Revista Entrelinha 2019/2

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Entrelinha

POLÍTICA

Universidade de Caxias do Sul/Design de notícia e planejamento visual do jornalismo - 2019/2

O protagonismo dos canudinhos Como eles se tornaram o símbolo da conscientização sobre o lixo plástico

Pág. 3 TRÁFICO NA SERRA GAÚCHA Porque os traficantes estão migrando para o interior

Pág. 6 REALIDADE DOS CIGANOS O preconceito que sofrem e como eles vivem

Pág. 16 LEI DO IMPORTUNO O que se enquadra como importunação sexual

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AO LEITOR EXPEDIENTE Reitor Dr. Evaldo Antonio Kuiava Diretor da Área do Conhecimento de Ciências Sociais Me. Fábio Eberhardt Teixeira Coordenador do curso de Jornalismo Me. Marcell Bocchese Disciplina Design de Notícia e Planejamento Visual no Jornalismo

SUMÁRIO POLÍTICA Tráfico de drogas no interior

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MEIO AMBIENTE Canudinhos como conscientização

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HORIZONTES A realidade dos ciganos

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REALIDADE Veranópolis, a Terra da Longevidade

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PALADAR Via Orgânica em Garibaldi

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Professora Dra. Marlene Branca Sólio

AUXÍLIO Casa Lar, uma história de superação

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Projeto Gráfico Yasmin Signori Andrade

EXEMPLO Projeto Nono Giacomelli leva amor

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Alunos Almeri Trucolo Angonese Eduarda Eitelven Bucco Franciele Pedroso Gustavo Colferai Jesse Reis Lopes Letícia Rodrigues Kreling Mariana Peglow Ávila Paola Paim Vedovelli Raquel da Silva Carvalho Thays Emilli de Paula Tífani Dutra Yasmin Signori Andrade

HUMANIDADE Importunação sexual e nova lei

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Campus-Sede Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130 Bairro Petrópolis - Caxias do Sul-RS 95070-560 Telefone (54) 3218-2100

PEQUENOS PASSOS Desde o surgimento do movimento feminista, na segunda metade da década de 60 do século, mulheres de todo mundo vêm lutando por equidade em todos os âmbitos sociais. Entretanto, muitos homens, e até mesmo mulheres, têm se mostrado contrários às ideias feministas. Um dos argumentos mais utilizados é o de que não há mais discriminação de gênero e que o discurso feminista é radical e extremista. Dados coletados por meio de pesquisas nos mostram que as mulheres ainda precisarão lutar muito para alcançar um lugar seguro e estável na sociedade. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), atualmente, há mais mulheres com dificuldade de encontrar trabalho do que homens. Comparativamente, a taxa de desemprego para homens no mundo é de 5,2%, ante 6% para o público feminino. Na imprensa brasileira, a presença das mulheres repre­sen­ta menos da metade do setor, conforme dados coletados­ neste ano pelo Workr, plataforma de comunicação corporativa.­ Ao total, são 15.654 mulheres exercendo a profissão, o que representa somente 36,98% do mercado da imprensa no País. Mas a discriminação no ambiente de trabalho não é o único desafio enfrentado pela mulher brasileira. Em levantamento, o Portal G1 constatou aumento no número de registros de feminicídios no País – quando as mulheres são mortas em crimes de ódio, motivados pela condição de gênero. Em 2018, foram 1.173 mortes, 126 a mais do que no ano anterior. A esperança ainda paira nas pequenas conquistas que vêm sendo­ alcançadas ao longo dos anos. Em setembro de 2018, como mostra a reportagem das estudantes de Jornalismo: Jesse Reis Lopes,­Letícia Kreling e Raquel Carvalho (página 16), foi protoco­la­da­uma lei que criminaliza o ato de importunação sexual. É por­meio desses pequenos passos - a essência do ser humano - que tor­na-se possível buscar motivação para continuar a luta a favor dos gru­pos­ excluídos.


POLÍTICA

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Serra gaúcha no radar do tráfico de drogas Facções transferem para o interior violência e criminalidade comuns em centros urbanos

O tráfico de drogas é um problema tão intrínseco ao Brasil, que chega a ser associado com a cultura nacional. Filmes como “Cidade de Deus” (2003) e “Tropa de Elite” (2007) são exemplos de obras que popularizaram o problema, principalmente sua violência. Os moradores da Serra gaúcha, uma das regiões mais desenvolvidas no País, talvez não imaginassem conviver com a violência vista na dramaturgia ou nos noticiários das grandes capitais. A população de Garibaldi, município com 34 mil habitantes, começou a presenciar, nos últimos anos, cenas típicas de cidade grande. Em 2017, um homem foi queimado vivo, e uma mulher foi morta a facadas. Em 2018, uma denúncia na imprensa revelou que dezenas de famílias do bairro Fenachamp foram expulsas ou se viram obrigadas a deixar sua casa, pela coação e pelo medo da crescente violência. Com 40 anos de Polícia Civil, o delegado Clóvis Rodrigues de Souza explica que o tráfico começou a mostrar a cara de forma física em Garibaldi há três anos, causando um impacto profundo na cidade. “Famílias sendo expulsas para que suas casas servissem de boca de fumo, veículos incendiados, necessidade de identificação quando pessoas entravam nos bairros. Nunca tivemos algo parecido antes. Isso gerou uma mudança de comportamento”, salienta.

Impactos na Capital do Vinho

Se Garibaldi se viu atordoada pelo aumento da criminalidade, nenhuma outra cidade da região exemplifica a epidemia de violência causada pelo tráfico, como Bento Gonçalves. Em 2018, o município de 119 mil habitantes registrou o ano mais violento de sua história: 52 assassinatos. Foram 43,68 mortes a cada 100 mil pessoas, taxa maior do que a nacional, de 30,3 por 100 mil habitantes. Nos quatro primeiros meses de 2019, foram 10 homicídios. A maioria dos crimes é principalmente por disputas entre os grupos criminosos pelo controle de áreas. O capitão da Brigada Militar do município, Caetano de Souza, conta que “existem associações criminosas que chegam ao traficante local e dizem: ‘a partir de hoje, você é obrigado a comprar de mim’. Assim, ele acaba substituindo o ponto de tráfico, que era local, pelo seu”, relata.

O interesse na região

Há um fator essencial para entender como o tráfico tem alcançado cidades pequenas: o poderio financeiro. Garibaldi e Bento Gonçalves ostentam o segundo e o terceiro maior PIB per capta da região, respectivamente. “Quando se fala em entorpecente sintético, por exemplo, tem-se um perfil de consumidor diferenciado daquele que vai até a favela buscar a pedra de

Foto: Gustavo Colferai

Eduarda Bucco, Gustavo Colferai e Yasmin Andrade

Facção deixa recado em um muro, após polícia estourar ponto de tráfico em Garibaldi crack. No caso do primeiro consumidor, a droga chega até ele. Há uma outra modalidade de contato entre o traficante e o usuário. E isso interessa ao tráfico. É uma outra forma desse crime ser praticado”, explica o delegado de Garibaldi. Essa situação foi revelada em julho de 2018, quando seis pessoas foram presas na Operação Navalha, que combateu drogas enviadas por tele-entrega. A mesma facção criminosa que se instalou em Garibaldi, realizava o serviço também em Bento Gonçalves e Carlos Barbosa.

