Expressão

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EXPRESSãO Revista - Laboratório do Curso de Jornalismo Universidade de Caxias do Sul Ano 20 - n. 40 1º semestre de 2014

Os cemitérios sob múltiplas perspectivas


Editorial Falar sobre cemitérios não é tarefa simples. Foi necessária sensibilidade para humanizar o tema, e delicadeza ao mencionar a morte, desenhando a fina linha que separa os dois. Uma longa reunião de pauta com a turma resultou na escolha do objeto a ser explorado. A motivação para essa abordagem foi retratar esses espaços públicos presentes no cotidiano de todas as comunidades e culturas, mas que acabam sendo alvo de atenção somente no Dia de Finados. Cemitérios contam as histórias das cidades, porém eles ainda são pouco observados. Se mais pessoas se propusessem a explorar esses locais, descobririam preciosidades sobre suas comunidades. Geralmente, eles estão associados às perdas enfrentadas e, dessa forma, acabam somente relacionados à tristeza, deixando de lado a cultura e as histórias que os envolvem. Nossa intenção é que os cemitérios saiam de um lugar comum no imaginário das pessoas e que elas possam ver os mitos que os envolvem, bem como suas lendas urbanas e belas obras de arte. Aqui, procuramos retratar todas as etapas pós-morte, como velório, arquitetura cemiterial, processo de luto, valas comuns e até mesmo um cemitério exclusivo para animais. Propusemo-nos a colocar o tema em discussão e fomos profundamente tocados por ele. Cada um, a seu modo, descobriu uma realidade nova, cheia de histórias, que passava despercebida aos olhos da maioria. Somos muitos, porém tivemos a preocupação de conduzir os textos sob uma mesma perspectiva, até mesmo na sequência das reportagens, para que a leitura se tornasse agradável. Nossa experiência foi recheada de descobertas e esperamos que, durante a leitura, a sua também seja. Boa viagem a um novo território.

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Reitor: Evaldo Antonio Kuiava Vice-Reitor: Odacir Deonisio Graciolli Pró-Reitor Acadêmico: Marcelo Rossato Diretor do Centro de Ciências da Comunicação: Jacob Raul Hoffmann Coordenador do curso de Jornalismo: Álvaro Benevenutto Júnior Disciplina: Projeto Experimental II Professora responsável: Marlene Branca Sólio Alunos: Alessandro Agendes Anderson Barros Anderson da Costa Oliveira Andressa Gallo Camila Ruzzarin Elisa Rossi Kemmer Grasiela dos Reis Jéssica Loesch Jussara Konrad Matheus Guaresi Paulo Pasa Sílvia Schneider Protas Vanessa de Lima Gomes Projeto Gráfico: Alunos da disciplina

Revista-laboratório do curso de Jornalismo Ano 20 – n. 40 1º semestre 2014 Expressão é o produto da disciplina Projeto Experimental II - Revista

Universidade de Caxias do Sul – UCS Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130 Bairro Petrópolis CEP 95070560 Caxias do Sul – RS Telefone: 54 3218 2100 www.ucs.br

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Sumário

06 O passado explica o presente

15 Dos avisos no campanário à cremação online

20 Arte esquecida pelo tempo

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28 Lembrar para que ninguém mais desapareça


Hist贸ria enterrada, mas jamais esquecida

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Zelador da eternidade H谩 vida ap贸s a morte

Minutos que paralisam Lendas urbanas

A menina milagrosa

O adeus ao amigo de quatro patas Prepare seu bolso antes de morrer A dor de perder algu茅m

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O PASSADO EXPLICA O PRESENTE

A dor da despedida acompanhou os imigrantes italianos durante o percurso da viagem que os trouxe à Serra gaúcha. Muitos morreram e não tiveram direito a um velório ou enterro digno, como eram acostumados em sua terra natal, sendo lançados ao mar após alguns dias. Na nova terra, a morte de muitos italianos, nos primeiros dias da chegada, obrigou os sobreviventes a providenciarem locais para enterrar os corpos. A jornalista e historiadora Danúbia Otobelli explica que o cuidado com os mortos sempre esteve presente em todas as culturas e povos. No entanto, as dificuldades enfrentadas pelos italianos que chegaram em solo gaúcho despertou a necessidade de adaptação para cultuarem os mortos. “Ao desembarcarem na Serra, eles encontraram um ambiente hostil, com matas e animais e, por isso, uma das primeiras providências foi construir a capela e ao lado o cemitério. Havia todo um ritual da morte, com velório em casa, com roupas pretas, passagem pela cidade, que fora preservado dos antepassados” esclarece. Danúbia, juntamente com a historiadora Gissely Lovatto Vailatti, escreveu o livro Benedictus: os cemitérios de Flores da Cunha. Na obra, as escritoras resgatam as construções dos primeiros espaços para enterro dos imigrantes italianos e revelam que a morte prematura de muitos europeus que chegaram à região trouxe “a primeira experiência comunitária de solidariedade”.

Após o período de adaptação, e com as localidades mais estruturadas, os espaços para velórios e enterros foram melhorando. A doação de terras por famílias mais abastadas foi fundamental para a formação dos centros das colônias. “A construção de capelas, cemitérios e salões na comunidade geralmente ocorria por meio de terras doadas por algum membro ou membros da comunidade, em geral quem possuía mais recursos. É comum ver, no inte-

foi abolido das tradições católicas apenas em 2007, pelo então Papa Bento XVI. Os colonizadores da região levavam ao pé da letra a expressão “enterrar os mortos a sete palmos de terra”, como canta Chico Buarque: “esta cova em que estás com palmos medida [...] é de bom tamanho nem largo nem fundo”. Não se sabe ao certo as razões de medidas tão precisas, mas, conforme Danúbia, essa era somente uma parte do ritual que contava ainda com caixa morsimples e cruzes, que, Cemitérios de comunidades tuária de acordo com as posses das do interior das cidades da famílias, podiam ser de madeira Serra gaúcha preservam ou de metal. Com o passar dos anos, tradições religiosas trazidas a melhora das posses dos imipelos primeiros imigrantes grantes e também com a esdas localidades, os europeus que chegaram à truturação cemitérios começaram a soregião frer modificações, entre elas a construção dos espaços em rior, vitrais ou bancos de igrejas, locais mais distantes dos centros com inscrições como: doação da das comunidades. “Passam a ser família tal ou doação das famílias organizados como uma cidade. tais e tais. Mutirões também eram Se você analisar qualquer cemicomuns para angariar fundos”, extério, na área central localizam-se plica Danúbia. os túmulos/capelas mais nobres, Além do espaço reservado enquanto nas laterais está a paraos membros bem vistos da comute mais pobre. Você dificilmente nidade nos cemitérios, as pessoas verá uma carneira (gaveta) na consideradas pecadoras públicas, parte central do cemitério; elas como prostitutas, bêbados, suisempre estão nos cantos ou latecidas e crianças que morriam anrais. Pode-se analisar como a mortes de serem batizadas também te também tem suas distinções tinham um local destinado a elas: sociais”, verifica Danúbia. o limbo. Em alguns cemitérios, o Os cemitérios atuais não se limbo ficava fora da área santa e assemelham aos primeiros, consem outros a Igreja Católica destitruídos de forma improvisada. nava um espaço do cemitério para Com o passar do tempo, eles soos excluídos. frem modificações que vão desde Engana-se quem pensa que a estrutura física até as preocuo espaço dos pecadores públicos pações ambientais para o enterro nos cemitérios durou pouco temcorreto dos mortos. No entanto, po. Esses locais perduraram nas as tradições italianas tiveram forcidades da Serra gaúcha até a déte influência na questão arquitecada de 60, quando começaram tônica do espaço, como colocaa ser construídos os cemitérios ção de estátuas, cruzes e santos públicos. O limbo, por sua vez, padroeiros.


