Expressão

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EXPRESSÃO REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

ANO 21. NÚMERO 42. 1º SEMESTRE DE 2015

A ERA DO xia

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Su

ÓDIO


Editorial

A

Calar é ouro, falar é prata

multiplicidade de opiniões. Da vinda dos imigrantes à formação da nova sociedade. Um processo de crescimento e desenvolvimento que mudou gerações. Ter opinião e emiti-la virou norma. Todos opinam, manifestam, exigem, cobram, querem – e na hora. Mas, quem disse que todo mundo precisa ter opinião sobre tudo? Nas redes sociais, opinar se tornou exibicionismo, e as pessoas acabam confundindo determinadas informações. Debatem interminavelmente – e apaixonadamente –­sobre qualquer assunto que vier à pauta. Seja declaração de um político, resultado de jogo, programa de TV, todos têm opinião formada sobre tudo. Tudo é uma questão de contexto. As redes sociais, o Facebook principalmente, misturam notícias sérias a notícias fúteis – compartilha-se sem verificar data ou origem. O exercício natural à prática do jornalis­ mo, aos poucos, está sendo repassado para todo o público não jornalista. Assim, é fácil acabar com a reputação de uma pessoa com alguns posts no Facebook. Os internautas parecem alunos com pirulitos. Se estivessem num ringue, seriam divididos entre os que defendem e os que atacam. E o que vemos com isso? É o discurso do ódio, o discurso do medo. É esse que predomina nas ruas, nas redes, no horário gratuito, nos debates. Neste abismo, fica um vazio: temas críticos são “varridos para a base do vulcão”. Não se fala de drogadição, de preconceito, de economia, de educação, de racismo, de homofobia, senão sob o viés repressivo, virando as costas para o mundo. Não se discutem políticas públicas. Bate-se a tecla dos escândalos que são endêmicos, desde que o Brasil foi colonizado. Já foi normal duas pessoas se digladiarem até a morte para entreter a multidão. Também já foi normal queimar mulheres na fogueira por bruxaria e fazer pessoas trabalharem sem remuneração com direito a castigos físicos apenas pela cor da pele. Era normal, também, humanos se alimentarem de sua própria espécie e casarem sem amor. Já foi normal passar 40 horas da semana fazendo algo que se detesta; mentir para ganhar dinheiro e devastar florestas inteiras por ganância ou desconhecimento sobre o que é de fato desenvolvimento. Afinal, o que acontece nesse processo de banalização de atos cruéis­ e indignos? A sociedade está doente? Segundo alguns psicólogos, sim. O que fica de tudo isso? Tristeza. Apatia. Um país partido em polos que podiam­ dialogar, mas duelam. De que maneira o brasileiro vai dialogar com o outro, diferente, se não há reflexão e troca de ideias na busca de soluções? É saudável que as pessoas participem dos assuntos, tenham sua opinião,­mas é importante, também, que elas busquem dados que comprovem opiniões e levem ao aprofundamento do conhecimento e dos fatos. Culturalmente, criou-se o mito de que assumir que não sabe/não conhece sobre um tema, tornaria alguém menor que os demais. As pessoas têm vergonha de dizer “não conheço o suficiente para opinar” e passam a opinar e a defender sua opinião (baseada em achismo) com “unhas e dentes”. Essa sensação de euforia e paixão pode ser boa, desde que embasada. Sem um mínimo de ponderação, “mergulhamos de cabeça no redemoinho­” da desinformação que nos “puxa ao abismo”. Mas essa força não age sozinha, é preciso que se dê o primeiro passo. Portanto, calma. Informe-se.

A revista Expressão tem por objetivo apresentar reportagens de relevância à sociedade. Privilegia o design agradável à leitura e captura informações em cada texto. Porém, a pretensão maior está no conteúdo das reportagens. Cada uma delas deve em princípio, apresentar como é o discurso sobre determinado assunto, como tal assunto é encaminhado ou acontece na prática e ainda lançar alternativas para a problemática levantada. No âmago da proposta, está a reportagem “A era do ódio”, que apresenta aspectos do cenário social e político atual. Entrelaçado na concepção de apresentar a realidade, estão os textos que reportam a assuntos de interesse social, educativo, econômico, político e da saúde. Como a revista também objetiva a prática acadêmica, os parâmetros de ética, na busca das fontes, perseguindo a melhor e mais correta informação possível, fazem parte da elaboração das reportagens.


SUMÁRIO

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Fantoches da economia

Drogas

Bárbara Armino

29 controladas

Lilian Donadelli

4

Padrões de beleza

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Micromachismos

10

Preconceito RS

Janete Schwartzhaupt

16

Campo dos esquecidos

35

Rodrigo Chernhak

Leandro Galante

140 anos de imigração italiana

22

Por trás das grades

Alexandre Brusamarello

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19

32

Nathália Magrin

Kamila Mendes

O mito laico

Mayara Bergamo

A era do ódio

Diogo Elzinga e Michael Susin

Educação: direito de todos

Milena Schäfer

Por que a

38 bike não anda?

Ana Mutterle

41

Área de conflitos

Marcelo Casagrande


beleza

Curvas SUPERAM RETAS André Charão/Divulgação

O cuidado com o corpo e o acesso à academia­ criaram novo padrão mundial

Alexandre Brusa abrusamarello@ucs.br

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Renata Gakeazzi (D) trabalha como modelo há cinco anos

I

her não coincide com o ideal de beleza supermagro que propõe a mídia. Ao contrário, os perferidos são os corpos femininos de modelos com peso normal e saudável .

O gosto pela malhação e pelo cuidado com o corpo criou um novo padrão de beleza. As mulheres mais magras e com estrutura frágil ainda são escolhidas pelas grandes marcas do mundo da moda, para serem suas modelos, mas já não são as preferidas pelos homens. Uma pesquisa realizada na Universidade de Granada, na Espanha, feita com 671 estudantes, comprova que o tipo ideal de mul-

Com 105 cm de quadril, 64 cm de cintura e 91 cm de busto, distribuídos em 1,75 metros de altura, a modelo bento-gonçalvense Renata Galeazzi, 23 anos, é o modelo perfeito deste novo padrão. Entretanto, ela anda longe de passarelas. Há cinco anos começou a se apresentar em feiras e eventos esportivos. Ela veste as roupas coladas dos patrocinadores e desfila ao lado dos campeões no pódio. Para manter o corpo necessário para esse tipo de trabalho, ela malha pelo menos três vezes por semana. Segundo ela, as idas para a academia são apenas para manutenção da musculatura. “Para ficar realmente grande, precisaria de um personal trainer e mudar toda minha alimentação. Eu emagreço muito fácil, por isso tenho que estar sempre em atividade”, avalia.

r à academia é um compromisso cada vez mais corriqueiro para os brasileiros. Na Serra gaúcha não é diferente. Em Bento Gonçalves, cidade com 112 mil habitan­tes, de acordo com a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de academias aumentou 52% nos últimos cinco anos. A academia Phantom, primeira a se aventurar nesse ramo na cidade, em 1986, chegou à marca de 500 alunos em outubro do último ano. Há uma década, esse número não passava de 150.


É mais difícil para elas O professor de Educação Física, pósgraduado em Fisiologia do Exercício, Gian de Oliveira, alerta que apenas com muito treinamento, alimentação extremamente regrada, suplementação alimentar saudável e uma condição genética bastante favorável,­ uma mulher consegue ter uma musculatura parecida com a de um homem. “Via de regra, essas meninas mais masculinizadas buscam um padrão de beleza impossível, e para chegar até ele, acabam consumindo esteroides anabolizantes prejudiciais ao organismo. Ou seja, elas abrem mão da saúde para pensar no visual”, ressalta.

No caso das mulheres, o uso de anabo­lizantes pode gerar outras características masculinas no corpo, além dos músculos avantajados, como engrossamento da voz e o surgimento de pelos acima do normal. Contudo, há outro grupo de mulhe­res que não malha por vaidade ou profissão, mas sim na busca do envelhecimento saudável. O gosto pela rotina de treinos nas academias criou uma série de fãs. É o caso da professora de Educação Física Virna Canova, de Porto Alegre. Em sua estreia no Campeonato Gaúcho de Levantamento de Peso, em 2014, ela conquistou o título. Virna afirma que pratica malhação desde a

adolescência, mas começou a perder peso a partir do uso de suplementos e de uma reeducação alimentar. Desde então, começou a ficar empolgada com os resultados obtidos. “Hoje, treino pesado de cinco a seis vezes por semana. Além da perda de peso, pude notar que estou muito mais ágil e disposta”, avalia.

Essas meninas mais masculinizadas buscam um padrão de beleza impossível Apesar de toda malhação e suplementação alimentar, Virna conserva um corpo bastante feminino. Mesmo assim, ela vê com naturalidade as mulheres que preferem criar um corpo mais masculinizado. “Acho que continuam lindas e femininas, independente do volume dos músculos que possuem”, ressalta.

ElsBrinkerink

Conforme Oliveira, a diferença entre o corpo masculino e o feminino é a presença do hormônio testosterona, responsável pela formação dos músculos, abundante no corpo masculino e escasso no feminino. “As mulheres têm em abundância o estrogênio, responsável por uma série de outras funções, como o controle da menstrua­ção, por exemplo, mas não para o ganho muscular”, descreve.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, o uso de anabolizantes pode causar diversos problemas, como o aumento de acnes, distúrbios da função hepá­ tica, tumores no fígado, alucinações, psicoses, coágulos de sangue, aumento da pressão arterial e risco de adquirir doenças como Aids e hepatite.

Preparador físico recomenda suplementação alimentar para quem quer buscar um corpo saudável

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O que é ser saudável? De acordo com a nutricionista Rosângela Moraes, o conceito de saudável, pela Organização Mundial de Saúde, é muito maior do que conservar o corpo livre daquelas gordurinhas que tanto incomodam. “Ser saudável é proporcionar a si bem-estar completo, incluindo a parte física, mental e social. Sem este conjunto, não adianta criar músculos em cima de músculos”, alerta. Ainda conforme Rosângela, a procura por um nutricionista tem aumentado sistematicamente por quem quer iniciar a busca pelo corpo perfeito. Contudo, ela descreve que, na maioria das vezes, seus clientes já vêm com conceitos pré-prontos, completamente deturpados sobre o uso de suplementos ali-

mentares. “Eles já aparecem com uma sacolinha de produtos, jogam tudo na minha mesa e dizem: Eu estou tomando estes aqui. Eles só querem saber como usar. Se antes do treino, depois do treino, pela manhã, em jejum’. Não é assim. Por vezes eles gastam rios de dinheiro acreditando em propagandas de produtos completamente ineficazes”, descreve. Mas os prejuízos vão muito além do financeiro. Ela reforça que problemas renais e cardíacos são normais em quem faz uso de suplementos erroneamente. Rosângela descreve que, mesmo o uso de substâncias comuns pode debilitar a saúde de uma pessoa, se forem mal-administrados. “As pessoas misturam albumina com creatina e

outras proteínas. Todas juntas. É óbvio que tomando todos juntos acaba por sobrecarregar os rins. Mas as pessoas não se dão conta”, completa. A personal trainer Paula Paixão ressalta que todo o acompanhamento deve ser individualizado. Segundo ela, até mesmo doenças de infância, questões ambientais e genéticas fazem diferença em um treinamento. “Falando em Índice de Massa Corporal (IMC), o que é uma porcentagem boa para mim pode não ser para outra pessoa. Por isso, o acompanhamento de um profissional é essencial. Ele é quem vai delimitar os limites do saudável e do exagerado”.

Padrões de beleza Uma viagem no tempo Pré-história

Renascimento – 1650

Curvilíneas – 2010

Acredita-se que a Vênus de Willendorf, datada de 28 mil anos atrás, pode ter sido usada em rituais de fertilidade, já que carnes generosas durante muito tempo foram consideradas propícias à procriação.

No Renascimento, a Virgem Maria, musa dos pintores medievais, cede espaço para representações da deusa Vênus. As mulheres exibem longos cabelos, formas roliças e voluptuosas e até uma barriguinha pronunciada.

Com a popularização das academias, os corpos femininos deixa­ ram de ser esguios e ganharam curvas gene­ rosas. Seios e quadris grandes passam a ser objetos de desejo de qualquer mulher.

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Grécia – 1200 a.C.

Supermodelos – 1990

Na Grécia, a educação física era considerada um pilar da formação dos homens. Eles treinavam para se tornar soldados ou competir em jogos públicos. As academias de luta e culto ao corpo escultural eram criadas.

Modelos sempre ditaram padrões de beleza. Mas foi diferente com a geração de Gisele Bündchen, as top models do início dos anos 90. Altas, magras, curvilíneas sem exageros, dominaram a cena na era das supermodelos.


Leandro Galante

MICROMACHISMO

ALÉM DO AZUL E DO ROSA O modelo de hombridade evoluiu, mas persistem atitudes “micromachistas”, e alguns núcleos resistem à igualdade.