O trabalho de combate

Clóvis Rodrigues de Souza explica que, por Garibaldi ser pequena, a Polícia Civil atua com sobrecarga de trabalho, “mas o tráfico virou

a prioridade das prioridades. É o objetivo principal de combate”. Em Bento Gonçalves, o capitão Souza explica que o foco é combater vendedores e os pontos de venda. “A nossa estratégia de policiamento está em cima dos traficantes, já que o número de usuários infelizmente é grande.” Já o Conselho de Segurança Pública de Bento Gonçalves (Consepro) trabalha com foco na prevenção. “Faremos uma campanha educacional nas escolas, conscientizando as pessoas que o consumo de drogas colabora com o tráfico. Até para dar exemplo do que se fez com o cigarro. Antigamente, existia um consumo deliberado, hoje há mais consciência naquilo que se está fazendo”, revela o presidente do conselho, José Carlos Zortea.

Liberação das drogas O fator mais polêmico da discussão sobre as drogas é a liberação do consumo. O Supremo Tribunal Federal decidirá este ano se o porte de drogas para consumo próprio é crime. Defensores argumentam que liberar colocaria fim ao narcotráfico e diminuiria a criminalidade. O delegado Clóvis Rodrigues de Souza é contrário à decisão, indicando principalmente a saúde. “Uma pessoa que utiliza cocaína não sabe que, além do pó, ali vai ácido sulfúrico, querosene, cal e químicos. Isso causa dependência psíquica”, explica. Ele também rechaça a ideia de a liberação combater o tráfico: “Onde já se viu traficante obedecer leis de mercado? Em um país que legalizou, você pode comprar até 100 gramas. Mas, se quiser fumar mais 200, terá sempre o mercado paralelo, que é o tráfico”.


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MEIO AMBIENTE

Protagonismo dos canudinhos na co “Se empilhássemos os canudos produzidos pelos brasileiros em um ano, seria possível construir um muro de dois metros de altura, que daria uma volta completa ao redor da Terra” Eduarda Bucco, Gustavo Colferai e Yasmin Andrade O Brasil é o quarto maior produtor de lixo plástico do mundo, de acordo com o último relatório do WWF International. Os impactos provocados por esses resíduos, no meio ambiente, serviram de motivação para o início de inúmeras campanhas. Nesse contexto, os canudinhos plásticos aparecem como protagonistas e têm mobilizado, inclusive, o Poder Público. Em Caxias do Sul, está em análise pelas comissões da Câmara de Vereadores o Projeto de Lei n 157/2018. O objetivo é proibir “a comercialização e a utilização de canudos plásticos em hotéis, restaurantes, bares e similares”, no município. Mas por que os canudinhos foram escolhidos para combater um problema que envolve tantos outros plásticos? De acordo com a bióloga farroupilhense Fabiana Inês Bertani Zucco, o canudo é um material muito leve, que acaba sendo levado pelo vento. “Mesmo que vá para aterros controlados, eles acabam indo parar nos rios e chegando até os mares”, esclarece. Membro da Associação Farroupilhense de Preservação do Ambiente Natural (Afapan), Fabiana ainda atribui a relevância dos canudinhos em campanhas ao grande volume de produção no País. “Se empilhássemos os canudos produzidos pelos brasileiros em um ano, seria possível construir um muro de dois metros de altura que daria uma volta completa ao redor da Terra”, exemplifica. O problema relacionado à grande quantidade de canudinhos produzidos no País se torna ainda mais evidente em regiões litorâneas. A bióloga porto-alegrense Louize Paz, especialista em Meio Ambiente e Biodiversidade, conta que os quiosques nas praias são vilões do acúmulo desse material. “O canudo voa com mais facilidade, principalmente nas praias do Litoral norte do RS, onde o vento é ‘nordestão’”, acrescenta. Outro agravante está relacionado ao baixo potencial de reciclagem dos canudos plásticos. “O canudinho é feito com materiais de baixa qualidade, então não há intenção de reciclar esse plástico”, explica Fabiana.

Efeitos nocivos

O plástico, em si, representa uma grande ameaça à biodiversidade, afetando a cadeia alimentar, causando a morte de animais e da fauna aquática. Além disso, o canudinho é uma grande fonte de formação de microplásticos, o que o torna ainda mais prejudicial. “Esse microplástico absorve os metais pesados e os agrotóxicos, então o animal se alimenta disso. Como comemos esses animais, acabamos ingerindo tudo isso também”, explica Fabiana Zucco. De acordo com Fabiana, estima-se que 90% das espécies marinhas já tenham ingerido plástico em algum momento de sua vida. O resultado da dissertação de mestrado da bióloga Sue Bridi Nakashima, pela PUCRS, evidencia esse dado. Em estudo sobre a dieta das tartarugas verdes no Litoral norte doestado, ela constatou que os canudinhos são um dos resíduos mais encontrados no estômago dessa espécie. “Em 64 amostras analisadas, apenas um exemplar tinha alimentos, os outros somente vestígios de alimentos e muito plástico”, relata. Atualmente, especialistas em meio ambiente garantem que o volume de microplásticos nos oceanos ultrapassou o de algas marinhas. “Em 2025 vai haver mais plástico do que peixes. Portanto, não haverá um animal que não tenha ingerido, uma vez na vida, um microplástico”, analisa a bióloga Fabiana.

Mobilização social

Voluntários de todo o Brasil mobilizam-se na realização de ações que visam a reduzir impactos negativos do lixo plástico. A bióloga Louize Paz atua diretamente no combate e na prevenção do descarte e uso incorreto desse material. Desde 2011, quando ingressou no curso de Biologia da UFRGS, a porto-alegrense participa de mutirões de limpeza e feiras conscientes.