Fotos: Alessandro Agendes

Os cemitérios do interior e a fé lapidada E nas histórias de cemitérios, que seguem, temos Caxias do Sul e Farroupilha, na Serra gaúcha, que trazem algumas peculiaridades da cultura e de como eram os costumes dos imigrantes nesses lugares. Comecemos por Caxias do Sul, município erguido onde o Planalto de Vacaria começa a se fragmentar em vários vales. Dessa forma, milhares de imigrantes, em sua maioria italianos da região do Vêneto, mas com alguns integrantes alemães, franceses, espanhóis e polacos, cruzaram o mar e subiram a Serra, desbravando uma área ainda virgem. Depois de um início cheio de dificuldades e privações, esse povo conseguiu formar uma próspera cidade. Inicialmente, basearam a economia na exploração de produtos agropecuários, com destaque para a uva e o vinho, cujo sucesso se mede na rápida expansão do comércio e da indústria na primeira metade do século XX. Com isso, se expandiu a cultura nas localidades

mais afastadas da área. O escritor caxiense João Spadari Adami conta, no livro Histórias de Caxias do Sul, 18641970, que, em Flores da Cunha, por exemplo, um dos primeiros núcleos da povoação colonial, a Igreja Matriz, construída nos anos

Nos pequenos cemitérios do interior da região serrana do Rio Grande do Sul, fé e cultura também se eternizam

20, ostenta “o maior campanário de pedra do país”. 0 projeto foi feito pelo arquiteto Vitorino Zani, a pedido do Frei Capuchinho Eugênio de Garibaldi. Sua construção, com 11.122 pedras talhadas à mão, contou com a colaboração de toda a população e de pedreiros do então distrito de Nova Pádua. Nele estão instalados cinco

sinos, o maior com 1.200 quilos de bronze. Inicialmente, os cemitérios eram divididos em setores. Na medida em que progrediam economicamente, as famílias passaram a ostentar seu enriquecimento por meio da construção de jazigos familiares, cuja arquitetura reproduzia a forma de capelas. Neiva Vidor Bueno, 66 anos, dona de casa, tem em sua família o exemplo de quatro gerações que estão enterradas no distrito da 3ª Légua em Caxias do Sul. Moradora da comunidade há 28 anos, conta que os primeiros imigrantes, que chegaram em 1876 vindos do distrito de São Virgílio da 6ª Légua, trouxeram uma imagem de São Pedro ,e logo em seguida decidiram fazer uma igrejinha de madeira. Eram oito casais que

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começaram a dividir as terras que encontraram, deixando ali seus costumes e sua cultura. Quando as pessoas faleciam, tinha-se por hábito velar os corpos em casa e depois levá-los para o cemitério. “Ali ficaram os imigrantes que chegaram. Hoje, os filhos deles ‘estão se indo’ e a história não se perde”, conta Neiva. Ela ainda afirma que passa há muitos anos pela frente do local e nunca viu qualquer coisa assustadora. Todo cemitério que se preze tem o seu guardião, ou seja, a pessoa que faz os serviços de manutenção do lugar. Na localidade de São Pedro/ São Paulo da 3ª Légua, quem faz esse trabalho é Mario Boff, de 74 anos, aposentado. Ele nasceu no distrito e, com 8 anos, trabalhava como pedreiro na época da inauguração, em 1947. Boff construiu até a data da entrevista, 46 capelas no cemitério, e revela que para ser enterrado no cemitério precisava ser sócio e pagar uma taxa mensal. Hoje, existem 2.760 habitantes, e o associado paga R$ 130 por ano por gavetas que custam de R$ 700 até R$ 3 mil. Mas Boff não gosta de ser chamado de coveiro, porque a função dele é cuidar e realizar os pedidos dos pa-

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rentes das pessoas­ que ali estão. Já na vizinha cidade de Farroupilha, a 12 km de Caxias do Sul, a história de fé e devoção dos habitantes também é muito grande e se confunde com a dos imigrantes que chegaram na região, vindos em 1875. Hoje, a população da cidade, terceira maior da região, é estimada em 70 mil habitantes. Em Farroupilha, a fé e a religiosidade ficam em torno de Nossa Senhora de Caravaggio, que, segundo a tradição católica, apareceu na localidade do mesmo nome, na Itália, no ano 1432. A necessidade de orientação espiritual tornou-se viva entre as famílias, o que só veio a acontecer cerca de um ano depois. Tais sentimentos também acompanham a família de Geraldo Vieceli, 71 anos. O senhor de fala mansa conta que o cemitério foi fundado em 1878, juntamente com uma igrejinha de madeira que ficava em frente. O radialista relembra que os seus ancestrais tinham grande cuidado com o cemitério; todos os meses os familiares arrumavam o jazigo e colocavam flores para seus tataravós. “Eu ia com meus avós sempre colocar flores que minha nona colhia­ no quintal. A ideia era sempre dei-

xar o lugar limpo como minha bisavó gostava”, lembra Vieceli. Mas os rituais dos imigrantes eram bem diferentes daqueles que os tropeiros que desceram de Vacaria cultivavam. Os italianos nunca viram um padre celebrar uma missa fora da matriz e muito menos fazer um funeral dentro das casas. Na época, isso assustava. Mas, o propósito da construção do cemitério de Caravaggio era oferecer um túmulo naquele lugar de fé aos que trabalharam na edificação do santuário. Então, os colonizadores criaram uma espécie de associação dos moradores da localidade, a fim de determinar quem poderia ser enterrado por lá e zelar para que ninguém que viesse de outra parte de Farroupilha colocasse seu ente querido no cemitério. Para o agricultor Olivio Denardi, 70 anos, que hoje é presidente da Sociedade Cemitério de Caravaggio, o cemitério guarda a história de um passado com grandes vitórias e suor, por parte dos imigrantes que ali estão. A função dos casais que participam da associação é cuidar da manutenção como: aparar a grama, cuidar da água que fica acumulada nos potes e conservar as capelinhas. O importante é que, de alguma forma, as origens dos povos colonizadores que desbravaram esta região do Rio Grande do Sul, estão cuidadas e eternizadas por meio de edificações como essa, que cultivam histórias de um povo cheio de fé e de muita religiosidade.

Cemitérios do interior preservam tradições dos primeiros imigrantes italianos


TODO FIM TEVE UM COMEÇO O Brasil foi o sonho de muitos imigrantes europeus no final do século XIX e início do século XX. Enquanto em algumas regiões do país os imigrantes ocupariam espaços dos negros, que foram libertados da escravidão, em outras, como no Rio Grande do Sul, esses “aventureiros” seriam donos de suas próprias terras. Porém, é preciso um alerta: engana-se quem pensa que foram apenas os italianos que vieram em busca da “terra prometida”. Por volta do ano de 1891, com promessas de uma terra dos sonhos, imigrantes suecos também arriscaram-se em uma longa viagem para o outro lado do Oceano Atlântico. Os suecos que rumaram ao Rio Grande do Sul tinham boas condições financeiras, e a maioria também tinha estudo. A decepção desses imigrantes ao chegar em terras gaúchas fez com que apenas 40, das 90 famílias que partiram da Suécia, permanecessem na localidade próxima ao rio das Antas, onde hoje está o município de Nova Roma do Sul. As demais buscaram novos lugares, e as com melhores condições financeiras voltaram para seu país de origem. “Os imigrantes suecos foram iludidos

para virem ao Brasil. Exigiram que eles tivessem uma cultura acima da média se comparada a dos italianos. Ao chegar, eles ficaram decepcionados com o lugar que lhes fora reservado. “Disseram que seria nas margens de um rio, como eles eram acostumados na Suécia, mas foi em um lugar isolado de tudo e quente”, conta o professor e exsecretário de Educação e Cultura de Nova Roma do Sul, João Panoz­zo. A viagem também foi ingrata com eles. Nem todos resistiram ao longo período no navio. Alguns morreram no percurso. Como os imigrantes italianos, que haviam chegado na região de Nova Roma do Sul em meados de 1888, os suecos também tiveram que lidar com a perda, logo nos primeiros meses em terras brasileiras. Esse cenário fez surgir o Cemitério Protestante Sueco. No local, não existem túmulos com grande pompa, apenas pequenas cruzes de metal, para relembrar aqueles que morreram. Mesmo com religiões diferentes, suecos e italianos tinham rituais parecidos no momento de velar e enterrar os mortos. Isso mostra que, nesse caso, a tristeza e a saudade não tinham religião; eram apenas sentimentos difíceis de aceitar e a despedida era um ritual a ser cumprido. “As cruzes

