NEWSLETTER | N.º 2 5 | JAN - MAR 2021
ESTUDOS SEROLÓGICOS:
ESTÁ ABERTA A CAIXA DE PANDORA FOTOGRAFIA: BANCO DE IMAGENS
P. 8 - 11
Nova rubrica FMVG: Escaparate dá mais espaço à palavra escrita, ao Algarve e ao Livro. p.28
Artigos de Cerqueira Gonçalves e de José Alberto Tavim em
Viagens pela obra de Manuel Viegas Guerreiro. p.14 - 21
Romanceiro de Garrett estreia-se online em edição crítica. Entrevista com a investigadora Sandra Boto. p.23 - 27
EDITORIAL «A poesia, quando é, ela é o dizer absoluto.» A declaração de Eduardo Lourenço (Diário de Notícias, 2003) lembra que o mês de Março, contemplado nesta edição da Newsletter FMVG, é também aquele que guarda o Dia Mundial da Poesia. A poesia serviu de mote a um conjunto de quatro filmes que a Fundação produziu, aliando-se à celebração da Mákina de Cena. A associação cultural desafiou quatro diseurs louletanos a recitar Casimiro de Brito, Nuno Júdice, Gastão Cruz e Teresa Rita Lopes, todos eles já homenageados no FLIQ - Festival Literário Internacional de Querença, entre 2016 e 2019. O resultado do recital ficará para o próximo número. Para já, deixamos a poesia fluir através da rubrica Postais do Algarve, com direito a “ode” à amendoeira, às favas e aos griséus, por Júdice, Tóssan, Braz e Emiliano da Costa. Junta-se Aleixo e mais uma vintena de escritores. São eles que nos guiam por Sagres, Vila do Bispo e Lagos, Aljezur e Monchique, Rocha e Ferragudo, em Portimão. No próximo número viajaremos através das palavras que surte o Algarve Central. Na primeira newsletter de 2021 nasce Escaparate, uma nova rubrica que abre espaço aos livros editados mais recentemente. A acção é desenvolvida em estreita colaboração com autores e editores da região ou com editoras que publicam temas sobre o Algarve. Registe-se ainda neste número a publicação de mais dois ensaios críticos sobre textos da autoria de Manuel Viegas Guerreiro. «O sagrado em populações ditas primitivas» originou «Manuel Viegas Guerreiro, Saber de experiência feito», de Joaquim Cerqueira Gonçalves. José Alberto Rodrigues da Silva Tavim escreve sobre «Manuel Viegas Guerreiro e o estudo “Os Judeus na História de Portugal”». Artigos já publicados em suporte digital, no site institucional da Fundação, agora disponíveis em papel. À iniciativa Viagens pela obra de Manuel Viegas Guerreiro associamos, em 2021, a continuidade da acção de salvaguarda e estudo do acervo do Patrono da Fundação, com resultados a apresentar no final do ano. Por um lado, com a edição de um livro, no seguimento da colaboração iniciada em 2016 com o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto da qual surgiu o volume Manuel Viegas Guerreiro, Moçambique, 1957, com estudo e organização dos investigadores Luísa Martins e Maciel Santos. Trabalho que será retomado com a edição de outro volume de Cadernos de Campo. Desta feita, com base nas suas notas sobre as missões em Angola e o ainda não publicado relatório «Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar».
