NEWSLETTER | N.º 2 4 | OUT - DEZ 2020
20.º ANIVERSÁRIO
FMVG PROMOVE ESTUDOS AO SARS-CoV-2 FOTOGRAFIA: BANCO DE IMAGENS
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Com esta newsletter :Tributo a Luís Guerreiro, o «Engenheiro das letras», que faria 60 anos em 2020 OFERTA
Artigo de Lívia Cristina Coito inaugura Viagens pela obra de Manuel Viegas Guerreiro, a nova rubrica da FMVG p.13
«A serra esvai-se de gente como veias que se cortam». Salvador Santos escreve sobre a interioridade do Algarve p.17
EDITORIAL A presente edição da Newsletter FMVG faz-se distribuir com a oferta da publicação que reúne os ensaios e depoimentos de Tributo ao primeiro presidente desta Fundação, o Eng.º Luís Guerreiro. Esta acção foi desenvolvida por altura daquele que seria o seu 60.º aniversário. A publicação constitui uma singela mas justa retribuição a todos aqueles que graciosamente participaram nesta homenagem. O pequeno livro simboliza ainda uma prenda para os que de alguma forma se revêem nas palavras ali redigidas. Um presente para aqueles que acompanharam o Luís Guerreiro ao longo do seu percurso, demasiado curto, mas extremamente enriquecedor para quem teve o privilégio da sua companhia. Prevalecem a sua memória, a sua voz, os seus valores e conhecimento. A sua biblioteca pessoal - o Centro de Estudos Algarvios - encontra-se de portas abertas à exploração de novas pistas de investigação sobre o Algarve, em correlação com as demais regiões e nações. Honre-se essa extensão do seu pensamento e que o brinde enviado a Luís Guerreiro neste Natal seja esse, o da devolução do tanto que fez pela Cultura. Há 20 anos, Luís Guerreiro encontrava-se entre um grupo de jovens bons que, apaixonados pela cultura, pela serra e barrocal, e pela valorização dos estudos de um filho da terra, escrituraram aquela que viria a ser a Fundação Manuel Viegas Guerreiro tal como hoje a conhecemos. É também esse momento que recordamos neste número, com um texto assinado
pelo vice-presidente da altura e actual presidente, Eng.º Gabriel Guerreiro Gonçalves. Vinte anos que a FMVG assinala com as primeiras conclusões de um conjunto de estudos promovidos em parceria com outras Fundações, Universidades e Ordem dos Médicos, no âmbito da mitigação da pandemia provocada pelo SARS- CoV-2. Registe-se também o projecto de releitura da obra do Mestre Viegas Guerreiro por investigadores e personalidades ligadas à Cultura, que nos irá acompanhar nos próximos anos através de artigos publicados mensalmente no site da Fundação; e o de recuperação, digitalização e salvaguarda do seu espólio fonográfico. Deram ambos os primeiros passos em 2020. A edição da newsletter do último trimestre do ano dá ainda voz ao interior do Algarve pela pena de Salvador Santos, escritor, pensador e colaborador na editora Sul, Sol e Sal. A crónica está muito bem acompanhada pelo olhar da fotógrafa Telma Veríssimo que enquadra o tema com imagens que fizeram parte da exposição Algarve Interior, patente na Fundação em 2017 (programa FLIQ - Festival Literário Internacional de Querença). Ainda neste número, a incontornável referência ao desaparecimento físico da poetisa, ensaísta e investigadora literária Aliete Galhoz, com um texto evocativo de Lídia Jorge. Desembrulhe este presente com carinho. Foi esse sentimento que nos animou no processo de elaboração. Marinela Malveiro
FICHA TÉCNICA EDIÇÃO | FMVG TEXTOS | Lídia Jorge, Maria José Mackaaij, Marinela Malveiro, Salvador Santos, Postais do Algarve com autoria identificada sob o excerto RECOLHA E SELECÇÃO de Postais do Algarve | Marinela Malveiro APOIO À PRODUÇÃO | Miriam Soares PAGINAÇÃO E DESIGN | Marinela Malveiro FOTOGRAFIA | ALFA, espólio FMVG, Marinela Malveiro, Telma Veríssimo, Unsplash SECRETARIADO | Fátima Marques IMPRESSÃO | Gráfica Comercial Arnaldo Matos Pereira, Lda., Zona Industrial de Loulé Lt. 18, Loulé | T. 289 420 200
NEWSLETTER FMVG | N.º 24 | 2020 Os textos são da responsabilidade dos seus autores e o uso do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa é, por isso, uma opção dos mesmos.
POSTAIS
DO ALGARVE
POSTAIS DO ALGARVE é uma rubrica criada em 2020 quando o país e o mundo se viram mergulhados numa pandemia sem precedentes. Também de portas fechadas ao público na primeira fase de confinamento, a FMVG reuniu descrições do Algarve pela voz de mais de cem autores. Esta é a segunda edição da rubrica.
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CONVITE (Ao Estêvão Soares) Pintor amigo: Prometeu-me um dia, Vir com os seus pincéis, tintas e telas, Pintar a serra algarvia Que eu lhe disse ser bela entre as mais belas. Até hoje não veio. Peço-lhe agora, Que me dê esse gosto quanto antes E venha no comboio, por aí fora, Até estas paragens deslumbrantes. Parta de noite. Tem sua vantagem: Dormirá um pouco, e a viagem Parecerá mais curta. Depois, quando O céu for clareando Nos prenúncios do dia, Se abrir os olhos, verá Surgir São Marcos da Serra... - E é já terra algarvia, Está já Na minha terra! Ainda na bruma também Messines um pouco além, Lhe dará um novo encanto. Lá nasceu e lá cantou... – que Deus fadou Para ser Poeta e Santo. Até Tunes, depois é um momento. Como você vira a Portimão, Mudará de comboio nessa estação E segue no que vem p’ra barlavento Quando chegar aqui, pintor amigo, Lhe darei um abraço as boas vindas... Depois, como seu guia, irei consigo Ver as paisagens belas O mar do Algarve, as moças muito lindas, E a luz estranha, as bacanais de cor Que você quererá pôr Nas suas aguarelas... JOÃO BRAZ
Pela portinhola do comboio vou seguindo a paisagem de figueiras e de vinhas que desfila. De um lado o céu doirado e violeta, do outro, todo roxo (...) Ao longe, e sempre, acompanha-me o mar, que mistura o seu hálito a esta luz suavíssima. RAUL BRANDÃO
FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
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« FERRAGUDO Casas entrando no mar e o mar entrando nas casas, comboios atirando apitos à descoberta da terra, barcos atirando velas à descoberta do mar... LEONEL NEVES
CRÓNICA INVERNAL Ia nesta indecisão, quando, de repente, numa curva da linha, Messines espreitou, se escondeu outra vez, e por fim surgiu ainda a dormir, mas graciosa à ténue luz matinal. Sorvido um hausto de ar avoengo, pois um ramo do meu sangue dali veio e parece que nunca se esvai certa afinidade entre as nossas moléculas e os ares por onde antigamente...