e a organização do cemitério de suecos e italianos eram semelhantes. No início, eles faziam o enterro com taipas e pedras”, explica Panozzo. O isolamento dos demais imigrantes que habitavam a região reduziu ainda mais o número de famílias suecas que permaneceram às margens do rio das Antas. Em 1905, a maioria delas deixou para trás o sonho de viver no Brasil e, de acordo com Panozzo, cerca de cinco somente continuaram em Nova Roma do Sul. Há cerca de 12 anos, passados tantos anos da empreitada sueca pela Serra gaúcha, os moradores de Nova Roma do Sul passaram a valorizar o cemitério, única lembrança da passagem rápida desses imigrantes pela região. Conforme o ex-secretário do município, o resgate das raízes da sociedade local transformou o cemitério em ponto turístico da cidade. Em 2010, foi realizada uma celebração pelos 120 anos de imigração sueca, que resgatou a cultura e as celebrações do povo. A festividade reuniu pessoas de diversas cidades além de Nova Roma do Sul e culminou em um cortejo até o cemitério, com músicas suecas.


História enterrada, mas jamais esquecida Como não havia cemitérios comunitários, corpo de imigrante boêmio foi entrerrado no pátio da casa da família, em Nova Petrópolis

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Atração turística

Marli e o esposo, Jorge Boelter, têm uma pousada chamada Recanto dos Pioneiros, na localidade de Nove Colônias, em Nova Petrópolis. No pátio, um túmulo chama a atenção. Segundo Marli, alguns hóspedes se assustam com a sepultura no jardim e não se aproximam. Outros, rezam no local, e alguns se interessam pela história do antepassado da família. Marli conta que há algum tempo chamou um padre para fazer uma oração e benzer o túmulo. “A gente não sabe exatamente em que circunstâncias e como ele foi enterrado. Nunca é demais uma proteção”, afirma. Próxima ao túmulo, ainda está a casa construída pelos antepassados. Alguns quartos são utilizados para abrigar os hóspedes. Segundo a proprietária, os turistas gostam, pois é uma casa centenária e possui objetos rústicos.“Enquanto pudermos, vamos preservar o túmulo e a história que ele traz como legado”, afirma a descendente.

Foto: Jéssica Loesch

Uma pousada na localidade de Nove Colônias, interior de Nova Petrópolis, guarda no jardim os restos mortais de um dos primeiros imigrantes boê­mios que chegaram à cidade. O túmulo de Josef Hillebrand continua intacto e bem cuidado pela família, no pátio da casa do tataraneto Jorge com sobrenome Boelter. Conforme Marli Boelter, Hillebrand chegou a Nova Petrópolis, em 1874, com a esposa Bárbara e seis filhos. Vieram em busca de uma nova vida, atrás da promessa de terra boa e próspera para trabalhar. Quando chegaram, o que encontraram foi muito mato, sem moradia. O começo foi difícil. Enquanto construíam um galpão de madeira para morar, tinham pouso na casa de amigos de sobrenome Opitz, na localidade de Linha Imperial, distante aproximadamente 10 km da propriedade. A família tirava seu sustento no cultivo da terra. Alguns anos depois, um pouco mais estabilizados, Hillebrand e a família começaram a construir uma nova casa, no estilo enxaimel, técnica trazida da Boêmia, atual República Tcheca. Pouco antes de terminar a nova moradia da família, deitado numa tábua para descansar, Hillebrand, que estava com pneumonia, morreu. “Meu sogro conta que Josef tinha o sonho de vir para o Brasil, porque havia a esperança de

curar os seus problemas pulmonares aqui. A fórmula estaria na laranja, fruta que não tem na região onde morava”, explica Marli. Hillebrand faleceu no ano de 1883, aos 54 anos. Na época, não havia cemitérios comunitários na região, por isso, ele foi enterrado no pátio de sua casa. “Meu sogro conta que quem realizou o enterro foi o filho mais velho. Possivelmente, ele não foi enterrado direto na terra, mas colocado numa caixa feita com madeira”, lembra Marli. Bárbara e os filhos terminaram a casa, onde foram morar. Ela ainda está preservada na propriedade em Túmulo fica no pátio de uma casa em Nove Colônias Nove Colônias. De acordo com Marli, diferentemente de Josef, Bárbara e os fil­hos cemitérios de famílias, que não foforam enterrados em cemitérios, ram cuidados e preservados, enque surgiram a partir do aumento contram-se escondidos em matos da população. “Muitos túmulos dos fechados e locais que nem fazemos primeiros imigrantes, e até mesmo ideia”, relembra.


ZELADOR DA ETERNIDADE Eles circulam entre os vivos, mas trabalham com os mortos. Com uma profissão quase extinta pelo mercantilismo das agências funerárias, os que resistem se orgulham de seu trabalho Foto: Jornal O Florense

O local é o mesmo há 109 anos. A história conta que o terreno doado pelo casal Giuseppe Zanardo e Ancila Borghetti custava $ 20.000 réis na época (R$15 mil reais atualmente). Em 1933, foi incorporado ao terreno de José Kerber e Francisco Stawinski. Desse período em diante, os 8.603 m² se encheram de histórias e nomes importantes para o município de São Marcos. As capelas mortuárias do Cemitério Municipal Nossa Senhora do Carmo já contaram com duas administrações dentro desse século de história. Primeirante, pertenceram à família Borghetti, doadora do terreno, depois disso passaram por um processo licitatório e foram adquiridas pelo Grupo L. Formolo. O cemitério municipal é o principal sepultário do município. Lá trabalha Juarez Siota, 53 anos. Ele cuida dos 512 jazigos e 1.118 gavetas e guarda as chaves dos portões. Há três anos, o silêncio é a companhia diária do coveiro de semblante tranquilo, fala mansa e grande comunicabilidade. Desenvoltura, que não parece pertencer ao homem que praticamente não troca palavras, ou quase isso, já que duas vezes por semana divide o ambiente com a colega Marlene Silva. Ela é contratada pela igreja para limpar e conservar a capela onde são rezadas as missas que antecedem o sepultamento dos mortos. Siota até já perdeu a conta de quantos túmulos fechou e quantas histórias de vida ficaram

guardadas dentro de um caixão. Mesmo testemunhan­do o sentimento de perda e tristeza das pessoas, ele não vê seu trabalho como diferente dos demais. “É uma profissão igual a qualquer outra. No meu caso, é como ser um pedreiro normal, só que, ao invés de fazer morada para os vivos, eternizo a morada dos mortos.” Por 27 anos, dividiu o ofício com o irmão Joãosinho, de forma esporádica. Seu trabalho oficial já era mexer com a terra, mas de modo bem diferente. A terraplanagem era sua profissão. Após aposentar-se, Jua­rez trocou escavadeiras e tratores por uma pá, carrinho de mão e outros instrumentos manuais.­ Ao longo desses anos, já passou por diversas situações, das mais inusitadas às mais desconfortáveis, como ele mesmo conta. Os olhos marejam quando fala no enterro de Jocemar (seu irmão mais velho), momento no qual não conseguiu acompanhar Joãosinho, o outro irmão e colega. “Por mais que a gente saiba que a morte é o destino de todos, é difícil fazer isso quando é alguém da família.” O acontecimento que mais lhe causou estranheza na profissão foi quando dois irmãos procuraram seus serviços para o sepultamento da mãe. Nenhum deles conseguia entrar no cemitério

para falar com ele por medo de ficar no ambiente. Juarez diz continuar nesse trabalho por uma obrigação moral. Joãosinho, o irmão hoje aposentado, trabalhou 24 anos em prol da comunidade. “Quero fazer o mesmo, pois sei quanto as pessoas zelam por seus entes queridos.” Ele também sabe que as famílias querem alguém conhecido para cuidar dos túmulos e dos restos mortais. Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, cemitério é uma terapia e traz bons fluidos. “Eu gosto do ambiente, mesmo sendo o lugar da morte. É um bom lugar para refletir sobre a vida”, comenta o coveiro.