“Neste ano, já foram três limpezas: a primeira em Atlântida, pela Associação de Surf de Porto Alegre (Aspoa); e a segunda e a terceira em Imbé, pela Associação de Surf de Imbé (Asib)”, conta. Louize explica que não é possível levantar dados em todos os mutirões de limpeza, mas que os voluntários prezam pelo registro para conhecer os resultados das ações. Apenas numa atividade realizada em janeiro, na praia de Imbé, resultou no recolhimento de 981 bitucas de cigarros, 215 embalagens plásticas e 183 canudinhos. Em Caxias do Sul, alguns estabelecimentos trabalham a conscientização quanto à utilização dos canudinhos plásticos. Na UCS, o Bar Palli iniciou uma campanha tímida, mas que tem despertado interesse na comunidade acadêmica. “Percebemos que a maioria dos bares estava partindo para esse lado mais consciente na questão do lixo. Vi um recadinho no Facebook e decidi pôr ele junto aos canudos aqui do Palli, para conscientizar sobre o uso desse material”,. relata a proprietária Angélica Palavro. A ideia inicial, entretanto, era passar a oferecer outras opções de canudos, mas a proprietária avalia que a comunidade não está bem preparada para a mu­dança. Além disso, ela cita o problema do alto custo


MEIO AMBIENTE

Tendo o mar como destino final, os canudos se tranformam em microplástico e são facilmente ingeridos pelas espécies marinhas, portanto recusar é a melhor opção

para adquirir opções biodegradáveis: “O canudinho plástico custa, em média, R$ 0,10 a unidade, enquanto o biodegradável chega a R$ 0,50”.

Como substituir?

Buscar alternativas ecológicas para o uso dos canudos é uma das dicas de especialistas ambientais. Atualmente, o mercado oferece opções como o canudo de bambu que, além de ser natural e leve, pode ser lavado e reutilizado. “Existem, também, o de palha, o de vidro, o de inox, o de metal cirúrgico e a bomba de chimarrão”, cita a bióloga Fabiana Zucco. O “eco copo” também têm sido uma opção utilizada, principalmente, em eventos. “A pessoa pega o copo no começo e, no final do evento, pode escolher entre levá-lo para casa, ou devolvê-lo e receber o dinheiro”, esclarece. Entretanto, para que essas diferentes opções possam ser utilizadas apropreiadamente, a educação ambiental deve ser trabalhada ainda na infância. “Precisamos fomentar essa preocupação com os recursos naturais, com a racionalização e com a preservação do meio ambiente”, acredita Fabiana.

Como reduzir o plástico no dia a dia Prefira os materiais reutilizáveis aos descartáveis, sejam canudos, garrafas, talheres ou sacolas; compre a granel, dispensando as embalagens plásticas. Também não há necessidade de saquinho para as frutas; substitua esponjas de lavar louça por buchas vegetais; use lápis ao invés de canetas, que são compostas de plástico; substitua escovas de dentes de plástico pelas de bambu ou madeira; troque os esfoliantes com partículas de plástico pelos naturais, como açúcar ou borra de café; se você utiliza glitter, prefira os biodegradáveis aos que são microplásticos; troque os absorventes pelos reutilizáveis ou pelo coletor menstrual.

Foto: Eduarda Bucco

onscientização sobre o lixo plástico

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HORIZONTES

De filhos do Sol a filhos do preconceito Em Farroupilha (RS), a Festa de Nossa Senhora de Caravaggio, realizada anualmente, dita a estadia dos ciganos na cidade, no mês de maio Foto: Arquivo Pessoal

Missa de encerramento da Assembleia, em Sousa, “comunidade cigana de baixo”. Presente o bispo diocesano de Cajazeiras, o presidente da Pastoral dos Nômades, padres de todo o Brasil e o padre fundador que, atualmente, está em Bangladesh

Mariana Peglow Ávila e Paola Paim Vedovelli Preconceito, mistério e desconfiança são marcas que cercam, historicamente, a etnia cigana. Vindos da Índia entre os anos 500 e 1000 d.C., espalharam-se pela Europa e em seguida pelo restante do Planeta. Sobre os ciganos, sabe-se pouco. Os únicos documentos existentes foram escritos pelos que não faziam parte do grupo, pessoas que os observavam nas paradas que intercalavam longas jornadas. Os textos produzidos eram, muitas vezes, carregados de forte preconceito. Os ciganos se reconhecem enquanto pertencentes ao povo rom, grupo falante de idioma romani e seus dialetos. São conhecidos, também, como gitanos, calons, romnichals, entre outras denominações. Eles autodenominavam-se “Filhos do Sol”, e tinham o objetivo fixo de chegar até o final do mundo e retornar. Sua religião era a liberdade, sua terra o Planeta e seu teto o Universo. Ao longo de sua trajetória pela história, sofreram muito com perseguições, principalmente na

Segunda Guerra Mundial, quando, depois dos judeus, foram os mais perseguidos e os que morreram em maior número. Eles continuam sua caminhada pelo mundo, hospedando-se em terrenos baldios nas zonas urbanas. Seus traços, suas roupas esvoaçantes normalmente, mas coloridas sempre, e seu silêncio os destacam em meio às ruas movimentadas, por mais que seu objetivo continue sendo a invisibilidade, vista como proteção. Muitas vezes registramos isso com um olhar carregado de discriminação, talvez por medo do desconhecido, pela ignorância ou falta de interesse em conhecer e acolher a cultura do outro. Os tecidos de cor vibrante adornados de rendas e babados, que se misturam com os longos cabelos negros das mulheres; a fala calma dos homens, que com tranquilidade passa confiança; as crianças alegres e os sorrisos embalados em ouro, são algumas das marcas desses nômades. Porém cada “bando” tem particularidades, crenças e costumes próprios, heranças que vão passando de geração em geração. A base da construção social desse povo é essencialmente a família, que pode ser classificada

como patriarcal. O líder é nomeado por mérito e não por herança. Porém é sempre um homem. As mulheres não têm esse direito, diferentemente do que começa a naturalizar-se em nossa sociedade. Sobre benefícios de ser cigano hoje, Cícero, que representa os ciganos da Paraíba na Pastoral dos Nômades no Brasil, e é estudante de Administração, diz que há a possibilidade de buscar mudança e quebrar paradigmas. Mas ser cigano, para muitos, ainda pode ser sinônimo de ser analfabeto. ”A bondade dos tempos atuais é a abertura do cigano para o mundo, já que o mundo não se abre para o cigano”. Ele também fala que os ciganos, muitas vezes, não são contemplados com direitos comparativamente às demais minorias que compõem o País.”A gente vê muito hoje muitas políticas públicas para o quilombola, para o índio, para o negro, para o LGBT, mas a gente não vê nenhuma menção dos ciganos.”

“A gente não é ‘etc’” Os casamentos são arranjados pelas famílias, normalmente desde muito cedo. As moças


HORIZONTES

de idade entre 14 e 15 anos e os rapazes um pouco mais velhos, são prometidos uns aos outros, desenvolvendo uma vida de aprendizado e preparação para o matrimônio. Depois do casamento, a jovem não é mais responsabilidade de seus pais, mas de seu marido, que assume a responsabilidade de sustentá-la. Estima-se que, no mundo, haja mais de 15 milhões de ciganos espalhados, milhões deles no Brasil e muitos perto de nós. É o caso de uma pequena vila chamada Caravaggio, no interior da cidade de Farroupilha, no Rio Grande do Sul, que por diversos períodos do ano serve como abrigo e lar a muitos grupos de ciganos. Aproximadamente 10 tendas, com em torno de 40 pessoas acampam em Caravaggio por, pelo menos, seis meses ao ano, tendo como calendário a festa de Nossa Senhora de Caravaggio,­em 26 de maio. De acordo com o atual reitor do Santuário, padre Gilnei, a Festa se tornou o divisor de águas para a permanência

dimentos eram mais frequentes. A comunidade os acolhe há muitos anos. Mas, também há conflito entre os moradores da vila e os ciganos. Nos últimos anos, eles têm se acomodado em um terreno cedido pela Igreja, mais afastado, mas ainda perto dos moradores. O número de conflitos diminui e se vive em maior harmonia, mas, na convivência diária pelas ruas, ainda há certa tensão e muito preconceito por parte dos locais.

