um futuro que é passado e presente. Só que não há retorno. Mari Blue
São em versos áridos (enxutos) que
o livro é composto. Reflete o meu espelho sagrado: a minha avó e suas narrativas.
Senhora de muitas rezas e poucas palavras. De
maneira
concisa,
como
a
flecha
em
disparada, trago um punhado de palavras,
linguajar, vocabulário e olhar de minha
avó sobre o mundo, colhidos em todos anos
passados. O deslocamento de Minas Gerais a São Paulo ao lado de meu desconhecido
avô-guarani das terras do Paraguai compõe, hoje, sua sabedoria e a possibilidade de netos beberem dessas águas.
É na frase comumente dita por ela “não
se morre um quilômetro de onde se nasceu”, que se entende que um dia já foi quando chega saudade da seca. Vitor Resquin Imagem capa da Antologia. Disponível em www.deusateu.com.br
ANTOLOGIA VIRTUAL DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA O projeto, idealizado para o site Deus Ateu, por Marcio Tito, com organização de Lia Petrelli, a convite,
pretendeu envolver a produção contemporânea através de um paralelo entre idades e regiões brasileiras, ampliando o alcance poético dentro de composições que percebem a coletividade como potência.
A inciativa da Antologia foi unir a poesia num panorama contemporâneo, reverberando a produção poética de
diversas linguagens, por isso, além do texto disponível na integra do site, a divulgação dos poemas encontrou
desdobramento em composições de videopoesias, convidando atores e intérpretes para envolverem suas visões particulares sobre cada poesia. Marcio Tito e Lia Petrelli
ANTENA ARTÍSTICA //
Imagem frame do videoclipe. Disponível em YouTube e Spotify
Imagem Capa do single Me Diz.
SE PÁ... Resultado
ME DIZ - LUMANZIN de
experimentações
sonoras
que
mesclam
música
A
artista
multimídia
LUMANZIN
brasileira, jazz, trap e neo soul, Se Pá... é uma prévia do novo
aposta na experimentação colaborativa
canção podemos traçar o paralelo passado-presente-futuro que compõe
lançado dia 5 de junho, desponta nas
mencionam Trem das Onze, de Adoniran Barbosa. As questões presentes
a influências brasileiras gingadas em
de todas as verdades que somos forçados a acreditar. Talvez fique mais
registrada da artista suspende a canção
em sua composição. As imagens expressionistas do clipe mencionam o
piano e percussão que percorrem o corpo
claustrofobia e solidão. Apesar de não ter sido composta ou gravada
canção fala sobre os tantos tipos de
desespero da geração contemporânea em sua música.
e surgiu a partir de uma relação que a
disco do cantor e compositor paulistano Leo Fazio. Ao escutar a
em suas composições. Me Diz, single
a sociedade, as influências da letra falam do Paranauê da capoeira e
linhas aposta na linha de baixo, mesclado
na composição conversam com o tecnológico e questionam a veracidade
jazz.
implícito para quem mora em São Paulo a linha densa que Leo carrega
em nuvens sinestésicas acompanhadas de
Cinema Marginal, evocando a fragmentação do corpo enclausurado em
como todo e preenchem o ambiente. A
neste delicado momento, Leo Fazio mostra com extrema lucidez o
amor que experienciamos durante a vida,
Lia Petrelli
artista teve aos 17 anos, reformulada
A
sobreposição
de
voz,
marca
recentemente para o lançamento. A
faixa,
produzida,
mixada
e
masterizada por Gil Mosolino (kermit), conta
com
a
participação
de
Luca
Maestri no violão, Lucas Cunha no baixo e Danilo Moura na percussão. Single
disponível
em
todas
as
plataformas. Lia Petrelli
NATHÁLIA BEZERRA A
sensibilidade
opera
sentidos
isolados-e-nem-tanto.
Articulando corpo-palavra-sentimento, Nathália abrange condensações intensas em seu trabalho. Verbo-visual parece ser mesmo o termo
correto para definir o trabalho da alagoana, que fotografa desde 2018. Damos graças às conexões virtuais e vibramos encontros preciosamente
delicados dentro do momento pandêmico. Muito embora as coisas escritas e sentidas pela artista estejam longe de serem isoladas,
o espaço de criação parece ser o respiro necessário neste momento. Acompanhe o trabalho de Nathália no Ig. @nathaliabezerra_. Imagem divulgação - IG @nathaliabezerra_
Lia Petrelli
\\ ANTENA ARTÍSTICA VÍDEO PROJEÇÕES DE BRETAS “Meu nome é Bretas! Sou artista de Novas Mídias e VJ.