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Há vida ap O culto à morte é uma das tradições mais antigas da história humana. Os egípcios mumificavam seus faraós, a fim de preservar os corpos após a passagem terrestre. Eles acreditavam que a alma poderia retornar à vida e incorporar a mesma carne preservada. Na Grécia antiga, mesmo caracterizada pela glorificação aos feitos do homem ainda em vida, também há marcos históricos sobre cerimônias ligadas à morte de seus guerreiros. Junto aos corpos desses homens eram colocados seus pertences como roupas e artilharias; até mesmo seus animais e familiares eram sacrificados e sepultados no mesmo túmulo. Para eles, nessa nova vida pós-morte, a alma deveria conviver com tudo aquilo que lhe pertenceu na terra. Os cerimoniais e cultos à morte são reverenciados e manifestados de acordo com a compreensão e cultura de cada sociedade. Para o antropólogo Rafael dos Santos, professor na universidade de Caxias do Sul, a morte é a presença daquilo que está ausente, uma dimensão desconhecida ou aquilo que não é dito. Segundo Santos, apesar da diversidade cultural, há alguns aspectos comuns entre os homens e seus diferentes rituais.“A ancestralidade como objeto de culto é algo observado em várias sociedades, e também o próprio medo ou dú-

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vida de saber para onde vamos é uma possível resposta para esse respeito que se tem pela morte.” De acordo com o antrópólogo, no Brasil, além da cultura cristã, que contempla as cerimônias mais tradicionais, como os velórios, há outros tipos de rituais­ pós-morte. Na Região Nordeste

do Brasil, com destaque para o estado da Bahia, é muito comum o culto aos Eguns. “Esses cultos se realizam nos templos de candomblé. Numa comparação com os cristãos, essas divindades podem ser consideradas santas, e nesses rituais, somente é evocadoos espíritos dos pais-de-santo.


pós a morte Manipulação eletrônica Franciele Rosandra Soares

O espírito de pessoas comuns são evitados, pois pode carregar energias negativas e trazer problemas aos vivos”, relata. Mas a diversidade cultural brasileira é muito vasta, e o antropólogo ainda cita outros rituais e manifestações ligados à cultura da morte: “Os indígenas possuem

rituais bastante diferenciados de outras culturas. Os índios Cuicuros, do Mato Grosso, fazem uma espécie de culto anual­à morte. Nessa cerimônia, eles pintam troncos de árvores, chamados de Kuarups, que representam o espírito dos que partiram. Esse ritual simboliza a despedida dos mortos

e o encerramento do perío­do de luto.” Os wajãpis, hoje cerca de 650 índios, no estado do Amapá, considerados patrimônio da humanidade pela Unesco, costumam tes, ingerir as cinzas de seus en­ após a cremação do corpo. “Assim, eles acreditam que o espírito será eternizado”, explica Santos. Mesmo nas culturas mais civilizadas, há algumas variações no entendimento da vida após a morte. Os espíritas, em sua maioria baseados na literatura de Alan Kardech, acreditam que o ser que partiu é dotado de luz e pode manter contato com os vivos por meio de visões e de psicografias. Entre os cristãos, o mais comum é o ritual do luto. As vestes pretas e o tempo de respeito ao falecido simbolizam um período de passagem e despedida daquele que está iniciando uma “nova vida”, renascendo em Deus. Contrariando todas essas crenças, os materialistas negam a existência da alma ou vida após a morte. Para eles, o corpo simplesmente se decompõe. Essa crença é baseada em argumentos científicos. A ciência, por sua vez, busca constantemente o entendimento e o avanço em relação ao tema. Porém, segundo o antropólogo, existem alguns estereótipos referenciados na ficção, que não representam a realidade. “O que se vê é que os cientistas estão em busca de melhores condições para a sobrevivência humana. Um avanço na genética, que permita recriar um órgão por exemplo, consequentemente aumentaria a expectativa de vida, mas isso não significa o controle da humanidade”, lembra Santos.

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Dos avisos no campanário... Foto: Matheus Guaresi

Desde sua construção, em 1949, o campanário de Flores da Cunha é utilizado como meio de comunicação. Conforme o pároco Valdivino Salvador, 61 anos, os avisos fúnebres, lidos por ele no alto-falante da torre da igreja, são tradição na cidade. Padre Valdivino relata que os familiares de pessoas falecidas buscam a igreja deixando os dados do finado, local do velório e horário da encomendação do corpo. “Colocamos uma

“Colocamos uma música calma e então anunciamos o falecimento” música calma e então anunciamos o falecimento. Ao anunciar, percebemos a reação do povo, muitos que estão nas lojas vão à porta para ouvir: moradores abrem a janela de sua casa e prestam atenção. É a comunicação mais eficiente na cidade”, garante o pároco. De acordo com o padre, os anúncios fúnebres obedecem aos horários comerciais. São lidos sempre após as 9h, e à tarde das 14h às 19h. “O serviço é gratuito a toda a população, tanto católicos quanto de outras religiões”, afirma o pároco Valdivino Salvador.

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Fotos: arquivo pessoal

... à cremação online O grupo Formolo, de Caxias do Sul, oferece aos clientes, desde maio de 2012, a possibilidade de assistir a cremação de seu familiar de maneira online. “É uma segurança para os familiares que, muitas vezes, questionavam de que forma a cremação ocorria. Muitos imaginavam que tirávamos as roupas e o caixão antes do processo de cremação”, justifica o assessor da direção do Grupo, Mateus Formolo. No sistema de cremação online, os familiares são colocados em uma sala ao lado do local onde se realiza a incineração do corpo, e podem assistir o procedimento por um monitor. “Esse sistema é muito comum na Europa onde, em alguns lugares é lei. Aqui na Serra gaúcha, somos os únicos a oferecer esse serviço”, declara o assessor. Formolo relata que o primeiro processo crematório no Rio Grande do Sul foi realizado há 15

anos. Conforme ele, o Grupo oferece esse serviço desde outubro de 2006. O método ainda é pouco procurado pelos familiares, que preferem o processo tradicional: enterrar o corpo do familiar morto. “No Rio Grande do Sul, apenas 5% dos mortos são cremados. No Brasil, esse número cai para 2%”, afirma Formolo. CREMAÇÃO É um processo que, por meio da autocombustão, transforma um corpo em restos cremados. A cremação apresenta-se como uma tendência, e uma solução para o problema da lotação e falta de segurança nos cemitérios tradicionais. Além disso, isenta de custos futuros, como anuidades ou manutenção cemiterial. A cremação é a melhor opção para quem quer fazer da despedida uma boa recordação.

O destino final das cinzas é uma decisão da família. Podem ser espargidas no Jardim em Memória ou guardadas nos lóculos cinerários, ambos no Crematório São José de Caxias do Sul. A família pode também retirar os restos cremados e dar a destinação que melhor julgar. Atualmente,a cremação é o processo que oferece o menor risco ao meio ambiente. Por ser o primeiro crematório licenciado seguindo as determinações do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) o Memorial Crematório São José de Caxias do Sul possui toda a infraestrutura necessária para realizar o processo de cremação sem dano algum ao meio ambiente.

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Fotos: Grasiela dos Reis

Minutos que paralisam Som de sinos... “Capelas e funerárias informam: falecimento.”

