expressão Revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade de Caxias do Sul 2016/4
Geração Y A busca de uma identidade por meio de escolhas
Transformação em escola do Vila Ipê Novas formas de economia Desafios da vida na rua
EDITORIAL Nasce uma nova Expressão
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omo um prisma que fragmenta um único objeto em diversas partes que compõem um todo, a sociedade atual, cada vez mais diversificada, se revela como um amplo cenário cheio de contextos e realidades. Os jornalistas que iniciaram nesse trajeto com o sonho de se tornarem contadores de história encontram, diante de si, uma grande realidade a ser explorada. A revista Expressão, desenvolvida pelos alunos de comunicação, busca apresentar uma pequena fragmentação do contexto social, mostrando desde as dificuldades e desafios de uma escola que lida com as realidades da educação pública, vagando até os personagens noturnos que chamam as ruas de lar. Essas questões são costuradas pelas novas e velhas economias, e pelo perfil dos jovens que irão dar cor à nova sociedade, entendendo seus desejos, anseios e medos. Mais do que refletir uma realidade, esse trabalho busca fazer um panorama da trajetória acadêmica, que
nos permitiu vagar por histórias e contextos tornandonos, também, um pouco personagens dessas vidas. Aos poucos, vamos tomando forma e ocupando nosso lugar nessa mídia, criando um novo personagem que tem por missão contar histórias da vida real e se descobre um jornalista. Em uma mídia dominada por tragédias, em que, muitas vezes, pessoas são tratadas apenas como estatísticas, buscamos apresentar um jornalismo mais humanizado. Uma nova geração de jornalistas que quer falar não apenas para a sociedade, mas também sobre a sociedade, com toda a variedade de personagens e situações inusitadas que ela oferece. Nossa reunião de pauta partiu de um princípio: o jornalista ‘Diante da dor dos outros’, com a leitura de texto homônimo de Susan Sontag. O resultado está nas reportagens e nas crônicas selecionadas sob essa perspectiva. Boa leitura!
Expediente Reitor: Dr. Evaldo Kuiava Diretora da Área do Conhecimento Ciências Sociais: Dra. Maria Carolina Gullo Coordenador de Jornalismo: Me. Marcell Bocchese Disciplina: Projeto Experimental II – Revista Docente: Dra. Alessandra Paula Rech
Mayara Zanella, Ana Vivan, Luciane Modena e Priscilla Panizzon
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Karina Catuzzo, Débora Debon, Franciele Velho, Alana Bof, Aline Mapelli e Pâmela Pelizzaro
Universidade de Caxias do Sul – UCS Rua Francisco Getúlio Vargas – 1130 Bairro Petrópolis - CEP: 95070-560 Caxias do Sul – RS Telefone: (54) 3218.2100 www.ucs.br
Cláudia Palhano, Ana Seerig, Fábio Becker e Karine Bergozza
Bruno Tomé, Cristiane Moro, Bruno Bareta e Diego Pereira
SUMÁRIO Os desafios de viver na rua Assistente social explana sobre a situação das aproximadamente 120 pessoas que vivem nas ruas de Caxias do Sul
Crônicas O livro Diante da Dor dos Outros, da escritora Susan Sontag, inspirou a criação de quatro textos sobre o fazer jornalístico
Geração Y Jovens lutam por valores sociais e profissionais, fazendo da Internet seu principal meio de comunicação
Vida alternativa Três reportagens discorrem sobre mudança de rotina, troca e solidariedade e a preocupação com a natureza que resulta em lucros sociais
Educação Escola Municipal Ruben Bento Alves: quando a sala de aula vai para a rua e a lição de casa é a busca pela paz
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Os desafios de viver na rua Caxias do Sul tem cerca de 120 moradores de rua. A assistente social Eler Oliveira que, de 2014 a 2016, realizou uma pesquisa etnográfica, fala sobre a realidade desse grupo
Bruno Bareta | bdbareta@ucs.br Bruno Tomé | btoliveira1@ucs.br Cristiane Moro | cmoro1@ucs.br Diego Pereira | dlpereira@ucs.br
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A rua é vista como lugar da decadência, da perda. Tem uma representação simbólica de que aquilo que não deu certo está na rua”. A observação, da assistente social e mestre em Diversidade Cultural e Inclusão Social Eler Oliveira, ilustra o cenário no qual estão inseridas cerca de 120 pessoas* em Caxias do Sul. São homens e mulheres que, sem teto, vivem às margens da sociedade. Sofrem com o preconceito, a negligência e, aos poucos, se confundem com a paisagem, tornando-se também invisíveis. Tal situação contradiz as medidas estabelecidas pelo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) que, dentre as ações específicas
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para esse grupo populacional, prevê a prevenção à violência e o enfrentamento ao preconceito, além da garantia de acesso à saúde, serviços de assistência e promoção da cidadania. Em Caxias do Sul, a rede de assistência à população de rua apresenta melhoras nos últimos anos, mas ainda está longe de garantir o acesso a uma vida digna. Para isso, é necessário, além de políticas públicas, o envolvimento da comunidade – e, principalmente, dos próprios moradores de rua. Para entender a situação dos moradores de rua da cidade, a assistente social Eler Oliveira realizou, de 2014 a 2016, uma pesquisa etnográfica com moradores em situação de rua de Caxias
* Dado da Fundação de Assistência Social de Caxias do Sul
FOTO ANTONIO VALIENTE
ACESSO À CIDADE
EXPRESSÃO – Em que contexto se desenvolveu sua pesquisa? ELER – A pesquisa teve como delimitação de território o primeiro traçado urbano de Caxias do Sul. São cerca de 60 quadras, compreendidas entre as ruas Ernesto Alves, Vereador Mário Pezzi, Os 18 do Forte e Marechal Floriano. Durante dois anos, eu conversei, diariamente, com moradores de rua encontrados nessa faixa. Queria entender Caxias do Sul pelo olhar dessas pessoas. De segunda a quinta, percorria 5,6 quilômetros, três ruas. De sexta a domingo, fazia todo o percurso, e isso levava mais de quatro horas. Eu os abordava e iniciava um diálogo, guiada por eles. Ia observando o modo de vida, o contexto. Por meio das narrativas deles, vamos percebendo as diferenças entre ter ou não uma casa. EXPRESSÃO – Que diferenças são essas? ELER – A gente está inserida numa cultura de fixação, de ter um domicílio. Se vai abrir conta num banco, solicitam comprovante de endereço, se vamos fazer o cartão do SUS para ter acesso à saúde pública, pedem endereço. A casa te dá um lugar social. EXPRESSÃO – E como se sentem as pessoas que não provêm desse direito, o de ter acesso à moradia? ELER – Eles não se sentem gente, pelo fato de não ter uma casa. Sofrem com o preconceito , o estigma, estão às margem das relações sociais. São invisíveis, confundidos com a paisagem. Muitas pessoas se referem à
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população em situação de rua como “essa gente”. É como se eles fossem uma subcategoria de gente. Mas a condição social de estar na rua nos diz algo. Ela é reflexo da história, das questões socioculturais e econômicas. EXPRESSÃO – A rua não é um espaço bem visto pela sociedade, sendo associada ao perigo. Qual sua percepção quanto a esse cenário e às pessoas nele inseridas? ELER – A rua é estigmatizada. Temos expressões populares que refletem isso. Se você perde o emprego, você diz que ‘foi pra rua’. A rua é vista como o lugar da decadência, da perda. Ela tem uma representação simbólica de que aquilo que não deu certo está na rua. O lixo, aquilo que a gente não quer dentro de casa, a gente coloca na rua. A rua é perigosa, então aquele que está na rua também é perigoso. EXPRESSÃO – Mas o trabalho e a geração de renda são inexistentes nesse contexto? ELER – A rua é, sim, espaço para geração de emprego e renda. Não teve um dia em que não vi alguém trabalhando. Muitos exercem a função de flanelinha. Antes, a lei não criminalizava, punia. Mas hoje, é considerado crime. Há possibilidade de regulamentar o serviço, mas não há interesse. EXPRESSÃO – Há quem se beneficie com a não regulamentação do serviço? ELER – Ouvi o relato de um morador de rua que exercia a função de flanelinha e, em certa ocasião, foi abordado por um brigadiano (policial) que o extorquiu e deu tapas em sua cabeça. Se fosse aplicar a lei, então faria um auto de prisão. A lei foi criada para que o cidadão não seja extorquido. No entanto, o agente de segurança pública extorquiu o morador de rua. A gente vê também a
exploração. Ao ajudarem a descarregar um caminhão, um trabalhador que não está em situação de rua ganha R$ 50, por exemplo. O morador de rua vai ganhar R$ 10. O empregador alega que o morador de rua vai usar para comprar drogas. É o mesmo trabalho, o mesmo esforço, a mesma carga horária, mas tem menor valor. EXPRESSÃO – Há uma ideia de que todo o morador de rua é usuário de substâncias químicas, ou álcool ou outras drogas. Qual sua percepção? ELER – A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que de 11% a 20% da população – não só moradores de rua – dos grandes centros urbanos A droga cumpre uma de todo o função social, varia mundo têm para cada pessoa problemas decorrentes do uso de álcool. No Brasil, em alguns territórios, como no Nordeste, esse percentual quase chega aos 20%. Então ele é um problema de saúde, e é a droga de mais fácil acesso. Mas não significa que todo o morador de rua, pelo fato de estar na rua, faça uso dessa ou de outras substâncias. Alguns dos meus parceiros de pesquisa (entrevistados) não usam nenhuma droga. Alguns já fizeram, outros estão em processo de cuidado porque perceberam o prejuízo. Em Caxias do Sul, devido à colonização italiana, tem-se o costume de beber vinho, também porque o clima é frio. É comum as pessoas se reunirem para tomar um vinho, mais do que é frequente ir a um café. Essa prática é socialmente aceita, mas não no ambiente da rua. EXPRESSÃO – E por que dessa aceitação de consumo pela população em geral, mas não pelo morador de rua? ELER – A droga cumpre uma função social, varia para cada
FOTO DIEGO PEREIRA
do Sul, cujas observações resultaram na tese de mestrado intitulada “Sem casa, sou um indigente”: uma etnografia das formas de trocas sociais vividas por pessoas em situação de rua em Caxias do Sul/RS. Confira trechos da entrevista:
Eler comenta a situação vivida pelos moradores de rua de Caxias do Sul
pessoa. Pensando na questão do frio, bastante forte na nossa região, é muito difícil aguentar, e o álcool aquece. E urinar pode evitar uma hipotermia, além de afastar as pessoas pelo mau cheiro, uma medida protetiva. Eu bebo, me aqueço, produzo mais xixi, vou me urinar, isso causa mau cheiro e afasta as pessoas. Então, qual é a função da droga? Nesse caso, o álcool funciona como um cobertor. Outro exemplo. Nos presídios, o consumo de maconha é grande. Um dos moradores de rua me contou que usou mais maconha quando estava preso do que na rua. Nos presídios, a maconha é permitida porque diminui o número de confusões, já que os detentos ficam mais relaxados. Voltando à questão do álcool, ele também alivia algumas sensações. Uma pessoa desempregada que está há muito tempo deixando currículos e ouvindo “não”, acaba consumindo porque ameniza. A pessoa sabe que não vai fugir da realidade, mas vai aliviar a
tensão. Há uma relação muito grande entre álcool ou outras substâncias com o desemprego, como forma de enfrentamento das dificuldades. E o morador de rua é visto como vagabundo por consumir álcool. Mas o álcool é altamente tributável, então ele está, sim, contribuindo com a economia. Eu indo comprar minha cachaça no mercado sou cidadã, mas o cara que está na rua e faz isso não é? EXPRESSÃO – A população em situação de rua é composta, em sua maioria, por homens. Por que? ELER – A sobrevivência na rua para as mulheres é bem complicada. Por exemplo, como é ficar menstruada estando em situação de rua? Como é o acesso a um absorvente? Muitas relações, mesmo nada afetivas – às vezes, inclusive, violentas – são relações protetivas, porque garantem moradia, então a mulher opta por isso. A prostituição também acolhe. Quantas mulheres que, se não estivessem
morando nesses espaços de prostituição, estariam na rua? E quando uma mulher está na rua, ela procura um companheiro, porque senão vai ser mulher de todos. EXPRESSÃO – Quanto aos direitos humanos, quais são violados com mais frequência? ELER – De acordo com minha experiência profissional como assistente social e como pesquisadora, os mais evidentes são: a) Impedimento do direito de ir, vir e permanecer: quando trabalhava no Centro Pop, diariamente, ouvia relatos sobre o “guardinha” (guarda municipal) que mandava circular (sair de onde estava). Sobre o policial que questionava o que estava fazendo ali e mandava sair. Do dono da loja, que chamava a guarda municipal, a equipe de abordagem de rua ou o funcionário da segurança para retirá-los do local; b) Violência durante a abordagem de alguns agentes da segurança pública: um rapaz em situação
de rua me contou que ele e mais alguns parceiros que dividiam o mocó (lugar onde habitavam) numa noite de inverno estavam dormindo e, de repente, chegou uma viatura da Brigada Militar. Os brigadianos desceram e foram até onde eles estavam deitados e disseram: “Ah! Estão no quentinho, é?”. Viraram as costas, foram até a viatura e trouxeram um galãozinho de água e jogaram neles. Depois disso, foram embora. Outro me contou: “Naquele dia, eu estava ali na escadaria da câmara tomando um cafezinho que eu tinha comprado. Bah! Tinha conseguido comprar com o dinheiro que fiz cuidando de uns carros. Daí chegou o guardinha (guarda municipal) e me disse: pode sair daí, magrão! Respondi pra ele que ia ficar tomando meu café, que a escada era pública. Daí ele ficou bravo, pegou a taser e botou na minha orelha e começou a gritar ‘circulando, magrão, circulando, ou tu vai levar choque’”; c) O direito
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colchão escorado numa parede que fotografei e pergunto: o que você vê? Lixo, vestígio ou pertence? Já vi alguns trabalhadores se referindo “eu fui lá fazer a abordagem e não encontrei ele, só tinha vestígios. Então pergunto: Tinha vestígio ou pertences? EXPRESSÃO – É comum vermos espaços antes ocupados por moradores de rua tendo suas condições físicas modificadas, impedindo a permanência deles. Um exemplo é a colocação de pedras pontiagudas embaixo de viadutos. Mas isso ocorre em locais públicos e privados. Temos exemplos em Caxias? ELER – Isso é o que chamamos de arquitetura da exclusão. Por exemplo, um dos entrevistados morava embaixo de uma marquise, mas não conseguiu ficar lá por mais de três meses. Os moradores, incomodados com isso, fizeram uma grade, o que o obrigou a sair. Pedras pontiagudas, paralelepípedos inclinados, entre outros, também são aparatos comuns. No entanto, toda ação tem uma reação e, às vezes, esses aparatos resultam naquilo que chamamos de contrauso. Ou seja, colocam uma grade para o morador não acessar, mas aí ele usa a grade para estender a roupa. Embora a sociedade vá criando aparatos de exclusão, os moradores têm suas táticas. O poder público se utiliza muito desses aparatos de exclusão. EXPRESSÃO – Quanto aos serviços prestados atualmente, quais são as regras para uso? Estão de acordo com as necessidades dos moradores de rua? ELER – É preciso rever as regras dos serviços prestados a essas pessoas. Entre as principais queixas está a de não poder entrar no Albergue porque fez uso de substâncias. Uma coisa é o sujeito estar totalmente intoxicado, sem possibilidade de interlocução.
