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Atelier de Jornalismo Impresso - Universidade de Caxias do Sul - Edição 2019/2

A luta é pelo respeito Foto: Mário André Coelho

Kellvin Piettro de Oliveira Almeida e Jessica Biazi participam de ensaio que promove visibilidade de transexuais em Caxias do Sul

Educação

Política

Solidariedade

Prevenção e combate à violência nas escolas

Vítimas da ditadura em Caxias do Sul

Afeto compartilhado pela Kombi do Bem

Páginas 16 e 17

Páginas 14 e 15

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EDITORIAL

EXPEDIENTE REITOR Dr. Evaldo Antônio Kuiava DIRETOR DA ÁREA DO CONHECIMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Ms. Fábio Eberhardt Teixeira COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO Ms. Marcell Bocchese PROFESSORA RESPONSÁVEL Dra. Alessandra Paula Rech

ALUNOS Ana Júlia Griguol Bruno Roberto Caldart Carine Luana do Amaral Caroline Cesca Daniela Farenzena Affons Érick Godoi de Oliveira Igor Ismael Panzenhagen Janaine Cristina Bagatini Karen Boldrin Klisman de Oliveira Lucas de Souza Marques Luciano William Weber Maiara Zanatta Gallon Mauricio da Rocha Palma Milena do Amarante Soares Mirian Vieira Pinto Morgana Pereira de Moraes Paola Ferreira de Castro Patrícia Dal Picol Rafael Zanol Sofia Petry Mazzarollo Thais Strapazzon Thays Emilli de Paula

partir da intimidade dos travestis e da aceitação do próprio corpo, um espelho para os paradigmas impostos pela sociedade. Nos tratamentos alternativos e de convivência, o futuro da ciência em relação à saúde. Nos escritos sobre política e segurança, uma crítica sobre a situação da sociedade atual. Em cada linha, a busca pela igualdade e humanização. Em tempos em que a convergência de mídias influencia nas atitudes das pessoas e as redes sociais são bombardeadas por informações (verdadeiras ou não), o Textando assume a responsabilidade de apresentar ações que garantam a qualidade de vida, por meio de um jornalismo sensível, humano e empático. Nesta edição, um convite para conhecer, dialogar e refletir. Boa leitura!

A crescente busca por terapias alternativas Procura por práticas integradas complementares duplicou nos últimos três anos no Brasil Por Bruno Caldart, Érick Oliveira e Rafael Zanol

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Campus-Sede Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130 Bairro Petrópolis - Caxias do Sul - RS 95070-560 Telefone: (54) 3218.2100

Foto: Laryane Barboza

s chamadas terapias alternativas ganharam ainda mais espaço na sociedade brasileira na última década. Além da grande procura, há também um grande número de pessoas que estão se especializando e oferecendo tratamentos variados, que vão de complexas práticas envolvendo a psicologia até as voltadas para o lado espiritual. No Brasil, estima-se que, em 2017, foram mais de 1,4 milhões de atendimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) envolvendo algum tipo de terapia alternativa. E, no ano passado, dez novos tipos de práticas foram incluídas no SUS. Bioenergética, florais e hipnoterapia foram algumas das práticas implementadas, totalizando 29 procedimentos alternativos oferecidos. Porém, com a ascensão dos cursos online ou de curta duração e também com a popularização e fácil acesso às redes sociais, um temor está vindo à tona por parte de profissionais sérios e qualificados. Como identificar um bom profissional nessa enxurrada de propaganda envolvendo essas práticas? E como saber qual a melhor terapia a ser utilizada em cada caso? Muitas pessoas estão oferecendo algum tipo de prática alternativa sem estarem devidamente capacitadas para exercê-la ou, ainda pior, prometendo curas rápidas e milagrosas. Assim, surge também o questionamento do porquê e em quais ocasiões específicas as pessoas procuram outros tipos de tratamento além do tradicional. O psicólogo e terapeuta Rogério Camargo de Carvalho, especializado em psicologia clínica, diz que o paciente tem que conhecer bem a formação do profissional antes de iniciar qualquer tipo de tratamento. “Nós temos que saber a origem dele (terapeuta), por que tipo de escola ele optou. O que a gente vê hoje? Que muitos não são profissionais de carreira e nem por opção, mas por necessidade, após ficarem desempregados, por exemplo. Virou uma profissão. A área da saúde pode ser uma profissão, mas, nesse caso, muitos são aventureiros.”

No Brasil, estima-se que, em 2017, foram mais de 1,4 milhões de atendimentos realizados pelo SUS envolvendo algum tipo de terapia alternativa. Rogério se mostra preocupado com o aumento do número de pessoas que estão oferecendo alguma terapia alternativa e como muitas dessas terapias não vão a fundo no problema do paciente. “Duplicou nos últimos três anos. Quando tem crise financeira, isso aumenta. Muitos dos cursos oferecidos nessa área são pensados apenas para resolver a tua

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Foto: Bruno Caldart

DISCIPLINA Atelier de Jornalismo Impresso

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m meio a uma sociedade turbulenta, caracterizada pelo discurso sensacionalista que dita regras e impõe opiniões, surge a necessidade de se falar sobre a vida na sua essência, seja de crianças e adolescentes, seja dos idosos ou de animais. Embora escritas, cabe ao jornalista fazer ecoar cada palavra no inconsciente dos leitores, a fim de motivar os mais diversos sentimentos e os inspirar em suas escolhas diárias. Infinita busca por uma escrita sincera, envolvente, com autenticidade e história. Conscientes do desafio, a turma de Atelier de Jornalismo Impresso 2019/02 apresenta nesta edição um compilado de reportagens que resgata valores, motiva reflexões e discute o ser. Ao virar de cada página, a preocupação em compartilhar, a

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Saúde

Rogério Camargo, psicólogo e terapeuta, especializado em psicologia clínica

dificuldade específica, só que o indivíduo é um ser psicossocial, ele tem família, trabalho, etc. No mínimo o terapeuta tem que entender isso. E a gente percebe que para estudar um indivíduo psicossocial, muitas vezes, durante toda uma faculdade, você não consegue. E as pessoas criam uma dinâmica de 10, 12 horas, em um fim de semana, e já saem entendendo disso.” Na área da psicologia, o terapeuta também destaca a popularização dos cursos online. “É uma demanda que só aumenta. Até na psicologia isso está sendo oferecido. Por ser online, algumas coisas estão sendo perdidas. Psicologia é uma área humana. É uma sala de aula com cadeiras em um ambiente circular, ou ambiente formal. Sem esse ambiente muitos profissionais ruins vão ser formados.” No ramo das terapias alternativas, uma palavra bastante utilizada é “cura”. Rogério diz para os pacientes terem cuidado com pessoas que prometem curas rápidas. Para ele, a palavra “cura” está sendo banalizada e as terapias complementares podem ajudar no início do processo de cura do paciente, mas aliadas aos tratamentos específicos, dependendo de cada caso. Já a indústria de produtos e medicações voltados para as terapias alternativas também está crescendo. “Uma parte da terapia alternativa está copiando o modelo médico. Toda vez que um laboratório farmacêutico lança um comprimido novo, a indústria alternativa também lança. Alguns terapeutas se tornam vendedores de produtos“, acrescenta.

Nesse universo de novos tratamentos e opções, algumas terapias são milenares e têm comprovação científica. É o caso da meditação, yoga e relaxamento, técnicas que possuem mais de cinco mil anos. Muitas das novas terapias se originaram dessas mais antigas. Outras es-

“Uma parte da terapia alternativa está copiando o modelo médico. Toda vez que um laboratório farmacêutico lança um comprimido novo, a indústria alternativa também lança” tão sendo estudadas pela neurociência, mas ainda não possuem comprovação. Rogério Camargo de Carvalho ressalta que existe muita gente competente e qualificada no ramo e que muitas terapias são tão recentes que ainda não possuem comprovação e nem provação. Ele também diz que as pessoas têm que se conhecer mais e pesquisar, já que o excesso de terapias alternativas também pode ser prejudicial, mas que são importantes para complementar tratamentos médicos, podendo ajudar fisicamente e psicologicamente o paciente. Porém, a qualificação do profissional é tão importante quanto o tipo de terapia que o paciente escolher.

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4 Foto: Bruno Caldart

plo, mas isso não é garantia de nada”, opina. Fernanda conta que conheceu as terapias alternativas através da indicação da sua psicóloga, das pessoas do centro espírita que frequenta e por meio do curso de psicologia. Com o auxílio de terapeutas bem-intencionados, Fernanda já utilizou florais, cromoterapia e aromaterapia, além de ter passado por sessões de reiki e cirurgias espirituais para problemas de saúde. “Me sinto melhor, mais forte e mais confiante. Também percebo que consigo dormir bem e a imunidade melhora. Em terapias alternativas, não me decepcionei até agora”.