“Eles contribuem com as despesas da água e da energia elétrica” Para auxiliar essa etnia nos direitos sociais e humanos, e em outros diversos aspectos, existe a Pastoral dos Nômades no Brasil, criada em 1985, e que se propõe a atender ci-

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ganos, circenses e parquistas, esforçando-se para que esses povos preservam sua cultura. Cultivam uma relação de amizade com os grupos, sem interferir em suas ações cotidianas.

Nômades e luta por seus direitos A reportagem da revista Entrelinha, do curso de Jornalismo da UCS, conversou com a diretora executiva da Pastoral dos Nômades no Brasil, Cristina Garcia. “Procuramos denunciar a violação dos direitos humanos, contribuir para que tenham acesso a direitos sociais, como educação e saúde. Também buscamos contato com a comunidade em que se instalam, para que sejam bem-recebidos, criando um ambiente mais acolhedor”, conta Cristina. Aqueles que se diziam “Filhos do Sol”, nos dias atuais fogem da discriminação e, de geração em geração, sua cultura é marginalizada, transformando-os em filhos do medo e do preconceito.

Acampamento cigano em Caravaggio, município de Farroupilha. Improvisar torna-se hábito. Cercas transformam-se em varais

Fotos: Mariana Peglow Ávila

do grupo.“Eles se retiram um pouco antes (da festa) retornando um pouco depois. Praticamente residem em Caravaggio. E isto se deve especialmente a não encontrarem espaço para ficar. Quase ninguém os recebe. A igreja os acolhe. Não há cobrança para se estabelecerem no local. Eles contribuem com as despesas da água e da energia elétrica”, explica o Padre. Povoada por descendentes de italianos, Caravaggio têm características muito evidentes: beleza, limpeza e tranquilidade. Já o acampamento nômade tem preocupação menor com a estética, o que incomoda os moradores locais. “A meu ver, há um choque cultural, pois eles não enxergam a vida da mesma forma”, destaca o padre. Há muitos anos o desentendimento e, talvez, falta de diálogo, permeia essa relação, feita de altos e baixos. Por alguns anos os ciganos viveram mais perto do povoado, período em que os desenten-


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REALIDADE

Veranópolis, a Terra da Longevidade A cidade, agora ostenta, também, o selo de Amiga do Idoso, por seus vários projetos voltados à terceira idade Fotos: Thays Emilli de Paula

Idosas jogam cartas como forma de diversão nas reuniões do Grupo de Convivência

Almeri Trucolo Angonese e Thays Emilli de Paula Nos últimos 20 anos, pesquisas científicas comprovaram que os habitantes de Veranópolis, na Serra gaúcha, têm expectativa de vida maior comparativamente a de outros municípios. Alguns dos fatores que contribuem para a “vida longa” e que ajudaram na fama do município são atividades físicas, boa dieta, integração na comunidade, vida familiar, fé e paixão pelo trabalho. Essa constatação é comprovada pelo Grupo de Convivência da Longevidade de Veranópolis, formado por 250 idosos. Deles, 190 residem na área urbana e 60 no interior. Inez Sinigaglia, de 79 anos, é uma das participantes do grupo. Ela é viúva, mora sozinha e relata que a convivência lhe proporciona momentos de bem-estar físico e mental, pelo fato de poder exedrcitar-se, conversar com profissionais da saúde e estar entre amigos.

O Grupo da Longevidade é uma entidade socioassistencial que tem como lema “Longevidade com qualidade de vida” e promove encontros semanais, proporcionando diversas atividades aos participantes, tais como palestras, coro, viagens e passeios turísticos, atividades lúdicas, físicas e intergeracionais, com alunos do Ensino Fundamental. Para ser considerada a Terra da Longevidade, Veranópolis desenvolveu vários projetos voltados à terceira idade, priorizando a saúde e o bem-estar de seus habitantes. Em 2016, um grande projeto foi posto em prática: o Município para todas as idades. A proposta é que as entidades, secretarias e organizações do Poder Executivo do município atuem em ações que voltem a cidade especialmente aos idosos. A secretária de Desenvolvimento Social, Habitação e Longevidade, Adriane Maria Parise, afrma que “se a gente pensa em desenvolver a cidade para os idosos, todas as outras gerações que vão vir também serão beneficiadas.

Então, foi um momento em que a gente parou e começou a planejar essas ações”. Desde então, as secretarias do município estão engajadas com esse projeto que contempla todos os aspectos da vida dos idosos, desde a infraestrutura da cidade até acompanhamento psicológico. Marcos Salton Boff, médico cardiologista, ressalta a importância da qualidade de vida no idoso. De acordo com ele, ela engloba a realização familiar, a realização profissional e muito da religiosidade de nossa região. Em termos de qualidade física, nota-se que a felicidade das pessoas na região também depende da sua individualidade, ou seja, da capacidade de poder fazer alguma coisa. Ainda segundo o médico, o que faz as pessoas sentirem-se melhor em Veranópolis é a possibilidade de ter convívio e amizade; e muitas vezes não precisa nem ser uma amizade fraterna, mas ter o respeito dos demais, independentemente do poder econômico.


REALIDADE Projetos que visam ao bem-estar Secretaria de Desenvolvimento Econômico

Visando à melhoria da saúde por métodos naturais, criou o projeto Plantando Saúde, que estimula a plantação, o estudo e uso de ervas medicinais. Os encontros ocorrem mensalmente com a participação de agentes de saúde de cada bairro, que, em suas visitas domiciliares, propagam e reforçam a importância das ervas.

Secretaria de Educação

Disponibilizou um curso de informática básica para os idosos interessados. O curso inicia com noções básicas de word, mas os integrantes também aprendem a criar e mexer em redes sociais de seu interesse.

Secretaria da Saúde

A proposta foi trabalhar na capacitação das equipes para atuarem com os idosos. “Depois disso, notou-se a necessidade de ter uma equipe específica para atendimento do idoso em sua casa”, diz Adriane. Portanto, as famílias com idosos, que tenham interesse em receber a visita domiciliar dos profissionais de saúde do município, podem ligar para o posto de saúde do seu bairro e solicitar o agendamento.