Leandro Galante lgalante@ucs.com

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iariamente, ao caminharem ou aguardarem ônibus, carona ou alguém, mulheres ouvem elogios e monólogos masculinos descritos como cantadas. A maioria delas responde com silêncio. Tal atitude é de conhecimento geral de homens e mulheres. Entretanto, o machismo está tão entranhado no cotidiano, que sequer é percebido como tal. Se assuntarmos, perceberemos que convivemos com outros micromachismos, além do citado. Entretanto, ele não ocorre apenas nas ruas, mas no próprio lar. Há séculos, mulheres não se posicionam quanto à inércia doméstica de seus parceiros, por exemplo. O psicoterapeuta transpessoal, Domicio Brasiliense, explica que o mundo masculino defende um “espaço x”, e coloca a mulher num “espaço y”. Isso se torna um tipo de discriminação, como se o mundo do homem detivesse uma verdade da qual a mulher não pode usufruir. “No momento em que eu começo a separar, eu começo a ditar que tenho a verdade e que todos devam segui-la. Mas, a verdade nunca se dá por divisões, por coisas segmentadas. As verdades se dão por unidade, por trabalho em equipe, por uma família que trabalha junta, por uma sociedade que constrói junta. A cada momento em que nós levantamos

uma bandeira, dizendo eu tenho a verdade, estamos criando uma sociedade sectarista”, explica. Até que mães criem filhos que cresçam colabo­ rando com as tarefas caseiras, cabe a namoradas e esposas doutrinar os cônjuges. É na diminuição machista diária e domiciliar que se esboça a igualdade de gêneros na sociedade. TERRORISMO INFANTIL – Muitas situa­ções estão explícitas nas relações interpessoais. Para Brasiliense, a situação, quando acompanhada de perto por crianças, torna-se um terrorismo. “As crianças e todos que vão se desenvolvendo na sociedade vão internacio­ nalizando como uma crença a ser seguida, e isso acontece na nossa forma estrutural, como nós estamos convivendo”, enfatiza. O psicoterapeuta explica, ainda, que uma criança, que está em uma casa em que o pai trabalha fora e a mãe fica no lar, já está internalizando coisas que não são faladas e que não são discutidas, mas que são segmentadas. “Essa construção já vem de uma forma cultural, mas que não é falada. Ela se propaga de tal forma que, mais tarde, se um homem bater numa mulher, porque ela não se comportou de uma forma devida, aquela criança, hoje um adulto, pode achar que não é algo tão errado assim”, reforça.

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É também nessa fase que crianças e adolescentes adotam, ou são coagidos a usar cores preferidas. “Nisso também tem um preconceito do feminino e do masculino que, na verdade, vemos nos jovens de hoje: os rapazes que não usam rosa, como se isso denotasse algo relativo a sua sexualidade; as menininhas que usam rosa pink porque é bonitinho e é normal para menina”, reforça Domício, fazendo alusão ao uso do azul e do rosa. RELIGIÃO DEUS HOMEM – Na religião, o psicoterapeuta cita como exemplo a Igreja, quando aponta Deus como um homem, velho, muito sábio, destacando que poucas pessoas imaginam um Deus feminino. “Quer dizer, o Deus, o Salvador, e nós nunca paramos para pensar que pode ser uma deusa, uma salvadora, ou até uma entidade que não seja nem feminina nem masculina. Se ele pode ser o onipresente, onisciente, ele seria unidade de tudo, mas não só Deus.” Outro fator apontado é que a Igreja Católica mantém padres para rezar as missas, cabendo às freiras o papel segmentado. “É um tipo de terrorismo íntimo que acontece, porque

na questão da religião, das próprias filosofias, da própria maçonaria, faz pouco tempo que a figura feminina começou a fazer parte, ao contrário da Rosa-Cruz, que sempre teve homens e mulheres”, argumenta. A busca de espaço na sociedade, por parte das mulheres, é apontada pelo psicoterapeuta como uma questão micromachista, em que os homens isolaram as mulheres em seu espaço. “Uma criança vai para uma escola católica, cristã, ela aprende que todos os apóstolos são homens, que Cristo e os Apóstolos eram homens, mas Madalena é a que precisou ser salva. E o que nós estamos fazendo até hoje? Tentando salvar as mulheres. O mundo masculino é tão bonzinho, que hoje as deixa entrarem no mercado de trabalho”, enfatiza. EVOLUÇÃO – O psicoterapeuta afirma que a situação tem evoluído e aponta algumas melhorias, como a liberdade de expressão: Leis que amparam pessoas que se amam de outras formas, homens que vestem camisa rosa, mulheres com cargos diretivos, donas de empresas. A alternativa apontada pelo psicoterapeuta é a

busca do verdadeiro eu. “A sociedade, nas suas associações, nas suas representações, precisa entender quem é o ser humano; e quando falamos em quem é o ser humano, não estamos falando em questões de gênero, mas em questão de pessoas que têm um coração, uma alma, afetividade, um campo emocional, e é isso que nos falta. É parar de levantar bandeiras, defender verdades, mas acolher o verdadeiro eu de cada um, entendendo

O maior avanço é a discussão da implicação disso na cria­ção dos filhos. quem é essa pessoa e o que ela busca para a sua realização. Então, o que nos falta é essa empatia, essa sensibilidade para que, realmente, a partir da verdade de cada um, possamos construir uma coletividade saudável”, complementa.

Leandro Galante

Dalyla e Ismael dividem os serviços da casa

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De berço Evanido Peruzzo, 49 anos, e Rozane Barbieri Peruzzo, 48 (foto abaixo), estão juntos há 30 anos e casados há 12. O casal sempre dividiu as tarefas de casa. Talvez esse seja um dos segredos do forte e duradouro relacionamento. Rozane é vendedora e passa boa parte do tempo fora de casa. Evanildo é profissional autônomo e, além da profissão, auxilia nos afazeres domésticos e no cuidado com a filha de 12 anos. Desde bebê, ele a acompanha na escola e até a mãe chegar do trabalho. “Com isso, pude acompanhar todo o seu desenvolvimento”, conta.

às vezes, mas o restante, vou deixando organizado”, explica.

Para Rozane, o apoio do marido é fundamental. “Nos dividimos nas tarefas da casa. Para tudo que eu preciso, ele está ali. Lava louça, seca, varre”, afirma.

Mas foi em casa que Schimitz aprendeu como podia ser dife­ rente. “Minha mãe sempre trabalhou fora e meu pai fazia uns biscates. Então, ele ajudava em casa. Aprendi com eles; tive exemplo em casa e acho isso bem normal”, argumenta.

A mesma situação ocorre na residência do jovem casal Ismael Schimitz, 25 anos, soldador, e Dalyla Bassani, 23, operadora de caixa (foto ao lado). Eles namoram há mais de oito anos e moram juntos há dois. O casal tem horários diferenciados de trabalho e, como Ismael chega antes em casa, os trabalhos domésticos ficam a cargo dele. “Eu poderia chegar em casa, me jogar no sofá e esperar que ela fizesse a comida, mas prefiro ajudar. Só não faço muita comida, invento alguns pratos

Dalyla vê o empenho do marido como uma força para o dia a dia. “Às vezes, penso que se tivesse que fazer tudo não seria fácil. Ele me ajuda em tudo”, ressalta. No trabalho, Ismael vê o preconceito e o pensamento micromachista de alguns colegas. “Quando falo que não posso fazer hora extra para ir para casa ajudar nos trabalhos, meus colegas afirmam que isso é coisa de mulher, que devo ir para casa assistir TV”, revela.

A expectativa do casal está aumentando. Logo mais irá nascer a pequena Rihana e os pais já estão planejando como será a rotina de trabalho. Ismael será o responsável por pegar a criança na creche e cuidar dela até que a mãe chegue do trabalho. “Não vejo a hora de vê-la correndo pela casa. Vou fazer o possível para cuidar dela da melhor maneira”, encerra. Leandro Galante

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TRADICIONALISMO José María Pérez Núñez

PRECONCEITO E PODER A proximidade e intensidade do conhecimento levam à diminuição do preconceito

Janete Schwartzhaupt jcsgoncalves@ucs.br

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A

tualmente, preconceito é crime, está na legislação; porém, este é o discurso, enquanto na prática aspectos culturais enraizados demonstram a discriminação latente na sociedade. Quem sustenta isso é a doutora em história, Daisy Lange Albe­che. Preconceito e discriminação extrapolam a questão da cor. Aparecem em situações em que não há o reconhecimento da voz social: nos papéis em novelas, em bancos, com crian­ças, pobres, mulheres, homossexuais; em relação a padrões de beleza, às opiniões, aos idosos, ao índio, etc. Loraine Slomp Giron, doutora em Ciências Sociais, aponta: “O preconceito é um fenômeno humano, que não se restringe a uma região e a um lugar.” Segundo ela, o preconceito parte da questão da identidade e da rejeição que se tem pelo diferente, ou seja, pelo outro. PRECONCEITO É LEI – Segundo a professora Daisy, vivemos numa sociedade hierarquizada, onde é naturalizado marcar lugares: “Na história do Brasil, convivemos por quatro­ centos anos com a escravidão, onde racis­mo era lei.” “Na legislação portuguesa, o homem que trabalhava com as mãos era consierado inferior e indisciplinado, não tinha direitos le-

gais nem cidadania.” Com a primeira legislação civil, em 1916, esse conceito muda. “Uma sociedade que substantiva demais a questão da cidadania é uma sociedade que tem muitos problemas com direitos humanos”, reforça Daisy. Em complemento, Loraine sugere a leitura do Relatório Azul, histórico publicado de dois em dois anos, ins­trumento de denúncia de violação dos direitos humanos no RS. Na história do Brasil, a exploração e o desres­ peito começam com o índio, seguindo-se com o negro: inominado ou simplesmente escravo de, quando não identificado pelo nome escolhi­do por seu proprietário. Sem nome um ser não existe, não tem identidade. A professora Daisy ressalta a carência de regis­ tro e exemplifica que o primeiro artigo sobre o índio é da década de 70 e a primeira história sobre a mulher no RS data de 1982. Conforme Loraine: “O outro é essencial para demarcar a própria identidade; sem o outro ela não existe, como não existe preto sem branco, verdade sem mentira.” Nossa primeira identidade social se constrói na infância, a partir do que o outro diz que somos. A construção ocorre nesse registro interno de história forman­do a identidade social.


O RIO GRANDE DO SUL - No RS, como no Brasil, a colonização se impõe como Estado e nega à sociedade o direito de criá--lo,­­­­ pois o antecede. Neste contexto, a característica social do RS parte da formação do mestiço, no encontro de etnias: lusa, do índio e espanhol – Contexto em que o gaúcho não tem reconhecimento social como grupo. Mais tarde, chegam imigrantes alemães e italianos que agregam ao cenário as características da cultura branca. Conforme Daysi, havia questões de identidade e classe social. Os imigrantes­ eram pobres, vistos como hoje o são senegaleses e haitianos: portadores da diferença. “Somente em 1930 despontariam as discussões sobre quem somos”, lembra a historiadora.

as representações individuais. “Pela falta de história, não há identidade nem cidadania. Assim, não há democracia para o reconhecimento à alteridade e ao humanismo, o que resulta em preconceito”, de acordo com Daysi. Hoje, o gaúcho é o nascido no RS, mas, historicamente, estava à margem dos grupos que detinham a propriedade, o gado, o escravo. Segundo Loraine, o RS apresenta o mesmo

Os imigrantes eram pobres, vistos como os senegaleses e haitianos atualmente

“Até 1940, o grupo social chamado gaúcho vivia à margem da sociedade. Sem tradição de escrita, a historiografia e a literatura usam o padrão romântico, no qual passado se opõe a presente a campo e a cidade. Essa é, segundo a professora, a história idealizada do mito do monarca das coxilhas, criada na tentativa de encaixar a sociedade.” São deixadas de lado

tipo de preconceito que outros estados brasileiros: “Nem mais nem menos. Os paulistas têm verdadeiro horror aos baianos, ou melhor, a qualquer nordestino. Também em Santa Catarina e no Paraná, migrantes pobres são sempre rejeitados, mais por uma questão de classe do que de raça”. Em seu blog “História Daqui”, Loraine apresenta alguns textos decorrentes de uma pesquisa feita em 1977, entre os quais: O racismo se aprende. Aldo Toniazzo

Desfile do CTG Galpão Crioulo, no distrito de 3ª Légua, em Caxias do Sul

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Marcelo Casagrande

Busca pela identificação Na busca por identificação, surgem os centros de tradição que oferecem espaço social ao gaúcho – hoje o trabalha­ dor de fábrica. O CTG acolhe a família em bailes, rodeios e festas, reproduzindo o espaço social de clubes. A troca de experiências dá continência à necessidade de pertença, porém o convívio é normatizado pelo Patrão e não pelas diferentes representações. O professor e doutor em administração Marco Aurélio Bertolazzi, estudioso da cultura nas organizações, aponta que uma identidade se caracteriza por misturar elementos reais e fictícios: “Assim se constrói a figura idealizada do gaúcho como sujeito valente e macho, podendo haver exageros.” Bertolazzi acredita que a questão principal é a hipervalorização da própria tradição, que pode levar à visão inadequada das novas configurações e relações que marcam uma sociedade mais plural. José Roberto Mall­­­­mann, patrão do CTG Rincão da Lealdade, pontua que a cultura do Centro de Tradições “é fiel ao passado, mantém a música, os trajes, a culinária e regras sociais delimitadas. Aquele que não se adequar à tradição é convidado a se retirar”. Ele cita dois exemplos: os jovens devem avisar o patrão quando estão namorando, e, nas apresentações de dança, a tradição de par é homem e mulher, não existe outra configuração. IDENTIDADE – Estabelecer a identidade passa pelo reconhecimento da história, fortalecimento da educação, desconstrução de estereótipos e pelo exercício da cidadania.