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NOTAS SOBRE TAVIRA Cheguei finalmente à vila da minha infância. Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei. (Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado). Tudo é velho onde fui novo.
JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO E ROSA
« SANTO AGOSTINHO NO INTERCIDADES O cabelo dela era uma tentação de éguas selvagens, indomáveis contornavam o seu rosto e pelo vale do pescoço corriam até às colinas do peito. E prendiam o meu olhar num êxtase de Santo Agostinho: Senhor, dai aos meus olhos a castidade mas não ainda! Só para disfarçar, cada vez que as crinas dela galopavam na minha direcção, eu fazia penitência e flagelava a vista com as borbulhas do garanhão a seu lado. MARCO MACKAAIJ
ÁLVARO DE CAMPOS
« O comboio pára. Espreito pela janela (...) As luzes do restaurante acendem-se. Passamos por túneis. À saída do último, o Sol aparece no céu repentinamente azul. Chegámos ao Algarve. MANUEL DA FONSECA
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FMVG PROMOVE ESTUDOS SEROLÓGICOS FOTOGRAFIA: BANCO DE IMAGENS
MÉDICOS
COVID –19
A PRIMEIRA PANDEMIA DO SÉCULO A COVID-19 já infectou mais de 63 milhões de pessoas e provocou a morte a perto de milhão e meio. Em Portugal, entre Março e Outubro, morreram mais 7.474 pessoas acima da média dos últimos cinco anos - a maioria com patologias não associadas à COVID-19, o que nos remete para os efeitos colaterais do SARS-CoV-2. O novo coronavírus (Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2) não promete dar tréguas nos próximos meses e já «consome» de forma preocupante o Serviço Nacional de Saúde. Porém, vários estudos têm vindo a dar importantes contributos sobre como criar as estratégias mais eficazes no combate à COVID-19, a montante dos hospitais. É a ciência a iluminar o caminho da Humanidade, tal como tem acontecido em múltiplos momentos da História. Aquele que estamos a viver não é excepção. Entre os demais, existe um conjunto de três estudos que teve como impulsionador o vice-presidente da FMVG, o médico José Maria Guerreiro.
A Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG) cumpre-se promovendo estudos que permitem monitorizar a evolução da imunidade à COVID-19 na população portuguesa, tentando criar - num projecto colaborativo - um sistema de informação passível de apoiar estratégias mais eficazes de mitigação da doença. Os primeiros resultados são conhecidos agora, num relatório da Nova Medical School. «Podemos considerar dois objectivos principais, o primeiro diagnosticar a infecção quer nas formas iniciais, anticorpos IgM, quer tardias, anticorpos IgG. Por outro lado, determinar a correlação entre o grau de imunidade e a intensidade da doença e sobretudo, a evolução e prevalência da imunidade.» As linhas mestras do projecto são aqui traçadas pelo médico José Maria Guerreiro, ideólogo de três estudos serológicos no âmbito da COVID-19, que se encontram a decorrer junto de profissionais de saúde e da população de Vila Nova de Gaia. A ideia nasceu da curiosidade científica e reflexão do também vice-presidente da FMVG sobre os problemas da Humanidade. José Maria Guerreiro decidiu dar o primeiro passo no início da pandemia, congregando vontades. Foi assim que rapidamente a FMVG se aliou à Fundação Vox Populi, para que realizasse uma sondagem a nível nacional sobre a imunidade ao SARS-CoV-2 e à Fundação Álvaro Carvalho, pela elevada experiência ao nível da medicina e de contactos profissionais na área.
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Somente cerca de 3 por cento dos testados ficaram imunes
Outros parceiros foram convidados, juntando-se às três Fundações: a Claude and Sofia Marion, a Ordem dos Médicos (OM), o Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, a Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). O caso de Vila Nova de Gaia Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, foi considerado o concelho-amostra para uma recolha mais sistemática de informação. A explicação é do médico de Medicina Interna e coordenador do projecto Álvaro Carvalho: «O concelho de Vila Nova de Gaia é o que melhor retrata o país. É o segundo em número de ha-
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CONTRA A COVID-19 E UNIVERSIDADES
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bitantes, tem um sector urbano e outro rural, dispõe de actividade económica primária, secundária e terciária e, além disso, foi uma região muito fustigada pela pandemia no seu início.» Entre 23 de Junho e 17 de Julho realizaram-se testes serológicos nas 15 freguesias do concelho. Foram testadas perto de 3.000 pessoas, com idades compreendidas entre os 18 e os 74 anos. Cerca de 52 por cento, mulheres (48 por cento homens) com uma média de idades de 45,6 anos. Com um grau de confiança de 95 por cento, o estudo permitiu concluir que somente cerca de 3 por cento dos testados ficaram imunes. Assim, identificaram-se anticorpos IgG para o SARS-CoV-2 em 83 participantes. Em relação ao contacto com pessoas portadoras da doença, cerca de metade conhecia alguém com COVID-19, dentro ou fora do núcleo familiar. O relatório demonstra ainda que um caso no agregado familiar aumenta 12 vezes o risco de serologia positiva. Para quem conhece um colega que esteve infectado, o risco é 1,92 vezes superior, relativamente a quem não conhece caso algum. O relatório da Nova Medical School evidencia a importância de continuar a monitorizar a evolução da seroprevalência de anticorpos específicos contra o SARS-CoV-2, que deverá sofrer alterações no decorrer da evolução da epidemia. E a imunidade dos profissionais de saúde?