Por outro lado, está a ser organizado um seminário dedicado ao percurso e à filosofia do humanista e antropólogo Manuel Viegas Guerreiro. Esta linha de trabalho da FMVG encontra-se a ser desenvolvida em parceria com um conjunto de instituições. De salientar ainda o trabalho que tem vindo a ser feito com o Arquivo Nacional de Som, que nos permitirá ouvir as gravações de Viegas Guerreiro registadas em África nas décadas de 50/60 e guardadas em Querença, garantindo a salvaguarda deste espólio para o futuro. A audição que se pretende fazer em conjunto com todos os interessados na transdisciplinaridade, multiculturalidade e no património, está agendada para o final do ano, com data a anunciar. Com direito a ampla divulgação na comunicação social, os últimos resultados dos três estudos serológicos promovidos pela FMVG, entre outras fundações, universidades e Ordem dos Médicos, teve tempo de antena na SIC, assim como em outros canais da imprensa nacional. Ainda neste número, a evocação de Gonçalo Ribeiro Telles, por Fernando dos Santos Pessoa e de Eduardo Lourenço por Teresa Rita Lopes. Os dois grandes pensadores do séc. XX faleceram em Novembro e Dezembro de 2020. MM
FICHA TÉCNICA EDIÇÃO | FMVG TEXTO | Joaquim Cerqueira Gonçalves, José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Maria José Mackaaij, Marinela Malveiro, Teresa Rita Lopes Postais do Algarve com autoria identificada sob o excerto RECOLHA E SELECÇÃO Postais do Algarve | Marinela Malveiro PAGINAÇÃO E DESIGN | Marinela Malveiro FOTOGRAFIA| Cedidas por Joaquim Cerqueira Gonçalves, Teresa Rita
Lopes. Créditos Elisa C. Pinto, espólio FMVG, José Alberto Tavim, Maria José Mackaaij, Marinela Malveiro, Romanceiro.pt, Unsplash IMAGENS E SINOPSES Escaparate: Cedidas pelas editoras Arandis, Argumentum, Colibri e Fernando Pessanha APOIO À PRODUÇÃO E SECRETARIADO | Miriam Soares IMPRESSÃO | Gráfica Comercial, Arnaldo Matos Pereira, Lda., Zona Industrial de Loulé Lt. 18, Loulé | T. 289 420 200
NEWSLETTER FMVG | N.º 25 | 2021 Os textos são da responsabilidade dos seus autores e o uso do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa é, por isso, uma opção dos mesmos.
POSTAIS
DO ALGARVE
FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
POSTAIS DO ALGARVE é uma rubrica criada em 2020 quando o país e o mundo se viram mergulhados numa pandemia sem precedentes. Numa altura em que o Algarve fechou as portas às casas de cultura e ao turismo, a FMVG iniciou a publicação regular de imagens da região, do litoral à serra, de barlavento a sotavento através das palavras de mais de cem autores. Após descrições genéricas sobre a região, a terceira edição da rubrica inicia uma visão mais fina sobre o território. Seguimos pelo início da Europa, se assim o entendermos.
« A névoa desfaz-se e a ponta de SAGRES é um colosso duro e negro. A este panorama falta-lhe talvez encanto. Está ali – está ali para sempre a duas ou três tintas cruas, azul, vermelho e negro. É decorativo – mas decorativo como um cenário. As meias-tintas é escusado procurá-las. RAUL BRANDÃO
« Passam lendas e sonhos e milagres! Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres, Em centelhas de crença e de certeza! FLORBELA ESPANCA
« O cabo de S. Vicente, extremidade sudoeste da Europa, é um cerro de rocha cortada a pique, que em alguns pontos atinge a altura de 60 metros, e com um comprimento de 100 metros, o qual se liga a uma pequena península também de rocha abrupta, com pouco mais de um quilómetro de comprimento e meio de largura (península de S. Vicente), ligada por sua vez ao continente por um istmo com cerca de 60 metros de largura. O farol, de luz branca e rotação completa, domina o mar da altura de 62 metros. JAIME CORTESÃO
« E o rosário foi cruzeiro, castelo a rosa-dos-ventos, em ilhas longe que havia só sabidas das sereias.
FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
LEONEL NEVES
POSTAIS
DO ALGARVE
« O Cabo, isto é, a região das pontas de Sagres e de S. Vicente dá-nos, mais que outro lugar, a imagem do continente que termina neste ângulo do litoral.