Mas só de estar com cheiro de álcool, já não pode entrar. Muitos têm cachorros. Daí a entrada de cachorros também não é permitida. Os casais, sendo hetero ou homoafetivos, não podem dormir juntos. Em Porto Alegre, existem albergues para famílias, então o casal fica junto. Aqui, não temos isso, o que acaba sendo mais um empecilho. São questões fáceis de equacionar. Os horários A prostituição também acode entrada e saída também lhe. Quantas mulheres que, precisam ser se não estivessem morando revistos.
nesses espaços de prostituição, estariam na rua?
EXPRESSÃO– Fazendo uma análise das políticas públicas para moradores de rua em Caxias do Sul, pode-se dizer que ocorreu uma melhora na prestação dos serviços nos últimos cinco ou dez anos? Que conquistas podemos destacar? E quais são, ainda, os principais desafios? ELER – Em Caxias do Sul, por muito tempo a política de assistência social era a única política pública com ações/ programas direcionados à pessoas em situação de rua, e isso já nos sinaliza um aspecto importante. Em outras palavras, quando o poder público delega a responsabilidade de uma questão social tão complexa como é o caso da condição social de estar em situação de rua para uma única política, ele reduz a possibilidade de enfrentamento das expressões sociais que estão manifestas neste modo de vida. Afinal, não tem como pensar políticas públicas para pessoas em situação de rua sem considerar as questões de geração de trabalho e renda, saúde, moradia e demais direitos. Portanto, embora se observe avanços na política de assistência social, quanto à implementação dos serviços prestados, o município ainda carece da implantação de uma política intersetorial para pessoas em situação de rua e,
FOTO DIEGO PEREIRA
humano à alimentação: em Caxias do Sul, tínhamos dois restaurantes populares que ofertavam almoço de segunda à sexta-feira por R$1,00. Agora só temos um. Tem o programa do Prato Solidário, que serve almoço gratuito após as 14h, mas se a pessoa não conseguiu, por alguma razão, acessar o Centro Pop para tomar café, quantas horas ela fica sem alimentação? Além disso, tem a questão do sábado e domingo, porque não há nenhum equipamento público que oferte alimentação para pessoas em situação de rua nesses dias; d) A retirada dos pertences: é frequente o relato de pessoas em situação de rua que tiveram seus colchões, sacos, sacolas, roupas e outros pertences recolhidos pela empresa municipal de limpeza urbana, como se fosse lixo. Tem um relato de um entrevistado que ilustra bem essa questão: “Eles chegaram aí com o caminhãozinho e recolheram meu colchão. Disseram que eu estava sujando a calçada. Sujeira é o que eles fazem. A senhora vê, está tudo limpinho aqui, eu tenho até um balde ali pra recolher o lixo (..)”. Outro me contou que guardava seus documentos dentro de uma bíblia, mas um dia a equipe da CODECA, com a FAS, esteve no local e recolheu tudo, inclusive a bíblia com seus documentos, pois estava num caixote que foi posto no caminhão da CODECA. Um dia desses estava indo pro trabalho e vi uma funcionária da CODECA varrendo a rua e recolhendo os papelões que uma pessoa em situação de rua utilizava como cama. Havia também algumas roupas que igualmente foram postas no carrinho que a funcionária utiliza para coleta do lixo. Muitas vezes, o que julgamos ser, simplesmente, lixo, para uma pessoa em situação de rua é um pertence, algo que ele utiliza no seu cotidiano. É preciso fazer a distinção. Eu sempre uso a imagem de um
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equivalente. Para se ter avanços, tem que haver o reconhecimento de que a condição social de estar em situação de rua é uma das expressões da questão social que escancara esse processo de desfiliação das relações de trabalho e laços sociais que dão sentido à vida em sociedade. Se não superarmos essa lógica de intervenção, que responsabiliza individualmente as pessoas em situação de rua, como sendo elas a origem do problema, não poderemos avançar para um patamar de cidadania. Sem o reconhecimento de que essas pessoas expressam, no seu modo de vida, os reflexos da organização política, econômica, social e cultural de onde vivem, não poderemos consolidar os direitos que estão assegurados pela política nacional. Em síntese, se o problema é de todos, a solução também terá que ser. EXPRESSÃO – Qual o papel da imprensa nesse processo? ELER – Vou dar um exemplo. Uma matéria veiculada no Pioneiro conta sobre um cidadão que, em seu aniversário, distribui comida para moradores de rua. O título, “Mais que um prato de comida” é apagado pela chamada “dinheiro do trabalho vai todo para o crack”. Essa pessoa falou várias coisas, entretanto, o jornalista destaca isso. Embora o morador de rua venha trazendo vários elementos da vida dele, grifou-se isso, reforçando a ideia de que se está na rua, é drogado. Isso vai criando repulsa. A imprensa tem um papel importante na visibilidade deste complexo tema e, da mesma forma, na produção de representações sociais sobre pessoas em situação de rua. Também concordo com a afirmação da pesquisadora GIORGETT (2007), que a imprensa pode contribuir para inclusão deste tema na agenda pública. Infelizmente, no caso caxiense, onde desenvolvi
minha pesquisa, essa inclusão na agenda passou muito pela limpeza das ruas, uma velha prática higienista utilizada para retirar as pessoas que estão habitando. Nesse caso, a mídia cobra do poder público a retirada destas pessoas, porque estão “sujando” a rua e/ou tendo comportamentos desaprovados pelos moradores. No entanto, a mesma mídia não cobra do município, por exemplo, Não tem como pensar que ele tenha políticas públicas para um plano municipal pessoas em situação de de políticas rua sem considerar as públicas para pessoas questões de geração de em situatrabalho e renda, saúção de rua. de, moradia e demais Não cobra qualidade direitos dos serviços prestados para atender essas pessoas. Já vi matérias onde o jornalista sai com a equipe de abordagem social e não questiona a insuficiência desses profissionais para o desempenho do trabalho, mas centra o problema na pessoa em situação de rua. Outra coisa que me preocupa é que, na maioria das vezes, observo que a mídia reforça estigmas, às vezes produz até um certo tipo de caricatura da pessoa em situação de rua. Ela é apresentada como “a drogada”, aquela que perdeu tudo em função das drogas, porém quem estuda essa temática sabe que a relação com uso de drogas pode ter muitos sentidos na vida destas pessoas. Então, por exemplo, ao focar um contexto, uma cena, uma história de vida de uma pessoa em situação de rua somente nesta questão, a mídia apresenta uma visão reducionista, que só serve, como eu já disse, para reforçar estigmas e preconceitos. Entendo que o profissional que desempenha essa função deve se apropriar melhor do tema, buscar compreender o fenômeno sobre seus diferentes pontos de vista – afinal, é um tema complexo, que
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sobretudo, que seja construída com a participação destas pessoas. Em 2013, pela primeira vez, participaram 12 pessoas em situação de rua da X Conferência Municipal de Assistência Social, mostrando o quanto eles podem contribuir nesse processo. Naquela oportunidade, eles apresentaram propostas de melhorias dos serviços prestados, bem como sinalizaram a necessidade de implantar no município o comitê gestor municipal de políticas para pessoas em situação de rua, conforme prevê a política nacional disposta no Decreto Federal 7.053 de 23/12/2009. No entanto, até hoje, a gestão pública municipal não se responsabilizou em implantar esse comitê. Sob o aspecto da participação social, vale lembrar que os Centros Pops nasceram da proposição do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua. Esse Movimento foi muito ativo na construção do Decreto 7.053. Agora, voltando pra questão de Caxias do Sul, outro ponto que eu considero relevante é a implantação do Consultório de Rua, um serviço da Secretaria Municipal de Saúde que presta atendimento a pessoas com problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas, tendo como diretriz desse processo de saúde/cuidado a política de redução de danos. Mas quanto a outras políticas tão relevantes pergunto: quantas pessoas em situação de rua foram contempladas com o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida? Que programa de qualificação o município oferece para essas pessoas? Sob essa questão da qualificação, os cursos ofertados pelo PRONATEC, do governo federal, foram importantes, no entanto, não houve mais investimento federal e o município, exceto cursos promovidos por entidades da rede socioassistencial (ONGs), não apresentou qualquer programa
envolve múltiplas dimensões da vida em sociedade. EXPRESSÃO – O que pode ser feito para mudar essa situação? ELER - Rever o uso de nomenclaturas estigmatizantes pode ser uma grande contribuição. Atentar para o fato de que a imagem é uma narrativa e que ela também pode reforçar estigmas. Nem toda pessoa em situação de rua “é
suja” ou usa drogas, então o uso de imagens também deve dar conta dessa pluralidade. Também, entendo que ao construir uma matéria, podese ouvir diferentes atores implicados nessa questão. Ouvir as pessoas em situação de rua é fundamental. Embora Caxias do Sul não tenha um núcleo do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua (MNPR), o Rio Grande do Sul é representado
pelo MNPR-RS, que se reúne na capital. Eles se encontram todas as sextas-feiras na sede do Sindicato dos Municipários. Além das pessoas em situação de rua, há participação dos apoiadores e outros atores sociais, como um defensor público que comparece sistematicamente nas reuniões. Ouvir os órgãos de defesa de direitos também é fundamental. Durante meu período de pesquisa não
encontrei reportagens que entrevistassem, por exemplo, um defensor ou um promotor para saber seu ponto de vista sobre a questão. Assim como não vi a presença do Conselho de Direitos Humanos, de Assistência Social, de Saúde, nas reportagens que tive acesso. A mídia, ao trazer para o debate esses outros atores sociais, pode ampliar o debate sobre a questão.
Unidade de acolhimento é exemplo de ação para moradores de rua
A luta por reconhecimento
FOTOS ANTONIO VALIENTE
Percorremos alguns pontos de Caxias para ouvir relatos de moradores e ex-moradores de rua. Eles contam as dificuldades de acesso a serviços básicos, como alimentação e higiene, além do preconceito que sofrem. Alguns dos entrevistados encontram-se em espaços públicos de acolhimento, o que lhes garante moradia por até seis meses.
Maike Oliveira, 33 anos “Sou natural de Santa Maria. Atualmente, faz um mês que estou em Caxias. Faz seis anos que eu moro na rua. Eu viajo por várias cidades, porque eu não consegui assinar a carteira, se não, eu teria ficado. O motivo de eu ficar na rua é o desemprego. Não consegui nada. Até tentei hoje fazer um cadastro pelo e-mail. Daí não consegui fazer só por causa do número do telefone. Foi ali na Biblioteca Pública. Não, eles não ajudam e nem se envolvem com nada. A maior dificuldade realmente é a falta de oportunidade, né? Porque tu vai no Sine, as vagas que estão disponíveis no site, não “tá” lá. Fui agora de manhã no Centro Pop para pedir uma passagem pra Porto Alegre, me marcaram pra amanhã de tarde ainda, se eu vou pegar um ônibus, se eu tô precisando, porque não agora, na hora, né? Já que vão dar. Daí amanhã ainda é na parte da tarde. Eu preciso resolver um problema no banco, eu vou chegar lá que horas? (Ela) me deu um papel pra ir na Caixa resolver uns problemas, não carimbou e não assinou, daí eles não aceitaram. É muita burocracia, né? Vou perder o dia todo agora, esperar até amanhã, como se o cara não tem mais o que fazer, né? Falta
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um pouco de respeito das entidades com os moradores de rua. Tu termina muitas vezes pedindo ajuda pras pessoas na rua. Às vezes, involuntariamente, tu termina dando um golpe numa pessoa por causa da situação que tu tá. De repente, até roubando em um estabelecimento, né? Já aconteceu comigo. Então quer dizer que muitas vezes, tu tem que ser uma pessoa muito persistente, porque se não tu desiste já nos primeiros empecilhos. Todo mundo almeja ter sua casa. Agora mesmo eu estava falando com um morador de rua ali, ele olhou pro prédio e disse assim: “Já pensou morar num prédio daqueles?”. As pessoas que moram ali quase que não desfrutam. Só que daí o cara pensa assim: não é impossível ele morar ali no centro. Agora eu posso estar num nível de motivação, mas daqui a pouco, não sei. Amanhã de manhã, eu posso perder a cabeça se eu não me controlar. Pra manter a motivação, eu vou dizer pra ti, se o cara não conhecer um pouco de Deus, é difícil, né? Só recebo ajuda do Centro Pop. A igreja também ajuda. As pessoas sentem medo e têm muitos que têm até preconceito.”
Jucemar Eusébio da Silva, 32 anos “Eu sou daqui mesmo. Morei na rua por três anos, saí de casa porque era dependente químico, eu usava crack. Eu afastei eles de mim. Morar na rua é difícil por causa do frio, da alimentação, roupas, banho. Eu pedia dinheiro pra me alimentar, mas na maioria das vezes acabava usando pra outra coisa. Por vontade própria, busquei ajuda, fui no Pop Rua. Aí eles me arrumaram uma vaga na Casa de São Francisco, um espaço de acolhimento. Fiquei três meses lá. Agora tô em outra casa dessas. Eu tô buscando emprego, só que não é fácil. Meu objetivo é trabalhar e retomar minha vida, ocupar meu tempo com coisas boas. Eu tenho um filho, ele mora com a mãe. Eu ainda tenho contato com ela. Aqui nessa casa conversam com a gente, a gente conta os problemas. Eu nunca fiquei em clínica, porque acredito mais em trabalhos como esses, onde a gente pode também escolher o que quer. Alguns lugares têm um trabalho muito fechado. Faz uns cinco meses que parei de usar drogas. Algumas dificuldades te fazem perceber que ou você para agora, ou nunca mais. Na vida que eu tava, ou ia ser preso ou morto.”
