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VIAGENS PELA OBRA DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO
BOCHIMANES !KHŨ DE ANGOLA ESTUDO ETNOGRÁFICO1
Por V Tor Oliveira Jorge
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Esta obra – um trabalho sério de etnografia, porém realizado em condições precárias - data já de uma época algo longínqua, em que a realidade africana era muito diferente da atual, em particular em termos políticos (por exemplo, Angola era ainda, anacronicamente, uma colónia portuguesa2; na África do Sul reinava então o estranho e indigno sistema do apartheid , etc.), mas também houve desde essa altura uma expectável modificação do contexto e das condições de vida dos povos recolectores-caçadores e dos povos pastores tradicionais do sul do continente, pertencentes no seu conjunto a um “mundo” bem diferente dos agricultores-pastores-metalurgistas ligados às línguas bantas e ao aspeto físico, de cor de pele negra, que tanto os distinguem, como é bem sabido, dos anteriores. Esse mundo, considerado pré-banto, é geralmente designado Khoïsan , para englobar todos os povos que utilizam na sua linguagem os famosos cliques ao pronunciarem as consoantes. Porém, essa é uma denominação externa a tais povos, uma vez que desde logo temos de aí distinguir dois grupos completamente diferentes (mesmo nas suas línguas), os Khoïkhoïou Khoï , dedicados à pastorícia, e os San , recolectores-caçadores. Os Khoïkhoïautodenominam-se assim (a sua designação é na verdade um pleonasmo, para enfatizar a ideia de homem, acabando por significar “homens dos homens”) com o fito de se diferenciarem a si próprios dos San, ou Sankhoï , como os designam.
O nome genérico Khoïsanfoi atribuído a estes povos com “linguagem de cliques” – encarada de início como uma espécie de gaguejopelos primeiros colonos europeus, nomeadamente holandeses (e alemães, franceses, ingleses, etc.), os africâneres, ou bóeres, como se lhes chamava antigamente.
É dessa noção de gaguejo que também deriva a designação pejorativa de Hotentotes por que tais povos eram conhecidos.
O livro aqui em causa, resultante da tese de doutoramento defendida na FLUL por Manuel Viegas Guerreiro, é sobre os Sande Angola; os Sansão considerados como um povo autóctone, o mais antigo não só da África austral, como de toda a África, senão mesmo como uma “relíquia” da pré-história da humanidade. Não admira, assim, que este “povo” tenha desde há muito suscitado grande curiosidade por parte de estranhos, nomeadamente etnólogos, visitantes, etc. Bosquímanos(ou Bochimanes) é uma palavra hoje considerada pejorativa, derivada da designação de Bushman , “homem do mato”, que foi utilizada pelos colonizadores. Representariam a forma mais elementar de vida humana, uma vez que não “produziam” nada: apenas viviam num ambiente difícil, desértico ou muito árido, com base num conhecimento profundo desse ambiente, permitindo-lhes recolher (e subsidiariamente caçar) tudo o que é essencial à manutenção da vida humana.
Como é sabido, a noção de “selvagem” ou de “primitivo” está hoje totalmente banida da nossa linguagem, a par de qualquer “sintoma” de racismo ou de xenofobia, aliás ausentes da obra de Guerreiro, um homem animado pelo amor do conhecimento da diversidade humana, com aquela empatia pelo radicalmente diferente que sabemos não ser infelizmente atitude generalizada.
Quer a antropologia quer a arqueologia nos ensinam que o Homosapiensé, desde há milénios em que se expandiu para todo o globo, uma espécie altamente sofisticada, capaz de se adaptar a todos os ambientes, por mais extremos que sejam. E a própria noção de “civilização” é muito relativa, desde logo porque sabemos a complexidade do conhecimento prático que pressupõe a vivência em meios-ambientes extremos, sejam eles extremos pela aridez, pela humidade (florestas equatoriais com os seus Pigmeus, em África) ou pelo frio, como no extremo norte da Eurásia ou da América. Por outro lado, se a vivência nestes ambientes, como é o caso dos San , resulta da necessidade de conservarem uma certa independência relativamente a comunidades tecnicamente mais apetrechadas, as quais muitas vezes os foram empurrando para essas “periferias”, também é certo que sabemos que a cooperação, o comportamento “altruísta”, a partilha, tendem a ser mais frequentes nas sociedades menos socialmente hierarquizadas Não se trata de ressuscitar aqui nenhum mito de “pureza das origens”, mas antes de fazer fé naquele provérbio inglês tão conhecido: “a friend in need is a friend indeed.” tudo o que é próprio do universo simbólico a que se convencionou chamar cultura. O curso da história mudou muito nas últimas décadas, tanto do nosso ponto de vista ocidental, como do ponto de vista das populações locais. Essas condições de vida “tradicionais”, no mundo contemporâneo, são precárias, e tendem a desaparecer numa sociedade capitalista neoliberal globalizada. Por isso voltar a este livro tem algo de
VÍTOR OLIVEIRA JORGE nasceu em Lisboa em janeiro de 1948. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras de Lisboa em 1972, com uma tese sobre Paleolítico Inferior e Médio do Sul de Portugal. Foi assistente da Universidade de Luanda (Cursos de Letras) entre 1973 e 1974. Neste último ano ingressou na Universidade do Porto, Faculdade de Letras, onde se doutorou em Pré-história e Arqueologia em 1982 e onde prestou provas públicas de agregação em 1989, sendo catedrático desde 1990. Foi Presidente do Conselho Diretivo da FLUP em 1994/95. Desde 1997, ano da sua criação, integrou o Departamento de Ciências e Técnicas do Património da FLUP. Em 2001 foi distinguido pela Presidência da República com a Medalha de Grande Oficial da Ordem do Mérito. Dirigente associativo, poeta publicado, ativista em defesa do património, aposentou-se da FLUP em junho de 2011, sendo desde 2015 investigador integrado do IHC-FCSH-UNL. Preside à direção da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, Porto.