O que define alguém?

A construção do preconceito passa pelas mãos estratégicas do poder. A desconstrução passa pelo preparo dos indivíduos para recuperaram as representações da sociedade e apropriaram-se do nome e da história. O instrumento é a educação para a cidadania indo ao encontro do senso democrático, que dá espaço para existir identidade e aceitação do outro como diferente.

Movimento Separatista (1835-1845) A Revolução Farroupilha foi, na verdade, uma briga entre as elites locais. O grande proprietário levou seus negros, peões e agregados para lutar, esclarece Daysi. “O movimento é caracterizado por violência, mais de duas mil mortes, por fuzilamento, degola, enforcamentos.” A marcha dos itine­rantes deixa um rastro de roubo de gado e saques à propriedade. Todo mito cria seu momento fundador.

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O gaúcho a cavalo seria praticamente um cavaleiro medieval, seguindo o padrão lite­ rário romântico. Para dar sentido a essa identidade, constrói um imaginário: a Revolução Farroupilha. A historiadora afirma que houve um momento de separação, mas não uma república e, sim, um estado ditatorial. Sem projeção e estagnado economicamente, o estado negocia voltar à comunhão do

império. D. Pedro assina a anistia, e a elite tem ressarcimento das propriedades, do gado, de privilégios e de cargos. De acordo com Loraine, o movimento não tinha a ver com raça, mas com poder: “Os farrapos nunca se convenceram de sua inferioridade em relação ao Brasil (como região periférica) e mudaram o passado, dando valentia à derrota.”

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Aldo Toniazzo e Ary Trentin

ITALIANOS NO BRASIL

140 ANOS DE UMA HISTÓRIA Em 1875, os italianos rumaram ao Brasil com dois interesses principais: terra e trabalho

Nathália Magrin nrmagrin@ucs.br

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data é 1875, ano em que os primeiros imigrantes italianos deixa-ram o país de origem, com destino ao Brasil. Mas, por que deixar o estado em que viveram por tanto tempo, em busca do desconhecido? A principal causa do movimento imigratório, conforme explica a professora e doutora na Universidade de Caxias do Sul (UCS) Luiza Horn Iotti, foi a unificação da Itália, quando os estados independentes da península se juntaram na formação de um único país. “Esse processo foi demorado e tardio, bem depois dos outros países. Isso fez com que os imigrantes, que vieram para cá não se sentissem italianos. Eles se sentiam pertencentes às suas regiões. Foram os moradores do Brasil, os ‘pelos-duro’, que fizeram com que eles se sentissem mais italianos. Eles chamavam os italianos de ‘gringos’, juntando todos como se fossem de um mesmo lugar”, explica a docente, que atua há 28 anos na UCS e atualmente é diretora do Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC), da Universidade. Outra causa importante, no movimento de imigração dos italianos, foi a industrialização. Com a implantação do capitalismo (até então o regime aplicado era o feudalismo), as pessoas foram expulsas de suas terras, pois havia mais mão de obra do que demanda. A histori-

adora e doutora em Ciências Sociais Loraine S.Giron confirma isso no artigo A imigração italiana no RS: fatores determinantes. Ela explica que o movimento em direção à América vinculou-se às mudanças estruturais que ocorriam “no mundo ocidental, em decorrência da expansão do capitalismo, e às novas formas de produção que então serão adotadas”. Dessa forma, os italianos partiram para o Brasil com dois objetivos: conseguir terras para si e um lugar onde trabalhar. “O Brasil da época é um país que tem um grande número de escravos negros e quer substituir essa mão de obra escrava negra por uma mão-de-obra branca e livre, com o objetivo também de branquear o país”, informa a professora Luiza. Com esse objetivo, o governo brasileiro pagava pessoas para que fizessem propaganda do País na Europa, em especial na Itália. “Eles prometem muitas coisas a esses italia-nos. Dizem , se eles viessem para cá teriam terras e muitas oportunidades. Realmente, os que vieram para o Rio Grande do Sul tiveram oportunidades e acesso à terra, mas os que foram para São Paulo não tiveram a mesma sorte”, exemplifica a historiadora. A imigração italiana ocorreu entre 1875 e 1914. Esse período foi chamado pelos histo-

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riadores de “A Grande Imigração”. Os italianos se espalharam por todo o Brasil, sendo São Paulo o estado que mais recebeu imigrantes. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo também acolheram um número expressivo de italianos. Entre 1882 e 1889, mais de 40 mil imigrantes chegaram ao Rio Grande do Sul. Eles vieram de diversas cidades italia­nas, com destaque para Lombardia, Vêneto e Tirol.

A professora cita, ainda, outras tentativas imigratórias que ocorreram antes de 1875. “Em 1824, os alemães se estabeleceram principalmente na região do Vale do Rio dos Sinos. Poloneses se estabeleceram em São Marcos e cidades vizinhas e também os franceses vieram para cá, mas em número menor”, cita. Porém, como o governo brasileiro não cumpria o que prometia aos imigrantes, muitos paí-

ses acabaram proibindo a vinda para o Brasil. Em 1902, na Itália, foi criado o Decreto Prinetti que proibia a vinda de imigrantes para o Brasil. DECRETO PRINETTI – O Decreto Prinetti foi uma portaria aprovada pelo Comissariado Geral da Emigração na Itália, em 26 de março de 1902. Proibia a imigração subvencionada (com auxílio em dinheiro, em

São Paulo foi o estado que mais recebeu italia­nos durante “a Grande Imigração” geral concedido pelo Poder P úblico) para o Brasil. O decreto foi aprovado após terem ciência de um relatório sobre as condições de trabalho nas fazendas brasileiras. Ele denunciava as situações vividas pelos imigrantes nas plantações cafeeiras.

Aldo Toniazzo e Ary Trentin

MOMENTO PARA REFLETIR – Em 2015, comemoram-se os 140 anos da Imigração Italiana. Segundo a historiadora Luiza H. Iotti, esse é um momento propício para revermos os estudos acerca do tema e nossos conceitos sobre esse movimento populacional e sobre a história de Caxias do Sul. “Penso que nós temos uma visão um pouco preconceituosa sobre o restante do Rio Grande do Sul, porque acreditamos que Caxias é uma cidade que deu certo, pois foi colonizada por

imigrantes italianos. Comemorar a imigração italiana é um momento importante pra gente pensar sobre isso. O que houve aqui, na verdade, foi uma reforma agrária muito bem equilibrada, que deu certo, onde se implantou uma pequena propriedade, e as pessoas tiveram acesso a condições. Aí eu pergunto: ‘Será que isso deu certo em função de uma etnia? Será que se outras pessoas, outras e-tnias tivessem acesso às mesmas condições não teria ocorrido o mesmo processo?’”, questiona.

Registro de 1980: antiga Pousada da família Biazus, localizada no Passo do Zeferino, em Flores da Cunha

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Nathália Magrin

Pedido de desculpas O Monumento Nacional ao Imigrante foi inaugurado em Caxias do Sul durante a Festa da Uva de 1954, pelo então presidente Getúlio Vargas. Conforme a professora e doutora na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Luiza Horn Iotti, Getúlio teve esta ideia com o objetivo de se redimir de seus atos durante o período do Estado Novo, entre os anos de 1937 e 1945. Nesse tempo, no Brasil era proibido falar qualquer língua que não o português. “Os italianos, os alemães, os poloneses foram proibidos de falar sua língua. Se eles falassem iam presos. As pessoas eram muito perseguidas. Eram proibidos jornais e rádios que divulgassem textos em outras línguas. Muita gente foi presa e perseguida aqui na região, e outras tantas ficaram sem falar porque não sabiam falar o português”, lembra Luiza.

Monumento Nacional ao Imigrante foi inaugurado em 1954 pelo então presidente Getúlio Vargas

Em 1954, Getúlio vem a Caxias do Sul inaugurar um monumento construído também com o dinheiro da comunidade. De acordo com a historiadora, a escolha da cidade estaria ligada ao fato de o município estar melhor posicionado economicamente. Apesar da intenção de redimir-se, com o monumento Getúlio reforça a separação étnica, pois traz versos extraídos do poema “Exortação”, do paulista Cassiano Ricardo, que exalta as características do povo italiano, afirmando mais uma vez a vontade de se viver em um país formado, em sua essência, por pessoas de pele clara. “No Monumento ao Imigrante, tem um poema que diz assim: ‘Ó louro imigrante que trazes a enxada no ombro... Sobe comigo a este píncaro’. É o lema do imigrante branco, louro, de olhos azuis, ou seja, uma ode ao branqueamento do Brasil”, afirma a professora. O monumento está situado no Km 150 da BR-116, no Bairro Petrópolis. Está aberto ao público de terça-feira a domingo, das 9h às 17h. Mais informações pelo e-mail museumunicipal@caxias.rs.gov. br. e telefone (54) 3221 2423.

Comemorações recebem destaque em Caxias As comemorações, em homenagem aos 140 anos da Imigração Italiana, aos 125 anos da criação de Caxias do Sul e aos 105 anos da elevação de Caxias à condição de município, iniciaram no dia 20 de maio de 2015 e seguem até 6 de março de 2016. Concertos de música erudita e popular, exposições, homenagens, palestras, seminários, missas em italiano, passeios culturais e turísticos, resgate de documentos e publicações de

registros históricos da imigração, encontros festivos de comunidades de descendentes italianos, exibição de filmes, workshops, encontros de corais, apresentações teatrais, danças folclóricas, almoços e jantares com gastronomia típica italiana, atividades de valorização do patrimônio material e imaterial da colonização itaiana são alguns dos eventos que ocorrem nos próximos meses em Caxias do Sul.

Para a secretária da Cultura local, Rubia Frizzo, comemorar os 140 anos da Imigração Italiana é uma forma de relembrar a identidade do povo italiano. “É notória a importância da comemoração desta data que lembra a história, a matriz identitária e a trajetória de um povo valoroso, que nos legou o município que ora nos acolhe”, afirma. A programação completa pode ser acessada no site <www.caxias.rs.gov.br.>


CULTURA

Cerca de 100 índios vivem na região de Farroupilha Cerca de 100 índios vivem em Farroupilha

Caxias era terra dos Caingangues – um povo expulso do próprio passado

Kamila Mendes kgmendes1@ucs.br

C

ampo dos Bugres. Povoado da Serra do Rio Grande do Sul, onde a terra era fértil e das vertentes brotava água cristalina. Morava ali um povo que, antes mesmo de o homem branco chegar, transformou os Campos de Cima da Serra em um lugar de prosperidade. Os caingangues, apelidados de bugres, vieram para o território gaúcho em meados de 18301840, bem antes dachegada dos italianos, em 1875. “Todas essas áreas, futuramente doadas para alemães e italianos, foram tiradas dos índios”, explica o arqueólogo caxiense Ricardo Gonçalves. Os nativos da Serra perderam a liberdade ao serem transferidos para inúmeras reservas indígenas que à época pipocavam pelo estado. A justificativa é que aquele povo carecia de evangelização. Os índios eram educados para serem cidadãos úteis. Em bom português, para servir de mão de obra barata. “Essa era

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a mentalidade da época. Se o índio cooperava, tudo bem. Se o índio não cooperava, era guerra”, esclarece o arqueólogo. Para o professor de história Neri Almeida, os índios foram vítimas da civilização e esquecidos totalmente pela sociedade brasileira. “Os caingangues cuidaram da terra, germinaram, deram frutos, mas foram banalizados, escravizados, considerados seres inferiores, obrigados a renunciar à própria cultura. Foram vítimas de um progresso que significou o extermínio do seu povo”, afirma Almeida. Para o pesquisador Afonso Silva Castilhos, o governo brasileiro ainda precisa realizar mudanças significativas nas políticas indigenistas. “O nosso silêncio, a nossa indiferença e a falta de conhecimento são cúmplices do racismo contra o povo indígena. Precisamos conside­ rá-los cidadãos como nós, com os mesmos direitos, com uma cultura preservada e não como mais uma peça de folclore”, finaliza.