Tiago Souza de Lima, 26 anos “Sou daqui de Caxias. Minha família mora em Florianópolis, meu pai, minha madrasta, meus irmãos, eu só tenho uma tia e uma vó aqui em Caxias. Cheguei a morar na rua, fique um tempo, foi um ano e pouco. Eu fui pra rua porque eu usava droga, os meus parentes não quiserem mais em casa, tudo que era história. Eu usava de tudo um pouco. Eles pediram pra eu sair de casa daí eu fui pra rua, fiquei um tempo na rua, depois eu voltei tentar morar, mas não deu certo, daí eu fui parar no albergue. No albergue eu conheci o Caps, daí eu fiquei um tempo no albergue, não tinha a casa ainda. Eu tê nessa há oito anos. A maior dificuldade é de tudo, comida, lugar pra viver, é tudo. A minha rotina? Ah eu vou pro Caps, tava fazendo um curso, terminei o curso de frentista, de atendimento de posto de combustível lá na Lefan. Daí terminou o curso, eu vou ficar pouco tempo na casa, eu vou pra tratamento, to indo pra comunidade terapêutica. Tratamento de drogas. O meu plano é ser monitor, ajudar os outros, morar e trabalhar lá. O que eu quero mesmo é ser monitor.”
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Geovane Brum, 31 anos “Eu nasci em Uruguaiana. Faz cinco anos que tô em Caxias. Eu morei um ano e meio na rua. Eu saí de casa um dia pra procurar um emprego, tinha um homem lá que tava escolhendo gente pra trabalhar. Ele fez uma excursão com 40 homens, a gente veio pra cá trabalhar em obras. Trabalhei com eles um tempo, depois quis procurar outra coisa. Mas não consegui mais, me perdi no crack e na bebida, aí eu fui morar na rua. A maior dificuldade era pra se alimentar. Eu nunca tinha ficado na rua, não sabia me defender. Eu passava muito frio quando era inverno. Às vezes eu pedia um real e me davam. Aí eu comprava arroz, colocava numa lata de ervilha e cozinhava usando álcool. Eu entrei na casa de acolhimento em 2013, depois saí, agora voltei. Na primeira vez saí porque arrumei emprego. Mas aí recaí e perdi o emprego. De manhã eu vou pro CAPS. Dificulta pra mim encontrar emprego também porque eu tenho um transtorno. Sempre davam risada de mim, mas eu achava que era normal, depois me disseram que eu tinha. Afetava meu dia porque davam muita risada da minha cara, e eu deixava porque eles ficam contentes. Só baixava a cabeça, porque as vezes meu transtorno podia causar até briga, então eu evitava. Agora eu faço tratamento. A minha ideia agora é voltar pra Uruguaiana, com a minha família.”
Gerson Fink, 29 anos “Sou de Carlos Barbosa e tô em Caxias há oito anos. Eu saí de casa porque briguei com a minha mãe, eu não me entendia com ela. Eu fiquei uma semana em situação de rua, mas logo consegui recursos pra me reestabelecer. Consegui alimentação, moradia, fui pro CAPS e daí eu consegui o albergue. Fiquei lá trinta dias. Do albergue eu vim pra casa de acolhimento e tô conseguindo me reabilitar, tô aqui há seis meses. Minha rotina é assim, eu acordo, tomo café, vou ao CAPS, depois volto pra casa. Isso até encontrar um trabalho, que tô procurando, e alugar um lugar pra morar. Eu falo com a minha mãe às vezes, mas muito pouco. Ela mora em Caxias também”.
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CRÔNICA
Dinosauri por Fábio Becker
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e carona. O rádio ligado ecoando a voz de um dos mais burlescos apresentadores de nossa região – o mais querido por meu pai, que dirige, dessa vez, sem prestar muita atenção nas asneiras do eufórico discurso. Ex-militar, homem do campo, e hoje, um “jornalista” adorado por multidões. Suas raízes – fundadas em ideais de fé e trabalho, assim como todo “bom italiano” e respeitado cidadão – transparecem pelas ondas da rádio, e seu modo de pensar é copiado. Tão bem quisto, chegou a ser convidado por siglas como DEM e PMDB para postulante ao cargo de vereador. Nada mais representativo. Não foi a primeira vez que, aleatoriamente, escutei enojado trechos de seu programa, mas dessa vez resolvi opinar. Não sou bom problematizador, porém é necessário que alguém aponte os preconceitos enraizados nessa tão tradicional região e validados pelas vozes que soam em um dos também mais orgulhosamente tradicionais veículos daqui. Sem nem mesmo entrar na discussão da "imparcialidade nos meios de comunicação", talvez seja necessário sublinhar o poder de persuasão de uma imprensa preconceituosa diante de uma plateia tradicionalmente preconceituosa. Na ocasião, o dito locutor, em tom sarcástico, opinava sobre a capa da Veja que falava sobre o empoderamento feminino em relação à sexualidade, bem como sobre a bissexualidade entre jovens, e ao final perguntava: "Onde fica a família nisso tudo? E a Bíblia?". Alguns dias depois, em relação ao protesto “Vai ter shortinho sim”, organizado por alunas do Ensino Médio do Colégio Anchieta de Porto Alegre, o apresentador emendou “É falta de vergonha. Colégio é lugar de respeito, não para ficar se oferecendo”. Em seus estudos acerca da persuasão midiática, o doutor em Psicologia Social Pedrinho Guareschi apontou que pelo menos 80% das nossas conversas cotidianas são pautadas pela mídia. Em uma sociedade apaixonadamente retrógrada e "fechada" como a nossa, o discurso ultrapassado acerca da questão de gênero, alardeado pelo carismático locutor, na rádio de maior audiência da Serra gaúcha, sem dúvida foi venerado por muita gente. Mesmo numa das mais católicas regiões do mais católico dos países é preciso que se respeite o Estado Laico. "Onde fica a Bíblia e a família - descrita no livro sagrado -, na definição de gênero?" Espero que em lugar algum! A tradição e a religiosidade tão aclamadas por nossos imigrantes europeus trabalhadores – que desprestigiam e se revoltam com os atuais imigrantes "escuros" – foi a mesma que dizimou os indígenas e a mesma que queimou "bruxas" na fogueira. Essa forma de discurso entoada por um figurão da "rádio apaixonada por VOCÊ" (branco hétero arcaico católico adorador da "moral e bons costumes") é nada mais que normatização de preconceitos. Em tempo, talvez discursos como este colaborem para opiniões como as de meu pai, que crê que cabelo comprido é “coisa de vagabundo e mulherzinha”, da mesma forma que discursos iguais repercutiram há décadas em rádios norte-americanas em relação aos hippies, mais tarde aos punks, e assim por diante. A liberdade sempre foi uma pedra no sapato lustrado da “tradição”. No entanto, uma coisa é certa: se assuntos como a “questão de gênero” são abordados, mesmo que sarcasticamente, em veículos representativos da família tradicional é porque os dinossauros já começaram a tremer outra vez.
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CRÔNICA
Cuidado: cenas chocantes por Luciane Modena
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ábado à noite, frio lá fora, pizza e cobertor na sala, Olimpíadas do Rio na televisão. Depois de uma cerimônia de abertura para emocionar até o mais descrente brasileiro, o primeiro dia de competições fazia a alegria de quem agora se sentia orgulhoso em acolher os atletas do mundo todo. Mesmo com a televisão ligada, era impossível me desligar da internet – afinal, muita informação corria pelas redes. Rolando a linha do tempo do Twitter, vejo um vídeo curto de um jovem se preparando para saltar. Tinha uns sete segundos. Parei minha pizza para assistir. Melhor não ter visto. O ginasta francês Samir Ait Said se preparou para a Olimpíada do Rio por anos. Era a hora de mostrar o que sabia, desta vez na prova do salto. Saiu correndo, fez a primeira cambalhota, impulsionou-se no trampolim, apoiou-se sobre o cavalo, fez inúmeras acrobacias no ar e, na hora de voltar para a terra firme, caiu errado. Muito errado. Acabou por segurar a perna direita com o pé virado para si, numa cena chocante. A perna retorcida, a dor no rosto do atleta, tudo criou uma atmosfera que fez qualquer um que assistiu à cena franzir o rosto. Público em silêncio. Um atleta alemão abaixou a cabeça e escondeu o rosto nas mãos. O treinador, desesperado, andava de um lado para o outro, à espera do socorro. Tanto trabalho... Pois bem. Já estava feito, fratura de tíbia e fíbula. O vídeo correu o mundo. A dor de Said foi a nossa dor. Um segundo antes, o sonho olímpico ainda existia. Muitos portais precaviam os espectadores com o aviso de “cenas fortes”. Na internet, é o mesmo que pedir “assista”. Em sites de notícias, a manchete avisava: “Adversário de Zanette, atleta francês fratura a perna em cena chocante”. Oba, vamos comemorar. Agora o Said não vai mais atrapalhar o ginasta brasileiro. Que bom. Assisti a esse vídeo primeiro no Twitter. Sim, lá estava, sem aviso de cenas fortes. Sem nada. Compartilhado, retuitado, motivo de legendas engraçadinhas. Depois de Said, a holandesa Annemiek van Vleuten sofreu grave acidente no ciclismo, o armênio Andranik Karapetyan tentou erguer 195 kg e fez com seu braço praticamente o que Said fez com a perna. Todos ocuparam a capa dos sites de notícias e as redes sociais com as fotos mais evidentes sobre o que havia acontecido. Mais recentemente, a ginasta brasileira Jade Barbosa se machucou durante a apresentação e foi embora das olimpíadas. Quando importa a repercussão, não existe espírito olímpico.
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Quem é a Geração Y Personagens que lutam por valores sociais e profissionais, fazendo da Internet seu principal meio de comunicação Alana Bof | ambof@ucs.br Aline Mapelli| amapelli@ucs.br Débora Debon| ddebon@ucs.br Franciele Velho | fvelho@ucs.br Karina Catuzzo | kcrodrigues@ucs.br Pâmela Pelizzaro | ppelizzaro@ucs.br
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o ano do 400º aniversário de William Shakespeare, lembramos com mais ênfase dos dilemas e dualidades da vida. Apesar de o jogo ser o mesmo, os personagens mudaram. Quando pensamos na Geração Y, encontramos embates como a definição dessa geração na sociedade quanto às suas ideologias e à relação entre a felicidade e a estabilidade financeira. A Geração Y, nascida nas décadas de 1980 e 1990, foi e ainda é alavancada pela tecnologia e responsável por diversas quebras de paradigmas. Os membros que a representam comumente caracterizados como a geração da selfie e da vida boa, em
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realidade têm se mostrado, como jovens engajados em seu contexto social. Além de atuar ativamente nos discursos sociais, também, levanta bandeiras em prol do bemestar próprio e social diante do mercado de trabalho e dos dilemas financeiros. A força dessa geração é ampliada pela Internet, que proporciona a união de pessoas com a mesma opinião, uma rede de contatos, de movimentos sociais em prol de uma causa. As ideologias políticas, a luta feminista, a liberdade LGBT e o combate ao racismo são alguns dos movimentos defendidos pela Geração Y. E as redes sociais são um importante instrumento nesse processo.
FOTOS LUCIANE MODENA
CIDADANIA
Fotos: Aline Mapelli Modelo: Rosiane Adami Produção: Karina Catuzzo
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Ideologias, juventude e redes sociais Os movimentos sociais normalmente acontecem em condições adversas, pois nos piores momentos de um país é que nascem as grandes mobilizações. As manifestações que ocorreram no Brasil a partir de 2013 reacenderam uma forma de protesto até então um pouco “esquecida” pela população brasileira. A geração mais conectada, com o ressurgimento das manifestações, também, contribuiu e foi reivindicar seus direitos. Por meio das redes sociais, cada vez mais grupos são criados e, formadores de opinião, discutem planos para a mudança do país. É nas redes que a geração da tecnologia também organiza suas ações. Mas engana-se quem pensa que os jovens sempre foram líderes dos protestos. Segundo a professora Eliana Xerri, doutora em Educação e mestre em História, “a condição de jovem é uma referência recente na própria ciência, porque a juventude está mais relacionada aos contextos estudantis e operários desde o final do século XIX”. De acordo com a docente, os jovens atuais se engajam mais nas questões de movimentos, principalmente por causa Internet. “Através das redes, a nova geração chama e organiza os protestos. No entanto, a mobilização segue os padrões históricos: passeatas, palavras de ordem, cartazes. Com certeza, a Internet é um meio muito utilizado, tanto por aqueles que se colocam na posição de favoráveis ao contexto, quanto aos opositores”, explica a professora. Eliana também destaca que “a utilização das redes sociais permite que as reivindicações e direitos de grupos minoritários sejam organizadas, também, em forma de debates, e não apenas de manifestações físicas, o que é muito salutar”. As ações coletivas conheci-
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das no Brasil são muitas. Vale destacar: Diretas Já!, Geração dos Caras-Pintadas, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento Feminista, Estudantil, Negro e LGBT. Atualmente, os jovens utilizam a Internet e as redes sociais amplamente para debates políticos, crítica social e formas organizadas de manifestação. Isso acontece tanto no caso daqueles que acreditam em uma ideologia mais de esquerda, quanto para aqueles que apoiam os princípios do neoliberalismo. Esses são os casos da jornalista Luisa Biondo, de 23 anos, e do estudante de Administração Lutiesco Zanella Pieri, de 22 anos. Luisa, que apoia um pensamento mais ligado à esquerda, acredita que a Internet permitiu que todos produzissem conteúdo e pudessem emitir sua opinião, principalmente os jovens, que costumam ter um pensamento mais libertário e revolucionário. “Muitos jovens têm uma opinião e, às vezes, moram em uma sociedade ou têm uma família mais conservadora. (...) A partir do momento que eles (jovens) descobrem a existência de outras pessoas no mundo que pensam da mesma forma, começam a encontrar grupos com mais facilidade”, explica Luisa. A jornalista fez seu trabalho de conclusão de curso sobre o midiativismo, a comunicação em rede e o novo jornalismo. Nesse período, ela estudou conceitos importantes para entender os movimentos sociais, como a existência das redes, tanto online quanto offline, e as manifestações. “As redes sempre existiram, mas a Internet tornou isso mais potente, mais forte, chamou mais pessoas, então, as manifestações se tornaram maiores. E a gente percebe que todas as manifestações atuais são
iniciadas principalmente pela Internet, seja com qual viés for”, comenta. Já o estudante Lutiesco tem uma visão mais neoliberal, ligada ao Movimento Brasil Livre (MBL), coletivo que organizou diversos protestos a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. “Amadureci muito mais como pessoa, como cidadão e aprendi coisas dentro do MBL que levo pra vida toda”, relata. Para ele, as manifestações de uma forma geral criam debates inte“A gente percebe que ligentes. “As todas as manifestações pessoas que foram às ruas, in- atuais são iniciadas dependentemente do lado (direita principalmente pela ou esquerda), Internet (...)” buscaram saber realmente os motivos que lhes levaram até lá. Seja lendo, pesquisando ou mesmo trocando ideias”. Lutiesco acredita que, apesar de os protestos de rua existirem há muito tempo no Brasil, eles foram potencializados graças às redes sociais. Mesmo com ideias diferentes sobre política, Luisa e Lutiesco podem, graças à democracia, manifestá-las livremente e, graças às redes sociais, fazer suas opiniões chegarem a um número maior de pessoas, além de encontrar grupos com os quais se identificam e participar de manifestações decisivas na história do Brasil.