Secretaria de Assistência Social

● Desenvolveu um grupo de convivência, que realiza diversas atividades em seus encontros mensais. Esse grupo iniciou com a intenção de conseguir próteses dentárias e, como objetivo logo foi concretizado, os integrantes decidiram continuar a se reunir.

● Logo, o objetivo tornou-se trabalhar a convivência e, com isso, o grupo de encontros se ampliou. Há o acompanhamento de uma psicóloga e assistentes sociais que dão continuidade aos programas de fortalecimento de vínculos e convivência social. A partir desse grupo, surgiram outras demandas e, neste ano, formou-se um com atividades como caminhada monitorada, atividades físicas e pilates solo. ● Nas comunidades do interior, a Secretaria de Assistência Social, por meio do Centro de de Referência de Assistência Social (CRAS), desenvolveu o projeto Colhendo Saúde, em que os salões comunitários são utilizados para que os idosos possam se reunir para jogos de câmbio e jogos adaptados para a terceira idade, com supervisão de um profissional de educação física que orienta e acompanha as atividades. Lurdes Balzan, de 71 anos, uma das participantes dos encontros, conta: “na morte de meus dois filhos, o câmbio foi meu escudo contra a tristeza e a solidão”. Há, também, o projeto Percutindo as Emoções. Nele, com instrumentos musicais, os idosos podem trabalhar a cognição e o desenvolvimento da coordenação, em um ambiente saudável de convivência social.

Secretaria de Turismo e Cultura

Desenvolveu um projeto de capacitação para o comércio municipal oferecer bom atendimento aos idosos. Também existe o turismo social, que oportuniza aos idosos fazerem passeios em rotas turísticas da cidade e região. O projeto “Hospital mais amigável ao idoso”, que capacita o ambiente para recebimento e acolhimento de idosos, também está sendo

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estruturado. “Sempre pensando que no momento em que tu consegue receber e dar um bom atendimento ao idoso, automaticamente, todas as outras gerações também serão contempladas nesse quesito”, diz a secretária de Longevidade, Adriane. Visando à convivência social e familiar, nesse ano será construído um centro comunitário onde se concentrarão todas as atividades.

Selo de Cidade Amiga do Idoso

Os projetos pensados e executados pelas secretarias e organizações da cidade foram encaminhados para a Organização Mundial da Saúde (OMS) que os analisou, verificando, também, seus resultados no primeiro ano de implantação. Disso resultou que Veranópolis recebeu o selo Cidade Amiga do Idoso, o que a levou a assumir o compromisso de investir em projetos voltados a eles por mais dois anos. Há 25 anos, é realizada pesquisa na cidade chamada “Estudos em envelhecimento, longevidade e qualidade de vida”. Seus mentores são a Dra. Elisabete Michelon e o Dr. Emílio H. Moriguchi, que buscam estudar o envelhecimento bem-sucedido de idosos longevos. Os estudos sobre o tema levaram à criação do Instituto Moriguchi - Centro de Estudos de Envelhecimento, em 2019. O Instituto tem por finalidade principal a promoção da saúde e manutenção da qualidade de vida, por meio de assistência e atendimento à população na área da saúde, promovendo atividades científicas, culturais, educacionais e literárias nas áreas de saúde, cidadania e desenvolvimento socioeconômico.

Momento de oração e reflexão proporcionado pelo Grupo da Longevidade


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PALADAR

Em Garibaldi, Via Orgânica desperta experiências sensoriais Produtos que respeitam o ciclo natural de produção podem ser apreciados do plantio ao consumo Fotos: Mariana Peglow Ávila

Entrada do Valle Rustico, na cidade de Garibaldi, RS

Mariana Peglow Ávila e Paola Paim Vedovelli Garibaldi é conhecida como capital do espumante, mas quando passam pela cidade, os turistas não buscam apenas as vinícolas. A cidade conta com um atrativo que cativa visitantes e moradores desde 2016, pela naturalidade e preocupação em conservar o ecossistema: a Via Orgânica. Considerando-se os ramos alimentício, de bebidas e de hotelaria, 10 empreendimentos compõem essa rota. Visitando esses locais, o turista encontra alimentos e bebidas orgânicos, enquanto percorre um caminho entre o campo e a cidade, entre a origem e a comercialização final de um produto. Quando criou essa rotas, em incentivo, a Prefeitura de Garibaldi organizou passeios pela

Via Orgânica para os moradores de Garibaldi. Atualmente, criar um roteiro pela Via é prerrogativa do turista. Para conhecer em detalhes esse estilo de agricultura, esclarecer curiosidades que surgem no percurso e visitar todos os atrativos, são necessários dois dias, o que, por si, é um convite para desfrutar a hospitalidade hoteleira do lugar.

As boas-vindas

A redação da Entrelinha, traçou um roteiro com duração de seis horas, passando pela Coo­perativa Vinícola Garibaldi, para conhecer o produto do qual Garibaldi é capital; pelo Sítio Crescer, única hospedagem da Via, e terminando a tarde no Valle Rustico, restaurante que utiliza ingredientes colhidos em sua horta. O roteiro mostra que o turista pode conhecer a cidade sem sair da Via.

A Cooperativa Vinícola Garibaldi dá boasvin­das à cidade. O extenso corredor recebe os visitantes indicando que ali há muita história para ser contada: 88 anos, para sermos exatas. Renata Peçanha Cardoso, enóloga da vinícola, recebeu o grupo da revista. Durante a visitação, a história da Cooperativa, integrada por famílias de 15 cidades da Serra gaúcha, é contada na antiga linha de produção. Cada pipa tem gravada uma frase enaltecedora do vinho. Uma delas é de Flaming: “A penicilina cura os homens, mas é o vinho que os torna felizes.” Na fachada da vinícola, além de uma plaquinha de identificação da Via Orgânica, há um banner expondo números que representam o comprometimento com a sustentabilidade. As uvas utilizadas na produção são 100% provenientes de agricultura familiar.


PALADAR

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Proprietária Sítio Crescer, jornalista Ana Cláudia Mutterle Chiesa

Em cinco anos, a empresa reduziu a geração de resíduos em 9,2 milhões de kg, realidade possível porque utiliza a uva de forma integral. O processo de produção orgânica iniciou nos anos 2000, e o primeiro produto veio em 2001, o vinho de mesa. Atualmente, a linha Da Casa é composta pelo vinho e suco orgânicos. No rótulo desses produtos, há o sobrenome das famílias que cultivam a uva orgânica utilizada para a produção. A enóloga da vinícola explica que essa é uma forma de valorizar e incentivar esses associados, que se arriscam no clima da Serra para produzir uva sem o auxílio de qualquer agrotóxico. Em 2019, a vinícola lançou a primeira linha de biodinâmicos, a Astral, que dispõe de espumante e suco. É assim chamada por remeter ao universo e à influência que as fases da lua têm na produção de biodinâmicos.