A prática da agricultura e da criação de animais domésticos (que alguns San , por aculturação, vão realizando em pequena escala para melhor fazer face a momentos mais difíceis) traz consigo a apropriação privada da terra, um bem inalienável, comum, para muitos caçadores-recolectores, a maior parte deles hoje confinados a “reservas” onde não podem de facto subsistir como seres portadores de uma experiência vivencial própria, que no caso dos Sanenvolve, como em todos os seres humanos, representações, uma tradição artística (plasmada nas obras plásticas deixadas nas rochas pelos seus antepassados), música, danças, narrativas, etc.
3 Basta para tal consultar o excelente e atualizado resumo que vem na Wikipedia, em “San People”: https://en.wikipedia.org/wiki/San_people; também existem, na versão francesa da mesma Wikipédia, pequenas introduções esclarecedoras sobre o termo Khoïsan , e sobre os povos Khoïkhoe San nostálgico, mas também de um pouco doloroso: confrontamo-nos ao lê-lo (nas linhas e nas entrelinhas) com uma realidade que, como europeus, nos causa fascínio, foi observada com atenção e delicadeza por Manuel Viegas Guerreiro, mas está em transformação total: tem tido nas últimas décadas uma atenção inusitada3, mas é evidentemente a atenção prestada, até certo ponto, a um resíduo, a uma realidade moribunda, ou a uma “peça de museu” - passe um certo exagero da metáfora...
Não tive a oportunidade de privar com o autor4 , mas li este seu livro sobre os Bosquímanos, no quadro do meu interesse por tudo quanto dissesse respeito às sociedades de caçadores-recolectores (e mais genericamente pré-estatais) e do estudo da antropologia cultural
4 Durante a minha frequência do curso de História na FLUL (1965-1972, incluindo tese final) foi a certa altura retirada pelo Ministério da Educação, do curriculum do curso, a cadeira de Etnologia, que tencionava frequentar como 3.ª opção (restaram apenas duas de Geografia, que tirei), e que, salvo erro, era então da responsabilidade de Manuel Viegas
Detalhe do mapa do sul de Angola que indica os lugares onde Manuel Viegas Guerreiro encontrou grupos bochimanes Autor do mapa: Humberto Avelar como complemento indispensável da pré-história a que me dediquei. Particularmente enquanto estudante da Faculdade de Letras de Lisboa, onde fui aluno de Orlando Ribeiro5 –um dos mentores de M. V. Guerreiro, juntamente com Jorge Dias – preparando
Guerreiro. No tempo em que fui assistente da Universidade de Luanda, Cursos de Letras (Lubango, antiga cidade de Sá da Bandeira – 1973-1974) tive a oportunidade de ver e ouvir alguns “bosquímanos” numa “tasca” de deserto, lá bem no sul, onde aliás me foi comentado que o dono do estabelecimento, português branco, lhes costumava vender “vinho uma tese de licenciatura sobre as mais rudimentares técnicas de talhe da pedra que a humanidade conheceu; ora, os bosquímanos, ou San , apresentavam-se-me já então, estudante a dar os primeiros passos, como uma sobrevivência das mais antigas formas a martelo” (bebida alcoólica adulterada), procedimento habitual. 5 Interessante o texto-resenha que este autor consagra ao livro, em 1970 (v. bibliografia); a sua leitura, excelente síntese, para a qual remeto o/a leitor/a, dispensa-me aqui de resumir o conteúdo desta obra de MVG.
