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Preferência, a especialidade da casa O valor é acessível para quase todo mundo. Quando falta um trocado, a equipe do Restaurante Popular dá um jeitinho para atender a todos, desde que dentro do horário de expediente. Ricos, pobres, de classe média. Drogados ou sem teto. Ali ninguém pode ser impedido de comer, garante a lei. Mesmo aqueles acostumados com a solidão das ruas acabam se adaptando ao restaurante mais frequentado (e de poucas regras) da Rua Os Dezoito do Forte. Por Gesiele Lordes Bagé agora é prefeito. Ganhou o título por causa de suas roupas. Apesar de ser menos magro, as botas, a bombacha e a camisa de lã xadrez o deixam parecido com o prefeito de Caxias do Sul, Alceu Barbosa Velho, cuja primeira reunião do mandato foi para tratar do Rodeio Crioulo da cidade. Volmir Pedro Gomes, 45 anos, foi apelidado com o nome de sua cidade natal em virtude do forte sotaque fronteiriço. O homem tem orgulho de apresentar o restaurante que ajuda a administrar, assim como um legítimo chefe do Executivo ao exibir uma obra. Simpático e prestativo, gosta de recepcionar as pessoas logo na entrada, em um ponto discreto na Rua Os Dezoito do Forte, próximo aos camelôs. Ao seu lado, uma folha de ofício justifica o sucesso do estabelecimento e divulga um pedido da direção. “Almoço R$ 1. Facilite o troco”.
Depois de entregar a moeda de maior valor monetário do país e atravessar a catraca, quem entra parece pouco se importar com as diferenças entre o Restaurante Popular e qualquer outro. A sistemática de funcionamento é simples. Com bandeja em mãos, as pessoas começam se servindo pelas saladas e legumes– repolho, alface e cenoura. A seguir, o arroz, a lentilha e moranga em calda, cortada em generosos pedaços triangulares, além de copinhos com sagu para sobremesa, conforme estabelecido no cardápio das sextas - feiras. A última cumbuca é onde ficam os filés de frango, servidas por controle de uma porção por pessoa.
É ali, ao lado da única comida da qual não se pode repetir, que trabalha Marilene Sawiki, 45 anos, apelidada de ‘Moça da Carne’. Tão miúda – não tem mais que 1,60 de
altura e 55 kg – cabe a ela garantir uma das poucas regras do local. Quase sempre seus alertas, ditos numa voz aguda, são direcionados aos marmanjões que tentam garantir o segundo pedaço enquanto ela sai do posto. “Sempre tem um espertinho que tenta pegar mais, mas daí eu corro e digo para soltarem minha colher”.
Mesmo com a responsabilidade de garantir a justa distribuição do alimento mais prestigiado pelo público, Marilene não tem problemas no trabalho. Acostumada com os ambientes menos alegres de uma metalúrgica e de um laboratório, onde trabalhou antes, ela aprecia o convívio entre colegas e os frequentadores. Em um sussurro constrangido de quem acredita que toda a mulher deve domar as panelas, ela confessa que não gosta de cozinhar, por isso, se sente grata em não precisar trabalhar no preparo das refeições, apesar de contribuir de alguma forma. “As cozinheiras pedem para eu provar as comidas. Costumo dizer que sou a degustadora daqui”.
Oficialmente, ela ocupa o cargo de higienizadora. Quando o movimento na fila do buffet diminui, ela caminha de um lado para o outro, passando pano e recolhendo algum talher ou copo das mesas. A funcionária também fiscaliza a condição dos dois banheiros e observa se a pia localizada próxima às mesas está sendo usada corretamente. Na parede, um comunicado orienta o uso do lavatório. “Usar a pia somente para lavar as mãos. Proibido lavar dentaduras”.
A fome
O autônomo Alceu Xavier, 62 anos, é um dos frequentadores mais antigos do estabelecimento, que abriu há cerca de dois anos e meio. Mesmo usando apenas uma jaqueta e uma camisa polo de gola gasta, depois de almoçar, por volta das 12h20, ele “faz a digestão” no lado de fora. Conforme noticiado pela previsão do tempo para aquela sexta – feira (23), caía um chuvisqueiro gelado, contrastando com os 27° C registrados no dia anterior. Xavier é um homem gordo, forte e que não aparenta ter a idade que tem. As rugas de seu rosto não são tão evidentes quanto os cravos profundos que parecem deformar seu nariz , que de tão largo quase acompanha o comprimento dos lábios.
Como ainda não conseguiu se aposentar, conta com a força física para ajudar a sustentar a família, que se resume à sua esposa, auxiliar de faxina. Ele trabalha como ‘chapa’, oferecendo serviços de carga e descarga de mercadorias aos caminhoneiros de outras cidades. A renda do casal, morador do bairro De Zorzi, beira os R$ 1,6 mil, em média. Xavier, no entanto, tem picos de serviço, mas há dias em que os rendimentos são fracos. Diferentemente da esposa, que ganha ticket refeição, ele precisa custear o almoço, por isso, se esforça para chegar ao Centro a tempo de garantir a refeição por preço baixo. “Aqui é barato e é muito bom. Eles fazem tudo direitinho”.