Nesse momento, a família audiência. silencia na mesa de almoço. FitamSegundo a estudante de jor-se com apreensão, e o silêncio nalismo Lilian Donadelli, 25 anos, a reina no ambiente. Ninguém pode rádio sempre manteve a transmisfalar. Todos esperam, ansiosasão das missas dominicais e dedimente, o nome de quem faleceu, catórias de músicas, como forma a ser anunciado pelo radialista. de homenagem nos aniversários, Famílias das cidades intenoivados, casamentos e nas notas rioranas possuem o costume de de falecimento. Tudo pago. “Isso ligar o rádio no deu sustentabilidahorário do almode para manter a “As notas de ço e durante o rádio num período dia para ouvir as falecimento ganham em que quase não principais notíimportante destaque havia divulgação cias, dentre elas, de propaganda”, na programação os obituários. Em conta. Garibaldi, esse Lilian explidas emissoras” costume se preca que depois das serva, transmitinotas de falecido por avós e bisavós. Nessa e em mento, de acordo com a preferênoutras cidades do interior, o rádio cia da família, são feitas mensaé grande aliado da informação. gens de sétimo dia, Antes da inauguração da um mês, um ano, e Rádio Garibaldi AM, em fevereiro convites para missa, de 1956, os falecimentos eram que incluem texto comunicados por alto-falantes. e trilha. Essas menQuando uma pessoa morria, por sagens e notas são exemplo, muitos moradores nem repetidas durante a ficavam sabendo. Hoje em dia, programação, conas notas de falecimento ganham forme o desejo e o importante destaque na prograorçamento escolhi­ mação das emissoras, e grande do.­ É importante observar que, normalmente, as fotos e

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os textos usados nas mensagens acabam sendo fixados nos túmulos dos falecidos no cemitério. Essa tradição passa por diversas gerações, consolidando costumes. Para a manicure Araci Dietz­ mann, 49, é praticamente sagrado ligar o rádio ao meio dia em sua casa. “Começo a fazer o almoço sempre escutando as notícias. É importante manter-se atua­lizada. A gente nem sempre fica sabendo quando alguém morre”, conclui ela. Araci observa, ainda, a importância das notas de falecimento, principalmente para ela que conhece e convive com várias pessoas da cidade.

O rádio é o grande aliado da informação no interior


Lendas de cemitérios da Serra Gaúcha quem mantiver viva sua memória, ou apenas não permitir que seu nome caia no profundo esquecimento. Outras assombram seus entes, de verdade ou na imaginação. Alguns desses túmulos são especialmente lembrados. Em qualquer semana do ano, é possível ver flores, doces e presentes decorando-os.

Fotos: Paulo Pasa

Santas pagãs, curandeiras, milagres e aparições misteriosas. Histórias de cemitério são cercadas por contos com fins trágicos, realizações sem explicação e, às vezes, desfechos humorísticos. Alguns morreram em condições de vida adversas e, após enterrados, muitos acreditam que eles não encontraram o descanso eterno e, supostamente, pagariam suas dívidas de vida, com bondade à


A menina milagrosa

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Reoprodução

Anita Saul (a Ciganinha) – 20/11/1950 – 11/04/1958 - Por muitos anos totalmente esquecido na Quadra 9, aos fundos do Cemitério Público Municipal de Caxias do Sul, o túmulo da menina milagreira recebeu da prefeitura uma revitalização, em 2007. Nesse ano, tentaram profanar o túmulo e a foto foi roubada da lápide. Instalado em meio a um gramado, com um corredor balizado por correntes, árvores com poda cuidadosa e visual arejado, o local, com vista para a Zona Leste da cidade, tem um único túmulo: o da jovem Anita. Uma idosa de corpo curvado, vestido longo e cinzento, visita o túmulo da pequena quase todas as semanas. Com uma sacola plástica de mercado e um pequeno buquê de flores, Glorinha Rosa de Oxum (diz ter mudado o nome, mas não conta o antigo), substitui as flores secas da pequena cripta e repõe balas sortidas. Ela repete esse ritual há 55 anos, desde que, por uma coincidência, conheceu o túmulo da Ciganinha e, segundo ela, a própria menina. “Foi quando era lá mais pro fundo. Eu tinha 17, quase 18 anos e tava arrumando o túmulo do pai, quando sobrou umas florzinha e ponhei no “Nunca mais vi a dessa pequena. Foi aí que ouvi uma menina me agradecer.” Ciganinha, mas sei Glorinha relata que a menina era Anita, e conta que que trazer agrados logo ela desapareceu, mas a presenteou com poderes de clarividência. A cartomante de 74 anos não se deixa foa ela me faz mais tografar. Ela conta que, em sua última foto, nos anos 80, forte” quase morreu pela energia que lhe foi sugada. “Nunca mais vi a Ciganinha, mas sei que trazer agrados a ela me faz mais forte. Eu já curei gente na benzedura e leio as cartas conforme o tempo me ensinou. Eu não faço milagre. Nunca atribuí curandisse nenhuma à minha pessoa, mas a essa menininha que me fez o bem.” A cartomante diz que não é só ela quem ganha esses bens e que mais gente se encarrega dos cuidados do túmulo. Sobre a menina, poucos sabem falar. O arquivo histórico não possui os registros de seu óbito, e os zeladores do cemitério apenas se encarregam da preservação do túmulo, desprovidos de qualquer apelo sentimental ou credo em Anita Saul.


Os fantasmas dos sacos de ração Fotos: Paulo Pasa

Os zeladores do Cemitério Municipal de Flores da Cunha desvendaram uma história de fantasmas. Há cerca de 15 anos, eles não lembram a data dos “fenômenos”, mas acham que foi no mês de abril Populares começaram a relatar que, no fim da tarde, fantasmas corriam entre os corredores de túmulos, aos gritos e risadas. O zelador Claudemir Santo de Godoy, 52 anos, e o pedreiro Valmor Henrique Guarese, 54 anos, começaram a ser cobrados quanto à segurança dos visitantes. Circulando entre o ceticismo e o medo profundo de estarem em um local assombrado, Guarese passou a não ficar até tarde no cemitério, enquanto que Godoy precisava por obrigação permanecer em tempo integral lá. Contatando o antigo zelador, o homem, de revólver em punho, se predispôs a passar algumas tardes e até noites pelo cemitério, na caça da assombração. “Passou duas semanas até que num dos fim de tarde que o “Gringo” (nome do antigo zelador preservado) veio calçado (armado), ouvi dois tiro pro alto. Na fila, perto do portão de cima, estavam deitado no chão, Godoy e Guarese são há 15 anos zelador e predreiro do cemitério de Flores da Cunha virado numa choradeira, dois piá coberto com uns saco de ração de cavalo. Tava pego os fantasma,” é bem tranquilo. Comenta aos ri- 70. Ao abrir o túmulo 16 anos relata Godoy, aos risos. Os tiros sos que foi cobrador de ônibus nos atrás, para sepultar a avó da criantinham sido pro alto e os meninos primeiros anos como trabalhador, ça e depositar os restos mortais mas que no cemitério é melhor da pequena em uma caixa de osassustados deitaram com medo. de trabalhar; os sos, encontraram o caixão aberto. Moradores mortos incomo- “Foi terrível de ver. Não só para a de casas próxi“Foi terrível de ver. dam menos que família da menininha, mas pra mim mas, os garoos vivos, diz ele. também que tenho filhos. Toda ostos encontraram Não só para a família O pedreiro sada estava enrolada em um pecomo diversão, da menininha, mas Guarese relembra queno embrulho de roupas no fundepois das aulas, pra mim também que com pesar um dos do do túmulo. Ela tinha acordado, cobrirem-se ao primeiros traba- e se recolhido para o fundo,” conta tenho filhos” estilo fantasmas lhos realizados no Guarese, com olhos cobertos de e arrancarem gricemitério. Ele fala lágrimas ao relembrar o momento. tos dos visitantes do cemitério. Passado o período de sus- sobre uma menina de sete anos, tos, Godoy conta que o trabalho que teria sido sepultada nos anos

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Expressão artística nos cemitérios é cada vez menos comum, e muitas imagens que adornam os túmulos estão depredadas

Uma forma de expressar a dor, a saudade ou até mesmo homenagear. É como pedir à arte para substituir a realidade de sofrimento causada pela morte. O costume de ornar os túmulos é tão antigo quanto a própria expressão artística. Ainda na pré-história, por volta de 50 mil anos antes de Cristo, os mortos já eram enterrados com estátuas de cerâmica, numa tentativa de garantir sobrevivência na terra que se conquistaria com os deuses. “Esses símbolos representam as características afetivas do falecido, do familiar ou da sociedade. Ela contribui para reconstruir a memória pública do local. “A arte tumular representa uma distinção social, uma vez que a morte igualitária é apenas um discurso. Significa deixar registrado, na hora da morte, seu reconhecimento social enquanto ser vivo, seja por benfeitorias, religiosidade, política, popularidade ou até mesmo por ostentação. Era um modo de distinguir-se”, explica a pesquisadora em turismo Charlene Del Puerto, que realiza estudos sobre como as pessoas vêem os cemitérios.