Jonas Ramos

Campo DOS ESQUECIDOS


Índios com orgulho Em uma pequena aldeia, localizada cerca de15 quilômetros distante da RS-122, em Farroupilha, vivem 20 famílias indígenas. Se não fosse pelos traços fortes e característicos dos rostos dos moradores, o local não pareceria uma aldeia. Ali, no bairro Nova Vicenza, as moradias, apesar de simples, são de alvenaria, com água, luz, antena parabólica, máquina de lavar e outros objetos da civilização atual. Também tem escola e igreja evangélica. Tudo no vilarejo funciona de acordo com as regras estabelecidas em comum acordo, preservando a cultura indígena. O cacique Neri Ribeiro, 45 anos, explica que a aldeia é fruto de uma batalha­ que o grupo venceu, já que as casas foram doadas pelo estado e pelo município há oito anos. “Antes de termos as nossas casas, muitos índios ficavam em acampamentos, nas imediações da rodoviária de Farroupilha”, relata o líder da comunidade.

Dos 98 moradores da aldeia, 33 são crianças. Na Escola Estadual Indígena Ensino Fundamental Nivo, a professora Orilde Ribeiro, 29 anos, com formação em magistério, contribui com os ensinamentos iniciais a 12 crianças de até oito anos. As demais estudam em um colégio fora da comunidade. “A minha maior alegria é ver todos estudando, aprendendo o que é certo. Quero que tenham oportunidades diferentes das que os seus pais tiveram. Só o estudo pode mudar essa realidade”, reforça Orilde. Nas horas

vagas, os pequenos se divertem em um parquinho instalado pela prefeitura de Farroupilha e no campo de futebol. A cultura indígena é sinal de orgulho para a comunidade caingangue. “Não é porque deixamos o cocar de lado que não queremos mais ser índios. Somos sim, e com orgulho. Assumimos nossa origem e vivemos de acordo com o que aprendemos com nossa família. Res-

A Constituição de 1988 reconhece o direito de os índios manterem sua própria cultura

peitamos os que não são nativos e queremos ser respeitados também. Assim deveria ser a sociedade, sem diferenças de raças”, enfatiza o cacique Ribeiro.

Jonas Ramos

Andarilhos por natureza, os índios

gaúchos vivem da venda de artesanato em várias cidades, o que inclui Caxias do Sul. Diariamente, o grupo sai de Farroupilha até o centro de Caxias, onde ocupa algumas quadras da Avenida Júlio de Castilhos. Lá, os índios vendem tudo que produzem. São objetos distintos, como cestos, enfeites, meias e lenços que garantem o sustento das famílias caingangues. Timidamente, eles trilham o caminho inverso ao de seus ancestrais: buscam o espaço literalmente usurpado no passado.

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História esquecida Apesar de em Farroupilha os índios viverem em condições dignas, outras regiões do RS ainda não possuem um acordo entre município e Funai para que garanta o direito de moradia. Em Bento Gonçalves, eles se instalaram às margens da BR-470, sob um viaduto. Em São Marcos, eles ocupam o pórtico da cidade e uma área próxima à rodoviária. Para a socióloga Gabriela Bittencourt, os indígenas ainda são excluídos da sociedade. “Eles são vistos como selvagens, pessoas estranhas. Mas, possuem

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direitos específicos na constituição brasileira. Hoje, já não são considerados improdutivos, sem função na sociedade”, reforça a professora ao ser questionada sobre a aceitação dos índios no século XXI. Ainda de acordo com Gabriela, a historiografia contribui para uma visão hegemônica ao não destacar a posição dos índios em Caxias do Sul e privilegiar o europeu na formação inicial da cidade. “Existem estudos sobre a importância indígena no processo de ocupação do território gaúcho. Eles

mostram a hegemonia do europeu em detrimento dos povos indígenas e a forma como eles sofreram a ação da Lei das Terras de 1850, que promove a expulsão dos índios do sul do país.” O pesquisador Afonso Silva Castilhos diz que a situação seria diferente se fossem criadas políticas públicas que valorizassem o índio e seu trabalho. “O artesanato indígena precisa ser visto de outra forma, não como um estorvo. Esse trabalho minucioso que eles fazem deveria ser reconhecido como parte da produção cultural”, finaliza Castilhos.


James Cham

Política

O mito laico Em 1889, foi estabelecido o Estado laico no Brasil, isto é, a Igreja não teria influência na política. Quer saber o que mudou?

Mayara Bergamo msbergamo@ucs.br

A

borto, legalização da maconha, casamento civil igualitário, adoção de crianças por casais homoafetivos. Essas são algumas pautas que não conseguem entrar em discussão no Congresso Nacional no Brasil, embora muitas delas já sejam lei em alguns países. A que se deve esse atraso? Após a eleição de 2014, segundo um levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, o Diap, as bancadas que mais cresceram foram as que constituem a chamada “bancada BBB”, do Boi, da Bala e da Bíblia. A bancada ruralista, que tem como maior pauta o desrespeito aos direitos dos indígenas na demarcação de terras, conseguiu eleger 257 deputados, contra 191 da eleição anterior. A bancada da bala, ou da polícia, que luta por temas como a redução da maioridade penal, elegeu 55 deputados, aumentando em 30% sua representatividade. Já a bancada evangélica, que costuma atuar em temas que envolvem os direitos dos homossexuais, Direitos Humanos e questões ligadas à vida, conta agora com 82 deputados. Esse levantamento, no entanto, contabilizou apenas os deputados que usam a palavra “pastor” junto ao nome ou são declaradamente evangélicos; portanto, o número pode ser maior.

Segundo o estudo do Diap, esse é o Congresso mais conservador desde 1964, início da Ditadura Militar, que engessaria a sociedade por 21 longos anos. Essa nova formação, mais conservadora e com tantos representantes de Igrejas, deixa um clima tenso no ar. Estaria o Congresso à beira do fundamentalismo religioso? Para caraterizar fundamentalismo, é necessário que os professantes de determinada fé queiram impor a interpretação literal de seus livros sagrados a outras pessoas. O que acontece no Congresso, hoje, é uma guerra ideológica, travada também nas redes sociais e em canais de televisão, dos quais os pastores são “donos”. É importante ressaltar que assim como qualquer cidadão brasileiro, essas pessoas têm o direito legítimo de disputar eleições e concorrer aos cargos do Executivo e do Legis­ lativo. Mas como pertencemos a um Estado que se declara laico, essa autonomia vai até aí. Não pode, de jeito algum, ser “sim à Bíblia e não à Constituição”, até porque, a partir do momento em que são eleitos, os indivíduos deveriam assegurar os interesses de toda a nação, e não fazer lobby para um grupo específico.

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Eliane Cardoso, coordenadora do curso de História da Universidade de Caxias do Sul, acredita que a formação de um Congresso como esse reflete a união de grupos conservadores contrários aos movimentos de abertura e de transformação social, “porque isso também faz com que eles percam aquilo que sempre tive-ram em termos de certeza e de status social, o lugar que ocupavam e que sabiam que iam ocupar no mundo, e inclusive sabiam o que tinham que fazer pra conquistar esse espaço. Isso tudo deixa de existir nessa sociedade que é tão fluida, e gera medo, então isso tem a ver com a construção dos fundamentalismos e radicalismos de toda ordem”, afirma. De acordo com Eliane, os momentos de crise – econômica, moral – também propiciam o surgimento desse reavivamento religioso. “Na crise de identidade, que os sociólogos chamam de anomia, eu vou buscar alguém que me diga o que fazer. Principalmente as religiões que têm esse apelo moral, que diz o que é certo e o que é errado, o que se deve fazer e o que não se deve

fazer, vão ter um papel importante.” A coordenadora também aponta para outro fator preocupante. As pautas progressistas, embora tenham representantes que lutem por elas no Congresso Nacional, muitas vezes perdem força e apoio popular pelo trabalho ideológico feito, especificamente pela bancada evangélica, fora do Congresso. “Ainda que sejam minoria, nós temos grupos de vanguarda no Congresso e no Senado, mas eles têm dificuldades porque o restante dos parlamentares acaba estabelecendo que outros assuntos são pautas mais importantes. Hoje, vemos o uso das redes sociais nesse sentido também. Eu divulgo parcela do que é um projeto, e a forma como vai ser divulgado depende muito do apoio popular, e aqui eu vou falar especificamente da bancada evangélica, porque eles vão usar também do seu púlpito, do seu espaço na Igreja para claramente fazer política. Assim eles conseguem fazer com que a opinião pública desse grupo impeça e barre todas as pautas progressistas.”

Tatiane Baggio é psicóloga em Caxias do Sul, integrante do Grupo de Trabalho sobre Laicidade do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. O grupo funciona nacionalmente debatendo as questões relacionadas à laicidade da profissão do psicólogo, aos direitos humanos e se manifesta diante de demandas que surgem, como é o caso das propostas

“Na crise de identidade eu vou buscar alguém que me diga o que fazer” de projetos de leique violam direitos e têm um discurso fundamentalista religioso, defendendo o Estado laico. Tatiana vê essa constituição do Congresso como um reflexo da realidade enquanto sociedade que deseja punir e não acolher. A psicóloga aponta para a importância de preservar a democracia “e superar

Assessoria de Imprensa Senado Federal

Sessão da Câmara em 2014.

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James Cham

Preservar a democracia muitos preconceitos referentes a diversos temas, como diversidade sexual, maioridade penal, diferentes constitui­ ções familiares, entre outros. A influência da religião na opinião coletiva tem destaque, na medida em que usa o discurso moral como base ‘em defesa da família’, por exemplo. Nossas leis não podem ser baseadas em princípios religiosos, pois isso viola os princípios constitucionais de igualdade de direitos”, afirma. De que maneira, então, podemos preservar a democracia, a laicidade no Estado brasileiro e evitar que esses grupos façam lobby em causa própria, sem ferir o direito fundamental que essas pessoas têm de participar do processo democrático e concorrer a cargos públicos? Para Eliane, diante desse cenário, o estudo da História torna-se ainda mais importante. “Eu acho que fica evidente pra sociedade como um todo. A História nos dá essa ideia de continuidade; o que essa atitude que a gente toma causa? Pra onde nos leva? Quais são as consequências que isso pode ter, a partir das escolhas políticas que eu tomo?”, problematiza.

Legenda Legenda Legenda Legenda Legenda

Tatiane acredita que “o debate junto à sociedade civil organizada e nos diferentes espaços de controle social, podem contribuir para uma ampliação de visão e consciência sobre nosso papel enquanto cidadãos e sobre a importância da laicidade do Estado e quem sabe modificar esse cenário. Um estado laico deve garantir a diversidade de crenças e de consciência que prevê nossa Constituição e que está presente na nossa História e cultura”. Isso não significa manter uma posição radical de que o Estado deve ser desprovido de espiritualidade; significa, sim, defender todas as formas de ser e de viver, incluindo a diversidade religiosa que existe em nosso país, além de basearmos e fortalecermos nossas leis nos direitos humanos. Valter Campanato

Protestos no Congresso Nacional em 2013

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DEMOCRACIA

O ódio REFLETIDO NAS URNAS Assessoria de Imprensa/Câmara dos Deputados

Plenário do Congresso Nacional

Segundo o DIAP, O Congresso atual é o mais conservador desde 1964

Diogo Elzinga daelzinga@ucs.br Michael Susin mfsusin1@ucs.br

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e os representantes do povo são um reflexo da sociedade, o Brasil está atravessando um momento de conservadorismo que remete aos “anos de chumbo”. Esta análise vem do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), após a eleição do parlamento em outubro do ano passado. Contudo, o que o Departamento não previu foi que os 25 anos de democracia seriam colocados a teste, por conta de um realinhamento eleitoral que, em meio a uma crise política e econômica, desata o ódio político. O relatório do Diap deixa claro: o Congresso Nacional tem mais parlamentares ligados ao militarismo, à religião e ao agronegócio. Além disso, o perfil dominante é homem, branco,

político profissional, empresário, com formação superior e em torno de 50 anos. Por outro lado, o retrato da população brasileira, feito pelo IBGE, revela um dado contraditório: mais da metade da população é composta por mulheres, pretos e pardos e cerca de 8% de toda população conseguiu terminar a faculdade. O que essa antítese representativa quer dizer? O cientista político e pós-graduando em Gestão Pública Cristiano Cardoso, defende a tese de um complexo de vira-latas demarcado pela violência. “Hoje tem 55 deputados que são apresentadores daqueles programas policialescos, que trabalham muito com o sensacionalismo, aquela coisa do bandido bom é


bandido morto. Faz parte do medo que a população vive, mas que vai contra os direitos individuais e vitimiza os mais pobres”, argumenta. Seguindo essa linha, os deputados mais bem votados no Brasil são os que apostam na violência como solução dos problemas. “Tem muito a ver pela exposição na mídia. No RS, quem recebeu mais votos

Ou o individualismo? Para a psicológa com formação na área social Deisi Moraes, a ideologia dominante do capitalismo dissemina a ideia de um individualismo exacer­ bado,emn que o que importa é o direito individual, o direito básico enquanto sociedade humana não tem uma representatividade popular. “Penso que o individual se tornou maior que

controlar e a racionalizar estes sentimentos, pois passamos a construir laços sociais, e a compreender que as vezes precisamos aceitar certas perdas em função de um coletivo/social. O ódio passa a ser coletivo, legitimado e aceito, a partir do momento em que a sociedade permite que isso aconteça”, explica Deisi.