Práticas oficializadas pelo SUS

A indústria das terapias alternativas cresce a cada ano

Terapia x imediatismo

“Algumas terapias ajudam no emocional mas não resolvem a causa que originou o problema” Com base na procura rápida pela solução de problemas, em alguns casos, pessoas mal-intencionadas passam a oferecer métodos alternativos como soluções milagrosas. A enfermeira fala que já percebeu que essa parte da sociedade se aproveita de um momento de fragilidade emocional e de saúde e, às vezes, até financeira, para oferecer um recurso sem garantia. “As pessoas vão pelo imediatismo e não pela terapia em si. Buscam um chá da Amazônia que alguém indicou, alguém que faz benzedura, ou algum tipo de massagem, etc. Se a pessoa se der conta que se fizer o tratamento médico adequado, cuidar da alimentação, praticar exercícios e

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29 práticas integrativas e complementares oferecidas oficialmente no SUS Ayurveda, homeopatia, medicina tradicional chinesa, medicina antroposófica, plantas medicinais/fitoterapia, arteterapia, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa, termalismo social/ crenoterapia, yoga, apiterapia, aromaterapia, bioenergética, cromoterapia, constelação familiar, geoterapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia e terapia de florais.

A manifestação circense das ruas

Entre as sinaleiras, Marcos e Ana Paula performam malabarismos, injetando arte na monotonia Por Érick Oliveira

Todas as classes sociais e diferentes culturas têm se apropriado e buscado acesso às Práticas Integrativas, e que esse é um fenômeno global, que tem gerado esse crescimento observado nas pesquisas realizadas pelo próprio Ministério da Saúde.

A visão é de que essas terapias não sejam alternativas ao tratamento com uso de remédios, mas sim complementares ao processo de cura. Algumas práticas além de serem inspiradas em técnicas milenares também têm base em tecnologias mais atuais. As terapias podem ser utilizadas de forma individual e coletiva, com um foco para a mudança de estilo de vida e autocuidado. Esse empoderamento próprio ajuda em uma conscientização maior do uso de medicamentos, que podem ser usados de forma descuidada e exagerada. Neumann argumenta que todas as classes sociais e diferentes culturas têm se apropriado e buscado acesso às Práticas Integrativas, e que esse é um fenômeno global, que tem gerado esse crescimento observado nas pesquisas realizadas pelo próprio Ministério da Saúde. Essa busca por alternativas ocorre muito pelo descontentamento das pessoas com

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o momento em que o sinal fecha, Marcos tem um total de um minuto para impressionar os motoristas que passam em fluxo constante pelo cruzamento entre as ruas Sinimbu e Garibaldi, em frente ao McDonalds, muitos deles estressados, outros correndo de volta para casa após um dia cansativo de trabalho. Apesar do momento complicado, Marcos ainda continua seus malabarismos com claves e acima de um monociclo, esperando reconhecimento e apreço daqueles que param na sinaleira. Não é trabalho fácil, afinal, o esforço ou excepcionalidade dos malabares

“Às vezes dá uma grana legal, às vezes não dá nada, mas o cara continua na honestidade” não necessariamente se converterá em dinheiro, mas ainda é um trabalho honesto. Marcos alterna os malabarismos com sua companheira, Ana Paula, que o acompanha com os materiais e também sabe alguns truques. Nascido no Uruguai, ele conta ser um viajante e artista, apaixonado pelo circo e alguém que não procura estresse em sua vida. “Já passei em dezessete estados do Brasil e dez países da América do Sul…”

Foto: Érick Oliveira

A crescente busca por terapias alternativas e o aumento no número de cursos sobre o assunto, oferecidos de forma online, se deve, em parte, ao imediatismo e à tentativa de resolução rápida de problemas. Experiente na área da massoterapia, meditação e toque terapêutico, a enfermeira Leni Biavatti, de 52 anos, relata que é comum pacientes e familiares, em momentos delicados, buscarem qualquer tipo de ajuda para tentar recuperar a saúde. “É muito imediatismo, há uma lavagem cerebral de cura. Poderá dar um conforto momentâneo, mas não resolve o problema, pois não vai na causa”, conta.

buscar uma terapia para ajudá-la a conhecer a si mesmo e descobrir as coisas que a levaram a adoecer, com certeza o corpo vai reagir melhor do que com soluções milagrosas”, explica. Sobre os cursos oferecidos de forma online, Leni prefere não generalizar, mas pede a atenção do usuário em relação ao que é oferecido. Nestes casos, por conta da existência de pessoas que somente se aproveitam da fragilidade do outro, orienta que é importante pesquisar e descobrir informações sobre o serviço oferecido, com outros profissionais da área e que sejam de confiança. Como massoterapeuta, Leni Biavatti trabalha diretamente com a pessoa e explica que procura atender apenas com casos pertencentes a sua área de atuação. “Quando percebo que o cliente está com um problema que vai além dos meus conhecimentos, eu encaminho para um profissional da área envolvida. Não fico tentando resolver e nem prometo cura”, conta. A enfermeira também fala que sempre procura conhecer o paciente e a família dele, para esclarecer sobre a doença e sobre o tratamento, para que não exista expectativa alta somente sobre o método alternativo. “Algumas terapias ajudam no emocional mas não resolvem a causa que originou o problema”, diz. Na visão de quem utiliza as terapias alternativas, Fernanda Angonese Possamai, estudante de psicologia, relata que ainda é difícil identificar quem realmente é um bom profissional da área sem a realização de pesquisas. Para ela, a internet tem uma função ambígua nesses casos, facilitando o acesso, mas também permitindo a aproximação dos enganadores. “Precisamos cuidar desses detalhes. Quem é capacitado geralmente não vai cobrar valores muito inferiores que os valores do mercado, por exem-

Conhecida como PICS, Práticas Integradas Complementares em Saúde, todas as terapias aprovadas pelo Ministério da Saúde têm fundamento científico, baseadas em pesquisas e evidências. Essa abordagem amplia o olhar dos profissionais além do processo saúde e doença. Segundo a antropóloga Elisete Neumann, a visibilidade dessas práticas está tendo uma boa aceitabilidade na Rede Privada, que começa a utilizar junto à comunidade. Elas podem ser utilizadas em todos os âmbitos de atuação profissional; promoção da saúde, manutenção da saúde, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e atenuação do sofrimento (cuidados paliativos).

os atendimentos recebidos, tanto no Sistema Público e no Sistema Privado de Saúde. Neumann explica que no cenário atual há diversos fatores que fazem as pessoas procurarem por essas práticas, fatores como: longas filas de espera, queixas de falta de acesso, de baixa resolutividade, de pouca humanização, de corrupção, de incompetência na gestão, relato de profissionais de saúde pouco comprometidos, como também problemas estruturais. Sobre as práticas mais espirituais, as pessoas buscam um modelo de cuidado mais centrado na pessoa e não apenas na doença, com foco na família e comunidade. De acordo com Neumann, um modelo que considere e atue na complexidade biopsicossocial e espiritual do indivíduo. Ela ressalta, ainda, que é necessário avançar para que essas terapias sejam seguras, eficazes e que estejam disponíveis e regulamentadas, assim podendo progredir nas pesquisas, na formação profissional adequada a essa área e a implementação da PICS em um nível municipal, estadual e nacional.

conta Marcos. Essas viagens duraram dez anos, desde que saiu de casa com 20 anos, descontente com as pressões diárias, ele diz estar feliz vivendo de seu próprio trabalho e esforço, sem a necessidade de um patrão. O entusiasmo de Marcos é visível, mas nem todos no trânsito da tarde partilham desse sentimento: “Agora eu faço o que eu amo, e ali dá pra viver, às vezes dá uma grana legal, às vezes não dá nada, mas o cara continua na honestidade”, reforça ele. Ana Paula diz que “Tem alguns lugares que são muito bons e outros que são muito ruins”. Ela

conta que cidades pequenas geralmente têm uma reação melhor a esse tipo de performance de rua, por ser uma novidade e o público ser mais impressionável que suas contrapartes urbanas: “A cidade grande tem mais trânsito, mas é o tipo de trânsito de gente estressada”. Apesar de um público não tão receptivo, Marcos e Ana Paula procuram animar aquela parte da rua, tentando injetar alguma cor naquele vaivém de carros e pedestres, um malabarismo entre a normalidade do “pare” e “ande”, ilustrado por vermelho e verde, não é do gosto de todos, mas certamente é algo notável.