Um outro estudo conduzido pelas mesmas entidades reflecte a seroprevalência do vírus entre os profissionais de unidades de cuidados primários, bem como de contexto hospitalar, instituições públicas, privadas e do sector social. Os primeiros resultados foram apresentados em conferência de imprensa no Porto, no início de Outubro. A taxa de prevalência do novo coronavírus fixou-se nos 3,1 por cento numa amostra de 1.802 profissionais de saúde de todo o país. Um valor que é inferior ao esperado, aos olhos de Álvaro Carvalho: «É baixo para a nossa expectativa dada a exposição que tiveram, mas há que ter em conta factores de correcção», assegura.
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O Alentejo e o Algarve ficaram "fora do furacão" pelo isolamento das populações. As barreiras naturais terão funcionado aqui. Uma larga fatia destes profissionais não apresentou sintomas. «É importante insistir que o problema do controlo desta infecção é a elevada prevalência dos assintomáticos. São transmissores de infecção ainda que, certamente nos cuidados de saúde se protejam a eles e aos seus doentes. Há que reforçar a importância da protecção», alertou Francisco Antunes, anterior director do Serviço
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A apreciação e análise técnico-científica dos resultados obtidos ficará a cargo do infeciologista Francisco Antunes, da Nova Medical School e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, dirigido pelo professor catedrático Henrique de Barros. Imunidade à doença Apesar de estarmos longe de alcançar a imunidade de grupo, um terceiro estudo, apoiado no rigor científico e numa significativa amostra, poderá dar respostas consistentes nesta matéria: «Pretendemos verificar a evolução da imunidade humoral (Imunoglobulinas G) das pessoas que estiveram infectadas, pelo menos durante seis meses. Interessa-nos saber a percentagem dos que têm anticorpos e a sua cinética ao longo do tempo.» Neste estudo encontram-se 600 pessoas de todo o país, da sociedade civil, instituições de saúde e lares de terceira idade (utentes e funcionários). A expectativa é de que a análise deste painel de vigilância imunológica ofereça dados complementares de grande utilidade às autoridades de saúde. Para já, pode concluir-se que 75,3 por cento dos
assegurada: «Está a ser analisado do ponto de vista técnico-científico por instituições credíveis, preparando a sua publicação em prestigiadas revistas internacionais.», concretiza Álvaro Carvalho em entrevista à FMVG.
inquiridos (423 pessoas) adquiriram imunidade humoral (IgGs) de maior ou menor dimensão. O mesmo é dizer que 24,7 por cento tem IgGs abaixo do limite superior do normal. MM
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de Infecciologia do Hospital de Santa Maria e professor catedrático jubilado da FMUL, que também esteve presente na sessão pública. Com base nos inquéritos sobre o uso dos equipamentos de protecção individual, o bastonário da OM, Miguel Guimarães, destacou: «Dois terços disseram ter tido acesso, o que quer dizer que pelo menos um terço não terá tido». O estudo de abrangência nacional deixou o Algarve “fora do furacão” da doença. Enquanto a taxa de prevalência é de 6,2 por cento nos profissionais de saúde da região Norte, esta desce para 2 por cento no Sul: «Na nossa modesta opinião, o Alentejo e o Algarve ficaram "fora do furacão", na fase inicial da sua passagem por Portugal, pelo isolamento das populações (época turística baixa no Algarve). As barreiras naturais terão funcionado aqui.», explica Álvaro Carvalho. A partilha de resultados De acordo com a Fundação Álvaro Carvalho, os estudos garantem amostras muito significativas e concretização rigorosa no terreno. A partilha das conclusões está também
20 ANOS DE FUNDAÇÃO MANUEL VIEGAS GUERREIRO
A Fundação foi constituída por escritura pública em 11 de Abril de 2000, pelo que decorre o seu vigésimo aniversário.
A Fundação Manuel Viegas Guerreiro assinalou os seus 20 anos de constituição na altura em que decorria o primeiro confinamento, o que implicou a concentração das nossas preocupações na necessidade de se proceder a todos os cuidados por forma a proteger colaboradores da instituição e público utilizador. Optou-se pelo teletrabalho, em prejuízo das acções públicas programadas, nomeadamente a valorização do FLIQ 2020 e a inauguração do Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro. Em contrapartida, foi dada maior atenção a acções que implicam menores contactos presenciais e exposições públicas. Nestes 20 anos, atentos à possibilidade de enquadramento em programas comunitários, mas sempre com recursos financeiros limitados, com apoio da CML e grande dedicação por parte de todos os nossos colaboradores e daqueles que sempre acreditaram ou se têm vindo a envolver nas iniciativas que têm vindo a ser lançadas, foi possível concretizar sonhos conducentes à realidade actual. Tendo como bandeiras a cultura, o ambiente e a defesa e projecção do interior e dos seus valores, as estruturas construídas dão corpo às opções tomadas e dignificam o Algarve no seu todo. Como mais visíveis destacamos as seguintes construções:
Alguns elementos dos primeiros Órgãos Sociais da FMVG: Da esq. para a dir. em cima: Idálio Revez (Vice-Pres.) Manuel Viegas dos Santos (vogal), Hélder Martins (vogal) e Gabriel Gonçalves (vice-Pres.) Em baixo: Quirino Mealha (Cons. Fiscal) e Luís Guerreiro (Presidente)
Edifício Sede onde está instalado o Centro de Estudos Algarvios e com Auditório para 106 pessoas; Sala-Museu Manuel Viegas Guerreiro; Espaço provas de produtos regionais/ Tasquinha do Lagar; Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro.
Inúmeros eventos foram levados a cabo nas nossas instalações ao longo destes 20 anos, nomeadamente os Festivais Literários e a apresentação pública da Hemeroteca Digital do Algarve, um sonho do saudoso Luís Guerreiro. Das muitas publicações da Fundação, não podemos deixar de referir as fotobiografias de Manuel Viegas Guerreiro, Manuel Gomes Guerreiro e Cândido Guerreiro. No respeito pelos constrangimentos legais existentes ou que venham a ser decretados, tudo será feito, por forma a que neste novo período se continue a afirmar o nome da Fundação e dos seus valores. Gabriel Guerreiro Gonçalves, presidente da FMVG
Parte do actual Conselho de Administração da FMVG: Da esq. para a dir.: Gabriel Gonçalves (Pres.), Idálio Revez, (vice-Pres.), Pedro Ferré (vogal). Em cima: José Maria Guerreiro (vice-Pres.)