O feminismo no século XXI Um dos movimentos ideológicos mais expressivos nos dias atuais é o feminismo. Mas a luta pela igualdade de gêneros e contra a opressão das mulheres não é de hoje. Na antiguidade clássica, as mulheres eram excluídas de qualquer decisão política
e consideradas seres inferiores. Elas eram submetidas aos desejos e ordens masculinos. Na Idade Média, milhares de mulheres foram mortas acusadas de bruxaria. E mesmo com as revoluções burguesas do século XIX, que conquistaram alguns direitos sociais, continuaram sendo inferiorizadas e tendo seu trabalho desvalorizado. No século XIX, na Inglaterra, surgiu o feminismo emancipacionista. Já o feminismo contemporâneo teve início nos anos 1960, nos Estados Unidos, e buscava a libertação da mulher defendendo, entre outras ideias, o fim da violência doméstica e da cultura do estupro, a descriminalização do aborto e o fim da desigualdade salarial. Atualmente, existem diversos coletivos que seguem os princípios do feminismo. Grande parte da Geração Y não apenas adotou a ideia de combate à desigualdade de
gêneros como, também, resolveu questionar o patriarcado em grande escala e mostrar que a sociedade contemporânea ainda tem pensamentos machistas. Para difundir essas ideias e torná-las de conhecimento público, extrapolando os limites dos grupos feministas, essa geração contou com a ajuda da Internet e das redes sociais. A ativista Paula Grassi, 27 anos, comenta que percebeu essa desigualdade desde criança. “Passei a perceber as diferenças na criação entre eu e a minha irmã; e o meu irmão. Enquanto fomos ensinadas a lavar roupa, arrumar a casa, arrumar o quarto, passar roupa, meu irmão nunca foi cobrado desses afazeres”, relata. Desde 2008, Paula faz parte do coletivo Marcha Mundial das Mulheres, uma organização internacional que teve início nos anos 2000 e combate a pobreza e a
violência sexista. Ela acredita que as redes sociais ajudaram a difundir o feminismo, especialmente entre os jovens, sem depender dos grandes conglomerados de comunicação. “Com as redes sociais, acredito que muitos movimentos e coletivos passaram a ter mais espaços de divulgação e debate de modo direto com as pessoas.”, explica Paula. Para ela, as conversas que acontecem em rede têm reflexos diretos na realidade e colaboram na organização de manifestações. Em Caxias, o coletivo Marcha Mundial das Mulheres foi um dos responsáveis por organizar uma manifestação, em maio de 2016, em homenagem à menina carioca de 16 anos que foi estuprada por 30 homens. “O machismo é denunciado nas redes sociais, mas a denúncia também acontece nas ruas. É um processo contínuo de reflexão”, conclui Paula.
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Liberdade LGBT O engajamento em defesa de ideias e movimentos é uma das principais características da geração conhecida como Y, também nomeada como Millenium. Um exemplo disso é o movimento LGBT. A sigla representa lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Seu símbolo mundialmente conhecido é a bandeira com as cores do arco-íris. Com a intenção de lutar por seus interesses e, principalmente, combater o preconceito, o movimento, no Brasil, nasceu no final dos anos 1970, formado por homens homossexuais. Nos primeiros anos de atividade, lésbicas se uniram à causa. Nos anos 1990, travestis e depois transexuais passaram a participar. No início dos anos 2000, foram os e as bissexuais que também aderiram ao movimento. Atualmente, muitos grupos LGBT se conhecem, mantêm contato, organizam eventos e manifestações por meio da Internet. Em Caxias do Sul não é diferente. A Associação Identidade LGBT’s Caxias é um movimento que busca conscientizar a comunidade do respeito a todo tipo de gênero, inclusive às pessoas que se compreendem com a identidade LGBT. A ONG Identidade promove encontros, palestras e reuniões com a comunidade LGBT. De acordo com o fotógrafo Carlos Henz, de 20 anos, que atua como colaborador da entidade, utilizar as redes sociais foi uma das principais estratégias do grupo ao criar o movimento. “É importante para que as pessoas possam ver com quais temas estamos trabalhando”, explica. Henz acredita que as redes sociais potencializam a organização de manifestações e reivindicações de grupos minoritários. “É através da
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Internet que conseguimos atingir pessoas que talvez pensem como nós. Com isso, o número de ideias cresce, dando continuidade e mais força ao movimento”, salienta.
Movimento de raça O preconceito ainda é um dos assuntos mais abordados e debatidos em todo o mundo. A igualdade racial é uma luta que deve ser travada dia a dia. Entre as décadas de 1970 e 1980 vários grupos foram formados com o intuito de unir as pessoas numa mesma causa e denunciar o preconceito sofrido. A partir de então, várias manifestações passaram a ser organizadas para chamar a atenção da população e do governo, resultando na formação do Movimento Negro Unificado. Kaliandra Machado, de 24 anos, é empresária e integrante dos movimentos Negro, Feminista Negro e LGBT. A jovem relata que sua ideologia começou na Internet, nas redes sociais, nos posts das pessoas falando do orgulho em ser negro. Começou a se aceitar quando viu que pode, e deve, orgulhar-se do seu cabelo, da sua pele e das suas origens. Atualmente, existem tutoriais específicos para o cuidado com todo tipo de cabelo: lisos, cacheados, afro, entre outros tantos, mas Kaliandra conta que quando descobriu essas novidades, sua vida reascendeu. Ter acesso a uma coisa assim, de uma maneira tão fácil e barata fez ela perceber que todas as classes sociais, das mais favorecidas às menos, podem e devem usufruir disso. “Antigamente o negro sofria muito bullying, porque não existia a informação fácil, a clareza do preconceito enquanto lei, que hoje a Internet nos mostra. (...) As redes sociais nos proporcionam ter o apoio e a opinião de
outras pessoas e não somente de quem está ao nosso redor fisicamente”, desabafa. As redes possibilitam conhecer muitas pessoas e, às vezes, algumas são marcantes. Para a jovem, sua inspiração é Sandra Cecilia, DJ negra, que ela não conhece pessoalmente, mas considera suas postagens incríveis: “O jeito que ela fala é maravilhoso, representa o negro”. Sandra participa de muitos encontros, principalmente em outras cidades, divulgando os assuntos discutidos pelo Facebook, com o intuito de trazer a informação para quem realmente tem interesse pela causa negra, mas, às vezes, não tem possibilidades ou condições de deslocamento. Segundo Kaliandra, atualmente é possível se expressar, se informar e denunciar o preconceito com muito mais facilidade. “Antigamen- “Antigamente o negro te, os negros sofria muito bullying, não entravam porque não existia a em alguns clubes, existia informação fácil, a o preconceito clareza do preconceito velado, que todos sabem que enquanto lei, que hoje a é contra a lei. Internet nos mostra” Para os meus pais tudo era mais difícil, eles não tinham as informações dessa maneira e, consequentemente, sofriam abusos mais frequentes. O racismo fazia parte da rotina deles”, relata A empresária conta que, certa vez na escola, uma menina a encostou e depois se limpou, indicando nojo. Isso a magoou profundamente, mas ficou calada. Hoje, Kaliandra e essa mesma menina da escola são amigas no Facebook, o que a faz pensar que as redes sociais também aproximam as pessoas e faz com que tenham outra visão das coisas. Em uma postagem no seu perfil, a jovem expressa o orgulho que tem de si e de sua raça: “Minha essência transpira melanina, quando a pele fala identidade”.
Dinheiro x Felicidade Quatorze minutos e vinte e quatro segundos. Isso corresponde a 1% de um dia. Dedicar esse tempo ao próximo ou a você mesmo, em busca de melhorar o mundo é a premissa da ONG Um Por Cento, com sede na Associação Cultural Vila Flores, em Porto Alegre.
O fundador da entidade, Angel Mirapalheta, de 30 anos, é um exemplo de transformação em prol do outro. Formado em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mirapalheta trabalhou por 10 anos em uma agência de turis-
mo, até deixar o emprego e se dedicar totalmente ao projeto. “A 1% nasceu através de uma comunicação mediúnica, da “Seguir o coração é o minha dinda Ana Rodrigues único caminho que faz Pereira comigo, com que a nossa alma no ano de 2007, brilhe desde dentro” quando
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estava na Nova Zelândia. Por muitos anos a ONG foi o meu trabalho paralelo, o meu filho. Então, chegou um momento em que a 1% me solicitou mais atenção. Sabendo que essa era a minha missão de vida aqui na Terra, mergulhei fundo”, conta. Entre os trabalhos desenvolvidos pela entidade estão a criação de novos projetos e consultoria para empresas e ONG’s. Além de Mirapalheta, a 1% também conta com sócios e voluntários que colaboram nas ações. “Não importa a área de atuação, o segmento, o país. O que vibra em nós é que criamos projetos para melhorar o nosso planeta”, explica Angel, que hoje vive viajando principalmente entre Porto Alegre, Caxias do Sul, São Paulo, Florianópolis e Rio de Janeiro. A vida um tanto mais tranquila e longe das quatro paredes de um escritório ou empresa, também envolve atividades como meditação, surf, corrida, pintura, desenho e escrever. “Eu moro no mundo. A transformação é uma realidade. Qualquer assunto que abordarmos iremos perceber que tudo está em transição. O nosso planeta está em transição. As nossas mentes. A nossa consciência. O amanhecer é inevitável. O dinheiro é, sim, uma peça fundamental nessa história, mas longe de ser o mais importante. Ele é pilar que sustenta, não a janela que se abre e se conecta com o mundo”, esclarece. Entre alguns trabalhos já desenvolvidos pela 1% estão o Recreio Solidário, realizado entre 2009 e 2015, que foi um projeto de engajamento e empoderamento de estudantes de escolas particulares para que agissem em prol de um mundo melhor. Na ação, mobilizada por grêmios estudantis, houve a arrecadação de agasalhos. Além deste, também, foi promovida a Expedição Green School, que conectou alunos de uma escola de Porto Alegre com
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uma escola da Indonésia por meio da Internet e mostrou as diferentes culturas e maneiras de aprender. Outra ação desenvolvida foi uma parceria com a Nikon do Brasil que tinha como propósito levar a fotografia ao alcance de crianças que nunca tiveram contato com uma câmera profissional. Por meio de atividades, elas foram inseridas em um universo novo, que possibilitou uma nova perspectiva, não só com a fotografia, mas com a vida. A ONG é sustentada financeiramente por meio de patrocínios de empresas a projetos, leis de incentivo e editais, investidores sociais e plataforma de financiamento coletivo. Segundo Angel, pequenos gestos podem fazer a diferença e impactar positivamente o mundo, transformando-o através de soluções inovadoras e autossustentáveis, naquele lugar que tanto queremos ver e viver. “Aprendemos ao longo do caminho manifestarmos essas intenções de melhorar o mundo. O sentimento? O sentimento só pode ser sentido, logo, não existem palavras aqui no nosso dicionário que descrevam essa honra de servir ao mundo. Seguir o coração é o único caminho que faz com que a nossa alma brilhe desde dentro”, finaliza.
Plano B A jornalista Camila Cardoso Boff, de 28 anos, compartilha a ideia de que o sucesso está no modo em que vivemos e não no valor da conta bancária. Infeliz com o rumo profissional que sua carreira estava tomando, a jovem decidiu tirar o “plano B” da gaveta. Há três meses, Camila trocou a vida de jornalista hard news na cidade para administrar a pousada da família no campo. Formada em Jornalismo e pós-graduada em Comunicação Digital, ela coleciona sete pedidos de demissão, dentro e fora da área, sempre em
busca de algo que trouxesse felicidade e realização. “Eu optei por fazer jornalismo plenamente ciente que não ia ficar rica com isso, então, dinheiro nunca foi a principal preocupação da minha vida. Sou dessas que acham que não dá pra ser infeliz fazendo o que não gosta só em nome de um bom salário. Tem que ter dinheiro pra pagar todas as contas, óbvio, mas ficar preso a algo que não te satisfaz só esperando pelo dia 5 é um jeito meio cretino de ver a vida passar”, explica. Justamente por acreditar nessa busca pela realização pessoal e, percebendo que o seu propósito profissional – ser contadora de histórias – não estava sendo cumprido, decidiu fazer uma pausa na carreira. Insatisfeita com o mercado de comunicação, Camila resolveu dar “Sou dessas que acham que um novo não dá pra ser feliz fazendo rumo para o que não gosta (...)” sua vida. “Sempre brincava que se nada desse certo, largaria tudo e iria cuidar da pousada”, conta. O empreendimento da família fica no interior de Cambará do Sul. Por ser uma experiência completamente diferente do que já passou, a jovem entende que a pousada é apenas uma fase em sua vida. O “plano B” não é fixo, mas é uma oportunidade nova de vivenciar um cotidiano até então desconhecido. “A experiência de fazer algo completamente diferente tem sido ótima. Além da sensação de tirar planos da gaveta e colocar a mão na massa, a pousada oportuniza conhecer pessoas dos mais diferentes lugares, com histórias incríveis. Esse contato é algo que sempre me encantou no jornalismo e que eu não tinha mais na minha rotina na redação. Tem sido muito gratificante”, relata. A empreitada foi repentina e em pouco mais de um mês transformou a realidade de Camila. Sugestão de sua
mãe, a mudança foi apoiada integralmente pela família e amigos. E não foi só de apoio que a aventura foi executada. O namorado, e também jornalista, Gabriel Lain, embarcou na proposta e juntos começaram a trilhar essa nova jornada profissional. Apesar da ilusão romântica de largar tudo e viver no campo, a adaptação à nova rotina foi cercada de desafios. “Sou a jornalista clichê, que não é fã de números, e ver dinheiro entrando e saindo me dá um pouco de aflição. Mas, com bastante organização, tem dado certo”, esclarece.