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Fotos: Paulo Pasa

Arte esquecida pelo tempo


Mesmo sendo um rico patrimônio artístico, que desperta interpretações e reflexões, a arte tumular se torna cada vez menos comum, em relação a décadas passadas. “Os motivos são diversos. Um deles é a produção, já que a profissão de marmorista artesão é cada vez mais rara. Outro fato é o custo. Além disso, a manutenção dos materiais utilizados na arte tumular requer cuidados especiais, o que demanda tempo, dinheiro e conhecimento técnico”, afirma Charlene. Essa arte teve seu auge no Brasil no fim do século XIX e início do XX, aproximadamente entre os anos de 1890 e 1930. Além de a produção ser limitada, a arte tumular, na maioria dos cemitérios, está depredada pela falta de cuidados. A pesquisadora em turismo explica que a preo­cupação de cuidar do túmulo vai somente até a 3ª geração da família. “Boa parte da nossa geração não sabe onde se encontram os túmulos dos bisavós. Isso acontece, pois não foi estabelecido vínculo com eles. Esse é um dos motivos pelos quais os túmulos do século XIX estão descaracterizados e em abandono”, destaca Charlene. Outro fator é o custo para a manutenção das lápides. Os materiais mais utilizados na arte tumular hoje são o mármore, o granito e os vitrais.


Dentro de roteiros turísticos Para muitos, pode parecer estranho, mas o cemitério é um local com fortes atrativos turísticos. As estruturas e alegorias, os túmulos de personalidades e a arquitetura tumular são itens que motivam uma visita a esses locais. A pesquisadora em turismo Charlene Del Puerto realiza estudos sobre como as pessoas veem os cemitérios. “Cada um percebe estes locais com visões distintas. Porém, é comum perceber que a maioria das pessoas nota, como pontos negativos para uma visitação, o descaso, a sujeira e a depredação nos túmulos”, explica. O Père Lachaise, na França, é o cemitério mais famoso do

Cemitério Père Lachaise, em Paris, recebe cerca de dois milhões de turistas a cada ano

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mundo. Antes de ser construído, em 1804, o local era um bosque, e essas características ainda podem ser observadas em seu entorno. Figuras importantes estão enterradas ali, como Frédéric Chopin, Marcel Proust e Oscar Wild. É um cemitério rico em arquitetura tumular e arte dos estilos gótico e expressionista. O cemitério recebe cerca de dois milhões de visitantes por ano. Na Argentina, destaca-se o cemitério da Recoleta. Os jardins ao seu redor correspondem a uma área de lazer muito popular entre os habitantes de Buenos Aires. Um dos túmulos mais visitados é o da família Duarte, onde foi

sepultada Evita Perón, a ex-primeira-dama. Mais de 70 mausoléus do cemitério da Recoleta foram tombados como monumento histórico nacional da Argentina. No Brasil, também pode-se encontrar bons exemplos de arte tumular em cemitérios de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e no Rio Grande do Sul. O Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) aborda os cemitérios como patrimônios culturais e históricos. Por isso, rea­ liza tombamentos de conjuntos funerários desde 1930.

O roteiro turístico de Buenos Aires conta com o Cemitério da Recoleta


O adeus ao amigo de quatro patas

Apesar do crescente número de pessoas que optam por ter animais de estimação, muitas não pensam no que fazer quando seu melhor amigo morrer. Muitas pessoas­ moram em apartamentos, e não têm onde enterrar e dar um último lar para seu companheiro de anos. Por isso, o veterinário Álvaro Cezar de Abreu idealizou, em 1999, o Cemitério Parque e Crematório Saúde Animal, em Nova Petrópolis (RS). Nele, os pais de filhos com quatro patas têm a oportunidade de prestar suas últimas homenagens a esses amigos queridos e, ainda, visitá-los quando a saudade bater. Segundo o veterinário e diretor-técnico, o local disponibiliza

Fotos: Sílvia Protas

Muitas pessoas decidem não ter filhos. Outras não conseguem fazer amigos. Algumas simplesmente são apaixonadas por animais. Mas o que fazer quando eles morrem?

capela onde o animal pode ser velado, e receber as despedidas das pessoas com quem conviveu. Abreu conta, ainda, que muitas pessoas­ que têm seus animais queridos enterrados no cemitério vão, periodicamente, rezar e conversar para amenizar a saudade e preservar a lembrança do seu bicho de estimação. Abreu ressalta que teve a ideia de criar o cemitério ao receber vários clientes que não sabiam o que fazer com o corpo de seu animal depois de morto, e ao mesmo tempo gostariam de saber onde estaria quando quisessem visitá-lo. “Atualmente, os bichos de estimação não são tratados como bichos, e, sim, como filhos, parte da família. Então, a vontade de fazer uma homenagem e ter um local para relembrar e orar pelo seu amigo se faz presente”, conta o veterinário. Além desse fato, Abreu explica que muitas pessoas moram em apartamentos e nem por isso deixam de ter animais de estimação. Assim, acabam não tendo onde enterrar o companheiro, optando pelo cemitério. Francilene Pedrassani – do­­­na­ da gata Mel – conta que no momento em que decidiu adotar a felina não pensou no que faria quando ela viesse a faltar. “Adotei a Mel para fazer companhia para minha filha Luíza, de cinco anos. Só agora

que ela está envelhecendo foi que me questionei sobre o que fazer com os restos mortais dela quando vier a faltar, e o cemitério de animais é uma ótima alternativa”, comenta Francilene. Ela afirma que já se informou sobre o cemitério e, quando o pior acontecer com a sua companheira, ela irá enterrá-la no cemitério, que considera um lugar lindo que inspira paz. Suely Bomfim é uma das pessoas que optou por enterrar a filha-felina, Myucha, no cemitério. Para ela, os animais de estimação são como filhos. A única diferença é que eles não falam sua língua. “Sempre considerei meus animais, filhos. Amo eles como amo meu filho biológico”, explica Suely. Atualmente, ela tem oito cachorros, todos tratados com todo luxo possível. “Não deixo de fazer nada para eles, e todos ganham as mesmas regalias. Nenhum tem preferência. Todos são tratados com o mesmo amor e atenção”, conta a apaixonada por animais. Para quem se interessar por conhecer ou enterrar algum amigo de quatro patas no Cemitério Parque e Crematório Saúde Animal, os valores variam de R$ 130 para sepultamento e R$ 760 para cremação. O cemitério fica localizado na Estrada do Chapadão, entre Nova Petrópolis e Gramado.