Símbolo de hospitalidade

Ao contrário da Vinícola Garibaldi, pensada desde o início como uma empresa, o Sítio Crescer iniciou sem pretensão ao lucro. “A gente nunca tinha se dado conta que era um negócio”, conta a proprietária, Ana Cláudia Mutterle Chiesa.

“A gente nunca tinha se dado conta que era um negócio” Tudo começou com retiros católicos. Depois veio a produção de orgânicos, para arcar com os gastos da propriedade. A infraestrutura para hospedagem ficou pronta em 2016, e o sítio virou um negócio. Na visita ao local, conversamos com uma hóspede recém-chegada. Moradora de Porto Alegre, a advogada Elisandra Rosa Cunha.Ela destaca a boa impressão que a infraestrutura passa aos hóspedes: sobre a horta orgânica, os sons aconchegantes da natureza e as inúmeras árvores frutíferas à disposição dos hóspedes. Ela comenta que “o que antes era normal – antigamente –, hoje a gente busca como um atrativo”.

Harmonia na alimentação

A cerca de 20 minutos do hostel fica o Valle Rustico. A estrutura de madeira antiga é convidativa e a decoração simples, bem pensada e, logicamente, rústica, deixa qualquer um à vontade. No restaurante, fomos recebidas pela gerente administrativa, Marilei Bettinelli. Ela expli-

ca que a propriedade é orgânica e certificada, mas que o restaurante comercializa,também, produtos não orgânicos. Além de utilizar o que é produzido no local, os proprietários compram produtos de outras hortas da Via. “Tem parceria”, explica Marilei, enfatizando a importância de termos mais cuidado com o alimento que ingerimos. “Faz muito tempo que se fala do orgânico, mas agora que bateu um desespero, pelo número de casos que a gente tem associados a doenças – devido à ingestão de agrotóxicos.” O cardápio acompanha as safras da Serra. Em uma das opções de menu, o cliente consome apenas alimentos produzidos em um raio de, no máximo, 60 km dali. A caminhada de um extremo a outro da Via é um passeio turístico à parte. E se, como nós, o visitante tiver sorte, pode finalizar a visita com uma bela imagem do sol encontrando a RS-440, no Vale dos Vinhedos. Instagram: http://turismo.garibaldi.rs.gov.br/rotas-atrativos/via-organica; Site: rotaviaorganica; Icone Facebbok: Via Orgânica.


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AUXÍLIO

Jones

Ribeiro Bertoldo escreveu sua histórias com superação

Lar Santo Ângelo

Franciele Pedroso e Tífani Dutra No antigo abrigo Filhos de Deus, em Caxias do Sul, há cerca de 15 anos realizava-se uma pequena festa de boas-vindas, com bolo de chocolate. A festa era para Jones Ribeiro Bertoldo, de 12 anos, cuja mãe era viciada e não aparecia em casa há mais de três meses. O pai Jones nunca soube quem é. Essas histórias nem sempre têm um final feliz. O menino não ia para a escola e não tinha sequer o que comer em casa, não conhecia seu pai e a mãe era uma jovem negligente. Uma criança com esse histórico conseguiria realizar seu sonho de andar de avião ou ter uma empresa?

Jones é exceção

“Ele foi longe na vida e ainda vai voar muito!”, diz a tia, Beatriz Bertoldo. Beatriz tem quatro filhos. Na época em que Jones foi para a abrigo, todos eram pequenos, ela estava di-

vorciada e desempregada. “Não tinha como eu ficar com ele, morreríamos todos de fome. Mas onde comem cinco, comem seis, então eu o trouxe para minha casa. Não sabíamos onde estava a mãe dele. Mas na mesma semana, saí para fazer uma limpeza, um bico que costumava fazer, e o Conselho Tutelar bateu lá em casa e levaram ele. Eu fiquei muito triste, mas disseram que ele teria um lar, refeições e amigos, então com muita dor, eu deixei”, conta a tia.

A superação

Jones ficou no abrigo até os 18 anos, quando concluiu o Ensino Médio e passou no Vestibular para fazer Educação Física, na FSG, onde também foi trabalhar como recepcionista. “Me formei com 22 anos. Bem cedo, mas eu queria muito provar para mim mesmo que eu não seria como minha mãe, que eu teria um futuro bom, que uma pessoa pobre e sem amparo da família pode, sim, voar longe”, diz Jones. Uma vez formado, Jones providenciou seu

passaporte e começou a enviar currículos diariamente para empresas dos EUA. Decorrido um ano e meio de tentativas, um empresário, proprietário de uma academia, resolveu contratá-lo por um programa de intercâmbio. “Eu não pensei duas vezes. Sempre foi um sonho pegar minhas malas e entrar num avião. Morar na neve. Eu queria tanto morar fora e recomeçar em uma terra nova. Eu aprendi a falar em inglês dentro do meu quarto no abrigo... E deu tudo certo, tenho minha academia com meu querido sócio que me acolheu!” Jones mora há quase cinco anos nos EUA. Ele soube que sua mãe casou e teve filhas depois que ele foi para o abrigo, mas ela nunca o procurou. Julia Bertoldo, uma das primas de Jones, se prepara para morar com ele, este ano. A academia se chama La Bella Vita e emprega dois moradores de um abrigo. “Meu conselho é clichê: Não desista. Se um menino esfomeado, que mal sabia ler e morava num abrigo, conseguiu, você consegue também.”

Foto: Franciele Pedroso

Casa Lar, lugar onde também se sonha



AUXÍLIO

13 Foto: Arquivo Pessoal

Lar doce lar

Atualmente, em Caxias do Sul existem 15 Casas Lares e, em cada uma delas, residem oito jovens, desde bebês de colo até adolescentes de 17 anos. Os residentes dos abrigos chamados Casa Lar são diferentes de pessoas que vivem em orfanatos ou abrigos para pessoas desabrigadas. A Casa Lar é um serviço de acolhimento provisório para jovens que foram afastados do ambiente familiar por motivos como, por exemplo: negligência ou maus-tratos pelos familiares, faltas frequentes à escola e até mesmo higiene pessoal precária. Os jovens são afastados da família por um tempo e, após seções de terapia e recuperação da rotina, são inseridos aos poucos novamente no ambiente de origem. Os familiares também recebem apoio para o retorno dos jovens. Em alguns casos, não há reconciliação com a família e os jovens acabam sendo mandados para lares adotivos. Veronice, secretária da Fundação de Assistência Social (FAS) de Caxias do Sul, conta que um assistente social cuida de cada uma das Casas Lar e auxilia os jovens em tudo que for preciso, como ir à escola, fazer terapia e, nos casos dos adolescentes que optam por trabalhar, são oferecidos estágios remunerados para incentivá-los. De acordo com o jornal Pioneiro, em 2018 a FAS aumentou o valor investido na mensalidade de apoio às Casas Lar da cidade de 70 mil (para cada grupo de 24 crianças) para 105 mil.