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Saúde Preparação e aceitação da velhice

A importância do lazer para a terceira idade Como as atividades influenciam na busca do bem-estar e do envelhecimento saudável Foto: Caroline Cesca

Desafiar os idosos é importante. Oferecer oportunidades para que eles se descubram como vencedores dos obstáculos que a idade traz no decorrer dos anos é fundamental. Superar o potencial natural gera mais prazer e alegria em tudo o que fazem. A velhice é uma fase que deve ser vivida, sendo aproveitada ao máximo.

“Eles ainda têm capacidade para desenvolver outras atividades e não precisam ter pensamentos negativos”

Segundo a psicóloga Daniela Tessari, na Terapia Cognitivo-comportamental é trabalhada a questão da mudança e comportamento para os idosos. “Como eles já têm idade e não têm mais condições de trabalho como quando eram jovens, é sugerido acrescentar no seu dia a dia alguma tarefa para que possam se ocupar. Após, é trabalhada a questão do pensamento, que eles ainda têm capacidade para desenvolver outras atividades e não precisam ter pensamentos negativos achando que não têm mais condições para fazer nada. Nesse contexto, também, se trabalha com a família e filhos, para que eles ajudem nessa nova etapa da vida dessas pessoas idosas”, explica.

Foto: Caroline Cesca

O convívio com outras pessoas gera inúmeros benefícios, tanto físicos quanto psicológicos

Por Caroline Cesca, Patrícia Dal Picol e Thays de Paula.

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onviver com outras pessoas é importante em qualquer idade. Para os idosos, o simples ato de conviver em comunidade se torna ainda mais benéfico para a saúde e bem-estar. A pessoa se sente mais feliz e disposta quando mantém suas relações sociais. Veranópolis é considerada pela Organização Mundial da Saúde uma cidade amiga do idoso. Já se tornou corriqueiro ouvir o nome dessa aconchegante cidade da Serra Gaúcha nos principais programas do país. É bastante comum que moradores ultrapassem a idade dos 90 anos. Mais de 15% da população tem acima de 60 anos. Além disso, a expectativa de vida por lá é mais de 75 anos. Desde 2016, o município recebeu da Organização Mundial de Saúde (OMS) o título de “Município para todas as idades”, vinculado ao Instituto de Longevidade do Brasil. A proposta é que todas as entidades, secretarias e organizações do poder Executivo atuem em ações de acessibilidade aos idosos, mas que contemplem as demais faixas etárias com programas específicos. “Se pensarmos em desenvolver a cidade para os idosos, todas as outras gerações que vão vir também serão beneficiadas. Este projeto é um marco para o começo de novas ações. Todas as secretarias do município são engajadas na rea-

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Veranópolis, Terra da Longevidade lização de ações que melhorem a infraestrutura e qualidade de vida em Veranópolis”, cita a secretária municipal de Desenvolvimento Social, Habitação e Longevidade, Adriane Maria Parise. A verdade é que a expressão “melhor idade” faz bastante sentido em Veranópolis. Ao longo da semana, diversos compromissos lotam a agenda dos moradores veranenses acima dos 60 anos. Como grande opção, o Grupo de Convivência da Longevidade de Veranópolis reúne seus integrantes todas as terças-feiras. O grupo conta hoje com 214 beneficiados, todos acima de 60 anos. Eles participam de oficinas de dança, atividade de educação física e jogos de cartas. Muitos idosos, após participarem e se envolverem com as atividades do grupo, melhoraram a qualidade de vida. Alguns, inclusive, deixaram de fazer uso de medicações e até saíram da depressão. De acordo com Marcos Salton Boff, médico cardiologista, a qualidade de vida dos idosos veranenses engloba a realização familiar e profissional e a religiosidade. Em termos de qualidade física, nota-se que a felicidade das pessoas

também é dependente da capacidade de poder fazer alguma coisa. “As pessoas gostam de ser extremamente trabalhadoras e produtivas. Essa é uma região onde as pessoas trabalham muito. Quando perdem sua identidade como trabalhadoras, notamos que a qualidade de vida diminui, a depressão começa a acontecer”, ressalta Marcos.

“Veranópolis é considerada pela Organização Mundial da Saúde uma cidade amiga do idoso.”

O cardiologista ainda destaca que esses fatores mostram que as pessoas não estão preparadas para o envelhecimento. “É uma das coisas que me preocupam aqui no consultório, fazer as pessoas entenderem que se tu tens um corpo de 70 ou de 80 tem que ter uma capacidade funcional proporcional à idade. Muitas vezes as pessoas têm 80 anos e querem fazer coisas que fazem com 50 anos. Isso gera um conflito e quem paga muitas vezes é o coração, pulmões, articulações e músculos.”

O grupo de convivência da longevidade proporciona momentos de lazer e descontração

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Comportamento

O reflexo do outro em ti

Durante o mês de maio, seis mães compartilharam suas percepções em relação ao seus corpos Fotos: Mirian Vieira e Paola Castro

pensa. Segundo ela, muitas vezes a ideia desse pensamento severo é uma projeção de uma autocobrança elevada. “O meio social, familiar e cultural contribui para os padrões estéticos serem mais ou menos rígidos”, complementa Flávia.

Metamorfose Na tentativa de mudar sua estética corporal, muitas mulheres optam por procedimentos cirúrgicos. Até o ano de 2015 o Brasil estava em segundo lugar no ranking mundial, com cerca de 1,22 milhão de procedimentos. Caroline fez uma lipoabdominoplastia, que é uma junção das cirurgias plásticas de abdominoplastia e de lipoaspiração. “Eu fiz para tirar toda a gordura que tinha na minha barriga. Se pudesse faria de novo”, relembra.

“Eu era bem magrinha e agora faço tratamento para chegar em um peso que não atrapalhe tanto o meu emocional”

Outra forma de tratamento procurada é o acompanhamento com nutricionista, seguindo uma

orientação alimentar. Cristina adotou esse método para melhorar sua autoestima. “Eu era bem magrinha e agora faço tratamento para chegar em um peso que não atrapalhe tanto o meu emocional”, admite. As escritoras Marizabel Kowalski e Maria Beatriz Ferreira, no ensaio “Estética, Corpo e Cultura” (Unicamp), falam sobre o processo de aceitação do corpo perante a sociedade. Conforme seus relatos, não se trata mais de aceitar-se, mas de estar sempre buscando transformação, corrigindo a silhueta, para a própria realização. Cerca de 40% dos lares brasileiros são chefiados por uma mulher. O dado é do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, de 1995 a 2015. Divulgada em 2017, essa análise também compara a carga horária semanal das jornadas de trabalho de acordo com os gêneros. Enquanto os homens trabalham 46,1 horas, as mulheres contabilizam 53,6 horas. Aos 63 anos e com cinco filhos, Doralice Polly viveu essa realidade. Ela diz que nunca fez musculação ou outra atividade física regular em função das demandas no trabalho e em casa. Ainda assim, diariamente, pratica ginástica laboral, uma série de exercícios físicos realizados no ambiente de trabalho. Doralice sempre estabeleceu uma relação leve e positiva frente às mudanças gestacionais e cronológicas de seu corpo. Para ela, o equilíbrio entre mente, corpo e alimentação, de forma saudável, foi fundamental para a autoaceitação. “Eu não quero deixar de comer algo, ou apreciar alguma comida por causa da minha aparência”, argumenta.

Conhecer-se, um ato de amor Planejada ou não, a maternidade é um ato de amor e cuidado. Está diretamente relacionada com a responsabilidade afetiva e com a superação de insuficiências. “Ela é assustadora, não deve ser romantizada, mas ao mesmo tempo é a melhor maneira de tu entender o que é amor de verdade, o que é sentimento recíproco”, enfatiza Maiara.

Será que aquilo que eu mostro é mais importante do que aquilo que eu sinto? De acordo com a psicóloga e psicanalista Flávia, é importante entender como funcionam as relações psicológicas. Analisar as formas de ação, as dificuldades e as distorções de imagem contribuem para o processo de autoconhecimento. Isso faz com que o inconsciente se torne mais consciente. “Aceitar-se está intimamente ligado a conhecer-se”, conclui. Não é normal competir com outras mães, ou ter que convencer que você é uma. Não é normal você deixar de comer algo que gosta por causa do corpo, muito menos ver ele como uma prisão. Você precisa existir dentro do seu corpo. Doralice Polly acredita que esse é o caminho para a “perfeição”. “Será que aquilo que eu mostro é mais importante do que aquilo que eu sinto?”, questiona ela.