E se há quem ache o valor acessível, há quem não tenha um único real. Uma ou duas pessoas sempre aparecem por ali sem dinheiro, pedindo alimentos. Assim como outros funcionários, a assistente social Fernanda Regina Severgnini, 27 anos, não consegue negar um prato de comida aos moradores de rua. Quando não paga para eles, finge que não os viu entrando. “Acabamos dando um jeitinho brasileiro”. Ela é uma das responsáveis pelo restaurante. Sua função é proporcionar aos usuários mais do que a possibilidade de almoçar, mas também a chance de conquistar um emprego por meio dos inúmeros programas com este fim, conseguir um remédio ou simplesmente oferecer a oportunidade de inserção social.
Ao lado de sua sala, entre cartazes com ofertas de empregos, em um mural feito com isopor, EVA e cartolina colorida, algumas fotografias impressas em folhas de ofício registram o passeio que um grupo de idosos fez dias antes ao Mato Sartori. Fernanda explica que atividades e palestras com temas como aposentadoria e direitos da mulher são realizadas frequentemente. Normalmente, o público é convidado no dia anterior ao evento, na fila do almoço. “O objetivo maior é emancipar o sujeito. Às vezes, o que eles mais precisam é serem tratados com dignidade”.
A vontade de comer
A funcionária pública Cristina Pacheco, 55 anos, encontrou no Restaurante Popular a solução para um problema que atinge os servidores que trabalham em praças e parques da cidade: a falta de espaço para refeições. Até pouco tempo, ela levava o almoço pronto de casa, mas não se sentia confortável em ter que comer no banheiro público da praça João Pessoa, em São Pelegrino.
Com o salário de R$ 2,5 mil e casa própria no bairro Galópolis, dividida com marido e três filhos, todos devidamente empregados, Cristina opta pelo restaurante muito mais para fazer economia do que por necessidade. “Acho os outros muito caros. E aqui é bom, só controlo a massa por causa da diabetes”. Bagé, o ‘prefeito’, já está acostumado com pessoas que não se encaixam no público do Restaurante Popular, parte do projeto do governo federal Fome Zero. Contudo, como ele mesmo ressalta, se é popular, é para todos. Bagé recorda de uma situação em que uma mulher bem vestida estacionou um Fox prata em frente ao estabelecimento, pouco antes do restaurante abrir. Quando a dondoca entrou na fila, algumas pessoas que esperavam para almoçar começaram a soltar indiretas como “aqui não é lugar de rico”. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, a senhora disse em alto e bom som que se alguém a impedisse de almoçar processaria a prefeitura, pois sabia que a lei estava a seu lado. Como bom cargo de confiança que é, Bagé evita qualquer conflitos com estas “pessoas que sabem mais” e que “são as piores”, como classifica uma das ajudantes de cozinha.
O homem, que faz de tudo um pouco, já aprendeu também como evitar problemas de outras naturezas. Os dependentes químicos, por exemplo, ele costuma colocar em mesas separadas para que não briguem. A fim de desestimular a permanência deles no local, ele evita ligar a TV, que deveria ser usada justamente para entreter a freguesia. “Se eu ligar eles não vão embora”, justifica.
Enquanto Bagé administra crises entre bons e maus, tomando o cuidado para não ser traído pelas leis dos homens e comprometer o emprego, as forças superiores parecem trabalhar para que cada um tenha o que mereça. Em uma bíblia velha, sobre uma espécie de púlpito de madeira bruta, ao lado da Phillips 42” e da biblioteca - onde estão algumas das obras de Lima Barreto, Fernando Sabino e Rachel de Queiroz - lia- se no Livro da Sabedoria, capítulo e versículo 14: “Porquanto a vaidade dos homens foi o que os introduziu no mundo: e por isso, em breve, se tem de ver o seu fim”.
BOX: O Restaurante Popular em números
Caxias do Sul tem 2 restaurantes populares. O Restaurante Popular I, na Rua Os Dezoito do Forte, oferece 320 refeições ao dia e o Restaurante Popular II, na Rua Vinte de Setembro, oferece 500.
Para evitar horas extras, mesmo que sobrem refeições, o expediente externo acaba às 13h.
60% do público é composto por homens.
A maioria dos frequentadores ganha de 1 a 2 salários mínimos por mês.
1% do público teria condições de pagar em um restaurante comum.
Em média, 30 kg de comida são jogados fora todos os dias.
Esta quantidade é suficiente para alimentar mais ou menos 60 pessoas.
Cada refeição custa R$ 6,60.
A prefeitura divide este valor com 3 empresas (Neobus, Cemar Legrand e Intral)
Normalmente, cerca de 10 pessoas não conseguem fichas e ficam sem almoço.
Em 23 de agosto, dia em que esta reportagem foi produzida, excepcionalmente restaram 84 refeições. Segundo funcionários, há sobras apenas em dias de muito frio ou chuva.
Fonte: Setor de Assistência Social e funcionários do Restaurante Popular I.