Diante dessa nova forma de viver, muitas coisas precisaram ser adaptadas. Por ser afastada da cidade, não há televisão e nem Internet banda larga no local. A jornalista afirma que a maior mudança foi sair da rotina conectada, pois trabalhava justamente no segmento online. O distanciamento do mundo virtual, hoje é enfrentado com naturalidade. Contato com notícias? O casal de jornalistas não abandonou. Mas, atualmente, o hábito é à moda antiga, através do rádio. Com mais tempo para ler livros e assistir filmes, os jovens perceberam
que é possível viver sem ser escravo das tecnologias. Mesmo com o frio na barriga, comum em transformações radicais, Camila acha importante incentivar as pessoas que desejem abandonar a rotina imposta pela sociedade e seguir por um rumo diferente na vida. “Foise o tempo em que sucesso era ter uma carreira estável, em constante ascensão, às vezes, em uma única empresa. Se acontecer e fizer sentido, beleza. Mas se der vontade ou surgir a oportunidade de fazer algo completamente diferente do planejado, não precisa
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ter medo ou achar que é o caminho errado. Um currículo com títulos e experiências é bom, mas ter a vida real cheia de nuances diferentes e muita história pra contar também é uma delícia”, finaliza.
De advogado a chef Com a premissa de se aventurar em algo totalmente diferente, encontramos
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exemplos como o do empresário, chef e advogado Daniel Corrêa dos Santos, de 27 anos, que após concluir seu curso em Direito, decidiu mudar completamente de ramo e abrir seu próprio restaurante: a Tapiocaria Caxias. O sonho idealizado de ter seu próprio escritório e atuar como advogado mudou de rumo quando o retorno financeiro não correspondeu
ao esperado. O jovem é de família gaúcha, mas nasceu no Nordeste do país, pois os compromissos militares do pai levaram a família para aquele destino. Apesar de ter retornado ao Rio Grande do Sul ainda criança, os laços com a cultura nordestina se mantiveram presentes na vida de Daniel. Entre esses laços, está o amor pela culinária em geral e pela
iguaria típica nordestina: a tapioca. Por ser conhecido desde cedo como um bom cozinheiro, quando surgiu a necessidade de repensar o futuro profissional Daniel investiu um ano em pesquisas, viagens e formas de viabilizar um restaurante com essa iguaria tão exótica no Sul do país. “Levou bastante tempo por se tratar de um produto que, na época, não havia no mercado. Tivemos que aprender a fazer a goma de tapioca, produzir em escala e aprender a cozinhar para o público. Foram muitos sabores criados e testados até abrir o restaurante. Em conjunto, busquei formação em gastronomia e, na sequência, de sommelier, além de estar constantemente realizando cursos de gestão para aprimoramento do estabelecimento”, relata. Abrir o próprio negócio não é tarefa fácil, principalmente quando se é jovem. Na época Daniel tinha apenas 24 anos e enfrentou muitas dificuldades, principalmente, por ser desacreditado em consequência da sua pouca idade. Até mesmo o preconceito o empresário calouro teve que enfrentar, por tentar implantar um prato típico nordestino na região gaúcha. Apesar dos obstáculos, a juventude também pode ser uma aliada nos negócios. A personalidade jovem ajudou Daniel a ter jogo de cintura e
driblar os percalços que surgiram no caminho e, à frente do seu próprio negócio há três anos, destaca a importância que essas experiências tiveram para o seu processo de amadurecimento. “Não é possível trabalhar sem ter maturidade para enfrentar os desafios e problemas que lhe surgem, pois o empreendimento exige isso. Cada dia aparece um novo obstáculo e, sem foco e empenho, dificilmente seria possível tocar um estabelecimento por tanto tempo”, ressalta. Entre tantas dificuldades iniciais, um dos fatores que impulsionou o desejo por ter seu próprio negócio foi compreender que, para ter grandes conquistas, é necessário trabalhar muito e manter o foco em seus objetivos. Quando questionado sobre a visão que a juventude tem da relação entre felicidade e qualidade financeira, Daniel entende que essas questões ainda estão em desequilíbrio. “A mentalidade da juventude é do imediato, há uma grande necessidade de adquirir tudo e tudo para ontem. O que esquecem de pensar é o quanto tem que se batalhar para conseguir chegar aonde se almeja, bem como os sacrifícios necessários para se ter o que se sonha”, esclarece. Membro dessa geração, Daniel prosperou bastante em seus três anos como empresário da gastronomia. Agora,
o não apenas advogado, mas chef, empresário e sommelier busca continuar investindo e ampliando seu negócio. Até o momento, a marca Tapiocaria, já passou por expansões como a ampliação do restaurante e a criação da Kombioca Food Truck, que circula pela cidade e região, oferecendo a tradicional iguaria nordestina em “Escolha algo que vai te um modelo de negócio trazer felicidade tanto quanto criativo. E realização profissional. Não mais do que existe um empresário de isso: Daniel prospecta a sucesso que não acredita no criação de que faz. E, principalmente, um sistema tenha coragem, foco, de franquias para determinação e muita que o seu persistência” empreendimento possa ser levado para todo o país. “Escolha algo que vai te trazer felicidade tanto quanto realização profissional. Não existe um empresário de sucesso que não acredita no que faz. E, principalmente, tenha coragem, foco, determinação e muita persistência para superar todas as dificuldades que a vida e o seu negócio irão lhe proporcionar”, aconselha o jovem, para aqueles que desejam seguir pelo ramo do empreendedorismo e, principalmente, buscam encontrar felicidade e motivação em suas ações diárias.
DNA de uma geração A consultora em gestão de pessoas da empresa Sincrony, Deise Engelmann, ao estudar o comportamento dessa geração, identificou em sua base de formação um contexto em que as gerações buscam por estratégias imediatistas para solucionar problemas. “Eles cresceram jogando videogames com estímulos rápidos. No jogo, é necessário tomar decisões instantâneas para avançar de fase e ser premiado. Essa geração aprendeu a tomar decisões instantâneas para ganhar, resolvendo várias questões ao mesmo tempo. Algo que é novo e difere do ambiente organizacional tradicional. O desafio é criar nas empresas um ambiente em que essa característica da Geração Y possa ser bem aproveitada”, explica. Apesar do desafio que essa geração impõe aos processos de gestão, Denise explica que a Geração Y tem muito potencial para atuar no ramo profissional, desde que se permita aprender alguns velhos truques com profissionais mais experientes e que possa estar em um contexto onde suas potencialidades possam ser bem empregadas. “Em um primeiro momento, é necessário trazer diálogo em torno dessas evidentes diferenças. Também, é possível mostrar que não há uma geração certa e outra errada, mas que são diferentes e que podem se complementar muito bem”, esclarece. Por fim, Denise ressalta que a Geração Y compreende o mundo atual e que isso é necessário para as empresas e os empreendimentos.
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FOTOS: FÁBIO BECKER
ECONOMIA
Vida além dos muros Um dia numa comunidade que trocou a rotina urbana pela comunhão com a natureza Fábio Becker | fbloppe@ucs.br
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elógio de parede parado, simbolicamente, poucos minutos para as 8h. Essa é a hora que o som do sino ecoa pela Arca Verde, anunciando o novo dia; marcando também o início do café da manhã, primeiro momento de encontro diário entre todos os habitantes da comunidade. Do café preparado pelo voluntário Felipe, o “Miozzo”, até o chapati - típico pão indiano sem fermento - amassado pelo também voluntário Gilberto Bottari, tudo é compartilhado. O momento é síntese da união e da harmonia que permeiam a vida na ecovila. É como viajar para um mundo paralelo e com resquícios de tempos idos, onde as pessoas ainda podem sentar-se juntas à mesa e aproveitar a companhia e a comida. Do centro do município de São Francisco de Paula, são quatro quilômetros de asfalto e mais seis de estrada de chão.
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No interior, ao fim desse caminho, permeado ora por florestas de pinus e eucalipto, ora pelo solo morto - deixado onde essas árvores já se transformaram em matéria-prima vendida à madeireiras - surge a visão, à longa distância, da mata nativa e das araucárias que se erguem na Arca Verde, comunidade que ocupa e preserva um espaço de 25 hectares de terra. Fruto de um projeto iniciado quatro anos antes em São José dos Ausentes, a Arca Verde, como destaca Leandro Sparrenberger, sócio-fundador da ecovila, surgiu em 2009, com quatro amigos que buscavam um modo de vida mais sustentável e harmonioso. “Tínhamos o ideal de criar uma comunidade onde se pudesse viver e guiar-se pela filosofia da permacultura, ou seja, em comunhão com a natureza, e não contra ela”, explica. Passados sete anos, vê-se hoje que o sonho tomou
O lago fica bem em frente a “Casa Grande”, espaço onde são hospedados os visitantes, oferecendo um pôr do sol inesquecível, tanto para os observadores que sentam na velha varanda de madeira, quanto para quem prefere passear com o pedalinho.
forma: a ecovila conta com 17 habitantes fixos, além de voluntários e visitantes; nove construções privadas, espaços de convívio; e se mantém de forma autossuficiente, norteada por uma economia verde e solidária.
Manhãs de trabalho Entre os últimos goles de café e as primeiras cuias de chimarrão do dia, os grupos de trabalho começam a se organizar. O quadro na cozinha mostra a disposição das tarefas semanais, redefinidas em conjunto todas as terças-feiras: a turismóloga Rebeca Pinheiro é responsável pela limpeza e o almoço; o engenheiro florestal Felipe Miozzo vai roçar os caminhos da ecovila; o biólogo Marcos Mauths e o artesão Gilberto Bottari estão construindo um sistema de esgoto para a casa de visitantes; o jovem Felipe Rosa e o educador italiano Ettore Miserocchi ficarão na horta. Na próxima reunião os papéis são redistribuídos. Como define Rosa, um dos moradores locais, “cada um que vive na Arca torna-se um pilar da comunidade”. Além do sentimento de unidade, muitas outras vantagens surgem com essa forma não usual de distribuição de tarefas. Inquieto, Miozzo, acredita que tal modo de vida é ideal para pessoas que, como ele, preferem uma maior liberdade no trabalho. “É uma rotina sem rotina. Se na semana que vem quero descansar do trabalho na roça, posso me inscrever para ajudar no almoço. Essa flexibilidade é um estímulo para muitos. Eu por exemplo não tenho vocação para bancário. Para mim não serve vida de escritório”. Já para Geraldo, carioca que está trabalhando como voluntário na ecovila pela segunda vez, a pluralidade de tarefas resultou na descoberta
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de novos talentos. “Vim paratrabalhar em peças de madeira pequenas e agora estou aqui, aprendendo a construir uma casa”, conta animadamente. Com um estilo de vida simples, onde o reaproveitamento é palavra-chave, e o custo de vida é muito baixo, a Arca Verde é exemplo de autogestão. Além das tarefas coletivas, os recursos para que a ecovila se mantenha vêm de inúmeras frentes. Mauths, morador da ecovila, enumera os principais: vendas, produção agrícola, negócios privados, cursos, visitações e voluntariados. Sparrenberger destaca que, apesar de seguir uma corrente anarquista de autogestão, a comunidade não é e nem pretende ser uma “bolha” isolada do Estado. Segundo o permacultor, depender da economia e de recursos externos não é um erro, mas deve ser feito com parcimônia. “Dependemos do mundo, fazemos parte do sistema e do mercado. Compartilhamos ferramentas, carro e comida; trabalhamos com bioconstrução, preservação ambiental e retenção de água, reaproveitamos dejetos orgânicos e secos… Não é preciso se privar de nada. Vivendo de uma forma consciente modificamos o mercado e o sistema”, explica o idealizador do projeto.
Tardes de descanso Às 13h, o sino toca outra vez indicando o fim da jornada de trabalho e a hora do almoço. A mesa farta, preparada pelos cozinheiros responsáveis da semana, espera a todos. Comida vegetariana apreciada sem pressa. A tarde é livre para que cada qual a aproveite da melhor forma. “Aqui eu trabalho meio período e no outro meio período eu posso estudar para concurso, dormir, nadar, trabalhar para mim. Então é um modelo que abre muitas portas”, conta Miozzo.
Já Rebeca aproveita as tardes para brincar com o filho, o pequeno Lírio, de 3 anos, enquanto outros, como destaca Mauths, têm a liberdade de também trabalhar fora da ecovila. Sentimento inerente entre visitantes, voluntários e moradores, a visível relação intrínseca entre lazer, contato respeitoso com a natureza, trabalho comunitário e vivências de troca entra em contraponto com a correria e individualidade da rotina citadina, deixando clara a possibilidade de uma vida mais harmônica e saudável. “Acho que a espiritualidade é o melhor. Há muitas situações para se desenvolver a sabedoria. Se não ficamos neuróticos”, destaca o francês Mathieu Martial, que vive há dois meses “Sinto-me motivado em fazer na Arca. “A cidade parte de um movimento de não oferece resitência frente a um sistema qualidade de vida. que não vai ter muitos anos de Não tem ar vida” puro, a água é nojenta. Muita gente tem depressão. As pessoas estão insatisfeitas. Quando as pessoas vêm aqui ficam encantadas, e notam que é possível viver diferente. As pessoas vêm e se transformam sem precisar morar aqui”, complementa Sparrenberger. É aos poucos, pelo convívio e pelas caminhadas, que os visitantes se deparam com os detalhes que regem uma comunidade baixo à filosofia da permacultura. O esforço Alguns dos rostos da Arca de todos para conviver em Verde: harmonia com a natureza, 1) O fundador da Ecovila, provocando o mínimo de imLeandro; 2) O morador Felipe pacto ambiental possível. Rosa trabalhando na horta Há duchas que funcionam comunitária; 3) A janta, semcom a energia da lenha, queipre partilhada; 4) O voluntário mada para cozinhar; banheiro Gilberto preparando a massa seco que permite o reaprode chapati; 5) As gêmeas veitamento de dejetos como Letícia e Renata, visitantes adubo, além de economizar que passaram o aniversário água; as novas construções na Arca Verde; 6) O pequeno feitas de COB (uma massa de Lírio, o habitante mais novo areia, terra e palha) reduzem da comunidade. os impactos que seriam causados por obras com materiais
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convencionais; a pasta de dente, xampu e sabonete são confeccionados no local, para fugir dos industrializados; e os visitantes têm que levar de volta todo o lixo seco que produzem; entre outros. De acordo com Rebeca, que cuida também da comunicação com os interessados em visitar ou fazer voluntariado, percebe-se que a insatisfação das pessoas com o atual sistema em que são inseridas é o motivo mais comum entre aqueles que buscam conhecer a Arca Verde. Opinião que se reflete nas palavras do aventureiro Martial, que tem cruzado o mundo hospedando-se em ecovilas. “Sinto-me motivado em fazer parte de um movimento de resistência frente a um sistema que não vai ter muitos anos de vida.”