Da esquerda para a direita: Tatiana Varela, Maiara Dalbosco e Mariana Assunção Fotos: Paola Castro

Por Mirian Vieira Pinto e Paola Castro

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ocê está satisfeita com a sua imagem? A compreensão sobre o que seria um tamanho ideal de corpo é alterada de acordo com os diferentes biotipos que lhe são apresentados. A informação é da pesquisa publicada em maio do ano passado, no The Royal Society. Nesse estudo, 48,9% das mulheres entrevistadas afirmam estarem insatisfeitas com sua imagem, mesmo apresentando um índice de massa corporal saudável. Aos 23 anos e com duas cesáreas, Mariana Assunção sentiu o peso das comparações estéticas, principalmente após a segunda gestação. Ela conta que as pessoas são muito críticas e nota a falta de empatia entre mães. “Parece uma competição entre quem se recuperou mais rápido”, lamenta. Em uma sociedade marcada pela reprodução de imagens e sentidos, a aparência ganha proporções exacerbadas. De acordo com a dissertação de mestrado de Ana Elisa Fernandes (UFMG), foi só a partir do século XX que o corpo passou a ser concebido como produto submetido ao capitalismo. Nesse processo de superexposição, Maiara Dalbosco, mãe de primeira viagem, conta que emagreceu muito depois do parto. Ela, que sempre teve uma estrutura física pequena, viu suas calças preferidas não fecharem na barriga e depois sentiu suas medidas diminuírem. Maiara explica como é desgastante convencer as pessoas de que é possível ter 21 anos,

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pesar menos de 45kg e ainda ser mãe lactante. “Ouço muitas vezes que não pareço ser mãe, isso me incomoda muito, afinal eu tive um filho e meu corpo passou pela transformação mais linda que eu poderia ter”, afirma.

do pode intimidar. Para Cristina Ribeiro, o peso do olhar às vezes pode ser mais cruel do que as próprias palavras. ”Por mais que às vezes as pessoas não estejam dizendo nada, só pelo fato de eu pensar, já me sinto mal. Eu me importo muito com o que os outros estão pensando”, relata. Se preocupar com a opinião das pessoas mais próximas é uma tendência comum. Para O peso do peso Flávia Bernardi, psicóloga e psicanalista, o problema é gerado quando essa sensação causa sofrimento, dificuldades na interação social, ou Mãe pela segunda vez, Caroline Basso, 30 inibe atitudes. “As cobranças estéticas têm geanos, conta que, junto com a primeira gestação rado um grande desconforto nas pessoas, já veio o aumento no peso e as estrias. Ela expli- que os ideais de beleza ficaram tão altos que ca que se sente insegura em situações e luga- beiram a irrealidade para a maioria”, afirma. res onde o corpo fica mais em evidência. “Meu Não é possível saber com clareza o que o outro corpo mudou visivelmente, uma vez perguntaram se estava grávida: eu não estava”, expõe. No livro “O Intolerável peso da Feiura: sobre as Mulheres e seus Corpos”, Joana Novaes diz “Por mais que às vezes que o corpo está inserido em uma lógica de sigas pessoas não estejam nificações. Isso é gerado por uma série de gesdizendo nada, só pelo fato tos, sensações ou sentimentos da vida social. de eu pensar, já me sinto A insegurança com a imagem também faz parmal. Eu me importo muito te da vida de Tatiana Varela, 37 anos. Na praia ou com o que os outros estão na piscina ela sempre opta por usar maiô e conta pensando ” que tem preferência pelos modelos com babado na parte superior. “Eu não coloco um biquíni nem amarrada, nem com camisa de força”, salienta. Só a possibilidade de alguém estar olhan-

Da esquerda para a direita: Caroline Basso, Doralice Polly e Cristina Ribeiro

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Comportamento

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Destinada às ruas

“Em nome de todxs”

Foto: Mário André

Mário André Coelho, fotógrafo caxiense, é responsável por uma série de fotos que resultaram na exposição “Em nome de Todxs”, apresentando à sociedade caxiense um olhar autoral sobre uma realidade que costuma ser desconsiderada. O fotógrafo relata que, enquanto percorria os bloquinhos do Carnaval de Caxias, em 2016, se deparou com um grupo de pessoas com fantasias extravagantes. Ao apontar a câmera, fizeram poses excêntricas. A partir deste momento, percebeu a necessidade de mostrar para outras pessoas que as travestis também vão ao mercado, tomam café da manhã e têm uma família lhes esperando em casa. “Falei com o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de Caxias do Sul, que me indicou o contato da ONG Construindo Igualdade e esta, por sua vez, me passou o contato de algumas travestis”, conta Mário André. Assim, o fotógrafo, a advogada Mônica Montanari e o produtor Fábio Borges passaram a acompanhar a vida delas, dentro de suas casas, com suas famílias, fazendo parte de sua intimidade. “Após o processo de produção das fotos, foi feita a exposição na Câmara de Vereadores, Em Nome de Todxs.”

Foto: Mário André

“A prostituição foi o que me colocou comida na mesa”

“Essa aberração precisa parar”

“As pessoas acham que travesti é a chacota do povo.” - Cantora Mulher Pepita Por Klisman Oliveira, Maiara Gallon e Morgana Moraes

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“A travesti sofre na pele um preconceito incessável, talvez mais do que qualquer outro membro da comunidade LGBT.” A travesti sofre na pele um preconceito incessável, talvez mais do que qualquer outro membro da comunidade LGBT. A travesti é mulher o tempo todo. Então, por que elas são alvos constantes? Criou-se no Brasil - em especial em regiões colonizadas por europeus - uma cultura intransigente do ódio àqueles que não se enquadram em seus padrões. Por muito menos presenciamos cenas xenófobas e racistas; por que não matar uma

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travesti? Afinal, ela pede para morrer sendo como uma mulher vinte e quatro horas por dia.

“Nós merecemos respeito” De acordo com o levantamento da associação europeia TransRespect, o Brasil foi responsável por 40% dos 2,6 mil assassinatos de transexuais e travestis nos últimos dez anos. Esse número fica ainda mais alarmante quando falamos da expectativa de vida de uma travesti no Brasil: trinta e cinco anos, menos da metade da média nacional que é de setenta e cinco. De acordo com o Williams Institute do Estados Unidos, lamentavelmente 40% das travestis se suicidam em decorrência da depressão. Em meio a esse cenário desastroso, surgem como uma luz no fim do túnel representantes da comunidade LGBT. Um dos maiores nomes entre as travestis brasileiras era Rogéria, nascida no Cantagalo, interior do estado do Rio, a mesma cidade de outra figura célebre, como a mesma declarou: “No Cantagalo, nasceu a maior bicha do Brasil – no caso, eu – e o maior macho do Brasil, Euclides da Cunha”. Desde sua infância, Rogéria tinha consciência da homossexualidade, na adolescência virou transformista e assumiu a carreira de maquiadora. Rogéria, ainda em vida, divulgou em 2017 o documentário “Divinas Divas”, dirigido por Leandra Leal, que contou

sua história e de outras travestis que brilharam nos palcos do Rio no período da ditadura. O filme foi premiado no festival americano SXSW. Mas, como nem tudo é fácil, Rogéria também sofreu muito preconceito até alcançar a glória e o respeito, com os quais viveu durante anos. Outra figura pública que ganhou notoriedade é Priscila Nogueira, de 37 anos, popularmente conhecida como Mulher Pepita. Pepita é uma cantora de Funk, a primeira travesti a ganhar destaque no cenário musical brasileiro. Quando questionada pelo site G1 sobre a responsabilidade de representar as travestis, ela diz: “É uma responsabilidade muito grande, porque nós somos muito apontadas, mas eu penso assim, se Deus não agradou todo mundo não vai ser mulher Pepita que não vai te agradar. Eu sempre vou incomodar”. Pepita também foi questionada sobre como ela lida com o preconceito diário e como é saber que as travestis e pessoas trans são vítimas de lgbtfobia e muitas vezes impedidas de acessar a escola, exercer emprego formal e excluídas de várias esferas da sociedade. Em tom humorado, ela responde: “Eu lido muito bem, eu sei que sou uma pessoa que não tem como passar num lugar sem ser enxergada, não é a toa que eu sou ‘grandona pra caralho’. Tem hora que as pessoas surtam, aí eu pergunto se tá acontecendo algum problema. Porque as pessoas acham que travesti é chacota do povo. Nós, as sapatões, os viados e as mulheres trans merecemos respeito”.