« LOCAL ÚNICO NO MUNDO. Robert Chodat
ORLANDO RIBEIRO
« Para lá de Vila do Bispo, percorridos dois, três quilómetros, chegamos ao alto de um cerro. De súbito, o facho do farol de São Vicente varre o negrume da noite com uma rasoira de luz. O clarão deslumbra. Supomos correr, desamparados e às cegas, sob a poderosa atracção do Grande Promontório. MANUEL DA FONSECA
« ... o farol. Ao menos, esse continua a iluminar os caminhos do Mundo. RUY CINATTI
« [Vila do Bispo] Melhor a perfeição do casario a simplicidade da praça as ruas rectilíneas e desertas deste sul com sabor atlântico e restos de navios. FERNANDO CABRITA
«
«
...para o norte. Verá Aljezur, com as suas casas dispostas em cordões no regaço do monte...
Eis a capital da serra do Espinhaço de Cão, mato com nódoas de terra, muita pedra, pouco pão.
JOSÉ SARAMAGO
LEONEL NEVES
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
«
MONTANHA-MÃE DAS SERRAS ALGARVIAS! Cândido Guerreiro
« ... SERRA DE MONCHIQUE, armada no horizonte e fechando ao norte, com duas altíssimas corcovas. E na disposição de todos os planos, na proporção de todas as linhas, um tal equilíbrio, uma graça quase arcádica, que, seja qual for o lado por onde a vista as emoldure, dá um quadro embevecedor e perfeito. MANUEL TEIXEIRA GOMES
« CANÇÃO DA FÓIA No alto da serra de Monchique não há meta nem rota. Acaba-se a Terra... (...) o sol traz com ele os longes que viu, o mar é tão grande do alto daquele mirante algarvio, que lá a gente a nau dos milagres que é todo o Algarve e a proa, em São Vicente e a bússola em Sagres... (A Fóia é a gávea.) LEONEL NEVES
«
JOÃO BRAZ
FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
Passearemos p’las Caldas de Monchique - Poema vegetal em rima verde -, E olharemos da Fóia, erguida a pique, As vastidões em que o olhar se perde.
| P. 7
POSTAIS
DO ALGARVE
«
A AREIA É FINA E DOIRADA, COMO OS POETAS A DESEJAVAM...
«
«
LAGOS: velha Lagos doirada cidade vetusta e tranquila doce Madre Algarvia
Lagos onde aprendi a viver rente Ao instante mais nítido e recente
Manuel Teixeira Gomes
SOPHIA DE MELO BREYNER ANDRESEN
JÚLIO DANTAS
« Apetece-me esquecer paisagens, pessoas, usos e costumes. Mas, insensivelmente, Lagos pega em mim e leva-me de rua em rua. MANUEL DA FONSECA
« Aldeia da Meia-Praia Ali mesmo ao pé de Lagos Vou fazer-te uma cantiga Da melhor que sei e faço JOSÉ AFONSO
« Detenho-me um instante na cenográfica praia da Rocha, extasiado nos dois grandes penedos destacados e num fio de areia doirada ao pé da água azul – Tudo pintado por Nanini agora mesmo. RAUL BRANDÃO
« E a Rocha, ali ao pé, morena e linda, Aparece em seu mágico esplendor... JOÃO BRAZ
« ... E que rochas na Armação, na praia da Rocha! a geologia pintou as suas telas mais fantasiosas e intensamente coloridas do mapa de Portugal.
«
«
[Ferragudo] Alvejante aldeola levantada em pirâmide sobre íngreme rochedo, no outro lado do rio, que ali forma vasta bacia para depois correr ao mar por largo canal entre duas fortalezas desmanteladas.
Gosto de girassóis e estes do Alvor são bonitos entre o branco e o rosa dos aloendros. Hei-de voltar aqui um dia só para lavar os olhos nas águas novas desta luz antiga, demorar nas areias e na espuma o olhar trabalhado pelo lume.