Michael Susin

Mas, como o ódio pode contaminar uma grande parte da população? Para

O ódio passa a ser coletivo, legitimado e aceito, a partir do momento em que a sociedade permite que isso aconteça

Cardoso: “a redução da maioridade penal é inconstitucional”.

o coletivo, o que faz com que eu odeie tudo aquilo que não vem para satisfazer o que eu considero como meu direito individual”, relata. Deisi ainda explica que a raiva é um precedente primitivo do ódio e natural do ser humano. Ficamos com raiva, ou ódio, quando nos frustamos ao longo da vida. “Pela vivência em sociedade vamos aprendendo a

a psicóloga social, a população toma para si um discurso da classe dominante, como se fosse seu. “Talvez seja mais um fruto das confusões de classes na contemporaneidade. Esse discurso dominante é repassado pela grande mídia e a população, carente de informação, formação e represen-tatividade de classe, acabou por adotar para si o único discurso possível, o da classe dominante”, conclui Deisi.

Ocupa Mídia

foi Luiz Carlos Heinze/PP, aquele que disse que os homossexuais não prestam. No RJ foi o Bolsonaro, que também tem um histórico polêmico”, justifica o cientista político. Ainda segundo Cardoso, isto se deve mais a um desconhecimento do que cada poder representa e acaba acelerando a votação de temas polêmicos, que ultrapassam a cons-titucionalidade. “Com uma presença reacionária, foram desengavetados projetos como o Estatuto da Família, que desconhece casamentos homoafe­tivos, atualmente reconhecidos pelo próprio Supremo Tribunal Federal. E, também, está ocorrendo o debate sobre a Redução de Maioridade Penal. São discursos que, apesar de sua inconstitucionalidade, infelizmente, estão recebendo uma boa aceitação na sociedade”, explica Cardoso.


Paulisson Miura

Sobre as manifestações

O curso das manifestações, neste início de ano, evidenciou a necessidade de mudanças, mas sobretudo um ambiente de intolerância. Faixas e coros exaltaram a volta do regime militar, não sendo poucos os casos de agressão gratuita contra pessoas vestindo camisetas vermelhas. Afinal, para que caminho vamos? Cristiano Cardoso se mostra enfático sobre as manifestações de março a respeito da tolêrancia. “Essa coisa de ser tudo igual, todo mundo tem que vestir verde e amarelo é um sinal de totalitarismo. Uma sociedade melhor é aquela onde se respeitam as diferenças, onde cada um tem sua forma de pensar e, a apartir desse jogo de quebra cabeça, que são as ideologias, se constroi a democracia, um país melhor”, justifica. O sociólogo destaca que o campo da política avança com pautas propositivas, na mistura ideológica que constroi a democracia. “No período Jango, houve uma paralisação

decisória no Congresso por grupos radicais. Os grupos não dialogavam entre si. Os acordos fazem parte da política, então quando um dos grupos sobe na tribuna para atacar o outro, permite o crescimento do extremismo e não contribui para o país. Acho que é importante a participação social, a pressão e sermos críticos, mas além de tudo saber para onde se quer ir com tudo isso”, argumenta. Porém, o que justifica uma guinada rumo ao conservadorismo, quando a democracia completa 25 anos? Cardoso defende a necessidade de um resgate histórico, “os jovens não conhecem ou não recordam de outros programas de governo outras ideologias, porque o PT está aí desde 2002. São 13 anos de governo, então o jovem que tem aí seus 20 anos viveu o período FHC quando tinha 7 anos, aí fica difícil fazer um comparativo”, conclui.

A perversão da ideologia

Para explicar como um discurso baseado na polarização pode ser adotado pela sociedade, os estudantes fazem valer a posição de Zizek, “ainda precisamos das ideologias”, reforça Pettefi. Entre os conflitos

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gravados nas manifestações contra pessoas que utilizavam vermelho, ou ou-tros sinais de que poderiam ser “comunis­tas em potencial”, Taines aponta como referência o documentário O Guia Pervertido da Ideologia, de Zizek, que apresenta o discurso de ódio em suas novas facetas. “O uso do vermelho torna-se, assim, parte do discurso da classe traba-lhadora, que vê, em seus movimentos estudantis e sociais, um leito de aconchego. A História não nos deixa sequer mentir: o vermelho é a cor de partidos que no Brasil lutaram contra a Ditadura Militar, o direito dos trabalhadores e melhores condições de vida. Numa outra margem, as cores da bandeira nacional estamparam as manifestações de impeachment contra a atual presidenta, numa onda avassaladora de patriotismo”, explica Taines. “Se um dia

pensamos que Marx estava superado, hoje podemos afirmar: a luta de classes aí está. O Brasil precisa debater e discutir a luta de classes”, arremata Pettefi.

SUGESTÃO DE LEITURA Divulgação

Os estudantes de psicologia Taines Tei­ xeira e Macuri Pettefi recorrem ao filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek para abordar o discurso de ódio na área de psicologia do trabalho e também para analisar a sociedade. Segundo eles, o ódio é um discurso numa torção com a ideologia. “No Brasil, o discurso de ódio é uma rea­ lidade como o é em grande parte da Europa que vê, sem nenhuma lente protetora, o feroz avanço da posição extrema-direita da ideologia”, argumenta Taines. Já Pettefi avalia que esse avanço, historicamente, repreende os sujeitos, com a filiação desenfreada ao mercado capital.


Conflito de interesse

Você provavelmente já ouviu falar que programas como o Bolsa Família são formadores de miséria e servem como compra de votos. Contudo, pode-se observar de uma maneira direta que, além de ajudar a população em situa­ ção de subsistência, aquela parcela periférica que vende o almoço para comprar a janta, consumindo, gera demanda interna e aumenta a produção. De acordo com o economista Ario Zimmermann, o discurso eleitoreiro fomenta apenas confusão, pois os custos de proteção social consomem cerca de 0,8% do PIB brasileiro, além de servir para pagar a dívida social do Estado brasileiro com as classes sociais mais pobres. “Se forem levados em conta os 8% de dívida pública pagos para a população mais rica da sociedade, pode-se perceber que o Estado ainda prioriza os mais ricos”, explica Zimmermann.

Para a doutora em Ciências Políticas

e professora na UCS Ramone Mincatto, a razão de discursos como esse existirem é a sociedade brasileira estar passando por um conflito social. “A intolerância das elites é com os pobres. Reclamam, com toda razão, da qualidade da educação brasileira, mas não toleram a entrada dos pobres nas instituições de Ensino Superior, também não toleram o Bolsa Família, cuja lógica é muito mais de controle da população excluída do que propriamente de inclusão social”, afirma Ramone. Apesar de as manifestações pedirem o fim da corrupção, a professora critica os seus objetivos. “Apesar do movimento anticorrupção, nada indica que as bolsas elite, como a sonegação fiscal, as licitações superfaturadas, os juros subsidiados, a autoconcessão de altas aposentadorias e de altos salários, sofram qualquer mudança”. Contudo, a professora observa que o momento se reflete em uma prática co-

mum da política no País. “Atualmente, há dois partidos no Brasil, o PT e o anti-PT. Esta dinâmica de polarização partidária faz parte, em certa medida, da dinâmica histórica pós-republicana de funcionamento dos partidos políticos no nosso País. Percebe-se uma clara ofensiva da oposição, com a aprovação da terceirização que afeta diretamente os direitos trabalhistas e o movimento sindical, evidenciando a troca de favores entre os negócios privados que financiam as campanhas políticas e as elites políticas tradicionais”, explica Ramone. A cientista política aponta que, apesar do movimento anticorrupção, não existe sinal ou movimento de combater os desvios, mas, sim, manobras de desgaste político. “Os problemas principais do Brasil não vão ser resolvidos, mas estão sendo utilizados com outras intenções”, conclui.


FINANÇAS

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Fantoches da ECONOMIA SELVAGEM Economistas apontam rumo da economia e comportamento do consumidor diante da crise

Bárbara Armino barmino@ucs.br

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Tu tens que estar sempre atento, é uma competição constante. Parece que nós estamos na selva.” Embora a comparação aparente ser sobre um reality show ou sobre um jogo de sobrevivência, esse tem sido o atual cenário do mercado de trabalho brasileiro. Maiara Brambatti, analista de Marketing, compara as disputas animais ao seu emprego em uma multinacional. A crise econômica e política que o Brasil enfrenta, desde o fim de 2014, gera medo e insegurança nos profissionais. Maiara afirma que o desânimo é comum entre aqueles que viram mais de 700 colegas de trabalho serem mandados para a rua. “Tu andas nos corredores da empresa e todos estão comentando, palpitando sobre demissões. Passa abril, passei ilesa.

Chega maio, a insegurança continua”, desabafa. A crise segue ceifando empregos, porém, historicamente, esta não é a pior redução de postos de trabalho enfrentada no Brasil. A economista Maria Carolina Gullo aponta que, em 2008, também houve um período crítico no País, com proporção de demissões muito maior do que em 2015. Embora sete anos atrás mais brasileiros tenham perdido o empregos, as reduções das equipes nas empresas continuam afetando o País, estados, cidades, e cada profissional individualmente. A economista defende que o brasileiro precisa mudar o seu modo típico de agir com o dinheiro. “O consumidor olha o valor da parcela, mas não busca pro-


moções ou taxas de juros mais baixas”, reprova. “A cautela ao consumir é deixar supérfluos para mais tarde, ser racional no consumo, não gerar dívidas em longo prazo.” Maria Carolina defende que esse pensamento caracteriza o termo economia, que significa renúncia. “Economizar é um ato de consumo posterior, é privar-se de algo, mas também é privar-se agora para poder fazer sempre que o quiser”, esmiuça, “por isso a maioria das pessoas não gosta de falar sobre economia; para grande parte é algo ruim e que somente precisa ser tratado quando se está sem dinheiro”. O empresário e economista Gilberto Dal Zotto concorda com Maria Carolina. Para ele, há uma parcela da população que não tem acesso à educação ou que não se interessa pelo tema. “Há também políticos e governos que fazem questão que a população não entenda de economia. Assim, fazem a política econômica e os agentes econômicos reféns de seus interesses pessoais”, critica. As mentiras contadas pelas autoridades governamentais aos brasileiros, segundo Dal Zotto, são muitas. “Infelizmente, o Brasil vive no país da Alice, basta termos conhecimento e es-

pírito crítico e veremos o que os governos fazem com a população. Falam que a inflação está sob controle, que não existe desemprego no País, que os corruptos estão indo para a cadeia, que o FIES irá financiar os estudantes”, enumera. Para o empresário, é fato que a população está sendo enganada. Mas, em contrapartida, deveria estudar mais, se preocupar mais

O Brasil vive no país da Alice, basta termos conhecimento e espírito crítico e veremos o que os governos fazem com a população com o futuro, participar e aprender economia, seja para administrar a receita familiar ou para definir seu voto nas eleições. “Só assim mudaríamos algumas situações neste país; fora isto, não vejo muita alternativa a não ser continuarmos sendo simples fantoches na economia brasileira”, conclui.

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Economia distante da zona militar A possibilidade de uma volta da ditadura militar gera divergências, de um lado uma minoria pede pelos militares no poder, de outro o retorno gera insegurança e medo. Apesar da discordância, em nada a economia atual aponta para uma segunda época de ditadura. Os economistas Maria Carolina Gullo e Gilberto Dal Zotto defendem que o Brasil de 2015 não é o mesmo de 50 anos atrás. “Hoje, o país possui uma economia muito maior e mais importante que naquela época. Nosso sistema produtivo é muito diferente; a competição de mercado, doméstico ou internacional, também é maior. Além disso, vivemos num sistema de economia aberta, em 1964 ele era fechado”, explica. A economista acrescenta que os agregados econômicos da atualidade são mais consolidados. “É claro que a inflação está elevada, mas não chega perto da década de 60. Além disso, o Brasil não tinha naquela época o respeito que tem na economia mundial”, ressalta. A real aproximação entre o pré-golpe e a atualidade, para ambos, está na política. Maria Carolina destaca como principal insatisfação da população os sucessivos escândalos de corrupção, como o da Petrobras. Dal Zotto, no entanto, é mais duro em suas afirmações. Ele acredita que a proximidade está nas relações de poder e na interferência dos governantes em assuntos que não seriam de sua competência, como a economia.