Foto: Mário André

screva “travesti” em qualquer site de busca e tente encontrar algum adjetivo positivo. Você não irá conseguir. A vida de uma travesti é destinada às ruas, às migalhas deixadas por uma sociedade mal-educada, que é diariamente estimulada a apontar armas para seus semelhantes. O erro é estrutural, nossas bases são conservadoras, nossas raízes são escravocratas, portanto, precisamos diariamente exercitar a compaixão, a empatia, o respeito. Se para os privilegiados já é difícil aceitar um negro ou um pobre frequentando a mesma universidade, que petulância seria uma travesti, não é mesmo?

Karla Prado, 26 anos, caxiense, é travesti e enfrenta cotidianamente o convívio em uma cidade conservadora como Caxias: “Eu gosto de morar aqui, fiz muitos amigos, e quase todo mundo que conheço mora em Caxias. O preconceito é enorme, esses dias eu tava na Sinimbú, uma senhora gritou: ‘Essa aberração precisa parar’”, conta. Sobre essa ofensa, Karla comenta com ironia: “Quando ela pagar meu picumã (cabelo na gíria das travestis), eu até penso na possibilidade de responder”. Com tanto preconceito e falta de respeito, o que sobra? Sobram as ruas, as drogas, a prostituição, o submundo. Karla conta que tentou trabalhar no comércio caxiense, mas que nunca deu certo: “Eu tentei trabalhar em mercado, no comércio, em duas escolas, prestei concurso público, mas nunca me chamaram, a prostituição foi o que me colocou comida na mesa”. E o mais irônico é perceber que tudo é um ciclo de ódio. Que lá no início precisamos fechar a porta na cara dessas travestis para que no fim possamos achincalhar com elas nas esquinas. Karla ainda desabafa sobre como se sente em seu próprio corpo: “Olha, eu amo meu corpo atualmente, coloquei prótese, lentes de contato, meu cabelo é natural. Mas eu sinto como se nada disso valesse a pena, sabe! a gente passa maquiagem, faz chapinha, coloca uma roupa legal pra sair na rua e ser chamada de vagabunda”. Logo depois, ela se emociona ao falar da família: “Muitos têm apoio, eu queria muito que minha mãe, que meu irmão me aceitassem, me achassem bonita, eu não escolhi ser travesti, eu nasci assim. E eles nunca entenderam isso”. Karla sonha com um mundo melhor para todos: “Eu desejo que as travestis possam trabalhar, que sejam aceitas, respeitadas como qualquer outro, se eu tenho uma coisa a comemorar é que eu nunca apanhei. Tenho uma amiga que teve o braço amputado”.

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Política

O Brasil que ainda reside nos porões do regime ditatorial

Foto: Mauricio Palma

Michelli em frente à Praça Dante Alighieri em um dia sombrio como os que viveu no período militar Por: Janaine Bagatini, Mauricio Palma e Milena Soares

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permanente. A tortura era utilizada para deixar as pessoas com a mente perdida, com o objetivo de conseguir informações úteis para o governo. Esse período ocasionou muitos traumas. “Há relatos de pessoas que, toda vez que recebiam alguém batendo em sua porta, sentiam o medo de que fossem os militares, mesmo quando a ditadura já havia chegado ao fim”, explica. Ao ser questionada sobre as dificuldades de realizar uma pesquisa sobre a Ditadura em Caxias do

Frequentadora fiel do Arquivo Histórico de Caxias do Sul, Júlia obteve no local o contato de pessoas que viveram a ditadura na cidade e se dispuseram a dar o seu depoimento ao arquivo. A partir desses relatos, ela descobriu que, além da Delegacia de Polícia do Centro, muitos presos políticos também eram detidos e torturados no próprio quartel. “No ranking do Estado, a nossa cidade foi a segunda com mais presos políticos e casos de tortura, ficando atrás apenas da capital, Porto Alegre”, detalha. Em sua pesquisa, Júlia também teve uma descoberta um tanto quanto curiosa. Apesar de Relato de quem viveu serem de partidos políticos diferentes (grande parte deles eram filiados), a maioria dos presos políticos possuíam alguma relação de amizade. Sul, uma cidade que pouco fala sobre o assunto e, de certa forma, “fecha os olhos” para tudo o que ocorreu, ela conta que “a maioria das entrevistas que “Há relatos de pessoas que, foram realizadas com os presos políticos de Caxias do Sul não podem ser reproduzidas para os meios toda vez que recebiam de comunicação e os dados dessas pessoas não poalguém batendo em sua dem ser divulgados. Isso mostra que elas ainda se porta, sentiam o medo de sentem ameaçadas, ainda sentem medo”, declara. que fossem os militares [...]” O caxiense Orlando Michelli sentiu na pele o que é viver em um cenário dominado pelo regime militar. Engenheiro mecânico de formação “Os depoimentos demonstram a preocupação e ex-membro da Vanguarda Armada Revolucioque eles tinham uns com os outros”, conta. Tor- nária Palmares (VAR-Palmares), iniciou a sua vida turas por meio de choques elétricos, chutes e so- política participando de movimentos estudancos foram os mais frequentes aqui no município. tis, que lutavam por reformas políticas, econôUm dos principais instrumentos de tortura foi a micas, urbanas, agrárias e do ensino. Segundo técnica chamada “telefone” em que, com as duas Michelli, os problemas que haviam na época são mãos em forma de concha, o torturador dava ta- os mesmos da atualidade. “Quando se defende pas ao mesmo tempo contra os dois ouvidos do a Reforma Agrária, você está defendendo o sopreso. O impacto era tão brutal que podia rom- cialismo, algo que o capitalismo nunca iria perper os tímpanos do acusado e provocar surdez mitir. Talvez o nosso erro tenha sido buscar a re-

Júlia aprofundou seus estudos por meio de relatos encontrados no Arquivo Histórico

Carnaúba, o barbeiro polivalente Por: Mauricio Palma

Do paraquedas ao bigode do Governador

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s ruas de Caxias do Sul escondem entre seus enormes prédios e casarões histórias de vida que inspiram e, muitas vezes, não são contadas. Quem desce a rua Guia Lopes em direção à Vinte de Setembro já deve ter se perguntado o que faz aquele senhor grisalho de terno, gravata, com um jaleco branco sobressalente, sempre em pé, próximo à parede de um estabelecimento comercial. Trata‐se de Feliciano Carnaúba Correia dos Santos, militar aposentado que há mais de 22 anos trabalha como barbeiro naquele local. O dono de uma energia revigorante sempre recebe seus clientes com um sorriso no rosto e muita história para contar. Com mais de 60 anos de profissão, seu Feliciano relata que o seu ponto é estratégico, pois abrange clientes que vem e vão entre uma viagem e outra da Rodoviária, situada nas proximidades. Viúvo e pai de dois filhos, uma médica e outro advogado que moram em outros estados, seu Carnaúba vive sozinho em Caxias e diz que se nega deixar a sua barbearia para ir morar com os filhos. Ele revela que o hobby e o dom de barbear vem de berço, sua mãe e seus tios tinham a mesma profissão e ensinaram o ofício a ele aos seus 15 anos de idade. No ano de 1959 precisou deixar de lado a sua profissão principal para servir ao exército no

Foto: Mauricio Palma

om olhares mais superficiais, Caxias do Sul sempre pareceu muito distante dos conflitos do Regime Ditatorial de 1964 a 1985, que eclodiu no Brasil. Porém, “Quem não tem colírio, usa óculos escuros”, segundo a letra “Como Vovó Dizia” de Raul Seixas. Desde 1973, o músico já alertava sobre os perigos de não olhar atentamente para a sociedade. Durante esse período não houve eleições diretas para presidente. O Congresso chegou a ser fechado, mandatos foram cassados e houve censura à imprensa. Isso sem falar nas mais de 400 pessoas mortas ou desaparecidas. Em 31 de março de 2019 o regime completou 55 anos. O aniversário foi motivo para comemoração por parte de muitas pessoas. Dentre elas, o próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro, que nunca escondeu que, para ele, não houve ruptura antidemocrática por parte dos militares. No dia 25, antes do aniversário do golpe, de acordo com o G1, o presidente ainda determinou ao Ministério da Defesa que fizesse as comemorações devidas com relação à data. Tudo isso gera questionamentos à população, que não compreende a comemoração de um regime que levou a tantas mortes. Motivada por esses pensamentos, a estudante de História da Universidade de Caxias do Sul (UCS) Júlia Daros realizou uma pesquisa acadêmica sobre as consequências do período ditatorial em Caxias do Sul. De acordo com a estudante, a sua pesquisa mostrou que “muitas pessoas acreditam que não houve nada aqui em Caxias, que as perseguições, torturas e mortes ocorreram somente nas cidades maiores, como Porto Alegre e nos outros estados”.