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Noites de partilha Os motivos apontados por hóspedes e moradores para viver ou conhecer a vida em uma ecovila são inúmeros. Se a conexão com a natureza, o ritmo reduzido das atividades, a inexistência de rotina são opiniões comuns, notase, no entanto, que o contato humano é uma unanimidade. Entre muros e horários, a cidade nos desconectou. Talvez seja essa a estranheza gostosa que paira no ar já no café da manhã, e se acentua na janta, quando todos têm ainda mais histórias para contar. Não há televisão e nem divisórias na grande cozinha onde a comunidade se reúne.
Resta às pessoas conviverem. A ecovila é mescla de amizade e diversidade. E esses são os pontos destacados nos discursos dos mais antigos aos mais recentes habitantes. “Hoje temos aqui um francês e um italiano. Outra vez que vim tinha uma menina da Eslovênia, e assim vai. Essa diversidade cultural me fascina”, destaca Miozzo. “O melhor é amizade. A gente cultiva a amizade com padrão de afeto, de se abraçar, de resolver problemas”, opina Gilberto. “É muito mágico estar aqui com pessoas que querem viver com outras pessoas, e com isso evoluir. A gente não está acostumado a viver comunitariamente”, complementa Rebeca. A janta se torna então apenas uma compro-
vação do que foi observado: o sentimento de comunidade refletido na mesa farta com todos presentes; a diversidade nos acentuados sotaques cariocas, nordestinos, gaúchos, até a mistura de idiomas; o respeito quando as vozes vão baixando o tom, assim que se aproximam as 22h. E é desta forma, que após uma animada reunião ao fim do dia, as pessoas vão se despedindo. Quando as vozes calam e todas as lâmpadas são desligadas, a natureza volta a reinar. O dia termina com as estrelas brilhando em esplendor, sem o ofuscamento de nenhuma luz artificial, sobre o lago. Ouve-se o coaxar dos sapos e o canto da cigarra que, parece, estavam esperando para conversar também.
Opostos em evidência: a visão do alto revela os 25 hectares de mata virgem da Arca verde em contraste com o “deserto” provocado pela pecuária e extração de madeira.
Presente da natureza Fim de tarde. Do laranja vivo ao laranja terroso e então, num piscar de olhos, tudo se transforma em nuances de violeta e roxo, até que a noite cai, o lago escurece e deixa de refletir as multicores do pôr do sol há pouco espelhadas sobre sua calma correnteza. Presenciar tal cena, de pedalinho em meio à água, foi para a estudante de psicologia Letícia Schider um presente dado pela natureza, para ela e a irmã Renata, gêmeas que escolheram passar o aniversário na ecovila. Amantes da natureza, elas se veem “presas” na correria de Porto Alegre e foram pas-
sar o fim de semana na Arca Verde, com a curiosidade de vivenciar um estilo de vida alternativo. Segundo as irmãs, a mudança se percebe imediatamente, na forma com que foram recebidas, e, sobretudo, na harmonia entre o homem e a natureza. Renata destaca que a tolerância, refletida no contato humano e na troca pacífica de filosofias, é algo bastante incomum na metrópole onde vive. “Mal chegamos e já estávamos nos sentindo a vontade de pegar o sal, cozinhar, sentar aqui na sala, falar de um tema político. Parece que as pessoas nos olham sem
escudo. Em Porto Alegre, se tu vai em um lugar, parece que está sempre pisando em ovos. Parece que há assuntos proibidos”. Já para Letícia, o que mais impressiona é a harmonia com que o corpo se adapta à natureza, e a impressão de que o tempo passa mais devagar, proporcionando que o dia seja melhor aproveitado. “Aqui tu dorme quando tem sono. Come quando tem fome. Responde ao seu corpo. Na cidade, tu se desconecta até do teu corpo. Só sabe que de meio-dia tem que comer”, comenta. “A gente estava caminhando ali fora, às 7h da
noite e estava totalmente escuro. Na cidade a gente nem teria chegado em casa. E com todas as luzes e trânsito, nem saberíamos se está escuro. Esatríamos pensando no que iríamos comer de noite, se tem que passar no super ..”, complementa Letícia. “Chegamos há três horas e de tanto que já fizemos, parece que estamos faz uma semana aqui”, brinca. Yoga, natureza, reposição de sono. Se dessa vez as irmãs buscaram uma fuga da cidade, a certeza de que seus espíritos pertencem à natureza se aflorou e a ideia é voltar para trabalhar.
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Não há problema em dar sem pensar em receber: apenas compartilhar. O próximo passo é transformar ações em hábitos Cláudia Palhano | cpalhano1@ucs.br
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e a alternativa é se organizar deixando que prevaleça o coletivo, o bairro Fenavinho, de Bento Gonçalves, está no caminho. Com nenhum projeto oficial, as famílias Passarin, De Toni, Sebben e Giroldi, todos vizinhos, plantam e trocam produtos entre si. A iniciativa, que é comum a várias pessoas do bairro há aproximadamente dois anos, tem tomado proporção maior. Desde temperos, chás, verduras e frutas até mesmo flores e folhagens fazem parte do cultivo dessas famílias que, por não conseguirem, muitas vezes, consumir o que produzem, distribuem gratuitamente para a vizinhança. Com conhecimentos adquiridos ao longo da vida, vendo práticas comuns e habituais de seus pais, as famílias cultivam os mais variados vegetais de forma orgânica. Além de cinza de fogão a lenha ou churrasqueira, somente restos de frutas e cascas são postos na terra, que depois é remexida para assim adubar o local. A água utilizada para
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regar as plantas vem de um armazenamento feito a partir da água da chuva que desce pelas calhas das casas. O rodízio de culturas para o descansoda terra é respeitado nas redondezas. A dona de casa Salete Giroldi, que cedeu um terreno ao lado da casa da dona Cristina Sebben, gosta de contribuir para que isso aconteça. Ela diz não conseguir trabalhar muito na terra, já que tem problemas na coluna e netos gêmeos para cuidar, mas fica feliz e acompanha o cuidado que os vizinhos têm. Darci e Madalena De Toni, além de contribuírem no cuidado com a agricultura familiar, não deixam de utilizar qualquer espaço para o cultivo. Em canteiros de um metro quadrado ao lado da casa, o casal planta tomates. Maria Maurina Passarim, assim como Cristina Sebben, planta milho, alho, cebola, repolho, aipim, couve-flor, entre uma série de outros vegetais. Salete diz que é tudo muito simples e que a atividade é prazerosa. “É só saber aproveitar”, diz ela.
FOTOS CLAUDIA PALHANO
Troca entre vizinhos
Algumas formas de cultivo das famĂlias do bairro Fenavinho.
O comunitário na comunidade A estrada de chão que rodeia o espaço, localizado no bairro Vila Ipê, sinaliza a situação da comunidade da Zona Norte de Caxias do Sul. Não que estrutura física signifique interesse em progresso humano, mas, quando investir em asfalto é sinal de progresso, este pequeno detalhe, talvez, demonstre quais são ou não as prioridades dos gestores. O projeto, desenvolvido pela Prefeitura de Caxias do Sul e a Associação de Moradores do Bairro (AMOB) em parceria com a Eletrosul, é uma Horta Comunitária, cujo objetivo é estimular o cultivo de hortaliças, plantas medicinais, leguminosas e árvores frutíferas para o consumo e geração de renda. De acordo com a coordenadora da Secretaria da Segurança Pública e Proteção Social (SSPPS), Janete Tavares, cerca de 70 famílias são atendidas pelo projeto, que traz uma mancha verde em meio à poeira da terra das ruas daquela simples comunidade.
Ela explica que a intenção é atender idosos, PCDs e outros indicados pelas escolas, UBS e AMOB e redondezas, aquele mesmo público que sempre precisa de atenção. E nesse ponto os serviços públicos atuam como parceiros no mapeamento das prioridades para possibilitar a produção de alimentos sem agrotóxicos, tema que até mesmo as comunidades mais “estruturadas” não discutem. Dessa forma, o cuidado com a terra, juntamente com o suporte e orientação da equipe responsável pelo projeto, garante manutenção do espaço, mudas para plantio e orientações sobre o cultivo. Além disso, dispõem de técnico agrícola, nutricionista e assistente social, bases para o desenvolvimento de uma ideia que realmente gera frutos: frutos que alimentam o corpo e frutos que alimentam a alma. A ideia desse trabalho não se limita apenas à produção orgânica de alimentos,
conforme reitera Janete, mas abraça a produção de renda, já que não há empecilhos quanto à venda e distribuição desses alimentos, que podem ser encontrados nas feiras e reuniões de bairro, ou trocados entre os próprios agricultores. Segundo Janete, os espaços são limitados de forma igualitária para cada produtor e identificados com placas com o nome de cada família responsável, o que dá autonomia e responsabilidade aos envolvidos. E a avaliação que ela faz do que vem sendo feito até então é positiva, visando, inclusive, a sua ampliação. A rede da Eletrosul passa em diversos bairros. Dessa forma, interessados em fazer parte do projeto podem entrar em contato com a Secretaria da Segurança Pública e Proteção Social (SSPPS) pelo telefone (54) 3218.6193, para que seja estudada a viabilidade de aproveitamento do local.
Nas imagens ao lado, diversos ângulos e alguns dos personagens que fazem a história da Horta Comunitária no bairro Vila Ipê. Acima, Vanderlei está com o filho, próximo ao seu pedaço de terra. Ao lado, a placa sinaliza o pedaço de Adriana, que, logo abaixo, segura a enchada do trabalho, ajeitando suas verduras depois de longo período de chuva. Nelso olha fixamente para a câmera, no intervalo das atividades agrícolas, enquanto João, imerso nas folhas, continua sua empreitada.
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Nelso Granela, aposentado, há algum tempo veio de Guaporé para morar na comunidade do bairro Vila Ipê. Ainda que não possua nenhum pedaço da extensão dos dois quarteirões de canteiros, isso não o impede de mexer com a terra. O agrônomo passa os dias auxiliando os beneficiados do Programa Horta Comunitária com diferentes técnicas de cultivo. Além disso, preenche a rotina com aquilo que gosta.
Economia sustentável ambiental
Economia além dos números
É aquela que se preocupa em minimizar os danos ao meio ambiente. Além de ter um cuidado especial com a origem dos produtos, também se importa com o destino que eles terão. A professora Maria Carolina destaca que essa conscientização está presente em todo o processo de produção, buscando um equilíbrio entre indústria e natureza. Segundo ela, para se enquadrar no perfil de economia sustentável ambiental, é importante saber retirar a
Quando a preocupação com a natureza resulta em lucros sociais Ana Seerig | apseerig@ucs.br Karine Bergozza| kbergozza@ucs.br
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excesso de produtos (novos e usados), a qualidade da alimentação, indústria versus natureza, o futuro: todos esses assuntos nos causam preocupação. O que consumir? O que comprar? O que jogar fora? O que ainda pode ser usado mais um pouco? O que passar adiante? Para quem? Por quê? Essas e mais tantas outras questões estão presentes no nosso dia a dia e, direta ou indiretamente, afetam o nosso bolso e, claro, a economia. Nas últimas décadas muito se discute sobre a relação da indústria com a natureza e o papel do consumidor no meio disso. Cada dia mais se fala em consumo consciente e redução de desperdícios, sejam eles de produtos ou de dinheiro. Inevitavelmente, a economia se ramificou em modelos que têm sua base muito além da compra e venda. A doutora em economia Maria Carolina Gullo explica melhor como funcionam e quais as principais semelhanças e diferenças entre as “novas” economias.
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matéria-prima natural sem prejudicar o ambiente em que ela está, mas também projetar o descarte do produto para minimizar os prejuízos à natureza. “É pensar uma economia que respeite os limites da natureza e que, ao mesmo tempo se possa, ao produzir, entender que nós não podemos botar tudo de volta na natureza. Temos que pensar na poluição do ar, da água, ou seja, tudo aquilo que é gerado a partir dessa produção”, resume a economista.
Alimentação consciente: uma forma de consumir com responsabilidade
Na mitologia grega Gaia é uma personificação do planeta terra, uma deusa representada por uma mulher gigantesca e poderosa. Podemos dizer que é uma protetora do planeta, por isso não teria nome melhor para um restaurante que tem o objetivo de abrir mentes, sair do padrão e proporcionar mais saúde e qualidade de vida às pessoas. O Restaurante e Bistrô Gaia’s House foi criado há cerca de cinco meses pelo vegano Vinícius Pistor, de 31 anos. Formado em química pela UFRGS, ele conta que sempre teve interesse por questões ambientais e, pensando nisso, decidiu abrir um negócio diferente. Devido ao fato de ser vegano e ter dificuldades em encontrar espaços que trabalhem com esse público, Pistor viu no problema uma oportunidade para explorar um campo que é desconhecido por muitos. As paredes de madeira pintadas na cor verde claro harmonizam perfeitamente com a tonalidade dos estofados das cadeiras, enquanto as mesas, também em madeira,
dão um ar rústico, e ao mesmo tempo renovado, para o ambiente. Um lugar simpático e muito aconchegante que faz com que o cliente sinta-se em casa e fique à vontade para experimentar uma culinária orgânica, funcional e peculiar. Ao meio-dia, o local oferece bufê e, à noite, de quinta a sábado, atende como bistrô. O cardápio varia conforme a sazonalidade dos produtos, já que é baseado em frutas, verduras e legumes plantados por eles mesmos. De acordo com o proprietário, quase tudo que é servido no restaurante é produzido internamente, poucos itens, também orgânicos, são comprados. É o caso do arroz: “O arroz orgânico é comprado em São Paulo, pois lá é mais barato. A única coisa que não é orgânica são as farinhas, pois o custo é muito alto e teríamos que repassá-lo ao consumidor que, por sua vez, quer comer comida orgânica, mas, sem pagar mais por isso,” explica Pistor. O processo de cozimento é feito em chapas de pedra sabão, uma pedra que, con-
forme o proprietário esclarece, possui baixa condutividade de calor e faz com que a comida seja cozida em uma temperatura mais natural, para que não haja perda dos nutrientes. Além disso, o local procura trazer substitutos para a carne e produtos de origem animal, como o leite: “São oferecidos alimentos que contenham proteína, como o grão-de-bico e o brócolis. O leite pode ser feito com castanha, aveia, semente de melão e amendoim”, exemplifica Pistor. Além de oferecer alternativas às pessoas que querem se alimentar com saúde, o local acredita e apoia causas ambientais sem fins lucrativos. Um exemplo disso é a divulgação de palestras e outros eventos que permitam uma reflexão sobre sustentabilidade. O restaurante é regido por princípios que valorizam o meio ambiente e as formas de vida que o habitam. Um modelo novo, para uma nova geração, que tem cada vez mais, a responsabilidade de pensar e agir com consciência, para um futuro melhor.