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Levantamento realizado por nossa reportagem apurou que os valores de uma cerimônia fúnebre podem variar de R$ 200 a (bem) mais de R$ 32 mil, dependendo das escolhas dos familiares e de sua conta bancária

Fotos: Paulo Pasa

Prepare seu bolso antes de morrer


Não importa idade ou meio social, uma hora a morte chega. Mas, afinal de contas, no acerto final, quanto custa morrer? De acordo com dados levantados pela nossa reportagem, em Caxias do Sul (RS) os valores variam de R$ 200 a mais de R$ 32 mil. Caso a família opte pela cremação, será necessário acrescentar ao valor mais uma quantia, que oscila de R$ 2.740 a R$ 7.980. De acordo com o gerente do Memorial São José, Luiz Fernando Pezzi, no grupo Formolo a média de gastos gira em torno de R$ 2 mil a R$ 5 mil. Porém, há quem já tenha pago, na empresa, por exemplo, mais de R$ 25 mil, somente pelo caixão. “Alguns olham os preços, outros não. Apesar do valor, a maioria sempre busca prestar uma homenagem na despedida. Famílias de maior poder aquisitivo gastam em média R$ 10 mil a R$ 12 mil. Porém, é importante lembrar que os valores mudam bastante, de acordo com o que a família escolhe. Já tivemos pessoas que investiram mais de R$ 25 mil apenas na urna, mas isso não é todo dia”, explica o gerente. “Além disso, o índice de cremação aumentou bastante nos últimos anos. Hoje em dia, cerca de 30 a 40% dos nossos clientes optam pela cremação”, acrescenta Pezzi. Os anúncios fúnebres, malmente, também estão na nor­ lista de gastos. Um comunicado no principal jornal da cidade varia de R$ 657 a R$ 13.738 (capa do veículo publicado no final de semana). Já, avisos em emissoras de rádio custam de R$ 90 a R$ 150. PODER EXECUTIVO OFERECE APOIO Os preços assustam realmente. Justamente por isso, o município de Caxias do Sul oferece, desde 1990, benefício gratuito a famílias carentes residen-

tes há, pelo menos, dois anos na cidade. De acordo com a educadora social da Fundação de Assistência Social (FAS), Fabiana Rockenback, para receber o auxílio funeral é necessário ter renda per capita igual ou inferior a meio salário-mínimo. “Estão incluídos no benefício a preparação do corpo, uma urna simples, o translado até o local do velório e até o cemitério, dentro dos limites do município”, explica Fabiana. Ainda segundo ela, cabe à família providenciar a roupa, o espaço para o velório e o local

do enterro. Caso não possua um túmulo, é necessário um contato diretamente com a direção do Cemitério Público Municipal para a solicitação. Como ali não há mais espaços para venda, a família deverá alugar uma sepultura, pelo prazo máximo de cinco anos. Os valores variam de R$ 24,93 a R$ 74,79, por três anos de uso. Para as famílias que optarem pela cremação, Caxias do Sul oferece o procedimento de forma gratuita, desde 2013. Atual­mente, a FAS concede, em média, 20 auxílios por mês.

Algumas empresas de planos de saúde de Caxias do Sul oferecem, também, como opção, o auxílio-funeral. A maior companhia da cidade a, Unimed, assegura a prestação do serviço de assistência e pagamento ou reembolso de despesas relativas ao funeral do usuário titular ou dependente, de acordo com as condições de cada contrato. Ao dependente legal de beneficiário inscrito no convênio há mais de 730 dias, e que não tenha cometido suicídio, caberá um valor de R$ 3 mil para despesas funerárias.

Para receber auxílio púbico, é necessário ter renda igual ou inferior a meio salário mínimo

ANOTE Cemitério Público Municipal (54) 3901.1290 FAS (54) 3220.8700

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A dor de perder alguém

É muito doloroso quando pessoas que amamos deixam de andar ao nosso lado. Por vários motivos, familiares e amigos nos abandonam no meio do caminho e essa separação quase nunca é fácil. Quando se trata da morte, isso passa de escolha a imposição, uma espécie de peça que a vida nos prega, para testar até onde aguentamos sofrer.

O luto é um processo natural e necessário aos seres humanos. Embora dependa muito da pessoa afetada, ele normalmente vem acompanhado de uma enxurrada de sentimentos, como choque, desorientação temporária, angústia, tensão e hipervigilância, agitação e inquietude, medo, falta de concentração e memória, protesto, revolta e intolerância. O corpo também recebe esses reflexos, que se manifestam com a baixa imunológica, distúrbios de sono e apetite, boca seca, hipersensibilidade ao barulho, queda de cabelo e dores musculares. A psicóloga especializada em luto e perdas Ana Reis salienta que essa carga emocional tem tempo de duração variável. “Depende muito da história de vida de cada um, da história do relacionamento, do tipo de vínculo, da circunstância da morte”, explica. Segundo ela, o luto se dá como forma de viabilizar a adaptação do indivíduo a uma nova realidade, marcada pela ausência da pessoa amada. É comum, nessa fase, a sensação que costumamos chamar de “ficar sem chão”, já que há a impressão de falta de controle sobre a vida, o que dá espaço para incertezas e insegurança. A pior dor é a que cada um sente

A perda de filhos ou a morte de crianças, mortes em circunstâncias violentas, trágicas e testemunhadas pelo enlutado, casos em que não foi possível socorro, circunstâncias de suicídio, grandes tragédias como desastres aé-

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reos e outras envolvendo comunidades inteiras são, normalmente, os mais difíceis de enfrentar. Essas situações carregam o que Ana chama de maior número de complicadores. São inesperadas e por isso geram revolta e choque. Independentemente da circunstância, porém, é preciso considerar que não é possível comparar dores emocionais. “Diante de uma adversidade, a pior dor é aquela que você sente, uma vez que ninguém pode alcançar essa experiência absolutamente íntima em você”, lembra a psicóloga. Enfrentar é a saída De acordo com Ana, a assimilação dos fatos e o enfrentamento do processo de luto ocorrem na medida em que o indivíduo toma consciência de seus sintomas e das mudanças a que foi exposto. Começa, então, uma oscilação entre a dor e a retomada da vida normal. A psicóloga salienta que uma das maiores dificuldades está no desgaste que o ser humano sofre ao encarar intensas e desconfortáveis variações de humor. Com medo de sucumbir à dor, é comum o uso de medicamentos ou o mergulho no trabalho, na tentativa de reprimir ou sublimar os sintomas e buscar distrações que ajudem a administrá-los.­ Ana acredita que as palavras superar e aceitar não auxiliam no processo. “Não é possível negar a realidade, o processo implica passar por dentro, sentir, compreender e administrar aquilo que naturalmente será de cada


Conselhos para enfrentar a dor Ainda que não seja possível criar um manual de como superar a dor da morte, a psicóloga Ana Reis dá algumas sugestões que podem auxiliar o enlutado na busca pelo melhor caminho para enfrentar sua dor. – Dê palavras à dor: falar ventila, alivia e descongestiona. Procure alguém de sua confiança para conversar, alguém que saiba escutar, que não fique com pressa em lhe oferecer conselhos, que ouça sem julgá-lo ou assustar-se com o que você diz. – Seja tolerante consigo. Crie momentos reservados para entrar em contato com a dor, não tenha medo das lembranças e revisões, elas vêm à sua mente, justamente para que a carga emocional possa ser diluída. – Trabalhe a dor: pensamentos, lembranças e sensações são saudáveis, não devem ficar confinados. O tempo não ajuda sem que façamos nossa parte. - Não busque consolar-se facilmente; isso não existe. A dor é a dor. Na verdade, não é ela que diminui com o tempo, é o ser humano que aprende com ela, que desenvolve novas habilidades e compreende a vida de modo mais realista, renovando valores e desenvolvendo novas maneiras de amar e de reassegurar-se, fazendo mais do que sobreviver, reinvestindo na vida. – Não tenha medo da dor. Ela é, na verdade, o custo do compromisso humano de amar. Ela é o seu amor investido e o amor recebido. Saiba que talvez não seja possível ser feliz como antes, mas é possível ser feliz novamente, ainda que de outro modo.

“A dor é suportável quando conseguimos acreditar que ela terá um fim e não quando fingimos que ela não existe” (Allá Bozarth-Campbell)

– Selecione as lembranças que quer manter. Elas nutrirão de vitalidade e amor sua vida, sustentando sua história e quem você é em verdade. – Busque momentos de conforto e leveza. Sempre que puder, faça valer a pena todo o amor que lhe foi investido e que você pode oferecer. – Se puder, ouça: o mundo precisa de pessoas que saibam verdadeiramente escutar. Existem muitos de nós vivendo dores solitárias ou não reconhecidas. Quem já viveu uma experiência de luto descobre com rapidez que a sabedoria nasce da sensibilidade e da sinceridade.