Escritura da Fundação Manuel Viegas Guerreiro Primeira acta da Fundação Manuel Viegas Guerreiro
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VIAGENS PELA OBRA DE MANUEL VIEGAS
Nos 20 anos da Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG), propusemos a investigadores e várias personalidades ligadas à Cultura a releitura da obra do Patrono, trazendo para o século XXI a Etnografia, a Antropologia, a Geografia, a Linguística, a História e o Ensino no tempo do Estado Novo e do período pósrevolução aos anos 90 do século passado. No primeiro artigo, publicado a 1 de Dezembro no site institucional da Fundação, é dada supremacia à linha de investigação etnográfica do Patrono. Lívia Cristina Coito, bibliotecária do Museu Nacional de Arqueologia e responsável pela organização e inventariação do espólio pessoal de José Leite de Vasconcelos, aceitou o nosso desafio e iniciou esta viagem a partir do livro Leite de Vasconcellos
(1858-1941) e a ciência etnográfica em Portugal. Através destas páginas, Lívia Cristina Coito conta que foi Orlando Ribeiro quem promoveu o encontro entre José Leite de Vasconcelos e Manuel Viegas Guerreiro. O extenso, profundo trabalho do primeiro e esse encontro com Viegas Guerreiro foram essenciais para materializar a dura-máter da etnografia portuguesa. O artigo pode ser lido na pág. 13 desta newsletter ou aqui: http://www.fundacaomvg.pt/o-patrono/viagens-pelaobra-de-manuel-viegas-guerreiro/ leite-de-vasconcellos-1858-1941-e-aciencia-etnografica-em-portugal A acção Viagens pela obra de Manuel Viegas Guerreiro teve início
a 1 de Novembro, dia de nascimento do etnólogo, antropólogo, linguista e professor. Foi no Cerro da Corte, freguesia de Querença, que em 1912 nasceu o menino curioso que desde cedo manteve contacto fácil com as pessoas da sua aldeia, qualidade que o distinguiria entre os pares e os alumni. Poderá (re)descobrir as linhas de investigação de Viegas Guerreiro no documentário Mestre do Mundo (2017), realizado pela Fundação e disponível no canal de Youtube da FMVG, aqui: https://rb.gy/ayzki3 Boas viagens!
« Ninguém podia resistir ao seu olhar simples e bom. Não se sabia de onde ele lhe vinha: se da misteriosa conjugação de heranças ancestrais, se de uma infância excepcionalmente feliz, se de uma educação cheia de humanidade e de confiança nos outros, se de uma formação de antropólogo disposto a ver o lado bom do homem e a não se assustar com as diferenças do outro. JOSÉ MATTOSO IN JORNAL DE LETRAS (1997)
LÍVIA CRISTINA MADEIRA COITO Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em 1985 concluiu a Pós-Graduação em Ciências Documentais – Bibliotecas e Documentação na mesma faculdade. Desde 1984 bibliotecária do Museu Nacional de Arqueologia. Para além das funções inerentes ao cargo, podem-se destacar a conceção dos projetos de organização e inventariação do Arquivo Pessoal de Leite de Vasconcelos e de Manuel Heleno, primeiros diretores do MNA. Também ligada ao sector editorial do Museu, tem coordenado a edição da revista O Arqueólogo Português, assim como a edição de monografias e catálogos. Tem publicado trabalhos, em revistas nacionais, na área dos arquivos pessoais e história da arqueologia. Tem igualmente comissariado exposições bibliográficas.
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GUERREIRO MANUEL VIEGAS GUERREIRO E LEITE DE VASCONCELOS. ENCONTRO PROFÍCUO PARA A ETNOGRAFIA. POR LÍVIA CRISTINA COITO A Fundação Manuel Viegas Guerreiro numa ação de divulgação das obras do seu Patrono e que se inicia no ano do 108.º aniversário do seu nascimento, fez-me um convite para comentar o título Leite de
me honrou, pelo que aceitei este desafio. O meu texto vai-se focar principalmente na análise das afinidades entre discípulo e Mestre, dois grandes vultos da Etnografia portuguesa. A minha ligação “pessoal” a Leite de Vasconcelos surgiu principalmente de remexer e organizar o seu espólio, os seus papéis de inúmeros formatos, e do esforço de decifrar a sua letra. Nisto, a minha afinidade com Viegas Guerreiro que também organizou os seus papéis para publicação das obras póstumas, enquanto a mim me coube a sua organização para os poder disponibilizar aos investigadores. O seu legado pessoal deixado em testamento ao Museu, revela-nos o seu labor científico, e também aspetos mais particulares da sua personalidade. Depois da sua morte o Museu recebeu em 1943, manuscritos pessoais, grande parte da sua biblioteca, objetos arqueológicos e etnográficos. Após ter ficado 40 anos praticamente intocável nas prateleiras do depósito, a partir de 1986 iniciou-se um trabalho sistemático de organização deste arquivo pessoal tendo-se editado em 1999 o Inventário da sua correspondência com cerca de 27.000 espécies de 3800 correspondentes. Os manuscritos estão organizados por áreas
ESPÓLIO FMVG
Vasconcellos (1858-1941) e a ciência etnográfica em Portugal, o que muito
temáticas e disponíveis para consulta dos investigadores. Este arquivo, num total de 252 caixas, pode ser considerado o maior espólio pessoal existente em Portugal.