Meus trabalhos surgem a partir de diálogo entre sensibilidade
e tecnologia, entre corpo humano e suas recentes extensões. É isso que tento contemplar nas projeções: a imagem em escala
arquitetônica ou corporal e como ela muda nossa percepção ao objeto, seja esse um prédio inteiro
ou outra pessoa, ou alguma
outra coisa banal que eu tenha em casa. Pra mim, a imagem tem esse poder, de agenciar as relações humanas, subverter pré-
-existências, criar arquiteturas em outras arquiteturas e corpos sob outros corpos. É assim que gosto de pensar no videomapping e na minha arte; uma sobreposição..” Guilherme Bretas
Imagem frames de vídeo-projeção. Disponível em @bretasvj
LAB CORPO-PALAVRA O
Lab
Corpo
Palavra
oferece
caminhos
curso on-line pedagógicos
e artísticos que convidam a uma prática de modulação das conectividades entre presença corporal, qualidades de movimento
e produção de conhecimento. Um ambiente de experimentação de escritas cartográficas e sensórias, permitindo liberação dos fluxos das motricidades do corpo e a abertura de um campo
sensível. Co-criar as motivações, (re)organizar o modo de ser
e estar em nossas relações pessoais e profissionais. O corpo e suas múltiplas potencialidades de criar poéticas! Aline Bernardi Imagem divulgação logo marca. Contato via Ig: @contato.alinebernardi
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Máquinas como Eu
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A Ocupação
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CRÔNICA // ou italianos. Dormi de jeans azul americano, camisa social branca, de linho, óculos na ponta do nariz, chá derramado no assoalho de estalos. Coço a barba, alguns papéis estão molhados por chá. Perdi a deixa. Abril acabou. Não enviei cartas, fechei-me no apartamento. Escrevi pouca coisa, só conveniências para pagar o aluguel, comprar meias quadriculadas. Jantar guisado num
MATHEUS LOPES QUIRINO
restaurante perto do campanário, comprar o mesmo disco duas vezes para me assegurar que nunca
Despertei. Com os olhos borrados, como se a saia de uma senhora inglesa me confundisse, caminho meio trôpego pela sala em direção à janela. Está frio. O apartamento está repleto de fuligem das fábricas dos subúrbios perto daqui. O vento entra sem se anunciar, como o silêncio, ambos de mãos dadas ritmando a agulha que se interrompe pelo meu toque. A valsa das cinco e meia da manhã cessa. As janelas fecham. Uma senhora inglesa rega as plantas já mortas no térreo. É ainda muito cedo, estou com os lábios secos, tremendo. É possível ser um delírio. O apartamento parece uma geladeira. Todas as músicas ressoam em uníssono. Está para amanhecer. O
círculo
roda,
como
se
inventasse
uma partitura própria, uma música tirada do maestro, sem ele saber. Toca e viruptenteoso, inventa uma palavra. Toca os bigodes, penteia a orquestra. Observo os pássaros de um enorme carvalho semipodre da frente do prédio. Dormem em seus ninhos, protegidos do frio e da fome. Nos
telhados
dos
edifícios
vizinhos,
gatos
passeiam e dão adeus à farra. A manhã os enxota para dentro de suas casas. Reparo um felino que contorna a torre pontiaguda do campanário, roçando o rabo nas gárgulas, aquelas tristes mulheres enfeitiçadas por amores não-românticos. Invento
uma
historinha
digna
de
sono.
Esqueço. Um passo para frente, já é abril. Observo o sofá do qual me levantei, a manta escocesa com rendas ridículas, a New Yorker amassada ao lado de papéis de bombons caros, meias quadriculadas, lápis pretos que sublinham frases grandes com nome de artistas tailandeses
vou perder aquela música. Que nunca vou sentir frio, passar fome. Ando para trás, mas abril não irá voltar. Não há como retroceder, apenas ler o jornal de ontem e fingir surpresa ao ver minha foto em algum lugar. Está clareando. O tempo é um maestro, o silêncio, o regente principal. A primeira manhã de maio é a mais bonita. Arregaço as mangas e torço um pano para limpar a bagunça feita pela sonolência. Penso nas consequências da carta não enviada, das palavras esquecidas, mantidas em cárcere pelo sono. E ainda bem. O mundo está cheio de guerras, desvios, epidemias. Desço para apanhar o jornal. No meio dele há uma carta, letra miúda, caligrafia fina para o lado direito. Chegou a resposta das minhas palavras. Não posso agradecer com muita polidez. Aperto os papéis e digo, catedrático, abril acabou. Eu preciso de você nas minhas mãos. Sua letra desperta o mais encantador dos silêncios enquanto subo as escadas de emergência. Leio e releio várias vezes as mesmas cinco estrofes. Repito, agora ao som de Wagner. É de manhã, vou buscar minha flor. Você termina. Abril acabou. As guerras cessaram. As doenças foram vencidas, os negócios fechados, um corpo entregue ao outro, o sorriso dado, o sim dito. A valsa dançada, o pássaro voa ao Oriente. Leio mais uma vez o último parágrafo. Abril acabou neste exato momento. Quando o sino das seis toca, maestro recebe uma salva de palmas, as garças se alimentam, as fadas voltam a dormir nas flores, você me beija num futuro próximo e distante. Eu sei que sim, eu quero sim. Abril terminou, te escrevo amanhã, sem falta.
Ilustração de Micaela Bravo para Frentes Versos