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Fotos: Paulo Pasa

psiquismo”, salienta. Sendo o luto um processo cognitivo, mas essencialmente emocional, não há uma receita de enfrentamento previamente estabelecida. “É um fenômeno singular, afetará o núcleo familiar, as crenças religiosas, o convívio social, a produtividade, o biológico e o neurológico”, comenta. Ainda que o enfrentamento das perdas seja um processo bastante pessoal e que nem todos necessitem de suporte psicológico, Ana aconselha buscar informações e auxílio sempre que necessário. Para ela, o luto não é doença, mas um convite à resiliência, evolução e sustentação do amor independentemente de espaço, distância ou tempo. “Não creia que a dor tenha que acontecer para que exista crescimento, mas creia que diante da realidade podemos transformá-la”, encoraja.­


Fotos: Evan Schneider/UN

Lembrar para que ninguém mais desapareça Milhares de pares de sapatos foram deixados pelos prisioneiros mortos no campo de concentração de Auschwitz

“Com este verbo repetido – lembrar, lembrar, lembrar –, Steven Spielberg respondeu à pergunta sobre por que havia filmado A Lista de Schindler. Spielberg, então, se dizia preocupado com o ressurgimento do nazismo e com as crescentes afirmações de que os crimes cometidos por Hitler não seriam, afinal, tão bárbaros assim.” É dessa forma que Suzana Keniger Lisbôa, explica por que falar sobre os anos posteriores ao Golpe Militar de 64 no livro A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Assim como o holocausto na Europa, o período conhecido como anos de chumbo no Brasil, deixou sequelas no seio de muitas famílias. O site Desaparecidos Políticos lista 379 pessoas que foram mortas ou ainda permanecem desaparecidas na obscuridade dos porões da ditadura militar. Muitas das famílias desses brasileiros viram somente o atestado de óbito do familiar, não o corpo.

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mado Paulo Malhães exemplificou Grande parte deles, que não teve à Comissão Nacional da Verdade mais notícias sobre o ente desacomo fazia desaparecer os corpos parecido, recebeu um atestado das vítimas da Casa da Morte, um de morte presumida, o que causa dos dez centros de tortura utilizamais incerteza ainda sobre o que dos na Ditadura Militar. realmente aconteceu. O militar confessou que os Mesmo que em menores proporções, é impossível não comdedos das mãos e arcadas dentárias eram arrancados para evitar parar esses 379 com os 6 milhões de judeus e povos considerados a identificação. Os corpos eram raças inferiores que foram vítimas enrolados em plástico e jogados do holocausto na Europa. Em amno fundo de rios, mas primeiro tinham o abdômen bos os casos, aberto para que não muitos corpos dos desapa- “O site Desaparecidos boiassem. O coronel chegou a relatar recidos foram Políticos lista 379 que não se arretorturados, pessoas que foram pende do que fez e mortos e endisse ter cometido terrados como mortas ou ainda tantos assassinaindigentes em permanecem tos quantos foram valas comuns. desaparecidas na necessários e desNo holocauscreveu como difícil to, as pessoas obscuridade dos mensurar quantos eram enviadas porões da ditadura presos políticos tora campos de turou. Curiosamenconcentração militar” te, um mês após o e separadas de seu depoimento, suas famílias, Malhães foi encontrado morto em locais paralelos às casas de tortusua casa. Ele apresentava sinais ra no Brasil. de asfixia. Segundo a viúva CrisNas terras brasileiras, cortina Malhães, ele foi rendido com pos também foram enterrados suas próprias armas. O caso ainda com nomes trocados, como foi o não foi esclarecido, o que reforça caso de Luiz Eurico Tejera Lisbôa, a hipótese de queima de arquivo. sepultado com nome falso no CeO fato reafirma a necessidade mitério Don Bosco, em Perus, na de abrir os arquivos guardados e periferia de São Paulo. Ele foi o lembrar, lembrar e lembrar, como primeiro desaparecido a ser locajustificou Spielberg. lizado. Porém, muitos sequer foram enterrados. O coronel refor-


não ficasse somente com os famiAs “casas da morte” estade do seu lar, ambiente de trabalho vam espalhadas pelo Brasil e deie da correspondência violados em liares, assim como fez Spielberg, xaram uma cicatriz na história do nome da segurança nacional. “Ceroutros cineastas realizaram filmaPaís, bem como nos parentes e ca de 400 pessoas foram mortas gens relembrando os longos anos amigos dos desaparecidos. A fie desapareceram durante o regime de censura no País. São exemplos, nalidade desses locais era realizar militar, e estima-se que pode ser “O ano em que meus pais saíram sequestros, manter centros de maior esse número, devido ao fato de férias”, de Cao Hamburger e detenção clandestinos, preparar de, ainda, familiares terem receio “O dia que durou 21 anos”, dirigiagentes infiltrados nas organizade denunciar ou buscar informado por Camilo Galli Tavares. Tudo ções de esquerda, efetuar trasções sobre seus desaparecidos. isso serve para alimentar a espelados de prisioneiros, interrogarança de familiares, que ainda tórios sob tortura, execuções buscam pistas sobre o que extrajudiciais e ocultação de ca- “Para os familiares que, por aconteceu com os sumidos. dáveres. longo tempo, reservaram à “Uma das mais difíceis situaPara Eliana Gasparini Xerri, ções que um ser humano pode professora de História na UCS, a mesa o lugar de pais, filhos ou vivenciar é a incerteza”, afirma reflexão sobre os 21 anos de Di- netos que nunca retornaram, Maria Elisa Fontana Carpena, tadura Militar nos dá a possibiliprofessora de psicologia na dade de observar variados ângu- ainda é difícil acreditar que UCS. Segundo ela, enquanlos, como o apoio de parcelas da to não há a confirmação da nunca mais os verão” sociedade civil ao governo, bem morte, seja pela entrega de como a percepção de que nem um corpo, dos restos mortais, todos os militares foram a favor Faz-se necessário não esquecer, ou dos pertences, há a esperanconhecer mais e evitar a repetição do regime. Alguns foram punidos ça, que divide espaço com o sode tais atos”, complementa. por sua oposição. No entanto, a frimento, pois não permite que o Para os familiares que, por questão da defesa dos Direitos processo de luto seja superado. longo tempo, reservaram à mesa Humanos toma grande proporção, Conforme a psicóloga, a retirada o lugar de pais, filhos ou netos que pois as práticas de tortura, mortes abrupta de alguém de casa monunca retornaram, ainda é difícil e desaparecimentos foram consbiliza um extremo sentimento de acreditar que nunca mais os verão. tantes, principalmente no governo insegurança nos amigos e familiaA luta deles contra a falta de inMédici, quando houve a mais severes. Isso se agrava se a expectatiformação persiste, cinquenta anos ra censura no País. va for de possível sofrimento e indepois, quando a Comissão da Eliana relembra que todos certeza, em relação ao paradeiro setores considerados perigosos, Verdade tenta duramente reabrir dessa pessoa. supostos terroristas, comunistas a discussão sobre a ditadura e coPara ela, o que fica desse e opositores ao governo foram lher depoimentos de torturadores desaparecimento é a vivência do perseguidos; tiveram a privacidae vítimas. Para que a lembrança vazio. Por isso, sempre há o desejo na família de resgatar algo, como forma de poder vivenciar a perda. Nos casos da ditadura ou do holocausto, há em quem depositar a raiva e a culpa, que é uma das etapas vividas na elaboração de um luto, e usualmente vítimas acabam sendo reconhecidas como heróis. Isso é diferente nos desaparecimentos sem causa aparente, em que a raiva é depositada no próprio familiar desaparecido, e o sentimento de culpa, ou a necessidade de buscar uma razão, se torna mais presente nos familiares. O campo de concentração nazista de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, onde milhões de judeus e membros de outras minorias morreram durante a Segunda Guerra Mundial.

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O caminho na busca dos

Cemitério de Campo Grande Do Cemitério de Campo Grande, situa­ do em São Paulo, foi resgatado o corpo de Emanoel Bezerra dos Santos, em 1992, transladado de São Paulo para Natal. Em 2003, foi trasladado o corpo de Manoel Lisboa de Moura.

Escavações no Paraná


*retirado de A Ditadura de Seguran莽a Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): Hist贸ria e Mem贸ria

Paulo Pinto/Fotos P煤blicas

s corpos desaparecidos*



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