Manuel Viegas Guerreiro entra em contacto com Leite de Vasconcelos através de um amigo comum e seu colega de faculdade, Orlando Ribeiro. Os laços profissionais e de
sólida amizade entre o Mestre e o discípulo vão-se fortalecer nos poucos anos de convívio pessoal. Viegas Guerreiro vem para Lisboa pelos 20 anos, começa a corresponder-se com Leite de Vasconcelos com 22 anos, em 1934, quando este já tinha 76 anos e o último postal enviado é de abril de 1941. O passamento de Leite de Vasconcelos dá-se em Maio desse ano, e na véspera à noite esteve em sua casa, segurando-lhe na mão, conforme relato do próprio. É uma forte ligação que se cria entre um jovem e um idoso; um com desejo de aprender e o Mestre e professor já sem alunos, mas sempre pronto a ensinar os discípulos que o ajudam na organização dos seus manuscritos, com as leituras e a escrita. Ao analisarmos os dois intervenientes neste texto e, apesar da enorme diferença de idades, verificamos que têm muitos interesses em comum, o que naturalmente deve ter contribuído para o excelente entendimento, colaboração e amizade entre ambos. Leite de Vasconcelos nasceu, cresceu e viveu na Beira até aos 18 anos e a sua ligação à terra e influência desse ambiente rural moldou-lhe o caráter. Esse meio era também rico em testemunhos do passado, com os mosteiros de S. João de Tarouca e Salzedas nas vizinhanças de Ucanha, sua aldeia natal. Desde cedo todos estes vestígios, registos arqueológicos e etnográficos chamaram-lhe a atenção e começou de imediato a tomar notas nos seus «caderninhos». Essa sua vivência em meio rural refletiu-se nos seus primeiros artigos, de temática etnográfica, publicados em jornais, assim como
no seu primeiro livro editado com apenas 20 anos O Presbitério de Vila-Cova. Aos 18 anos por necessidades económicas vai trabalhar e continuar os estudos no Porto. Manuel Viegas Guerreiro nascido em Querença no Algarve, igualmente em meio rural, parte ainda menino para Portimão e com 10 anos para Faro para continuar os estudos. Todo o seu ambiente familiar também lhe desperta o interesse pelas tradições populares. Com apenas 15 anos faz as primeiras recolhas de literatura popular e com 17 publica o artigo «O Homem através dos Tempos» no jornal O Comércio de Portimão. A sua licenciatura em Filologia Clássica e o gosto pelas tradições populares são interesses afins. Outro aspeto em comum é a ligação à família, à mãe, a de Leite de Vasconcelos, austera e grave, circunstância que terá contribuído para a sua atitude reservada e introspetiva; a de Viegas Guerreiro, alegre e que lhe proporcionou uma infância feliz. Mais um ponto convergente é o gosto por viajar, conhecer, observar e analisar. A formação de Leite de Vasconcelos na área das Ciências contribuiu para o seu método de investigação baseado na observação, interpretação e análise, desenvolvendo um trabalho sistemático e de pormenor. Ao estudar as partes pretendia abarcar o todo, daí as múltiplas áreas de interesse como a Etnografia, Arqueologia, Filologia, Numismática, Epigrafia, para lhe permitir entender as origens, a vida e os caracteres do «Homem português», tanto do passado como do presente, e especialmente na sua vertente popular. O jovem Viegas Guerreiro, estudante de
Filologia Clássica, será certamente marcado por este convívio com Mestre Leite que influenciará a sua criação intelectual também baseada na observação e registo da vida social e constante preocupação com a recolha etnográfica. Conforme nos diz «entrei na casa de Leite de Vasconcellos, que é como quem diz no mundo da Etnografia Portuguesa». A curiosidade insaciável, persistência, grande capacidade de trabalho e disciplina que Leite de Vasconcelos conservou até ao fim da vida (82 anos), valeu-lhe uma produção escrita difícil de igualar, ficando ainda imenso material inédito em maços, deixando aos testamenteiros a tarefa de o publicar. Para a organização das obras póstumas e uma vez que parte dos testamenteiros faleceram antes do próprio Mestre e outros não se empenharam nessa missão, O. Ribeiro consegue para Viegas Guerreiro uma bolsa do Instituto de Alta Cultura para coordenar, organizar e publicar os manuscritos de Leite de Vasconcelos, trabalho esse já iniciado em vida do Mestre que lhe conseguiu uma bolsa entre 1940 e 1941 para «o ajudar no seu labor literário». Esta foi uma tarefa complexa, com um manancial de informação imenso, posso referir que caixas francesas com os apontamentos de Leite de Vasconcelos apenas sobre Etnografia e existentes na biblioteca do Museu são 29. A estes números podemos juntar as 33 caixas existentes na Faculdade de Letras. O volume da informação, a dificuldade na leitura e a diversidade dos formatos de papéis utilizados pelo Mestre são apenas alguns dos aspetos que refletem a magnitude da empresa que Viegas Guerreiro teve a capacidade, o gosto e
ESPÓLIO FMVG
ARTIGO
Grutas das Solestreias,Querença,1954. Manuel Viegas Guerreiro encontra-se ao centro.
perseverança de levar a bom termo, e concluir em 1988, com a publicação do vol. X da Etnografia Portuguesa. Em 1981, Viegas Guerreiro retoma também a publicação da Revista Lusitana – Nova série, revista fundada por Leite de Vasconcelos, em 1887 de que se editaram 38 volumes até 1943. Viegas Guerreiro é pois a pessoa mais indicada para publicar estudos sobre a obra de Leite de Vasconcelos como este que a Fundação me propôs que comentasse. Conhecedor profundo da sua obra e dos seus manuscritos podemos considerá-lo um continuador do seu pensamento etnográfico. Segundo Viegas Guerreiro, Leite de Vasconcelos é o fundador em Portugal da Etnografia como ciência e o primeiro a realizar trabalho de campo sistemático, abrangendo todo o território
nacional e recorrendo a todo o tipo de fontes de informação. Exemplo disso são as fontes epistolares dos numerosos correspondentes que lhe enviavam todo e qualquer dado relacionado com tradições populares, contos, adivinhas, cantigas, sítios arqueológicos, peças, etc. Leite de Vasconcelos fundou em 1893 o Museu Etnográfico Português, trazendo para o museu os objetos reunidos nas recolhas que efetuava assim como as ofertas que recebia, tornando-se este um prolongamento do seu trabalho de campo. No Museu, reunindo, estudando e expondo os objetos contribuía para o conhecimento das origens, tradições e características do povo português. Na História do
o nosso povo, principalmente o das cidades maiores, tem o sentimento bastante desnacionalizado: isto resulta em parte de se conhecer mal a vida do país. As grandes exposições nacionais contribuem para atenuar o mal; mas um museu ethnographico, influe muito mais». Manuel Viegas Guerreiro também teve uma breve passagem na direção do «Museu de Belém», de 25/4/1974 a 16/6/1975. Sem o trabalho de Viegas Guerreiro a obra de maior vulto de Leite de Vasconcelos, a Etnografia Portuguesa, que como o próprio afirmava era a «aspiração máxima da sua vida», mas que só lhe foi possível iniciar a sua redação em 1928, já com 70 anos de idade, nunca teria sido terminada. Museu Etnológico Português (1893- Viegas Guerreiro recebeu o lega-1914), publicada em 1915, afirma do cultural de Leite de Vasconcena p. 14 «Naturalmente, quando se los, enriqueceu-o e transmitiu-o às conhece melhor uma cousa, há gerações seguintes. Este foi um dos mais razão para a apreciar. Em geral importantes tributos que nos legou.