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Divulgação/ Pixabay

Saúde

Drogas, de controladas a ilícitas Tanto as drogas permitidas quando as ilícitas podem viciar e causar danos à saúde do usuário. Em cinco anos, o número de usuários de medicamentos controlados no Brasil cresceu 161% Lilian Donadelli ldonadelli@ucs.br

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ão várias as celebridades que estampam as capas das revistas de fofocas, devido a vexames causados por bebedeiras ou até mesmo pelo envolvimento com drogas. Mas, o que impacta ainda são os nomes gravados na calçada da fama, que acabaram morrendo por overdose causada pelo uso inadequado ou exagerado de medicamentos. Casos que vão de Elvis Presley a Michael Jackson ou Amy Winehouse. Segundo o departamento Internacional de Controle de Narcóticos, ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), o uso em excesso de remédios controlados já supera o consumo somado de heroína, cocaína e estasy. Conforme o professor na Universidade de Caxias do Sul, doutor em Neurociências pela UFRGS, Lucas Fürstenau de Oliveira, droga é uma substância química que tem efeitos em humanos e em outros animais. Ela pode ter finalidade terapêutica, religiosa ou recreativa. “Em alguns casos, a droga tem potencial para abuso ou para gerar dependência química”, destaca Fürstenau. Ele explica, ainda, que o uso de drogas com efeitos psicoativos, que afetam sensação e percepção, existe desde o início da civilização humana. Há registros do consumo de maconha, por exemplo, datados de cinco mil anos atrás. Ainda de acordo com ele, as drogas naturais

são extraídas de algum outro ser vivo. Frequentemente, são retiradas de plantas, mas, por vezes, podem ser obtidas a partir de fungos. Já, as drogas sintéticas são produzidas em laboratório, a partir de substâncias mais simples. “É importante mencionar, também, as drogas semissintéticas, produzidas por meio da modificação de uma droga natural. Não há diferença em termos de efeitos e atua­ção no organismo”, comenta o professor. Dessa forma, surgem inúmeras dúvidas. Por que algumas drogas são consideradas medicamentos e outras são taxadas como ilícitas? A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) classifica a droga como substância ou matéria-prima, que tenha finalidade medicamentosa, ou sanitária, então ela poderá ser um medicamento se usada de acordo com a indicação e com acompanhamento de um profissional e na forma indicada. No entanto, a palavra droga também está relacionada com substâncias proibidas, ou seja, ilícitas, como é o caso da cocaína e da maconha, proibidas no Brasil. O professor acrescenta que não existe associa­ ção verdadeira entre a droga ser lícita ou ilí­ cita e seu potencial para dano. “Há consenso entre especialistas de que a substância mais danosa é o álcool. Entretanto, ele segue sendo

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lícito. Enquanto outras drogas, menos prejudiciais, como a maconha, se­ guem ilícitas”.

História – A legalidade ou não de uma substância tem origens históricas. Nos EUA, a maconha era consumida primariamente por imigrantes mexicanos na primeira metade do século XX. Quando a população branca começou a consumir (e a misturar-se com os imigrantes), veio a proibição. Da mesma maneira, a cocaína, nos EUA, era associada à população de origem africana. Quando o consumo começou a se espalhar na população branca, veio a proibição. O doutor em Neurociências afirma que a decisão, sobre que drogas são lícitas e quais não são, está vinculada a um tratado proposto pela ONU em 1961. Alguns anos depois, em 1971, o presidente americano Richard Nixon lançou a “Guerra às

Drogas”. Ele declarou o abuso de drogas o “inimigo público número um”, dando início a um proibicionismo que, apesar de iniciado nos EUA, espalhou-se por boa parte do mundo. “Nosso País é um dos mais restritivos com relação ao consumo de substâncias. Já em países como o Uruguai por exemplo, a maconha é legalmente vendida”, acrescenta Oliveira. Quanto aos remédios, a farmacêutica Rita de Cassia Hilgert Bolsoni fala que, para haver um controle surgiu, em 1938, o Decreto-Lei 891, que aprovou a fiscalização de entorpecentes. “Desde lá houve vários decretos-lei que falam sobre o controle na venda de medicamentos psicotrópicos, mas em 1998 pela RDC 388 da Anvisa, os medicamentos começaram a ser classificados por tarja. Depois dessa resolução, várias outras foram feitas para atualizar a lista de substâncias controladas, mas a RDC 388 é seguida até hoje.”

Vício – Engana-se quem pensa que somente as drogas chamadas ilí­ citas viciam. Rita diz que os medicamentos controlados também podem viciar, principalmente os de tarja preta. Por isso, eles somente podem e devem ser comprados com receita específica e com a orientação exclusiva

“Eles só podem e devem ser comprados com receita médica específica” de um médico. De acordo com ela, um dos problemas mais frequentes ,quanto ao uso desses medicamentos, é o aparecimento da síndrome de abs­tinência, quando a administração é interrompida abruptamente.

Divulgação/ Pixabay

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“Se um usuário de medicamento para dormir, parar o tratamento abruptamente, ele terá a síndrome de abstinência após alguns dias. Entre os principais sintomas da crise estão: náuseas, tontura, sensação de cabeça vazia, irritabilidade, dor de cabeça, calafrios, fadiga, entre outros. Somente o médico pode interromper o uso de um medicamento, pois existe uma forma de evitar a síndrome, que consiste em reduzir aos poucos a dosagem até que a inter-

Os dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC) divulgou que o registro nacional de fornecimento de medicamentos controlados aos usuários saltou de pouco mais

rupção completa do tratamento possa ser feita de forma segura”, explica. A psicóloga Rafaela Fava de Quevedo ressalta que existe ainda muito preconceito quanto aos psicofármacos, especialmente no tratamento de crianças. “Os pais vão até os consultórios com a ideia de que vão viciar o filho ou transformá-lo em um robô automatizado com a medição. Entretanto, o psicólogo e o psiquiatra podem, e devem, fazer psicoeducação sobre o funcionamento

de 113 mil caixas, em 2009, para quase 295 mil no ano passado. O aumento foi de 161%. São mais de 32 mil rótulos no país, com variações de 12 mil substâncias – um exagero, considerando a lista de medicamentos

do medicamento ideal para cada caso”. A psicóloga acredita, ainda, que é necessário um trabalho interdisciplinar entre psiquiatra e psicólogo para investigação e proposta de um diagnóstico ade­ quado para depois o psiquiatra indicar o tratamento medicamentoso. Mas, se há alguma verdade na farmacologia, ela pode ser resumida na frase: a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

essenciais para o bem-estar, da Organização Mundial de Saúde (OMS), de apenas 300 itens, ou mesmo as seismil drogas disponíveis nas farmácias britânicas.

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SEGURANÇA

Por trás DAS GRADES Rodrigo Chernhak

Dentro do presídio apenados realizam trabalhos manuais, como a confecção de barcos de madeira

Reportagem acessou a Pics e mostra relação de agentes e apenados

Rodrigo Chernhak rchernhak@ucs.br

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0 de abril de 2015: 10h30min. “Ô neguinho! Segura o pessoal aí que vamos entrar”, grita o agente da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Repórter e agente passam em frente às celas e desembocam no pavilhão de traba­ lho. O detento responsável por abrir e fechar as portas das galerias sela a passagem. Ele segura um molho de chaves. Um homem toma chimarrão, escorado em uma mesa e abre um sorriso ao ser indagado sobre sua ocupação: um barco de madeira construído a mão. “Eu que fiz ele, tá quase pronto”, orgulha-se. Oito homens com caixas em mãos entram e avançam sobre uma mesa. São suportes para luminárias que integram a produção de uma empresa de iluminação. A cada três dias trabalhados, descontam um no cumprimento da pena. Além disso, montam caixas de vinho. São as chamadas PACs: Protocolo de Ação Conjunta para mão de obra de apenados. “O trabalho é um progresso para a vida da gente. Para as pessoas verem lá na sociedade

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que não podemos ser discriminados. Hoje em dia, a empresa é obrigada a contratar 5% do efetivo entre deficientes e presidiários, mas não é bem assim que funciona. As portas são fechadas para ex-presidiários”, discursa Juarez (nome fictício), 42 anos, preso há 22 por tráfico de drogas e latrocínio. Na ala feminina, são confeccionados tapetes. Uma empresa de suportes metálicos está em vias de fechar contrato, o que irá gerar mais empregos às mulheres. “Estamos fazendo com que funcione realmente, que não seja só Penitenciária Industrial no nome. Hoje, temos 60 presos trabalhando e mais de 50 na lista sob análise, porque ainda não temos uma produção que exija tantos presos”, justifica o agente penitenciário Éverton Hermes, 32 anos, do setor de manutenção. No presídio, também funciona uma escola com 12 professores, frequentada por cerca de 70 detentos. Assim funciona, na prática, a chamada ressocialização na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul (Pics).


669 para 298 vagas A Penitenciária Industrial de Caxias do Sul passou por uma reformulação há quatro anos. Desde fevereiro de 2015, o diretor é Carlos Augusto França, há 8 anos na Susepe. Antes, passou pela Penitenciária Regional (Percs), no distrito do Apanhador, e pelo setor de informações da Pics. “Quando entrei no sistema era muito mais rígido. Era tentado colocar disciplina nos presos, muitas vezes à força. Agora, buscamos mais o diálogo, trazendo menos conflitos. Antes, a Susepe era a continuação da polícia e os presos não aceitam polícia. Agora não. Eles têm o entendimento de que estamos aqui para servir eles, para fazer o serviço do cumprimento da pena e prestar auxílio no que for necessário: médico e educacional, para que eles se ressocializem. Antes tinha só opressão e a pressão no servidor era bem maior. Inclusive, teve quatro servidores que eram meus colegas e se suicidaram entre 2008 e 2011”, revela França. A Pics coleciona problemas estrutur-

ais, como a superlotação. São 669 presos, sendo 59 mulheres, para uma capacidade de 298 pessoas. Enquanto isso, na Percs há ociosidade, já que são 373 presos para uma lotação de 480. Cada apenado custa, em média, R$ 800 mensais ao Estado. “Há celas para quatro pessoas que têm 21”, reconhece França. Os colchões, esfarrapados, são expostos ao sol nos horários dos detentos irem ao pátio. A má conservação denuncia a situação precária. “A nossa dificuldade é falta de material de higiene, colchão. Hoje, se dorme no chão. O Estado não repassa as coisas para conduzirmos o ‘troço’. Está sendo precário. Está tudo em falta”, critica o preso Lourenço (nome fictício), que emenda: “Não pretendo mais voltar pra cá, não. Já penei uns nove anos aqui dentro, foi o suficiente para eu pensar mais. Já tenho serviço encaminhado como eletricista. Tenho família, uma esposa e duas filhas e mais o pai e a mãe me esperando. As dificuldades vão aparecer, mas vamos driblando”,

diz, há 30 dias de passar para o regime semi-aberto. Já a psicóloga Fernanda Facchin Fioravanzo, 31, questiona o modelo do sistema prisional. Concursada como técnica superior penitenciária, ela trabalha na Pics desde fevereiro de 2013 atendendo aos presos e familiares.

“O sistema prisional não é feito para ressocialização. É feito para punir” “O sistema prisional não é feito para ressocialização. Ele é feito para punir, já que as pessoas são cerceadas de seus direitos fundamentais: a liberdade e a dignidade. A ressocialização se refere a reinserir, mas será que eles já estavam inseridos antes?”, questiona.

Rodrigo Chernhak

Com capacidade para 298 pessoas, Pics abrigava 669 em maio


Rodrigo Chernhak

Polêmica penal Assunto que levantou polêmica neste ano foi a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93 da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. A proposta foi apresentada em 1993 e ficou mais de 21 anos parada, voltando à pauta da Câmara dos Deputados por meio da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O assunto desperta opiniões contrárias e levantou discussões acaloradas na Câmara. A psicóloga da Pics, Fernanda Facchin Fioravanzo, é contrária à redução:

Agente penitenciário Éverton Hermes relata melhora na relação com os apenados

Os voluntários A Pastoral Carcerária é uma iniciativa que humaniza o cotidiano dos detentos. É formada, atualmente, por quatro homens, que visitam as duas penitenciárias aos sábados e domingos pela manhã, durante uma hora. Há também um padre, que celebra missa mensal e ouve as confissões. A Mitra Diocesana custeia o combustível, que gira em torno de 140 km por final de semana. Os voluntários passam pelo pátio e convidam quem quiser participar. Em uma sala, fazem orações, leem a Bíblia e partilham a fé, problemas, dificuldades e histórias de vida. “Geralmente, participam entre 10 e 30 pessoas, o que eu considero um alto número, pois, se apegar à religião é sinônimo de fraquejar, e os presos que são contra acabam influenciando. A Pastoral é uma aula de perdão interior da pessoa. Se tu achas que tem problema, tu não tem, não. Você começa a compreender mais as pessoas e os

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julgamentos caem por terra”, resume Fernanda Marca, 46 anos, coordenador da Pastoral e membro do movimento Emaús da Igreja Católica. Outra iniciativa destacável é o Conselho da Comunidade, formado por interessados em colaborar com a melhora da estrutura prisional e com o bem-estar dos presos; buscar recursos e doações. Itens como pintura das paredes, colocação de grades e arame farpado, carro para transporte de presos, pequenas manutenções e, mais recentemente, a construção da sala de visitas no presídio do Apanhador, com ba­nheiros são custeados pelo esforço dos voluntários. Outras conquistas são a disponibilidade de médicos e dentistas todos os dias e cursos instrutivos. “Se ninguém fizer nada, é pior. Talvez eu e tu (repórter) estejamos vivos para ter essa conversa porque alguém está fazendo esse trabalho e torna os presos mais humanizados. São pequenas vitórias do dia a dia”, justifica Marca.