Foto: Mauricio Palma

A história que não deve ser esquecida

forma por meio de uma guerrilha, mesmo que os nossos objetivos tenham sido os melhores”. Michelli foi preso duas vezes, uma em 1968 e a outra em 1970. A segunda, que durou 60 dias, foi a mais marcante em sua vida. “Eu estava em minha casa, quando três delegados da polícia bateram na minha porta. O que eu não sabia, é que nessa altura o quarteirão da minha casa já tinha sido cercado pelo exército”. Michelli foi detido no dia 9 de maio, um dia antes do Dia das Mães, e foi transferido para um quartel de Porto Alegre, onde foi torturado na chamada “Cadeira do Dragão”. O instrumento de tortura era composto por uma cadeira de madeira em que o indivíduo ficava amarrado enquanto levava choques. O militante conta que “o pior não eram os choques, mas sim o impacto das minhas pernas contra uma madeira que ficava em frente à cadeira”. Depois de tudo o que viveu, Michelli faz questão de relacionar o que ocorreu no período ditatorial com o cenário atual no Brasil. “Durante a ditadura, a imprensa era muito parecida com a de hoje: só dava notícias do sistema. Nunca temos certeza sobre o que está sendo divulgado. Quem não está envolvido, acaba ficando alienado. Para essas pessoas nós éramos marginais e ‘gente que não tinha o que fazer’”, explica. Anos depois de ser inocentado, Michelli participou do Movimento de Ex-Presos Políticos (MEP), que buscava indenizar aqueles que foram injustiçados durante o período. Ao ser questionado sobre qual ele acredita ser solução para a situação atual do nosso País, Michelli declara que “apenas o povo pode mudar a realidade, mas para isso, é preciso que as Forças Armadas estejam ao lado de todos”.

Carnaúba atende há 22 anos como barbeiro Rio de Janeiro, se tornando paraquedista; mesmo assim retomava seus dotes sendo o barbeiro reserva do exército. Entre idas e vindas, seu Carnaúba foi também preparador mecânico de kart em São Paulo, fato do qual se orgulha muito, e estampa as paredes de sua barbearia com matérias de jornais e fotos desta época, bem como registros de seu período como militar. O experiente profissional trabalha com valo-

res bem acessíveis pois, segundo ele, isso é um diferencial para atrair os clientes. Dentre as suas realizações, a de maior destaque e orgulho é ser o barbeiro do ex‐governador do Estado, José Ivo Sartori, grande amigo de seu Feliciano. “Costumo dizer que nunca escolhi ser barbeiro, mas sim que essa profissão me escolheu, por isso sempre faço questão de estar engravatado e bem vestido para causar boa impressão aqueles que passam pela minha barbearia” declara Feliciano.

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Educação

Infâncias e adolescências marcadas pela violência Chacinas em escolas despertam a urgência de o tema ser discutido

Foto: Lucas Marques

falamos em casos recorrentes, sempre tem uma história atrás dessa que estamos ouvindo”. Délcio confirma tal afirmação, dizendo que: “Toda forma de exclusão reforça a violência; exclusão é um ato violento”. Além disso, para o pedagogo, é necessário que a escola compreenda a realidade de algumas famílias, que podem ser, por exemplo, monoparentais, ou seja, compostas pela mãe ou pai e seus filhos, sem relação afetiva com algum cônjuge. “A gente não pode culpabilizar a família. (...) Imagine uma criança que vive numa casa que só tem a mãe, e que essa mãe tem que trabalhar todos os dias para garantir o sustento da família, mas que é chamada (quando se faz necessário) numa série de instituições que atendem no mesmo horário de seu trabalho, o qual não pode perder por ser sua fonte de renda. Isso mostra um pouco da complexidade. Por isso, são importantes projetos escolares que fortaleçam a relação com a família. Tem pais que querem cuidar dos filhos, só não sabem como”, explica Délcio. O órgão da rede de proteção do município que acolhe casos de violência encaminhados pelo Conselho Tutelar é o Centro de Referência Espe-

O agressor também é vítima

“Toda forma de exclusão reforça a violência; exclusão é um ato violento.” - Délcio Agliardi, mestre em educação Por Daniela Affonso, Lucas Marques e Thais Strapazzon

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violência e não é. A primeira ideia é distinguir incivilidade de violência. Incivilidade é cuspir no colega, passar a perna (dar um tranque), fechar a porta na cara do outro. São situações comportamentais típicas de quem não está civilizado para conviver na coletividade. Depois, entramos no outro tipo que é a violência nas escolas, que são todas aquelas tipificadas como violência física, psicológica, bullying, violência de classe social e a hostilidade”. A partir disso, as escolas precisam identificar situações violentas para denunciá-las, comunicando a polícia sobre o ato ocorrido e protocolando-o através de um Boletim de Ocorrência..

Apoio familiar O Conselho Tutelar também deve ser procurado, já que é o órgão que irá atuar a partir do momento que algum direito da criança e/ou do adolescente for violado. Após uma conversa entre o agressor, sua família e os conselheiros, esse jovem será encaminhado para um atendimento mais específico: psicológico, neurológico ou outro. Só no primeiro trimestre deste ano, o conselho de Veranópolis registrou quatro casos - a cidade tem 25 mil habitantes - ou seja, um número alarmante. A conselheira tutelar Jaciara Piccoli destaca a falta de participação da família na resolução do problema: “Acontecem muitas situações em que há dificuldade em conversar com as famílias, pois

elas não têm mais interesse. Principalmente em casos recorrentes, os pais não se interessam em conversar. Vêm lá de trás, os pais envolviam-se nesses casos de violência, agora os filhos e ‘amanhã ou depois’, os netos”. O conselho tutelar também conta com o serviço de denúncia anônima, onde, pelo disque 100, qualquer pessoa pode relatar um caso

“Não se pode desmerecer o que está acontecendo, é preciso validar sempre, porque são pessoas em construção.” dessa maneira.” Isso afeta suas relações, afinal: “a adolescência já é um período de autoafirmação, em que você sente que precisa estar num grupo, que precisa aparecer, e aí acaba reproduzindo o que acontece em casa. (...) Claro que existem também questões psicopatológicas, adolescentes que têm transtorno de personalidade, por isso avaliações psicológicas são tão importantes”. Em ações do CREAS junto às escolas, algo constantemente reforçado é a importância do diálogo aberto, de falar sobre a violência e ouvir as partes: tanto o agressor, quanto a vítima; para que assim se compreenda o que está acontecendo e se acione as famílias dos envolvidos. O diálogo é importante para validar os sentimentos dos adolescentes, para procurar entender o que está acontecendo, de onde vêm aqueles sentimentos de raiva que levam o jovem à violência. As profissionais do centro concluem que: “Não se pode desmerecer

o que está acontecendo, é preciso validar sempre, porque são pessoas em construção. (...) As consequências psíquicas e sociais da violência são muitas. Ela pode ocasionar isolamento social, depressão, baixa autoestima, até questões ‘mais graves’ como automutilação e até suicídio”. Os casos de violência nas escolas, que por vezes resultam em atentados como o mencionado no início desta matéria, podem estar ligados a aspectos culturais, que reforçam a violência como um espetáculo. Marcela Guindani menciona: “eu vejo uma relação com o momento que estamos vivendo, que o país vive; um momento de grande crise, de desemprego. Isso acaba refletindo no comportamento das pessoas”. Nesse sentido, o conselheiro Willian aborda: “aqui no conselho nós não estamos julgando pai, mãe, adolescente ou criança. A gente vê que as pessoas são o momento, às vezes é apenas um momento de instabilidade que a família está passando, ou o adolescente (que passa por uma fase de transição, sem o devido acompanhamento). Então, por vezes, é esse momento que acaba culminando numa denúncia.” A violência nas escolas é uma triste realidade enfrentada pela sociedade, não só brasileira, mas mundial. Debater sobre o assunto e as maneiras de resolvê-lo pode evitar mais vítimas. Em Suzano, 10 foram as vítimas fatais, mas diariamente milhares de pessoas são afetadas pelas mais diversas formas de violência. Não se trata de uma escolha, mas da realidade que precisa ser enfrentada para que possa ser revertida. Para Délcio: “é importante entender que a escola continua sendo uma instituição segura (...) é um lugar genuinamente de educação”.