Economia compartilhada É a economia gerada em torno de bens compartilhados, como carros, por exemplo. Por um certo valor, um produto é arrendado, alugado por determinado tempo ou diante de determinada situação. O objetivo não é o lucro, mas sim a divisão de custos. É uma alternativa nova e que tende a crescer no mercado. “Como os mais jovens têm mais facilidade de se relacionar na internet e com a internet, as oportunidades de compartilhamento
tendem a crescer. Teve uma palestra de um diretor de marketing da Ford no ano passado, na CIC, em que ele disse que o futuro do mercado automobilístico é o automóvel compartilhado, não mais o automóvel propriedade de um ser. Por exemplo, eu tenho um automóvel e ele fica parado seis horas no estacionamento, nesse tempo eu vou alugar ele para alguém, eu vou compartilhar ele com alguém”, exemplifica Maria Carolina.
Uma carona para o meio ambiente
O que fazer diante da insegurança e do medo? A sequência de assaltos registrados em ônibus que fazem o trajeto Flores da CunhaCaxias do Sul, aumentou a insegurança daqueles que dependem desse serviço. Pensando nisso, a fotógrafa Tuany Areze, 23 anos, criou um grupo de caronas no Facebook para oferecer uma alternativa segura àqueles que diariamente percorrem esse caminho. “Além disso, eu sempre observava muitos carros circulando pelas ruas, mas a maioria deles estava com apenas uma pessoa ou, no máximo, duas,” explica Tuany. Por isso, em agosto de 2016, ela criou o grupo “Carona Flores/Cxs”, no qual as pessoas oferecem e solicitam caronas. Elas podem ser solidárias, sem custo algum para o caroneiro; ou compartilhadas, onde há divisão das despesas. Muitos dizem que têm medo de compartilhar
carona, pois terão que dividir seu espaço com um desconhecido. Justamente por isso o grupo é fechado e via Facebook, pois por meio dele é possível olhar o perfil da pessoa e saber se é conhecida ou amiga de amigos. O grupo procura mostrar os benefícios de dar caronas: usar os cinco lugares do carro, colaborar com o meio ambiente, economizar com estacionamento e combustível, diminuir os engarrafamentos, ter uma companhia no trajeto... enfim, as razões são muitas. O ponto negativo, segundo Tuany. é que na pressa muitas pessoas esquecem de olhar o grupo antes de sair de casa, algo que merece mais atenção. Os grupos de caronas vêm ganhando cada vez mais adeptos, afinal, são alternativas interessantes para muitas pessoas e, é claro, uma iniciativa que o planeta agradece.
Economia solidária Não visa o lucro, mas sim a satisfação das partes envolvidas, já que envolve a troca e o reaproveitamento de produtos usados. Tem mais relação com a questão econômica do que as outras duas, pois torna mais acessíveis determinados produtos que, muitas vezes, seriam inalcançáveis para determinado público. Maria Carolina ressalta que esse tipo de economia surgiu como uma solução para momentos de crise financeira, na qual os preços de produtos variam muito, tornando a troca a opção mais acessível para a população. Além disso, também é uma alternativa interessante dentro de pequenas
comunidades. “O princípio da economia solidária é o princípio da troca. A troca pela utilidade que ela tem e não por um lucro que ela possa gerar. Ao propor a economia solidária, eu estou propondo também a reutilização de parte dos produtos, o que acaba também tendo uma conotação com a economia sustentável. Quando eu faço uma troca com alguém de algo que não me serve mais por algo que me interessa, eu estou reaproveitando aquilo que está posto, que já está produzido. A economia solidária é sustentável econômica e ambientalmente”, explica a professora.
Bazar Social: lucro para quem vende e para quem compra Criado em 2007, o Abracabrike faz parte da Educaritá, uma associação sem fins lucrativos que atende 900 crianças de até seis anos em parceria com a prefeitura de Caxias do Sul. O dinheiro arrecadado com a venda dos produtos doados é encaminhado para as duas escolas infantis mantidas exclusivamente pela organização, nas quais são atendidas cerca de 220 crianças de dois a seis anos. “Essas escolas não recebem auxílio da prefeitura, por isso os recursos da loja vão diretamente para lá, porém, ainda não é suficiente, contamos também com o apoio de empresas privadas para manter o atendimento”, explica o administrador do Abracabrike, João Batista Horstmann. Os produtos comercializados são os mais diversos:
roupas, eletrodomésticos, livros, brinquedos, móveis, entre outros; todos doados. Alguns produtos, como móveis, são novos, doados por empresas que não puderam vendê-los em lojas regulares por pequenas falhas identificadas no setor de qualidade. De acordo com Horstmann, a clientela da loja é variada, de restauradores e colecionadores de móveis a pessoas de baixa renda. “Quando a pessoa chega aqui e percebemos que ela não tem condições de pagar, fazemos um preço especial e, algumas vezes, doamos. Mas, para receber a doação, a pessoa é encaminhada para a nossa assistente social, que faz um cadastro e uma visita de avaliação. Depois disso, ajudamos como podemos”, esclarece Horstmann.
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Empresas atentas ao futuro 44
O uso de agrotóxicos para aumentar a produção, melhorar o armazenamento, e beneficiar a qualidade dos produtos tem se tornado cada vez mais comum nos últimos anos. De acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente, o Brasil lidera um ranking nada bom para a nossa saúde: somos o país que mais consume agrotóxicos no mundo. Isso significa que cada brasileiro consome em
média 5,2 litros de agrotóxicos por ano, um número assustador. Essa triste realidade tem chocado muitas pessoas e vem sendo responsável pela mudança de hábitos. Nos dias de hoje não é raro vermos restaurantes e diversas lojas adeptas a uma política de consumo sustentável, porém, no início pode não ser fácil identificar a melhor maneira de seguir este caminho. Sabendo disso, o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) elabora, juntamente com os empresários, um plano de negócio que também contempla o viés ambiental: “O Sebrae-RS orienta os empreendedores de acordo com o segmento de negócio pretendido e suas implicações em relação ao meio ambiente. Dessa forma, disponibiliza ferramentas para o empreendedor cuidar do assunto de
Economia solidária busca espaço em Caxias do Sul Desde novembro de 2004 existe o Programa de Economia Solidária (Ecosol) em Caxias do Sul, instituído através do Decreto nº 12.008, o qual tem por objetivo potencializar os empreendimentos de autogestão e redes de cooperação. O gerenciamento do programa coube à Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE), a qual selecionou e dividiu os empreendimentos por setores econômicos: confecção, alimentação, artesanato e reciclagem. O Fórum Municipal de Economia Solidária realiza reuniões mensais e cursos de formação na área, os quais resultam em certificados que abrem portas para feiras em todo o Estado. O grupo EMREDE, por exemplo, possui 27 associados nos diferentes setores e oferece os mais variados produtos: brinquedos recicláveis, reaproveitamento de retalhos de lãs e tecidos, brechó, doces e salgados. “Nós contamos com o apoio do Centro Espírita Casa da Redenção, que nos encaminha restos de tecidos, de lãs e linhas, mas ainda temos muito a crescer na questão sustentável. Tem uma associada com um projeto de horta, o que seria ótimo para nós do setor da alimentação, mas infelizmente dependemos do apoio da prefeitura. Nos últimos anos Caxias está estagnada no que diz respeito à economia solidária por falta de apoio do setor público”, explica a coordenadora do EMREDE, Luzia de Fátima Dinnebier. Apesar da maior parte dos associados ter o envolvimento no programa como uma renda secundária, muitos conseguem se sustentar a partir da venda dos seus produtos. De quinta a sábado, o grupo pode ser encontrado na Praça João Pessoa, em São Pelegrino. Entre outras opções, o público pode encontrar comidas típicas de outros estados (acarajé e tapioca) e confecções que vão de crochês a roupas e bolsas feitas com restos de tecido. FOTO ANA SEERIG
forma consciente por meio de licenças ambientais, práticas de cuidado com alimentos, descarte e plano de ação para resíduos, etc.”, explica o gerente regional do Sebrae da Serra Gaúcha, Aldoir Bolzan de Morais. Apesar de não ter dados exatos sobre o número de pessoas que procuram o Sebrae com o intuito de abrir um negócio que respeite o meio ambiente, é possível dizer
que esse número é crescente e que as empresas estão se preocupando cada vez mais em tornar a empresa economicamente viável, ambientalmente correta, socialmente respeitável e justa. “Inúmeras empresas estão voltadas aos segmentos de energias renováveis e alimentos saudáveis. Já no escopo de energia, destaca-se a solar com o maior crescimento presente e futuro dos próximos cinco
anos. Também temos as energias renováveis com biogás e biomassa na agricultura, para propriedades rurais com pouco acesso à energia elétrica”, exemplifica Morais. Os empresários que têm uma proposta sustentável procuram o Sebrae porque o serviço desenvolve atividades que incentivam a expansão das formas de economia consciente: “Temos três projetos de energia renovável nas
regiões: Serra, Metropolitana e Sul, que visam apoiar empreendedores na geração de energia limpa. São atendidas cerca de 120 empresas. Outra ação de destaque está relacionada à eficiência energética: apoiamos, através do SebraeTec, a correta eficiência em indústrias com custo alto de energia elétrica. O objetivo é tornar a energia eficiente para reduzir o custo operacional,” destaca Morais.
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CRÔNICA
Ora! O que há de errado conosco? por Aline Mapelli
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er jornalista. O que é um jornalista? Para os que estão no começo do caminho e, ainda, não encontraram a sua pedra, há uma visão romântica do super-herói moderno que tem o poder de mudar o mundo por meio de sua escrita idealista e (mal sabem eles) cheia de opinião. Porém, nesse caminho há muitas pedras. A primeira explica àqueles que adoram encher páginas com escrita livre, que, em realidade, só podemos trabalhar com grilhões nas pernas. Grilhões em formato de métricas, leads e padrões. Não que a padronização seja ruim, em algum momento é preciso pôr ordem, ou voltaríamos aos velhos jornais opinativos dos primórdios, no entanto, toda essa formalização tem efeitos colaterais. Uma notícia, que nem ao menos virou notícia de verdade, pois apenas sites mais descontraídos se propuseram a divulgá-la, conta o relato de um casal de idosos italianos que estavam chorando aos prantos em seu apartamento. Por conta do barulho, a polícia foi chamada e, ao chegar lá, descobriu que os idosos choravam por verem a realidade de um mundo cheio de ódio e tragédia na TV. Além disso, o casal se sentia deprimido por não ser visitado há muito tempo por ninguém. Comovidos, os policiais se dispuseram a preparar uma refeição ao casal, a fim de lhes fazer companhia e prestar algum consolo. Esse acontecimento não virou notícia, pois, analiticamente, não há valor-notícia nesse fato. Não é algo considerado relevante, não é regionalmente próximo, não é nada além de algo cotidiano. Porém, se isso não é notícia, por que vemos cada vez mais frequentemente publicações sobre fatos como “Celebridade é vista praticando exercícios”? Bem, nesse caso, o fator notícia deve estar na audiência, afinal de contas, um corpo bonito é muito mais fator-notícia do que um simples ato solidário. Mas uma outra questão mais profunda está presente nesse contexto: talvez nossa métrica tenha nos transformado em criaturas frias. O caso é, talvez estejamos perto demais de tragédias e sofrimentos e, por autoproteção, começamos a criar uma barreira com nossos discursos prontos e, com isso, ficamos cada vez mais distantes dos outros. Nós, que almejávamos no começo de tudo vestir a camisa deste ou daquele necessitado, hoje nem ao menos nos comovemos com os sofrimentos alheios. Em realidade, não é atípico ver em redações exclamações alegres quando surge uma notícia de uma grande catástrofe em um dia pacato de trabalho. Ora! O que há de errado conosco? Perguntariam aqueles que estão mais longe da realidade das redações. Bem, eu respondo: o que há de errado conosco é que somos o reflexo de uma sociedade errada. É verdade que ajudamos a construir a realidade que as pessoas veem diariamente, mas, também, somos construídos pela sociedade que nos exige essa ou aquela pauta. O fato de um casal de idosos ter chorado ao ver notícias tristes nos causa mais estranheza do que ver as próprias notícias. Nos parece estranha a comoção, alheia e gratuita, de pessoas que viveram um tempo em que não era estranho se espantar e chorar com a dor dos outros. Então, eu agora pergunto: ora! O que há de errado conosco?