POSTAIS
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DO ALGARVE
« A ROMÃ Pareço uma malhinha envernizada, Tendo dentro, No meu centro, Bem guardados Como a mais bela prenda preciosa, Entre estofos de seda alimonada, Lindíssimos frasquinhos cor de rosa Facetados! Rosa tinta Tão distinta Esbraseada quase, como um lume, E, tendo a boiar a perolazinha Redondinha Onde reside a essência do perfume! BARTOLOMEU SALAZAR MOSCOSO
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CRÓNICA
FOTOGRAFIA: TELMA VERÍSSIMO
A SERRA. VIAGEM AO INTERIOR DE UMA SAUDADE HABITADA. POR SALVADOR SANTOS
A
cisão mediterrânica, primeiro. Embora o território tenha marcas ou se ressinta de um mediterrâneo tardio. Aqui, com mescla atlântica. A fratura continental, também. Provocada pela rotura que a barreira montanhosa a norte, (e que se estende de uma ponta à outra da região) impõe na planície extensa e continuada do Alentejo. Entrados no Algarve, depois da terra arrepiada, o breve, lento e tranquilo desmoronar no oceano. Subsidiária, em larga medida, destes dois constrangimentos, a região, vê, dentro de si, acontecer ainda outra realidade. A formulação de um contraste entre dois territórios física e mentalmente distintos; o litoral e a serra. A morfologia decretou fronteiras e definiu identidades. A noção de interioridade vamos buscá-la à Geografia, sobretudo. O que nos discursos oficiais sobre o país se determina por «interior», no Algarve corresponde à «serra». Invocá-lo vem quase sempre a pretexto das marginalidades que esse território concentra em si. Não é assunto novo os problemas do interior serrano nem ex-
clusivos da nossa circunstância. Lembre-se a formulação de Jorge Gaspar que construiu a feliz metáfora do Algarve como «Portugal deitado» onde, diga-se, se soma à coincidência de perfil as duas unidades geológicas (Orla Sedimentar e Maciço Antigo), a oposição entre o litoral e o interior e, também, a bipolaridade urbana Lisboa-Porto, entendida, entre nós, na correspondência Portimão-Faro. Essa semelhança estende-se de igual forma às dinâmicas sócio-demográficas e económicas do território. O nosso interior, a serra, tal como no resto do país encontra-se, quando não está ao abandono, envelhecido. Um mundo na iminência de ruir. Hoje, esses problemas são favorecidos na sua ressonância e sublinhados pelo despovoamento de muitos sítios e pela ameaça de ficarem sem habitantes outros tantos lugares que ainda se conservam agarrados à vida por conta de meia dúzia de almas. Conte-se o número de crianças que têm nascido por esses montes fora e a contabilidade dos vivos e dos mortos não deixará dúvidas quanto ao futuro. Coagular a regressão demográfica afigura-se como imperativo. O verbo é esse mesmo.
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o Guadiana às costas de Alfamar: sobreiros, azinheiras, pinheiros e medronheiros, os terríveis eucaliptos desterrados ali, e para sempre». Importava recuperar os tempos de prosperidade que os serrenhos tinham vivido no início da «Campanha do Trigo». Impedir que com cada homem válido que partia para o estrangeiro fosse um pouco da riqueza da nação. A serra é ali sinónimo de trabalho árduo e miséria. Maria da Graça, filha de Francisco da Várzea, um pequeno proprietário, procura persuadir o seu pai a vender as terras, a ir para a Argentina, como os da banda da serra de São Brás de Alportel ou como os do concelho de Faro que saíam à farta para o Canadá. Vender tudo e abalar, nem que fosse para Lisboa. «Quadra-lhe bem estourar de fome?», perguntava-lhe ela. Como Maria da Graça não havia raparigas solteiras que quisessem ficar por ali. O antropólogo Manuel Viegas Guerreiro em Uma Excursão à Serra do Algarve, de 1956, dá-nos conta da mesma preocupação. Refletindo sobre o povoamento florestal, em equação na altura, (e que poria cobro à utilização rotineira e criminosa do solo)
FOTOGRAFIA: TELMA VERÍSSIMO
Intencional a aproximação ao sangue. A serra esvai-se de gente como veias que se cortam. No fundo só uma visão nostálgica nos impede de assumir como natural a relação ancestral do homem com os lugares. Ocupação e abandono. Partimos das aldeias, e mesmo das pequenas cidades do interior, da mesma forma que abandonamos os livros já lidos. Quando as suas ideias já não nos alimentam, as suas palavras não acrescentam conhecimento, esquecem-se. Quando a sua leitura deixou de ser uma paisagem que nos enche a alma abandonamos os livros e os seus autores. Procedemos da mesma forma com os lugares que não nos garantem subsistência. Que outra coisa é hoje, senão um lugar deserto, a obra literária de Assis Esperança? Regresso ao escritor farense em função do título, «Pão Incerto», de 1960. Assis Esperança (1892-1975) domicilia a ação do seu romance em Alfamar, um espaço literário que corresponde, grosso modo, ao concelho de Aljezur enquanto espelho da serra algarvia. «Pão Incerto» começa com a conferência de um engenheiro agrónomo que vai à vila debater os problemas agrícolas. Aproveitamento das terras e tudo quanto significasse
aumento dos rendimentos. entendia que ninguém estava em melhor posição do que os Boa fecundação das sementes, técnicas para salvar os solos em serrenhos para avaliar os benefícios de proteger e plantar degradação, aumento das exportações, «floresta contínua desde novas árvores. Apreciar o alto valor da cortiça e o preço