Jonas em sua academia Foto: Arquivo Jornal Pioneiro

Abrigo Sol Nascente


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EXEMPLO

Projeto Nono Giacomelli leva amor e solidariedade a pessoas carentes Ações desenvolvidas em Caxias do Sul e região começaram com 91 caixas de bombons.

Este é Severino Giacomelli, que teve sua caligrafia utilizada ao logo do projeto e estaria orgulhoso com as proporções que ele tomou

Franciele Pedroso e Tífani Dutra Solidariedade é o substantivo que indica um sentimento de identificação em relação ao sofrimento do próximo. Jaqueline e Shaiane Giacomelli, mãe e filha, respectivamente, moradoras na localidade de Vila Cristina, decidiram homenagear Severino Giacomelli, sogro e avô, criando um projeto que realiza ações, de forma voluntária, em prol de pessoas carentes, com intuito de proporcionar-lhes bem-estar e amor. O projeto Nono Giacomelli, como foi denominado, em cinco anos de atividade fez a alegria de milhares de crianças, jovens, adultos e idosos, de Caxias do Sul e arredores, com a entrega de doces, brinquedos, presentes, agasalhos, produtos de higiene pessoal, entre outros, mas, principalmente, por levar carinho e disponibilizar tempo em prol do próximo. Em uma ação de Páscoa realizada em 2016, Shaiane, Jaqueline e uma equipe de voluntários conseguiram arrecadar 91 caixas de bombons, que couberam, tranquilamente, no porta-malas de um automóvel, e fizeram a diferença para 215 crianças. Após satisfatório e positivo resultado, o número de caixinhas aumentou, 170, em 2017, 230, em 2018, e 1129, em 2019. Obviamente, tantas caixinhas não caberiam em

um único porta-malas. Por isso, um caminhão foi utilizado e personalizado com orelhas e focinho de coelho. “Com empresas, parceiros e cerca de 40 voluntários, arrecadamos mais de 15 mil chocolates, destinados a centenas de crianças. Foi o nosso ano recorde em número. Dessa forma, conseguimos espalhar muito mais amor com um gesto simples”, diz. Além de levar doces para crianças carentes de Caxias do Sul, Shaiane realizou, na noite de 18 de abril, uma sessão de cinema e entrega de bombons na Vila Ipê. A visita aos lares de idosos também esteve presente na agenda dos voluntários da instituição, que distribuíram rosas aos velhinhos do Lar São Francisco, de Caxias do Sul, e da Casa de Repouso Recanto das Borboletas, em Farroupilha. Para Shaiane, que visitou um asilo pela primeira vez em 2013, a experiência é uma lição que precisaria ser vivida por todos. “Pelo menos uma vez na vida, as pessoas deveriam visitar os idosos, muitas vezes esquecidos. A retribuição de amor que ganhamos não tem preço”, destacou.

Mais realizações

Além da Páscoa, a jovem e seus parceiros realizam ações de Natal, nas quais doam brinquedos às crianças. Em 2017, por exemplo,


EXEMPLO

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Voluntários do projeto na separação dos chocolates destinados a crianças carentes um homem, que não quis se identificar, doou para a instituição R$ 2 mil reais e, com esse valor e a colaboração financeira de outros apoiadores, foi possível entregar 500 pacotes para 500 crianças do Bairro Canyon, que puderam ter outra visão sobre a data: a visão da solidariedade. Os voluntários do projeto Nono Giacomelli, realizaram, também, ações no Dia da Criança, quando levaram brinquedos aos pequeninos e os divertiram com danças, alimentos e brincadeiras. “Estamos engajados em diversas ações. Dessa forma, buscamos mantimentos, agasalhos, produtos de higiene pessoal, brinquedos, doces, cobertores, amor, carinho, conversas, visitas coletivas, entre outras coisas que fazem a diferença para idosos, crianças e moradores de rua. Além disso, ajudamos animais abandonados com compra de ração, casinhas, roupinhas, cobertores e, ainda, divulgando-os para serem adotados por famílias que lhes deem amor. São pequenos gestos que fazem a diferença, pois o que para nós pode significar pouco, para eles significa muito e a gratidão não tem pre-

ço. Por isso, seguimos firmes e juntos em prol do próximo”, conclui. Shaiane conta que Severino, já falecido, sempre gostou do logotipo do projeto, desenvolvido a partir da sua caligrafia. Além disso, admirava a atitude de sua neta e de sua nora e, hoje, com toda a certeza, estaria muito feliz e orgulhoso com as proporções que o projeto tomou. “O nome dele sempre estará conosco, assim como ele esteve antes de falecer, para que seja lembrado por todos”, afirmou Shaiane. Com o sucesso das ações, Shaiane e Jaqueline afirmam que o projeto Nono Giacomelli as fez crescer como pessoas e passar a ver que o mundo precisa de mais amor, principalmente, a classe carente. “Esperamos que o projeto cresça, cada vez mais, e que possamos conscientizar mais pessoas através de ações simples”, concluem.


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HUMANIDADE

Não é apenas uma “encoxada”. Agora é crime De um a cinco anos é a pena pela nova lei para quem comete importunação sexual para que essa não se torne uma lei morta. “As pessoas viam esse tipo de situação como natural, como uma coisa do brasileiro. “Ah, o homem brasileiro é muito viril, a mulher brasileira se sente lisonjeada em ser abordada, em ser tocada sem seu consentimen“Por incrível que pareça, muitas mulheres já vieram falar comigo achando to.” Então, essa mudança cultural é muito importante para a gente nesse que é um exagero. Por causa de uma “encoxadinha” no trem, uma “enco- momento”, pontua. xadinha” no ônibus. Que isso sempre existiu e, teoricamente, para algumas pessoas não seria uma agressão verdadeira”. Essa é a afirmação de Mariana da Silva Ferreira, médica legista e sexóloga, especializada em violência sexual, ao falar sobre os aspectos culturais da nova lei de importunação sexual. Protocolada em 25 de setembro de 2018, a Lei n. 13.718/18 diz que importunação consiste em “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, com reclusão de 1 a 5 anos de prisão para quem o comete. A lei foi basea­ da no projeto da senadora Vanessa Grazziotin, do PCdoB do Amazonas. Para deixar ainda mais claro, “encoxadas” no transporte público, toques indesejados que são voltados para as zonas erotizadas do corpo (como seios, nádegas, coxas, genitália), assim como beijos, lambidas e ejaculações são considerados crimes. A lei veio como um alívio para o meio jurídico, pois antes não havia um meio-termo entre o crime de estupro e a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor. Mariana Ferreira afirma que a proposta de lei ganhou força, após a grande repercussão nas mídias sobre casos de homens que se masturbaram e ejacularam em mulheres em ônibus. Um dos mais conhecidos ocorreu em São Paulo, em 2017. “Até então, estava tudo bem. Deixa como uma contravenção penal e a gente vai se virando, vai dando um jeito. Não somos omissos, mas não fazemos nada efetivamente”, critica Mariana.