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CRÔNICA
Retrato fiel por Mayara Zanella
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céu estava nublado. Fazia frio e o vento soprava, forte. Cinco pessoas cruzavam um campo de refugiados palestino em uma carroça puxada por um burro. Uma delas carregava uma bolsa, dentro da qual havia um bloco, uma caneta e um gravador. Munido desses objetos, o jornalista Joe Sacco coletava, de casa em casa, de campo em campo, histórias de um dos povos mais castigados pela brutalidade causada pela diferença entre crenças. Seu objetivo era nobre: dar voz a quem nunca foi ouvido. Com o “equipamento” em punho, na presença da fonte, parece não haver mistério em relação ao que deve ser feito. Mas como comportar-se diante de pessoas que parecem ter sobre os ombros o peso de milhares de cruzes? É possível retratar a angústia causada por anos de desgraças sem “sensacionalizar” o sentimento alheio? Situações como as vividas por Sacco durante a elaboração de seu livro-reportagem Palestina parecem não seguir uma fórmula pronta. Não há um “manual do bom jornalismo” que diga como os profissionais devem portar-se quando encontram-se em um mundo que não lhes pertence, inóspito, por muitas vezes, onde não há algo familiar no qual eles possam amparar-se. Assim, a única saída é despir-se de si mesmo, de conceitos prontos e sair do lugar-comum. Voltando à carroça, percebe-se a imersão. Sacco “está” como um deles, percorrendo o campo enlamaçado, fitando as casas cinzentas e as crianças correndo; absorvendo, ao seu tempo, a realidade que há pouco lhe era estrangeira. Há empatia em seus gestos, na forma escolhida para vivenciar a Palestina. Empatia: a capacidade de colocar-se no lugar do outro; de entendê-lo em vez de julgá-lo. Ao acompanhar a viagem de Sacco pelo campo de refugiados é possível entender que um retrato fiel deve ser pintado a partir do mesmo ponto de vista. Desníveis podem causar uma distorção no produto final. Enquanto houver aqueles dispostos a carregar, mesmo que por pouco tempo, as cruzes dos outros, haverá bom jornalismo.
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FOTOS LUCIANE MODENA
EDUCAÇÃO
Sob a sombra do ipê amarelo Ir à escola faz parte da rotina das crianças. Dependendo do ambiente onde vivem, é mais do que necessário, é transformador Ana Vivan | acmvivan@ucs.br Luciane Modena | lkmodena@ucs.br Mayara Zanella | mzrosa@ucs.br Priscilla Panizzon | pbpanizzon@ucs.br
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ábado de manhã. Momento ideal para descansar, dormir o que não se pode dormir durante a semana. Entretanto, em determinados sábados por ano, não é assim para professores e alunos da rede municipal de ensino, em Caxias do Sul. O dia de descanso é considerado letivo, motivando os educadores a prepararem mais conteúdo para a aula extra. Na escola Ruben Bento Alves, no Loteamento Vila Ipê, bairro Santa Fé – Zona Norte da cidade, os sábados letivos são especiais. “Nós nunca preparamos aula nesses dias. Organizamos atividades educativas e recreativas, porque a escola é o único lugar onde os alunos terão contato com isso”, comenta a diretora, Tânia Maineri, 46 anos.
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O bairro Santa Fé é o maior de Caxias do Sul, com mais de 20 mil moradores, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Loteamento Vila Ipê, uma das áreas do Santa Fé, tem um nome facilmente justificável, pela presença dos ipês coloridos. A Ruben Bento Alves, por exemplo, fica na Rua dos Sabiás. Nomes que remetem à poesia, em uma realidade nem tão poética: a área é conhecida por casos de violência. Apesar disso, por meio de um dos sábados letivos, alunos de diversas idades puderam levar manifestações de paz para as ruas da Vila. A Semana Municipal da Paz, que motiva atividades em todas as escolas, faz pela Ruben muito mais que entreter.
Ruben Bento Alves: escola fica no loteamento Vila IpĂŞ, em Caxias do Sul
Transformação vem de dentro Coube à diretora Tânia Maineri promover uma transformação junto à comunidade escolar. Tânia tem 25 anos de carreira como professora de Educação Física e séries iniciais, tendo passado os últimos sete à frente da Ruben Bento Alves. A diretora lembra sem saudades de como foi seu início na instituição. “As crianças não queriam entrar na sala de aula. A polícia ficava aqui todos os dias. Era muita violência”, resume. As turmas eram divididas entre os alunos mais violentos e os que eram mais dedicados. “Tivemos que mudar isso. Mesclamos as turmas, a fim de não juntar problemas em uma mesma sala de aula. Tiramos a polícia de dentro da escola e começamos a trabalhar princípios e normas, que para eles eram novidades”, conta. No início, a implantação de regras foi difícil. Conforme a diretora, os alunos não respeitavam horários. “Passamos a trancar os portões da escola quando chegava o horário da aula. As famílias vinham nos cobrar com violência, prontos para brigar, bater, por conta disso. Aprendi que bastava olhar nos olhos, cumprimentar e apertar a mão dos pais para que eles se desarmassem e entendessem as regras”, recorda. Conforme a diretora, a primeira relação a ser construída foi a do aluno com sua família. Foi necessário resgatá-la. Outro ponto essencial para mudar a escola foi promover uma reunião pedagógica semanal, trabalhando a autoestima do professor e o planejamento com coordenadores. “A rotatividade era muito alta. Ninguém queria trabalhar na Ruben. Passamos a valorizar mais o professor e hoje temos um time que colabora muito com a escola”, conta. A baixa autoestima do educador, que se sentia desvalorizado, refletia nos alunos.
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Segundo Tânia, as crianças se sentiam inferiores a estudantes de outras escolas. Isso começou a mudar com o esporte, especialidade da diretora. “Já no primeiro ano como diretora, incluí turmas do Ruben nos Jogos Escolares do município, para que competissem representando a escola. Fez a diferença”, comemora. Ainda assim, muitas foram as situações enfrentadas dentro da comunidade escolar, tanto positivas, quanto negativas. Tânia recorda quando um garoto de nove anos levou uma faca. “Tínhamos medo de que ele machucasse alguém ou se machucasse. Pedimos ajuda do Conselho Tutelar e da Guarda Municipal, mas ela não chegava. No fim, conseguimos tirar dele a faca, com muita conversa”, recorda. Além dos relacionamentos entre aluno, professor e família, foi necessário mudar também a estrutura. “Quando cheguei, era tudo cinza, com paredes pichadas. Este não era o ambiente ideal para uma escola”, conta. Por meio de um projeto com o rapper Chiquinho, do Poetas Divilas, foi possível levar cores à escola, com apoio de uma empresa. Na visão da educadora, falta mais valorização à educação por parte dos estudantes. Apesar disso, Tânia sente que a escola é respeitada pela comunidade. “Temos alunos muito afetuosos. A afetividade é a maior característica deles”, garante.
Dia da Paz Naquele sábado letivo, especial, portanto, as crianças estavam animadas. Os professores também. Desde as 7h30, os docentes se reuniam na sala dos professores, um reduto de amizade e partilha das dificuldades. O clima acolhedor, colorido, cheio de risadas e de
sorrisos logo cedo, é o que eles tentam passar para os alunos. A Semana da Paz, celebrada em todo o município, motivava a Caminhada da Paz, organizada para começar às 9h30. As duas horas serviriam para os professores arrumarem os últimos preparativos para as oficinas, agendadas para depois da caminhada: jogo de fusen, dobradura, pinturinhas no rosto, pingue-pongue. Enquanto a caminhada não começava, a pequena Ághata, de cinco anos, autista, passava ao redor da grande mesa da sala dos professores. “Oi!”. Volta ao redor da mesa. “Oi!”, cumprimentava, tocando um a um dos presentes. Tiramos a polícia de Uma das professoras dentro da escola e começa a começamos a trabalhar puxar assunprincípios e normas to. “Ághata, vou te ensinar uma musiquinha. Á, bê, cê, dê, ê, éfe, gê. Agá, jota, ká, ele, eme, ene, ó, pê…”. E assim foi, lentamente, até o término do alfabeto musical. Ao terminar, Ághata olhou a professora e emendou, em inglês: “Êi, bi, ci, di, i, éf, dji…”, em ritmo acelerado. “É uma versão remixada!”, comenta o cuidador da menina. Segundo os professores, ela prefere se comunicar em inglês, e sempre surpreende. Terminados os preparativos, é hora de abrir os portões e acolher os alunos. Turmas do jardim ao nono ano do Ensino Fundamental esperavam, no pátio, receber os cartazes e bandeiras da paz que eles mesmos produziram. Carregaram também as quatro normas da escola: “Todos aprendem; Diálogo para resolver problemas; Cada um é responsável por seus atos; Respeito ao próximo e a si mesmo”. As bandeirinhas brancas tinham pequenos desenhos pin-
Banda marcial: música cumpre as funções de educar e integrar tados pelas crianças, com as inscrições “Eu pratico a paz. E você?”. Na hora de entregar para as crianças levarem, uma das meninas protesta: “Profe, este não é o meu. O meu eu ‘retornei’ de preto o desenho”. Sorriso da professora conquistado. Enquanto isso, a pequena banda marcial se organizava para a saída. A harmonia do passeio viria dali.
Bandeira Branca Com sol instável do início de primavera, era hora de organizar as filas de alunos e sair proclamando a paz pelas ruas do bairro. Uma paz necessária: de janeiro a novembro, ao menos 15 pessoas haviam morrido em decorrência da violência. Um deles, Felipe Ramos da Silva, de 16 anos, era aluno do 6º ano. Foi baleado, confundido com um traficante. Professores e alunos de todas as idades levavam cartazes em busca não apenas de paz, mas de respeito à diver-
sidade. A alma não tem cor, gênero, religião. Para ter paz, precisamos ter harmonia com o outro. Apesar de pequena, a banda marcial deu conta do recado. Tocou, entre outras músicas, “Bad Romance”, de Lady Gaga, e “Dancing Queen”, do grupo ABBA. As liras garantiram a melodia e a bateria, a percussão. A música, as crianças e suas bandeiras chamaram a atenção da comunidade, de casas de poucas cores. Os moradores vinham à janela olhar a banda passar e as mensagens de amor. Os pequenos, muito ágeis, corriam de uma pessoa a outra entregando as bandeiras da paz. Os cachorros da vizinhança, se não estavam latindo, presos, estavam acompanhando a caminhada, livres. Também costuma ser assim na escola. Um dos alunos tem a fiel cadelinha à espera, na porta da sala de aula, todos os dias. Na caminhada, não seria diferente. E ali, na escola, sob a sombra do ipê amarelo, a vida parece ter mais cor.
Sete dias de unidade Organizada para toda a rede municipal, uma das semanas letivas de setembro motiva as escolas a promoverem atividades em busca da paz. A caminhada organizada pela Ruben Bento Alves deu início à uma programação que envolveu, inclusive, uma copinha da paz, que ocorre há pelo menos três anos. Na copa especial, alunos do segundo ao quinto anos do ensino Fundamental jogam futebol em times mistos: diferentes idades, diferentes séries, meninos e meninas. O jardim e o primeiro ano, para crianças de cinco e seis anos, têm jogos de fusen, espécie de vôlei adaptado. A união das diferenças traduz a sala de aula e uma proposta de trabalho sobre valores para 2016: o Projeto Diversidade. “Todos os anos, a escola faz projetos que estimulam valores”, comenta a coordenadora Daniela Serafini. “Muitos enfrentam uma realidade de vulnerabilidade, pais presos, abusos… Uma realidade difícil. A referência positiva para eles está na escola. Somos nós”, relata. Neste ano, o projeto, trabalhado em diversas matérias e atividades, aborda a consciência de igualdade diante das diferenças. “São etnias, cores, religiões, orientações sexuais, diferenças físicas e de personalidade em sala de aula. Temos muitos alunos especiais, com dificuldades decorrentes do uso de drogas durante a gestação. O objetivo é incluir a todos e trabalhar até mesmo a questão do bullying nas redes sociais”, relata Daniela.
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Educação para mudar o mundo Garantir educação básica de qualidade para todos é um dos Objetivos do Milênio, desenvolvido pela Organização das Nações Unidas (ONU) ainda em 2000. Porém, dezesseis anos depois, a educação para todos ainda não é uma realidade no Brasil. A pobreza é uma das situações que afeta diretamente a área, impactando também nos direitos humanos fundamentais da sociedade. Segundo Délcio Agliardi, professor do Centro de Ciências Humanas e da Educação, a educação brasileira avançou bastante nos últimos anos com as políticas de inclusão. “Segundo os Objetivos do Milênio, o Brasil deveria ter escola para todos. Hoje, temos 13 milhões de analfabetos. Os bens não são
distribuídos igualmente entre todos”, aponta. Manter escolas para todos não é o suficiente. O ensino precisa ser de qualidade. As crianças do Ensino Fundamental, por exemplo, precisam ganhar um aprendizado qualificado. “A educação básica possui três níveis: Infantil, Fundamental e Médio. É aqui que se encontra o jeito de mudar o mundo. Na Educação Infantil, a criança precisa brincar e ser cuidada para que tenha um desenvolvimento pleno. No Ensino Fundamental, o aluno deve desenvolver proficiência em Português e Matemática e dominá-las no 9º ano. No Ensino Médio, por fim, o aluno é convidado a relacionar a educação com o mercado de trabalho. É nesta
fase que o aluno enfrenta dificuldades por estar trabalhando e, muitas vezes, cuidando da casa também”, explica. As escolas brasileiras também avançaram na infraestrutura. A ausência de equipamentos e espaços para os alunos deram lugar a ambientes, como bibliotecas com mediações de leitura Temos 13 milhões de e quadra de analfabetos. Os bens esportes. não são distribuídos O desafio do professor é igualmente entre todos adaptar-se ao novo momento da educação. “São novas diretrizes, novos sujeitos e novos saberes. Hoje, por exemplo, é fundamental trabalhar as tecnologias com os alunos que, muitas vezes, não têm acesso em casa”, complementa.
Políticas públicas em Caxias Turma de Aceleração de Estudos: mecanismo que visa corrigir a distorção idade/ escolas municipais série ao dar oportunidade para os estudantes atingirem o nível de desenvolvimento mil alunos em 2016 correspondente a sua idade num tempo menor que o previsto na organização curri% foi a evasão cular da escola. escolar em 2015 Cipave - Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar: realiza ações junto à comunidade escolar que promovam a boa convivência, como a prevenção à violência e drogadição e combate ao bullying. Família na Escola – Escola para Pais: visa incentivar a vivência de valores e a melhoria das relações entre pais, filhos e escola, atuando para o crescimento e valorização integral do estudante. RAE – Rede de Apoio à Escola: composta pela comunidade escolar (pais, estudantes, professores, funcionários, representantes do Cipave e Amobs) e visa planejar e efetivar estratégias para a permanência de todos os estudantes na escola, a fim de reduzir a infrequência e combater a evasão. FICAI – Ficha de Comunicação do Aluno Infrequente: constitui um mecanismo online utilizado pelas escolas para informar casos de infrequência. Parcerias com entidades públicas e privadas: fornecem encaminhamento de estudantes a cursos profissionalizantes. Acompanhamento Psicossocial: busca o aproveitamento dos estudos com ajuda profissional.
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Fonte: Secretaria Municipal da Educação
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