compensador do medronho. Da parte deles não via resistência. Quanto a si, os problemas tinham raízes culturais e económicas. O fogo impiedoso dos seareiros sem escrúpulos que reduziam as sobreiras a cinzas só se poderia resolver com a criação de novas condições de vida para a população. Empregando uma parte dela nas tarefas das futuras plantações e deslocando a outra para lugares onde o seu esforço pudesse ser útil, tanto a si, como à economia da nação. Tanto no caso de «Pão Incerto», como na observação de Viegas Guerreiro em pano de fundo está a preocupação e o esforço em acautelar a rotura nos equilíbrios ambientais, social, demográficos e económicos sedimentados historicamente. Manter as pessoas agarradas à terra. Impedir a emigração e a concentração nas cidades do litoral. Os diagnósticos, relatórios, discussões e programas que incidem sobre a marginalidade geográfica, social e económica do interior nunca deixou de motivar reflexão, ação e crítica. Ainda que a avaliação dos resultados e das consequências pouco satisfaçam não se pode afirmar que as preocupações políticas tenham estado arredadas da sua problemática. Nunca foram incisivas, é certo, mas até que ponto poderiam ser eficazes mesmo que aplicadas com acerto e determinação? Atualmente, a agonia impossível de ignorar e a circunstância de uma nova realidade laboral que permite que um número significativo de pessoas trabalhe a partir de qualquer lado, apenas com recurso a um computador e acesso à internet vieram abrir um campo de possibilidades novo para o interior. Pensar no repovoamento da serra tornou-se um horizonte alcançável nos programas de apoio do governo que apresentam como desígnio a fixação de pessoas em territórios de baixa densidade. A morte do interior casa-se com os incentivos do governo e com um crescente regresso aos campos. Num primeiro instante a densificação urbana das cidades do barrocal e do litoral contrastou com a «morte social» do interior, provocada pela fragilidade das dinâmicas económicas, pela ausência de infraestruturas e de serviços de apoio às populações. Nos tempos que correm, a saturação das grandes cidades transformou-as num espaço hostil, onde cada vez mais se disputam os benefícios que delas se podem tirar. Os profissionais liberais empurrados para as periferias encontraram no regresso ao campo o silêncio, a calma e o espaço que a cidade lhes roubou. Nessa evasão procuram expurgar os vícios a que a vida nas cidades obriga. O ritmo frenético, as exigências profissionais, o desgaste dos negócios levou-os à exaustão. A ideia da vida saudável do campo é acompanhada pela aspiração a um território mais amplo do que o horizonte emparedado das marquises sufocadas entre prédios. O próprio desejo de uma vida menos nociva para o meio ambiente, mais ecológica e «sustentável» impele um grupo cada vez mais alargado de citadinos a experimentar a vida pragmática do campo. É nesse tabuleiro de configurações imaginárias que se joga o
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futuro do interior. Um destes dias recebi do Paulo Pires, programador do Cineteatro Louletano, a seguinte mensagem; «Serra do Algarve, tarde de calor, Ameixial, 1 tasca, 1 cerveja, 1 sandes de presunto com manteiga, conversas entre realidade e surrealismo entre “velhos”. Será isto que nos salva, relativiza e recentra?» Não tenho uma resposta que me satisfaça sobre o assunto nem que o apazigue com o destino. As razões históricas de ocupação do território, o reforço das linhas de fronteira, da proximidade das populações aos recursos naturais, tão necessário numa economia de subsistência, deixaram de responder às necessidades da população. Parecem-me razões arcaicas os argumentos que tornavam útil a humanização dos territórios periféricos. Esses argumentos desfasados dos circuitos de produção, distribuição e do trabalho contemporâneos soam obsoletos no quadro de uma mundialização efetiva e onde as sociedades fechadas se transformam numa interioridade dentro de si próprias. Neste caso não sou partidário de um estado assistencialista que entenda, sem um objetivo concreto para além do imperativo afetivo e nostálgico, a necessidade de revitalização desses núcleos rurais. Creio antes de tudo que deverá ser o respeito pela Constituição que deve obrigar a que não se abandone o interior, a que não se deite ao esquecimento quem lá vive e se criem as condições necessárias para que aqueles que pretendam viver no interior o possam fazer em igualdade de circunstâncias de quem opta pelo litoral. As razões que levaram a que ontem tivessem trocado o trabalho duro da terra pelos empregos limpos da cidade, a optar pelo ócio dos teatros, dos cinemas, dos cafés, dos centros comerciais. A preferir o anonimato das multidões à língua grande das aldeias são as mesmas de hoje. A primeira medida para combater a interioridade talvez seja essa. Fazer cumprir a Constituição.
POSTAIS
DO ALGARVE
« O MEDRONHO O medronho Medra dos medronheiros São pompons alaranjados e vermelhos. Quando fermentam aguardentizam-se. No Natal o peru prova e nós amedronhamos de caixão à cova. TÓSSAN
« NATAL Cantam, ao longe, os pastores, canções virgens, pelos montes, - segredos que ouvem às flores; mágoas que escutam às fontes... Que roseira tão formosa, o madeiro, a arder em brasa! - Cada chama é uma rosa, dando aroma e luz à casa... BERNARDO DE PASSOS
« ... há nele um Natal sério que me volta como se fosse um aviso pregado à entrada do meu autêntico mundo: num sapato de adolescente inacabada, posto na chaminé, um pé de laranjas frescas, presas ao seu ramo, tendo folhas verdes, uma moeda nova de dez escudos e um canivetinho de duas lâminas, azulado, um desejo satisfeito. MARIA ALIETE GALHOZ
DIÁRIO DE CAMPO
ORQUESTRA CLÁSSICA DO SUL NA FMVG
O REGISTO DO OUTRO, POR MVG
FIGO LAMPO APRESENTA-SE NA FMVG
Ciclo dedicado ao Dia Mundial da Música sobe pelo palco da FMVG na noite de 2 de Outubro com S. Barber, G. Gershwin, Meza e A. Piazolla. Interpretação por quinteto de sopros. Concerto com o selo Cine-Teatro Louletano/CML.
Pequena exibição de equipamentos de captação de som e imagem utilizados por Manuel Viegas Guerreiro em trabalho de campo, aqui e além-fronteiras. Visitável na Fundação, de 2.ª a 6.ª feira, entre as 9h30 e as 16h30.
A jovem associação (2019), reúne anos de trabalho nas artes visuais, escritas e cénicas ligadas à ecologia, à serra e barrocal. Estórias no Ambiente é o nome do projecto apresentado no dia 20 de Novembro e marca a estreia da Figo Lampo.
PELA 2.ª VEZ, FMVG DOA LIVROS A S. TOMÉ
FMVG E EDITORA ANIMAM LIVROS USADOS
ALFA FOTOGRAFA PEB-MGG
A reunião do dia 17 de Novembro foi a primeira da Rede de Bibliotecas do Concelho de Loulé (RBCL) a ser realizada através de plataforma digital. A FMVG confirma 953 livros entregues à campanha da RBCL, que assinalou a Semana da Leitura de 2020.