“A PEC propõe a redução da maioridade penal para todos os crimes, e do total de jovens da população brasileira, 3% cometem crimes, mas grande parte são danos ao patrimônio. Somente 1% se configura em homicídio, trafico e outras especificidades. Hoje, temos 0,1% de jovens internos nas instituições de cuidado para jovens menores de 18 anos, como a Fase. Por isso, a redução não se justifica”, defende. Membro do Conselho da Comunidade e Pastoral Carcerária, Fernando Marca compartilha da opinião: “Não é estando junto com os adultos que vai mudar alguma coisa. A escola do crime eles (jovens) já tiveram. A cadeia é a faculdade do crime.” Já o agente penitenciário Éverton Hermes se posiciona a favor da PEC: “Do jeito que estamos traba-lhando aqui na Pics, é melhor que o menor apenado venha para cá do que vá para uma instituição de menores, onde não vai receber disciplina nenhuma.”


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FUTURO

Educação, um direito de todos

Escolas enfrentam desafios para que o Brasil seja, de fato, uma “Pátria Educadora.”

Milena Schäfer mschafer@ucs.br

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ever do Estado em suas três ins­ tâncias – federal, estadual e municipal –, a Educação é um direito de todos, garantido na Constituição Brasileira de 1988. Muito mais do que um professor e um aluno, ela engloba uma série de questões e, quando qualificada, garante a redução da criminalidade, da fome, da miséria. A Educação é capaz de transformar. De acordo com dados do Censo Escolar 2014, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), as escolas brasileiras matriculam, atualmente, mais de 38 mi­lhões de alunos nas três redes de ensino, da Educação Infantil até o Ensino Médio, além da educação rural e a Educação de Jovens e Adultos (EJA), em turnos parciais e integrais. Entretanto, de acordo com dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 3,8 milhões de crianças e adolescentes, entre 14 e 17 anos, estão fora da escola. Além da inclusão, a Educação ainda vive o desafio de qualificar-se e oferecer aos alunos um ensino eficaz e transformador. Em Caxias do Sul, as 127 escolas da rede municipal atendem cerca de 40 mil alu-

nos e, neste ano, passam a seguir o Plano Nacional de Educação, sancionado em 2014 pela presidente Dilma Rousseff, e válido ao longo dos próximos dez anos. O plano, desenvolvido de forma colaborativa, com especificidades em cada município, estipula metas a serem atingidas, por meio de estratégias pensadas por profissionais locais, de acordo com o perfil educacional do município. Para a Secretária Municipal de Educação de Caxias do Sul, Marléa Ramos Alves, o Plano é assegurado pela Constituição Federal e representa um movimento da sociedade, no qual se projetam as propostas educacionais para o decênio. “Logo, há a necessidade do envolvimento e engajamento de todos para assegurar que ele seja cumprido, de forma a garantir os direitos de todos os cidadãos”, comenta Marléa. “O Plano Nacional de Educação é uma proposta, um planejamento que será exequível nos próximos dez anos. Como todo planejamento, variáveis no percurso se apresentam e devemos buscar o feedback e um realinhamento de estratégias quando necessário”, completa a secretária.

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Fotomontagem

Questão histórica Os 21 anos de Ditadura Militar no Brasil transformaram a Educação no País e as mudanças daquele período, até hoje, influenciam o modo de educar nas salas de aula. Com 50 anos de experiência na área, Lia Faria é professora na pósgraduação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro e exsecretária de Educação, no mesmo estado. Assim como muitos brasileiros, ela sentiu na pele os efeitos do Regime Militar no país e viu os reflexos na sua profissão. “O autoritarismo, a covardia, tudo que se fez contra a democracia, a liberdade de pensamento e expressão, enfim, marcaram diretamente minha experiência como educadora”, relembra a professora, que lutou como militante, sindicalista, e líder dos professores na região de Nova Friburgo. “O que marcou para mim foi a interrupção do sonho de uma ge­ração, foi a covardia. Foi a desarticulação dos discursos. Foi a valorização do individua­ lismo”, lamenta. O acordo MEC-USaid, que importou um modelo de educação americana durante os anos de chumbo, modificou a realidade local. “É nesse momento que se retiram disciplinas essenciais para o livre pensar, como Filosofia, Educação Política e outras, para colocar Moral e Cívica... Ora, a quem isso servia? Ao regime ditatorial. Àquela realidade que eles queriam construir no nosso País”, observa a professora. Lia acredita que o fim da ditadura deixou, sim, muitos vestígios na sociedade atual. “A escola continua com práticas autoritárias”, afirma a professora, que, apesar disso, acredita na democracia, na força da liberdade de opinião e no ensino público com qualidade, republicano e integral. Acompanhando o PNE de perto, Lia o vê como mais um elemento que demonstra a importância que parte da sociedade atribui à educação, colaborando inclusive com a construção das estratégias. “Creio que as metas, se implementadas, vão auxiliar na construção de uma política de Estado para a educação”, observa. “Eu acho que o novo PNE prevê uma boa quantidade de investimentos em termos numéricos e bons avanços, no sentido de uma educação integral, mas não podemos esquecer de investir nos professores, para que o magistério possa ser uma carreira valorizada na nossa sociedade, com salários decentes”, completa a professora. Ela torce para que os professores sejam mais valorizados e voltem a ser reconhecidos como eram antigamente, na sua época de magistério. “Apenas quando a sociedade entender a centralidade da edu­cação, iremos avançar como país”, resume.

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Milena Schäfer

Atendimento regional A 16ª Coordenadoria Regional de Edu­ cação (16ª CRE), sediada em Bento Gonçalves, é ligada ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul e atende, hoje, 25 municípios da região, abrangendo 22,6 mil estudantes em um universo de 1,3 mil professores e funcionários envolvidos no ambiente escolar.

Fazendo a diferença O modelo “sala de aula”, praticado para atingir as metas do Plano Nacio­ nal de Educação não é a única forma de efetivar o aprendizado de um estudante. Ações diferenciadas podem ser alternativas para garantir o desenvolvimento integral da persona­ lidade humana e a sua participação nos trabalhos, com vista ao bem-estar comum. Nesse sentido, a professora de Ensino Fundamental, Márcia Magnani, que leciona na Escola Municipal de Ensino Fundamental Pedro Cattani, em Garibaldi, desenvolveu um projeto com alunos do 4º ano. As “Eleições Escolares” ocorreram em agosto do ano passado, às vésperas do Pleito Eleitoral Nacional – realizado em outubro. O projeto iniciou com uma pesquisa, na aula de informática, para co­ nhecimento das funções de cada cargo político, disputado nas Eleições 2014. “Levamos a pesquisa para outras disci-

plinas e trabalhamos isso praticamente todos os dias ao longo do desenvolvimento do projeto”, conta a professora. Durante a atividade, os alunos foram orientados a acompanhar o horário político na televisão, juntamente com a família, para que tivessem referências. O trabalho envolveu a disciplina de Língua Portuguesa, na composição dos jingles; Artes na confecção dos logo­ tipos do partido; Geografia, no estudo do Brasil e a questão dos deputados estaduais; e a própria Matemática, que será introduzida na contagem e estatística dos resultados da votação. “O objetivo foi de trabalhar com os alunos a honestidade e a cidadania”, afirma Márcia. Segundo a professora, diversas dúvidas sobre o processo eleitoral surgiram ao longo do trabalho e foram sendo explicadas aos estudantes, que também desenvolveram a capacidade de superar a timidez e se pronunciar em público.

O Coordenador Regional de Educação, Leonir Olimpio Razador, vê a implantação do Plano Nacional de Educação como um processo subjetivo. “Seja pelo envolvimento comunitário, pela ação da esfera estadual (considerando a mudança de governo) e esfera municipal, bem como pela definição concreta de recursos (10% do PIB até 2024)”, comenta. Ele considera que um dos maiores desafios está no conteúdo programático ,como instrumento para a interpretação da realidade. “É preciso cons­ truir planos que tenham a característica de saber como, com que recursos e metodologias, atingir a meta proposta, conjuntamente com a comunidade escolar”, avalia o coordenador. De modo geral, Razador aprova o Plano como uma forma de melhorar a Educação no País, modificando o perfil da realidade educacional. Entretanto, ele alerta para a necessidade de “um investimento, em capacitação e recursos físicos que passam pela efetiva disponibilização de recursos”.

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trânsito

Segundo os ciclistas Ana Zaniol e Fábio Oliveira, há pouco incentivo público para a bicicleta ser meio de transporte

Em Caxias, a bicicleta não é usada como veículo por falta de infraestrutura nas vias

Ana Mutterle accmutterle@ucs.br

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m um trânsito pensado preferencialmente para automóveis, obviamente o carro será o veículo dos sonhos para a maioria dos adultos. Porém, a União percebeu que o problema dos congestionamentos está na mobilidade planejada apenas para os carros e solicita, no artigo 6º do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, publicado em janeiro de 2012, que haja prioridade no sistema de trânsito para os modos de transporte não motorizados sobre os motorizados. Caxias do Sul apresenta opções para o ciclismo de lazer, como a ciclofaixa e as ciclovias em bairros afastados; no entanto, o poder público demora para implantar mudanças que tornam a bike um meio de transporte. O município já discutiu propostas como ciclovia na estação férrea, pontos de aluguel de bikes elétricas, racks em ônibus, entre outros; porém, nenhuma avançou. De acordo com Luciano Pacheco, idealizador do movimento que reúne mensalmente mais de 150 ciclistas, para andar

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na cidade, o Massa Crítica, as iniciativas que avançam são apenas para lazer. “Nenhuma ação é concretizada, como a construção de um sistema cicloviário, ou, no mínimo, a realização dos projetos levantados. Ficam apenas nas promessas”, enfatiza. INTEGRAÇÃO DOS MODAIS – Segundo o secretário municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade, Manoel Marrachinho, as propostas implantadas foram válidas; contudo, comprovaram a necessidade de integração da bike com outros modais, o que nas ciclovias existentes não ocorre. “A bicicleta é parte importante das atuais mudanças de trânsito. Uma prova é que os bicicletários nas estações de transbordo e as ciclovias na rua Luiz Michelon e, em Forqueta, estão em construção, para operar em março de 2016. Até recentemente, a bike era vista apenas para lazer, e não como veículo. Por isso, é importante que as iniciativas sejam executadas após um estudo aprofundado”, explica Marrachinho.

Ana Mutterle

Por que A BIKE NÃO ANDA?


Mobilidade central A opinião dos principais grupos de ciclistas da cidade é unânime: a bicicleta só se tornará meio de transporte, se houver uma via exclusiva para ela no centro da cidade. “O Massa Crítica elaborou um projeto de lei que cria um sistema cicloviário com 16 ruas centrais, as quais possuem 3,30m de largura em cada via, sendo possível deixar cada via com 2,70m para carros, sobrando, das duas vias, 1,20m para a ciclovia”, explica Pacheco, que coleta as assinaturas para o projeto, o qual precisa de 15 mil assinaturas para entrar em votação no Legislativo Caxiense e já possui oito mil.

De acordo com Marrachinho, a proposta e outras iniciativas serão estudadas quando forem elaborar o Plano Municipal Cicloviário, que será contratado via Plano Diretor de Mobilidade, a partir de 2016, após o avanço das obras do SIM. “A implantação física do sistema cicloviário deve ocorrer após o estudo técnico, que indicará a via mais aconselhável para sua construção. No entender da SMTTM, essa via seria a Avenida Júlio de Castilhos, porém é necessário aguardar o estudo”, explica Marrachinho. O arquiteto e urbanista Vinicius Ribeiro presidiu a Comissão Especial de Mobilidade Urbana da

Assembleia Legislativa quando deputado até 2014, e sustenta que o uso da bicicleta, como meio de transporte, é imprescindível para a mobilidade. “Amsterdã tem 400 quilômetros de ciclovias, de modo que 40% dos deslocamentos ocorrem por meio de bicicletas. Em Bogotá, a integração da bike com o ônibus permite que, mesmo com difícil topografia, a população se locomova de bicicleta. Em Londres,

Para ciclistas, a bike só se tornará veículo quando houver via exclusiva para ela no centro de Caxias há incentivos para as empresas comprarem bikes com impostos reduzidos e as darem aos funcionários. Ou seja, basta implantar medidas eficazes para a bicicleta se tornar um veículo”, argumenta Ribeiro.