Jesse Reis Lopes, Letícia Rodrigues Kreling e Raquel da Silva Carvalho

Como denunciar

Quando há ocorrência de uma importunação sexual, é essencial coletar a maior quantidade possível de provas. Avaliação psicológica do relato da vítima, provas testemunhais e perícia técnica do IML são importantes, pois, muitas vezes, a palavra da vítima ainda é contestada e não levada em consideração totalmente. Mariana Ferreira explica que a própria legislação prevê o exame de corpo de delito para qualquer crime que fira a dignidade sexual, mas que fica a critério da delegacia identificar se há a necessidade de uma perícia médico-legal. “É importante que vão para a perícia casos em que houve contato físico ou com secreções para que a gente possa buscar evidências reais, que são irrefutáveis e ninguém pode contestar, porque está o DNA do agressor ali”, relata. Há várias formas de realizar a denúncia de importunação sexual. Em caso de flagrante é importante manter o importunador no local e ligar para a polícia militar, número 190. Quando não há o flagrante, a vítima pode se dirigir a uma delegacia de sua preferência ou às especializadas na defesa da mulher. Também é possível denunciar por telefone no número 180.

Aplicativo Nina

Em Fortaleza, uma iniciativa veio para auxiliar quem sofre assédio no transporte coletivo. O aplicativo Nina foi lançado oficialmente em março e é uma ferramenta inteligente para realizar a denúncia de casos de importunação contra si ou contra uma terceira vítima. O botão Nina está vinculado ao aplicativo Meu Ônibus e com ele, com a utilização de geo­localização, a denunciante é localizada instantaneamente, facilitando uma prisão em flagrante. Além disso, no momento em que o botão virtual “Nina” é acionado, ele faz conexão com as imagens internas dos ônibus e terminais da capital cearense, e gera, automaticamente, uma gravação, que posteriormente serve como prova. Por isso, mesmo quando não há o flagrante, o resgate dessas informações e imagens facilita a investigação e identificação do suposto agressor.

Aspectos socioculturais

Apesar de todo o benefício legal decorrente da nova legislação, as mudanças culturais e sociais podem ser ainda maiores. Porém, segundo Mariana Ferreira, as campanhas de conscientização são indispensáveis.


HUMANIDADE

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Foto: Thaís Strapazzon

Somente em janeiro de 2019, foram registrados quatro casos de importunação sexual em Caxias do Sul

Outros crimes Pela Lei n. 13.718/18 tornou-se crime divulgar cenas de estupro, cena de sexo ou pornografia. Segundo a gerente do Centro de Referência da Mulher de Caxias do Sul, Thaís Dallegrave Bampi, esse é um dos tipos de violência que atinge as mulheres: a digital. Essa violência ocorre por meio da internet com divulgação de fotos e vídeos íntimos ou ameaça de fazê-la. Thaís completa: “A difamação online amplia a condição de vulnerabilidade da mulher.” Outro avanço da lei foi transformar em ação pública incondicionada os crimes contra a liberdade sexual e crimes contra menores de 14 anos. Isso quer dizer que a ação será promovida por denúncia do Ministério Público. Não é necessária autorização ou representação para a investigação. Esses crimes se enquadram na violência sexual que, ainda conforme Thaís, ocorre quando a mulher é forçada a manter relações, a se prostituir ou é proibida de usar anticoncepcionais.

Está previsto na Lei n. 13.718/18 o aumento de pena para os casos de estupro coletivo e estupro corretivo. A pena aumentou de metade a dois terços, se do crime resultar gravidez e de um terço a dois terços, se ocorrer transmissão de doença sexual à vítima. O estupro coletivo ocorre quando mais de uma pessoa comete violência sexual contra outra, vulnerável ou não. O estupro corretivo visa a corrigir algum aspecto do indivíduo. O deputado Valmir Assunção (PT/BA) criou o Projeto de Lei n. 452 em 2019, com o intuito de aumentar ainda mais a pena para casos de estupro corretivo. O texto afirma que esses casos ocorrem “tendo como vítimas mulheres lésbicas, para haver uma ‘correção’ de sua orientação sexual ou para ‘controle de fidelidade’, em que namorados ou maridos ameaçam a mulher de estupro, se for infiel”. Esse projeto ainda aguarda aprovação na câmara dos deputados.


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HUMANIDADE

Em Caxias mais mulheres buscam rede de proteção As denúncias de violência contra a mulher aumentam a cada ano no município. Em 2018, o Centro de Referência da Mulher (CRM), serviço destinado a acolher, escutar, orientar e acompanhar mulheres em situação de violência, a fim de garantir-lhes acesso a seus direitos, realizou 5.302 atendimentos a mulheres. A gerente do Centro, Thaís Bampi, ressalta a importância de a sociedade não ficar inerte frente a casos de violência. “A nossa função social é nos engajarmos nessa luta e tentar ajudar quem está nessa situação. Nunca nos omitir, mas tentar fazer a nossa parte, seja denunciando o agressor ou aconselhando a vítima a buscar ajuda”, destaca Thaís. A rede de proteção contra a violência da mulher de Caxias do Sul conta, desde 2001, com o Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pravisis) do Hospital Geral (HG). O programa é referência no atendimento às vítimas de violência sexual, e também no atendimento humanizado às

mulheres em situação de aborto previsto em lei, como nos casos de violência sexual, doença materna grave, que põe em risco a vida da gestante e por motivo de interrupção terapêutica (fetos com doenças incompatíveis com a vida extrauterina). “Nós nos esmeramos para amparar e acolher de forma ética, respeitosa e concisa a vítima e apoiá-la nesse momento em que ela se sente tão sozinha”, explica a enfermeira do HG Priscila de Oliveira. Em março deste ano, a Polícia Civil prendeu, com a ajuda de material de DNA coletado no Pravisis, um homem que estuprou onze mulheres em Vacaria. Para a enfermeira Priscila, “prestar esse acolhimento é uma realização. É muito gratificante. Eu penso que poderia ser eu, minha filha, ou alguma amiga, por isso sempre as atendo como seres únicos. Mesmo sendo 100% SUS, o Hospital Geral apoia muito o Pravisis” destaca Priscila.

Créditos: Letícia Frezarini Mulheres em situação de violência devem denunciar por meio do Ligue 180


Ao lado, anúncio da campanha sobre exploraçãotrabalho infantil, desenvolvida na disciplina Fotografia Publicitária, desenvolvida pelo Professora Gustavo Pozza, no curso de Fotografia da Universidade de Caxias do Sul - UCS

Criação, desenvolvi­­mento e execução - Caroline Matiello - Cássio Eberle - Fábio Augusto - Letícia Busatto - Marcos Taufer - Sarah Cristina


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