A Sul, Sol e Sal prepara-se para abrir a Casa do Meio Dia, o novo espaço da editora em Loulé. A Fundação celebra oferecendo livros usados a quem compre novos. A campanha foi carimbada pelas entidades e existem outras colaborações no prelo.
Cerca de uma dezena de fotógrafos da Associação de Fotógrafos Livres de Faro visitou o Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro, no dia da Implantação da República. Foram guiados pelo autor do projecto, o Arq.º Fernando S. Pessoa.
DESCUBRA O PERCURSO ECO-BOTÂNICO MANUEL GOMES GUERREIRO AO LONGO DA SUA CONSTRUÇÃO E DAS ESTAÇÕES DO ANO NO CANAL DE YOUTUBE DA FMVG:
https://youtu.be/uN2-kaDAKS4
CRIANÇAS DE QUERENÇA ENTRAM EM ESTUDO SOBRE FLUÊNCIA DE LEITURA A Fundação Manuel Viegas Guerreiro, em parceria com a Câmara Municipal de Loulé e o Agrupamento de Escolas Padre João Coelho Cabanita, participa no projecto de investigação Desem-
penho em leitura após o contexto de confinamento. O estudo, que resulta
da articulação entre a Universidade Lusíada Norte-Porto, a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação-UP e o Agrupamento de Escolas Gaia Nascente, pretende contribuir para a caracterização do desempenho na fluência de leitura de alunos do 3.º ano, após o confinamento
imposto pela pandemia. Os alunos de Querença beneficiarão assim de uma intervenção para a promoção da fluência de leitura, condição essencial ao sucesso escolar e que poderá decorrer à distância.
«CANÇÕES QUE OS CEGOS TOCAM QUANDO CHORAM» N. F. Estrela que se levanta em pura solidão, Um momento quase caindo do alto, Sua luz se abre desde todo o oriente. Despertam gargantas de pássaros, notas Alegres e claras repentinamente soam... Sorri por sobre nossos medos o rosto da manhã. Toca nossos olhos a fila tão amada da noite... Nossa longa espera se abre em manhã ressurgida, Nos meus lábios secos por pequena morte acorda O grito da ressurreição – voltou a luz. Duramente quero a vontade da esperança. MARIA ALIETE GALHOZ
IN MEMORIAM MARIA ALIETE GALHOZ, NÃO CHOREIS MEUS OLHOS Regresso a Maria Aliete Galhoz como quem chama por uma sombra luminosa, muito amada. Vejo-a pela primeira vez passeando na Praia dos Olhos de Água, com um barrete de riscas, era ela então muito jovem. E mais tarde, já nos anos sessenta, vejo-a no mesmo areal, levando um pequeno cesto no braço. Dentro desse cesto, guardava umas tiras de papel que decifrava. Maria Aliete Galhoz disse que eram escritos de Fernando Pessoa. Quando falo neste episódio, dizem-me que não é verdade. Se não for verdade, então é porque também não é verdade que eu existo. Lembro-me do seu rosto claro, tentando criar frases com sentido a partir do que me pareciam uns arabescos miúdos. Depois, Maria Aliete Galhoz, a estudiosa, a poeta, a pessoana, a professora, cresceu na minha admiração. Segui-lhe a vida, cruzámo-nos, criei uma mitologia em torno da Maria Aliete. A princípio, com o Padre Manuel Antunes, depois com Vergílio Ferreira, a convivência foi passando dos passeios na praia e dos encontros na sua casa de Boliqueime, para uma ligação de outro tipo. Maria Aliete protegeu-me, ensinou-me, convidou-me para a mesa da sua sabedoria íntegra, mansa, cautelosa, sólida. Depois a poesia tradicional bateu-lhe à porta e ela respondeu de forma irrepreensível. Reconstituiu um monumento patrimonial de altíssimo valor. Mas é na sua casa de Sintra que neste momento a vejo lendo os seus próprios poemas. Naquele dia de Primavera, ela lia poemas do seu livro Não choreis, meus olhos. A esta distância, não sei se existe vírgula entre choreis e meus olhos. Mas quero crer que ela pediria que não a chorássemos. A sua vida e legado foram nobres. Os seus olhos viram o mundo sob o ângulo da poesia, interpretaram-no, cumpriram-no. A vida não me permitiu mostrar-lhe a minha gratidão. Ela existe, escondida no que procuro transmitir aos outros, em seu nome. Fixem esse nome, chamou-se Maria Aliete Galhoz. LÍDIA JORGE
NÃO, MEUS OLHOS, NÃO CHOREIS, SOB AS NUVENS BRANCAS A SOMBRA É LENTA, UMA VELHA ÁRVORE HUMANA VAI CAIR, ARRANCARAM SUAS GROSSAS RAÍZES, CAMINHA. MARIA ALIETE GALHOZ
POSTAIS
DO ALGARVE
BIBLIOGRAFIA
Brandão, Raúl - Algarve. Coimbra : Edição Alma Azul, 2008. Braz, João - Esta Riqueza que o senhor me deu. [S.I] : Edições Sit., 1953. Fonseca, Manuel da - Crónicas Algarvias. Lisboa : Caminho, 1986. Franco, Mário Lyster - Um poeta algarvio esquecido, notas bio-bibliográficas e breve antologia. Faro : Tipografia União. Separata dos n.ºs 3044 a 3048 do «Correio do Sul», 1979. Galhoz, Maria Aliete - Poemas em rosas. Lisboa : Presença, 1985. Galhoz, Maria Aliete – Não choreis meus olhos. Lisboa : Ática, 1971. Lopes, Teresa Rita - Álvaro de Campos: livro de versos (Edição crítica). Lisboa : Estampa, 1993. Mackaaij, Marco - E Se Não For?. Tavira: Canal Sonora, 2015. Neves, Leonel - Natural do Algarve. Faro : Universidade do Algarve, 1986. Passos, Bernardo de - Refúgio. Lisboa : Tipografia Americana, 1936. Rosa, José António Pinheiro e - Crónicas, Viagens e outras Engrenagens. Faro : Edição do Autor, 1992. Tóssan: Lógica zoológica, Frutos e desfrutos, Animalia, Contos e descontos. In O Homem que Só Queria Ser Tóssan. Vol II. Lisboa, Loulé : Arranha-céus, 2019.