Ana Mutterle

CICLOVIA RAMIFICADA – Segundo Ana Zaniol, ciclista e diretora de comunicação da Associação Caxiense de Ciclistas (Acaci), a entidade, que estima cinco mil ciclistas na cidade, defende um sistema cicloviário mais simples, para ser implantado de forma mais rápida. Ela sugere que, no início, somente as Ruas Ernesto Alves e 20 de Setembro recebam a ciclovia, pois são artérias menos importantes do que a Pinheiro Machado e a Sinimbu.

“A partir dessa ciclovia central, é possível fazer ramificações nos bairros e interligar com as paradas de ônibus. Não é necessário esperar grandes estruturas, como as estações de transbordo, que estão demorando anos para ficarem prontas. Porém, sabe-se que o ciclismo não gera recursos para o município, então a atividade sempre ficará por último nas intervenções”, aponta Ana, que já apresentou o projeto para o secretário municipal de Trânsito.

Correndo riscos, ciclistas competem com carros para se deslocar quando não há via exclusiva

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Andressa Gallo

Neimar Gallo começou com o deslocamento para o trabalho e atualmente faz mais de 30 km no interior

Urbano e interior O administrador de empresas Fábio Oliveira da Silva, 31 anos, começou a andar de bicicleta em outubro de 2013, após fundar, junto com quatro amigos, o grupo Bike das Colônia (BDC). De acordo com Fábio, o objetivo do coletivo é fornecer uma categoria para os ciclistas iniciantes, promovendo passeios semanais pelo interior do município e viagens pelo estado, até ganharem condicionamento e poder se locomover com a magrela. “A principal dificuldade em andar de bike é a falta de respeito no trânsito. Um veículo pensa que tem prioridade sobre o outro, enquanto um devia zelar pelo outro. Por isso, andar em grupo faz com que cuidemos uns dos outros e ganhemos mais respeito”, relata. Segundo Fábio, os 36 membros do grupo começaram a pedalar por lazer, logo ganharam condicionamento e aprenderam a realizar seu deslocamento por bike; destes, sete chegaram a virar atletas e a competir. “Quando se descobre a qualidade de vida, as novas amizades e a facilidade na mobilidade que a bike proporciona, to-

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dos viram fãs da magrela, mesmo com a falta de vias na cidade”, cita. LIBERDADE DE IR E VIR – O educador social Neimar Gallo, 47 anos, gosta do ciclismo justamente por permitir a liberdade de locomoção que o ônibus não fornece. Há 15 anos, ele morava a 23km do seu trabalho caso se deslocasse com ônibus, e a 10km se fosse de bicicleta por uma estrada de chão batido. Começou a ir de bike para o trabalho por necessidade, mesmo com tempo ruim e chuvoso, e se apaixonou pelo transporte. “Há um ano, a distância do trabalho para casa passou a ser de 5,6m, mas ir de bicicleta já se tornou um hábito”, conta. Ele gosta de ser um ciclista individual e a bicicleta é o seu exercício físico e de lazer, de modo que já comprou dois modelos: uma para o deslocamento e outra para passeios de 30 a 70 km no interior. “A falta de infraestrutura em Caxias para a bike é um empecilho, mas a sensação de prazer ao final de cada pedalada são maiores e me motivam a pedalar diariamente”, diz.

Projetos RACKS EM ÔNIBUS: para guardar bicicletas na parte dianteira do ônibus. Situação: de acordo com Marrachinho, a ideia não avançou, pois a colocação e retirada de bike dos racks gera redução da velocidade operacional do ônibus. BICICLETAS ELÉTRICAS: Convênio com a RGE, prevê pontos de aluguéis de bicicletas elétricas consideradas pelo Conselho Nacional de Trânsitos e-bikes, de modo que o motorista não precisa de habilitação para dirigi-las. Situação: segundo o secretário, o projeto encontra-se na Diretoria da RGE Nacional e ainda não emitiram retorno. O município já havia aderido à proposta. CICLOVIAS: estão em construção na Rua Luiz Michelon e em Forqueta proposta no Sistema Integrado de Mobilidade. Situação: em obras, com previsão para estarem funcionando em março de 2016. CICLOFAIXA: funcionando todos os domingos, das 14h às 20h, a ciclofaixa foi implantada na Avenida Ruben Bento Alves (Perimetral Norte). Situação: atualmente, funciona apenas nos Pavilhões da Festa da Uva, no mesmo horário. BICICLETÁRIOS: não existe projeto que estimule a criação de estacionamentos para bicicletas em locais públicos e privados (bancos, supermercados, etc.), como solicitamos ciclistas. Situação: o que há são iniciativas individuais com bicicletário, como: Câmara de Vereadores, Prefeitura, Centro Municipal de Cultura Dr. Henrique Ordovás Filho, shopping Estação San Pelegrino, postos Ditrento, Praça Dante Marcucci, nas estações Imigrante e Bento Gonçalves, no estádio Centenário e na Festa da Uva.


Marcelo Casagrande

Patrimônio Histórico

ÁREA DE CONFLITO Tem grupos que preferem a preservação como forma de reestabelecer uma conexão com o passado

Marcelo Casagrande casagrande2@ucs.br

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alar sobre preservação do patrimônio em Caxias do Sul é um assunto delicado e muitas vezes polêmico. Em tempos hipermodernos, na era do efêmero, com a violenta especulação imobiliária e a verticalização das cidades, cada vez mais os altos edi­ fícios fazem parte da nossa paisagem urbana. Espaços antes ocupados por construções, que faziam parte da memoria e da identidade da cidade e de seus moradores, vão sendo tomados por caixas de concreto e modernos condomínios fechados. Para o historiador Marcelo Caon, Caxias não é uma cidade que preserva. Tem grupos, pequenos que lutam pela preservação do patrimônio. Prova disso foram as manifestações e o clamor pela defesa do Moinho em Ana Rech, que teve parte derrubada por uma construtora, que pretendia construir na área, em 2012. O prédio estava protegido por uma notificação de tombamento provisória e a população saiu em defesa do lugar. O mesmo aconteceu quando um motorista de um caminhão derrubou, acidentalmente, o pórtico da antiga Vinícola Luiz Antunes, no Bairro Panazzolo, no mesmo ano. Alguns grupos se manifestaram rapidamente pelas redes sociais, cobrando a reconstituição da obra. A empresa assumiu a responsabilidade e se comprometeu com a reconstrução.

INVENTÁRIO – “Caxias tem uma lista de bens passiveis de serem preservados, mas não quer dizer que a cidade preserva. Na especulação imobiliária não tem doação, há investimento” - afirma Caon. Para ele, tem grupos que preferem a preservação como forma de reestabelecer uma conexão com o passado, por romantismo, outros que pensam readequar o patrimônio à indústria cultural de massa, conceito de Adorno da popularização do passado, para capitalizar e transformar num produto pra ser vendido no presente e no futuro. Há grupos que defendem a preservação como espécie de pastiche, de um lugar a ser visitado . Há também quem pense que preservar é importante porque é bacana, é vintage. São concepções distintas sobre o que é patrimônio histórico. HOSPITAL CARBONE – No processo de desenvolvimento das cidades, a transformação arquitetônica é inevitável e a destrui­ ção também. Com a destruição surgem as manifestações dos grupos que defendem a preservação da cidade. Na década de 70 surge um grupo de estudantes de História, associações de bairro e arquitetos para defender o edifício do antigo Hospital Carbone, prédio construído na década de 20, que foi casa comercial e hoje arquivo histórico do município, que estava em vias de ser demolido.

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Conselho

Esse grupo tem contato com o Instituto de Patrimônio Artístico do Estado (Iphae) e com o Instituto de Patrimônio Artístico Nacional (Iphan), órgãos de preservação. Em 1980, é criado, em Caxias, o Conselho do Patrimônio Artístico, Histórico e Cultural (Comphac), que passa a ter conselho e legis­lação sobre o assunto. Foi feito inventario das principais edificações da época. Oficialmente, o Carbone é o primeiro a ser preservado, na metade da década de 1980. O Poder Público fez uma espécie de convênio com a iniciativa privada e várias empresas que acabaram adquirindo o prédio, que foi passado ao município. Segundo Caon, pela troca, a prefeitura passou a essas empresas índices construtivos. ÓPERA BUFA – Um dos símbolos mais representativos da luta pela preservação do patrimônio em Caxias do Sul, foi o Cine Ópera, uma das maiores casas de espetáculos que a cidade já teve. Depois de longa batalha judicial o Ópera teve seu fim em 1994, depois de um incêndio que destruiu o

prédio. Para Robinson Cabral, realizador audiovisual e produtor do documentário “Cine Ópera – Memória e Identidade”, o prédio poderia ter sido preservado mas houve omissão. A UCS mostrou interesse em adquirir o prédio, mas o Poder Público disse que não poderia ser administrada por entidade particular, que deveria ser um bem público. Mas, a prefeitura alegou não ter dinheiro para comprar o imó­ vel. Os problemas começam quando a proprietária, com dificuldades para manter o cinema em funcionamento, quis vendê-lo. Iniciou-se um longo processo judicial, período em que a proprietária ficava impedida de vender. Nesse tempo o cinema fechou e o declínio começou. O embate durou mais de 10 anos, desde que foi declarado, em 1985, pelo então prefeito Victório Trez, como de utilidade pública. Alguns meses antes de pegar fogo, no jornal da época Folha de Hoje, a jornalista Ivanete Marzzaro publicou uma reportagem sobre uma demolição silenciosa do prédio. Cansada de esperar,

a proprietária começou a desmanchar o antigo cinema. Em 1993, menos de um ano antes do incêndio, que daria fim ao imóvel, já havia sido removido do interior o chão; os camarotes ha­ viam sido demolidos, o palco e a sala de projeção desmontados. Enquanto um grupo defendia a preservação, outro defendia a demolição. Havia argumentos que diziam que o prédio não

Depois de longa batalha judicial, o Ópera teve seu fim em 1994 tinha valor relevante, que era velho e, que tinha que ser demolido por possuir símbolos fascistas. O engenheiro responsável pelo projeto, o italiano Silvio Toigo, foi do partido fascista em Caxias.

Marcelo Casagrande

A área do complexo da Maesa antiga metalúrgica Abramo Eberle possui mais de 50.000 metros quadrados

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Marcelo Casagrande

a, e, s.

Fascismo Silvio Toigo veio morar em Caxias e foi também responsável por dezenas de prédios como o quartel e o colégio do Carmo. Para Caon, o fato de Toigo ser ou não fascista não era justificativa para demolir o cinema. “Então, teria que demolir todos os prédios feito por ele? Outro episódio interessante foi um laudo técnico, feito a pedido da prefeitura, para contrapor o Laudo do Iphan. Além dos grupos locais, que lutavam pela preservação do Ópera, artistas e gestores culturais de outras cidades também se engajaram no projeto. Eva Sopher, diretora do Theatro São Pedro, em Porto Alegre, ressaltou a qualidade acústica do teatro. O Cine Ópera teve um final trágico, assim como outros prédios tiveram o mesmo destino. Porém, a perda do velho cinema parece ter fortalecido o movimento pela preservação. O Pórtico e o Moinho foram defendidos com mais rapidez. Agora, Caxias ganhou do governo do estado o complexo da Maesa.

O Antigo Hospital Carbone foi o primeiro prédio de Caxias a ser oficialmente tombado

O Poder Público está convidando a comunidade para debater possíveis novos usos para o espaço. Uns defendem a criação de um mercado público, outros pensam num complexo cultural, com teatro, cinema, espaço cenotécnico, entre outros. Preservar já é um avanço. Espera-se agora uma ocupação inteligente desse patrimônio.

Lei Em Caxias do Sul, o mecanismo de proteção do patrimônio histórico e cultural do município é a Lei 3152, de 20 de agosto de 1987. Qualquer cidadão, entidade pública ou privada pode solicitar o início de um processo de tombamento de algum bem. O pedido deve atender aos crité-

rios de salvagurda estabele­cidos pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (Compahc). O conselho inicia o processo de análise a apreciação. Após as avaliações, o proprietário é notificado do tombamento. o que significa que este não pode demolir ou alterar o imóvel. Se aprovado, o bem é inscrito no livro do Tombo.

O tombamento de um bem não significa desapropriação. O proprietário do bem continua com os direitos de propriedade e de uso. Como contribuição à manutenção do bem tombado, o município oferece isenção do IPTU e potencial de índice construtivo.

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