« de subsistência dessa humanidade. Nós, modernos, somos ávidos de passado, e particularmente de um tão longínquo, na nossa imaginação conservado em vestígios vivos ou objetais, que nos permita chegar às “origens”, perceber o “mítico começo” das coisas e dos homens e, como tal, o fundamento e razão da nossa própria existência. É isso que perseguem a antropologia cultural e a pré-história, entre outras, na sua roupagem e instrumentação de práticas científicas voltadas para o entendimento da verdade do absolutamente diferente, mas sempre com o desejo, ou pulsão, de estabelecer uma ponte entre nós, civilizados e em “mal-estar” (como Freud disse) e os “primitivos”, como dantes se dizia, os quais, no entender de Marshall Sahlins6 em 1972, seriam a verdadeira “sociedade da abundância”. Porque, argumentou o grande antropólogo norte-americano na sua obra hoje clássica, a “abundância” ou a “escassez” têm de se ver numa perspetiva relacional, numa articulação entre o que se deseja e o que se obtém. Ora, se nas sociedades da “Idade da Pedra” se desejava o pouco que se obtinha, nas nossas, permanentemente abundantes em novos objetos de desejo, nunca estamos satisfeitos com o que temos: de modo que somos nós quem, verdadeiramente, conhece a escassez. Claro que esta visão corre o risco de “edulcorar” fortemente o viver das mulheres e dos homens da pré-história, e dos seus supostos “sobreviventes primitivos” de hoje, que observamos com interesse e nostalgia. Por isso o geógrafo O. Ribeiro termina a sua resenha do livro em análise escrevendo sobre os bosquímanos estudados por M. V.
Arealidadequedescreve–atendendoàprópriadinâmica internadaspopulações,quesó nas«fotografias»comqueas ilustramosnosparecemestáticas, foradahistória,quandoafinal estãolongedeseremsimples “relíquias”paradasnotempo –tornaestetipodetrabalhos sempreurgente,necessário, precioso.Umpatrimónio dahumanidade,afinal.
Guerreiro: “Um povo que dificilmente poderá manter a sua poderosa individualidade quando, retirado do seu habitatinóspito, as condições de vida material se possam melhorar transformando-se profundamente. Está a ponto de perder-se uma das derradeiras relíquias da vida do Paleolítico superior. Por isso o seu estudo era urgente, e o geógrafo lerá com proveito esta cativante monografia.” (Ribeiro, 1970, p. 138). Note-se apesar de tudo o otimismo deste último autor, ao aludir a uma “melhoria” das “condições de vida material”... quando, na verdade, o que temos, também aqui, é a inevitável extinção de formas de vida, de culturas se quisermos, e sua transmutação em realidades melhor ou pior integradas como exotismos na nossa própria mundividência globalizada de “ocidentais”. Era inevitável: fomos nós que inventámos a antropologia e a noção, agora já em desuso, de “povos primitivos”, e somos nós que de certo modo precisamos deles para completar o quadro das diferenças e semelhanças inerente à nossa racionalidade moderna: uma taxonomia que tem “horror ao vácuo”. Vindo da tradição de Leite de Vasconcelos, Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Manuel Viegas Guerreiro, cuja memória é hoje felizmente perpetuada também pela Fundação que tem o seu nome, dá-nos no seu trabalho de tese sobre os “Bochimanes” de Angola uma monografia que é dos melhores trabalhos de antropologia da fase colonial portuguesa, abordando com atenção e compreensão praticamente todos os aspetos que uma primeira abordagem a estas populações exige. Não abundam infelizmente os estudos assim, datados dessa época. Colmata pois uma lacuna importante, tanto mais que a realidade que descreve - atendendo à própria dinâmica interna das populações, que só nas “fotografias” com que as ilustramos nos parecem estáticas, fora da história, quando afinal estão longe de serem simples “relíquias” paradas no tempo - torna este tipo de trabalhos sempre urgente, necessário, precioso. Um património da humanidade, afinal. Por isso também me cumpre agradecer à Fundação ter-me pedido este breve depoimento, ocasião de revisitar com gosto e proveito uma obra que marca uma data da antropologia portuguesa.
A bibliografia sobre o tema abordado por MVG e suas conexões é, neste momento, e como é sabido, numerosíssima. Restrinjo-me, pois, a algumas referências.
- Barnard, Alan (2007), AnthropologyandtheBushman , Oxford & Nova Iorque, Berg.
- Candido, Mariana P. (2022), Wealth,Land,andPropertyinAngola:AHistoryofDispossession,Slavery,andInequality , Cambridge University Press.
- Estermann, Carlos (1956-1957-1961), EtnografiadoSudoestedeAngola , 3 vols., Lisboa, Junta de investigações do Ultramar.
- Guerreiro, Manuel Viegas (1968), Bochimanes!khūdeAngola.EstudoEtnográfico , Lisboa, Instituto de Investigação Científica de Angola/Junta de Investigações do Ultramar.
- Kondja, José Evaristo (2022), ProduçãodeSegmentosConsonânticosdoPortuguêsporFalantesNativosdo!khun(Khoisan),LínguaAngolana, dissertação de Mestrado em Ciências da Linguagem, Braga, Universidade do Minho. Link: https://repositorium.sdum.uminho.pt/ bitstream/1822/79672/1/Jose%20Evaristo%20Kondja.pdf
- Ribeiro, Orlando (1970), BochimanesdeAngola:M.ViegasGuerreiro , Finisterra , vol. 5, nº 9, pp. 130-138.
- Sahlins, Marshall (2017 – 3ª ed.; outras de 1972 e 2003), StoneAgeEconomics , Oxon & Nova Iorque, Routledge Classics.
- Smith, Andrew (2022), FirstPeople:theLostHistoryoftheKoisan , Cidade do Cabo, Joanesburgo, Londres, Jonathan Ball Publishers.
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