Arte: Thais Strapazzon

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massacre ocorrido na Escola Raul Brasil, em Suzano, na Região Metropolitana de São Paulo, no dia 13 de março deste ano, reacendeu o debate sobre a violência nas escolas brasileiras. O atentado, que resultou em dez mortos, chocou uma população frágil, desamparada e com medo. Na Região da Serra Gaúcha, casos como esse não são recorrentes, porém, a violência faz parte do dia a dia de alunos, professores e funcionários das escolas das redes pública e privada. Os motivos de tais revoltas podem ser inúmeros mas, de acordo com profissionais da área educacional, normalmente estão ligados a questões familiares: traumas físicos e psicológicos, falta de diálogo e o sentimento de abandono. Segundo o pedagogo Délcio Agliardi, mestre em Educação pela UFRGS: “Geralmente a ofensa à outra pessoa é uma necessidade não atendida. Isso quem diz é o grande teórico da comunicação não violenta, Marshall Rosenberg. Ele diz que toda vez que emana, toda vez que surge uma atitude violenta, é porque quem está sendo violento não teve uma necessidade humana atendida”. Para Délcio, a violência das escolas é resultado, muitas vezes, da incompreensão do papel e importância da mesma para a sociedade: “A escola não é uma ilha, ela faz parte da sociedade, e a sociedade não tem cultivado as melhores boas maneiras”. Explicando que é necessário compreendermos a diferença entre violência e incivilidade: “O senso comum coloca tudo como

cializado de Assistência Social (CREAS). A psicóloga e coordenadora do centro, Marcela Guindani, e assistente social, Sandrine Gregol, relatam que na maioria dos casos é difícil que o agressor compareça aos atendimentos, algo preocupante, tendo em vista que, dessa forma, o problema dificilmente será solucionado. Esses dados vão ao encontro do pensamento de Délcio, que afirma: “na expectativa de atingir o outro, o gera-

dor da violência é duramente afetado. Algumas vezes, precisando de mais ajuda que a vítima”. Marcela relata também que: “as crianças e os adolescentes, hoje, estão crescendo com uma menor tolerância à frustração. Então, se eles vêem em casa que as situações se resolvem no grito, na violência, podendo ser física ou psicológica, agressão verbal, moral, vão acreditar que as relações são assim e que devem funcionar

“Quando falamos em casos recorrentes, sempre tem uma história atrás dessa que estamos ouvindo”

de agressão, abuso ou ameaça, porém, quando o caso ocorre dentro da escola, a denúncia deve ser feita de outra forma: “Algo que nós sempre cobramos das escolas é que, se existem evidências de fato, a denúncia não seja feita através do disque 100. É um dever da escola nos notificar”, afirma Jaciara. A falta de comprometimento das famílias e dos jovens em comparecer nos atendimentos necessários acaba gerando um ciclo de situações agressivas em diversas escolas. O conselheiro Willian Dornelles conta que há casos de alunos que já mudaram quatro vezes de escola, mas para resolver a situação e auxiliar esses alunos é preciso identificar a raiz do problema: “Quando

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Entrevista

Turismo

A vida de um homem trans

Enoturismo em ascensão na Serra Gaúcha

Os conflitos e o dia a dia de quem busca se encontrar em si mesmo

Vale dos Vinhedos é um dos principais destinos, principalmente nos meses mais frios

Foto: Lucas Marques

Foto: Carine Amaral

Tainan, 24 anos, homem trans e feliz consigo mesmo Por Carine Amaral e Sofia Mazzarollo

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cidade de Bento Gonçalves é conhecida como Capital Brasileira da Uva e do Vinho. É reconhecida pela força de sua economia e por ser um importante pólo industrial e turístico do sul do Brasil. O enoturismo, o turismo de negócios e eventos, e a diversidade de roteiros turísticos que a cidade oferece levam o nome de Bento Gonçalves aos quatro cantos do país. Bento é atualmente o principal destino enoturístico, sendo o pioneiro no desenvolvimento do enoturismo no Brasil. O Vale dos Vinhedos é a primeira região a obter Denominação de Origem para seus produtos. Conversando com o Enólogo da Vinícola Miolo (foto), Rodinaldo Severo Goularte, a Serra Gaúcha é tradicional por ser umas das principais regiões frias do país. Ele acredita que este seja um fator relevante como atrativo, e junto a isso, é tradicional na produção de vinhos, na qual se concentra um grande número de vinícolas, que hoje, apresentam estrutura semelhante a vinícolas internacionais, além disso, também apresenta a tradição da culinária de imigração italiana. Rodinaldo ainda acrescenta que acredita muito no potencial do enoturismo, pois a cada ano o número de turistas cresce. Só o Vale dos Vinhedos, segundo informações da Aprovale, recebe cerca de 400 mil turistas por ano. É uma região apreciada por recursos naturais, belas paisagens, além da forte cultura e história que lá estão enraizadas. Bento Gonçalves foi o município que mais se destacou na produção de vinhos e ostenta, atualmente, o título

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de maior produtor de uvas do Brasil. Essa distinção, segundo o enólogo, se deve às características únicas de cada região, devido a diversidade de solos, clima e a mão de obra, que juntos constituem o terroir. Na Serra Gaúcha, o terroir é especial, principalmente em relação à produção de espumantes com boa acidez, que hoje já são reconhecidos internacionalmente. No segmento turístico, a cidade se evidencia por grandes feiras, eventos e rotas turísticas, e por ter programação nas quatro estações, permitindo ao visitante ter experiências únicas durante todo o ano. Um dos atrativos é o Wine Garden, no Vale dos Vinhedos. Morgana Miolo - idealizadora do espaço, afirma que as regiões com maior representatividade turística na vinícola são dos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Ela explica o sucesso da proposta: “A nova onda é a experiência, e esta, eles podem vivenciar ao visitar a vinícola, podendo participar de processos da elaboração dos vinhos, de atividades no campo e até tomar o vinho direto nas barricas de carvalho. E ainda, temos uma atração na qual é possível apreciar a natureza de forma descontraída, que é o Wine Garden, um piquenique nos jardins da vinícola que proporciona lazer, aliado aos vinhos, com amigos, família com seu pet, pois o Wine Garden é pet friendly”. Sobre os impactos ao meio ambiente, a empresária relata que a prática sustentável é realizada através do reaproveitamento de resíduos dos processos de vinificação, desde a adubação nos vinhedos com derivados da uva e também das

embalagens que são destinadas a recicladoras. A vinícola também possui ETE (estação de tratamento de efluentes), na qual faz o tratamento da água. Os turistas ficam encantados com as particularidades culturais e paisagísticas da região, que foge ao estereótipo do Brasil. Tudo chama a atenção: Janaína Valente, que é contadora residente no Rio de Janeiro, relata que amou a Serra, princi-

“Sempre que viemos, passamos por Gramado e Canela, e Bento não pode faltar no nosso roteiro, por ser uma cidade linda, com um povo acolhedor, experiências culinárias incríveis e por ter vinícolas com os melhores vinhos do país”. palmente pelo clima, tradição e paisagens daqui. “Sempre que viemos, passamos por Gramado e Canela, e Bento Gonçalves não pode faltar no nosso roteiro, por ser uma cidade linda, com um povo acolhedor, experiências culinárias incríveis e principalmente por ter vinícolas com os melhores vinhos do país”. A única ressalva é sobre os preços cobrados em restaurantes e estabelecimentos, mas ela é otimista: “...a cidade tem várias opções de hotéis e preços que cabem em todos os tipos de bolsos. Sobre os restaurantes, até achamos barato na grande maioria, pois aqui se come muito bem”.

Por Klisman Oliveira e Lucas Marques

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arba por fazer, boné na cabeça, mãos gesticulando rapidamente, fala ansiosa para compartilhar sobre como é viver a realidade, que até pouco tempo, era só um sonho. Este é Tainan Coimbra, 24 anos, homem trans, bissexual e, finalmente, se sentindo completo. Como deve ser não se reconhecer no espelho, ver uma face que não é sua? Essa é a realidade de inúmeros transsexuais pelo Brasil e no mundo. No entanto, Tainan é uma exceção, uma história fora da curva - sim, a agressão e morte de transsexuais é normal. Tainan foi aceito pela família, que em momento algum o abandonou em qualquer processo da transição. Acolhimento esse que, ao contar, se emociona: “Eu sou uma pessoa de sorte”. Aos 15 anos, ainda se identificando como mulher, Tainan revelou à família que era lésbica, talvez por não entender o que acontecia em sua mente. Contudo, ao 18 anos, o termo “transgênero” apareceu de forma bem incomum. Foi em um programa de humor na televisão que Tainan descobriu Tarso Brant, um dos primeiros homens trans à surgirem na mídia como ‘homem transgênero’. Um almoço de Páscoa foi determinante na vida do jovem que só queria se encontrar. Ao contar para os familiares, se surpreendeu pela recepção: “Você quer chamado de ele ou de ela? Qual nome vai ser?”. A mais pura normalidade. A conversa com a mãe foi a mais esclarecedora possível. “Eu sempre sou-

be, desde que tu era pequeno, que tu era um ‘piá’”. Há dois anos, Tainan realizou a mastectomia, cirurgia de retirada dos seios para se sentir completo, até aquele momento não havia intenção de enfrentar o processo hormonal. Êxito cirúrgico, mas não o suficiente para a realização pessoal, duas semanas depois, a introdução de hormônios masculinos começou.

ção de gênero nos documentos. Tainan batalhou muito para isso, afinal, era mais um sonho a ser alcançado. Ao olhar os documentos como ‘Tainan’, teria certeza que estava olhando para si mesmo. O preconceito é enorme, mas nesse quesito ele ainda se considera um homem de sorte. Apenas uma vez passou por uma experiência constrangedora, em uma balada de Bento Gonçalves, onde reside. “Não me deixaram entrar no banheiro masculino, eu também não iria entrar no feminino. Eu simplesmente saí, nunca mais voltei”. Entretanto, “Eu sou um homem de sorte” estes locais precisam se acostumar com as novas realidades. Pessoas trans estão em todos os lugares. Estão à procura de direitos, reivindicando, gritando, pedindo socorro, sobrevivendo. Tainan Quando falamos que Tainan é um cara de sorte, não estamos indo longe demais. Atualmente, contou com o privilégio de ser apoiado, contudo, ele trabalha com a família, ou seja, não passou a grande maioria sofre com a intolerância. O SUS por processos de seleção para vagas de empre- não se encontra preparado para apoiar a comugo, o que no Brasil, é uma realidade bem difícil nidade trans, tanto que Tainan precisou procupara pessoas trans. Muitas vezes rejeitadas, exclu- rar pelo sistema privado para realizar seu sonho. Muitas vezes são destinados à prostituição, ídas e, se contratadas, ficam com as vagas mais escondidas possíveis, afinal, os ditos normais marginalização e abandono. É necessário acordar são “sensíveis demais” para conviver com eles. todos os dias e lutar para sobreviver. É o Tainan, Documento de identidade, carteira de moto- é a Pâmela, é Dandara, é Tarso, é Thammy, é Rorista, carteira de trabalho, certidão de nascimen- berta Close. Transsexuais estão caminhando do to; todos estes documentos nos fazem cidadãos outro lado da rua, procurando por uma sombra brasileiros. Temos nomes, sobrenomes, números e no sol escaldante, estão à procura da felicidagênero. No momento atual, a lei brasileira é mais de, assim como qualquer um. Todos ansiosos a flexível e ajuda as pessoas a realizarem a redesigna- cantarem para si mesmos, quem realmente são.

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Solidariedade

O bem que contagia

Iniciativa itinerante do Vale do Caí transforma vidas de pessoas em situação de rua e voluntários Por Igor Panzenhagen e Luciano Weber

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Foto: Igor Bulsing Schott

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ram 21h55min quando cheguei no portão da frente de uma bela casa, no bairro Jardim do Vale, em Bom Princípio. Lá de fora, já via uma kombi branca pronta para a viagem. Cheia de adesivos, a kombi chama a atenção por onde passa: “Fraternidade”, “paz”, “amor”, “gratidão” e “solidariedade” não são apenas palavras que enfeitam o veículo: ao longo dessa viagem eu entenderia como elas expressam o sentimento de todos os envolvidos nesse projeto. Muito mais que pessoas que entregam alimentos a moradores de rua, necessitados ou que não têm condição de ter um alimento em casa, eles são “ouvintes”, são “irmãos” ou “tios”, sempre dispostos a ajudar. Saímos do Vale do Caí às 22h03min, já avisando aos outros integrantes do grupo (que costumam se tratar como “irmãos”) por mensagem, para que pudessem se preparar. Recolhemos dois em Portão e mais quatro em São Leopoldo. Todos esses com vidas corridas, que trabalharam no dia e trabalhariam no dia seguinte, também. A felicidade no olhar de cada um, assim que a Kombi os recolhe, é animadora. A amizade que se cria, como se fosse um vínculo, com quem frequenta as noites de quinta de doação, parece de anos. A conversa vai, durante quase 45 minutos, trazendo mais histórias das semanas passadas. E sempre projetando mais e mais quintas. O projeto, que foi criado em 2014 por um garoto que queria ajudar os outros, vai multiplicando aficionados. Começou com ele, seu pai, e mais alguns. Eram jovens, com idades entre 14 e 17 anos. Paulo Hallal, médico e pai do jovem, poderia estar satisfeito com sua vida mas resolveu reacender a chama que havia começado em sua mente anos atrás. Até hoje ele é o líder do projeto. É quem puxa à frente e vai angariando mais adeptos. No breve bate-papo que tivemos, ao contar as histórias da Kombi, ele comentou que “Contaminar as pessoas com o bem”, era o lema que ele levava Voluntários fazem entrega dos alimentos na Catedral Metropolitana consigo, o que chamou muito a minha atenção. Ao chegar em Porto Alegre, paramos no viaduto da Conceição, no centro histórico. Ao des- to para que os primeiros sacos de pães e garrafas cio da Justiça, encontramos dezenas de pessoas. cer da Kombi, já estávamos rodeados de mo- térmicas com sopas acabassem. Mas com o maior Deitadas, fugindo do frio, se espremiam entre as prazer voltávamos à Kombi para pegar mais. paredes dos imponentes prédios. Ao escutar a Após acabar de entregar os alimentos naquele buzina da Kombi do Bem, elas correram alvorolocal, por volta da 00h30min, partimos para uma çadas em nossa direção. As que não levantaram, “A felicidade e gratidão rua que ia de encontro com o Mercado Público. acabaram recebendo os alimentos de nossas eram visíveis nos semblantes Ali, entre as calçadas e ruas de paralelepípedo, mãos. Felizes, algumas até conseguiram repetir a daqueles que estavam ali.” encontrávamos mais pessoas em situação de rua. refeição, pois a mesma já estava acabando. Só soTodas com sorrisos enormes ao receber a cumbu- braram as garrafas, as sacolas e uma kombi vazia. quinha feita de caixinha de leite, onde colocávaA única coisa que na Kombi ainda transborradores de rua. Eles já conheciam aquele carro mos a sopa quentinha. Eles devoravam os pães e dava, era a certeza de dever cumprido. A alegria branco que estava ali. Na noite, o cardápio era bananas. Não me espantava, pois sabia que o dia por proporcionar esperança e solidariedade para sopa de feijão, pão, bolacha, bananas e água. provavelmente devia ter sido de fome. A maioria tantas pessoas necessitadas. Mas depois disso, Tudo preparado na véspera. Também tínha- pegava os sacos com as bolachas e guardava de- na próxima semana, já estariam outras pessoas lá mos sapatos, roupas e cobertas para distribuir. baixo das sacolas. Diziam que no outro dia aquilo ajudando quem precisa. A Kombi do Bem entrega Começamos a descer a grande avenida, que mataria a fome. Outro ponto que chamou a mi- cerca de 23 mil refeições por mês. Apesar de pareserve de ponto de ônibus durante o dia, entregan- nha atenção foi como eles dividiam as coisas que cer pouco para acabar com a fome no mundo, faz do o que tínhamos em nossas mãos. A felicidade recebiam. Sabiam que outros, na mesma situação toda a diferença para quem realmente precisa. E e gratidão eram visíveis nos semblantes daqueles que eles, também estavam sentindo fome e sede. quanto a mim, percebo que essa experiência me Dali, partimos para a última parada. O local deixou mais humano, torcendo para que tenha que estavam ali. Nunca recebi tantos agradecimentos, tantos obrigados e tantos “que Deus te é o centro de todo o poder gaúcho. Entre o Pa- outras oportunidades de conhecer mais projetos abençoe”, como naquela noite. Não demorou mui- lácio Piratini, a Assembleia Legislativa e o Palá- e pessoas assim, que ajudem a mudar o mundo.

08/07/2019 22:17:47


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