MANUEL TEIXEIRA GOMES
EUGÉNIO DE ANDRADE
« Muito tem e terá para contar este encantado reino dos Algarves. NATÉRCIA FREIRE
FOTOGRAFIA: MM
URBANO TAVARES RODRIGUES
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
INVESTIGAÇÃO | COVID 19
FOTOGRAFIA: BANCO DE IMAGENS
ESTÁ ABERTA A CAIXA DE PANDORA
Mais de metade dos assintomáticos ou com sintomas ligeiros de covid-19 já não apresenta anticorpos, dez meses após a infecção. Muitos dos profissionais de saúde que testaram positivo ao SARS-CoV-2 nem deram pela doença. Dois novos estudos apontam a testagem continuada como melhor arma de prevenção para uma doença que já dizimou perto de 16.700 pessoas em Portugal. No mundo, já se perderam mais de dois milhões e meio de vidas. Em matéria de imunidade, o infecciologista Francisco Antunes é peremptório: «Um passaporte de imunidade é de grande risco.» Álvaro Carvalho, rosto da Fundação com o mesmo nome e coordenador do estudo corrobora: «Este estudo veio provar que há pessoas que têm imunidade humoral dez meses depois da infecção e que outros perderam-na aos três meses.» O Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, testemunha: «Conheço várias pessoas que tiveram doença muito grave, do género de estarem um, dois, três meses em cuidados intensivos -
médicos praticamente entre a vida e a morte por causa da infecção - e os anticorpos são zero. Não têm anticorpos nenhuns, detectáveis, pelo menos. Poderá haver uma imunidade celular escondida mas, anticorpos mesmo, zero. Portanto, há motivos que nós ainda não conhecemos bem: porque é que umas pessoas desenvolvem mais anticorpos e outras menos? Tem a ver com a nossa constituição genética, com a nossa imunologia, mas é verdade também que aparentemente as pessoas que têm doença mais leve, teoricamente, terão menos anticorpos, as pessoas que
| P. 9
têm doença mais grave teoricamente terão mais anticorpos. Falta, de facto, consolidarmos essa situação.» As declarações pautaram a conferência de imprensa online, no passado dia 17 de Fevereiro, na qual foram divulgados os primeiros resultados da análise do painel de vigilância imunológica que acompanha cerca de 600 pessoas de todo o país, assintomáticas ou com doença ligeira, sem recurso a hospitalização.
«
Cabe agora à Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa analisar em profundidade os dados recolhidos. A investigadora Helena Canhão destaca a robustez do estudo: «Implica uma logística muito superior e é muito mais robusto porque permite fazer um filme dos doentes, em vez de vermos apenas um momento. Conseguimos perceber o seu perfil ao longo do tempo. Por outro lado, porque sabemos as suas características, idade, sexo, profissão, qual o tipo de anticorpos que tinha, quais os seus sintomas, conseguimos encontrar clusters, ou seja, grupos de doentes e factores que possam estar mais associados e esta persistência dos anticorpos ao longo do tempo ou à sua negativação. No fundo, estamos a tentar perceber se nos dados recolhidos existe algo que constitua factor predictivo para o indivíduo manter os anticorpos ao longo do tempo ou para negativar.» Na opinião de Francisco Antunes, anterior director do Serviço de Infecciologia do Hospital de Santa Maria,
«
Cerca de um quinto dos inquiridos nunca trabalhou com Equipamento de Protecção Individual ou só o usou por vezes.
este estudo abre uma caixa de Pandora, levantando questões como a do peso da população assintomática ou com sintomas ligeiros na adopção de medidas de confinamento, de testagem e de vacinação, sabendo que são responsáveis por 50 por cento das infecções por SARS-CoV-2.
FOTOGRAFIA: BANCO DE IMAGENS
Qual o peso dos assintomáticos na saúde pública?
Pese embora esta população não tenha impacto nos hospitais - que influência terá em termos de saúde pública? - questiona ainda o professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. SARS-CoV-2 entre profissionais de saúde Em Janeiro, as entidades promotoras da tríade de estudos sobre o impacto da doença em três universos diferentes: população de Vila Nova de Gaia, pessoal de saúde e painel de vigilância, apresentaram os resultados finais para a segunda investigação. As conclusões foram divulgadas no International
Electronic Conference on Environmental Research (ECERPH-3). As várias entidades aguardam agora a sua publicação na prestigiada revista Proceedings. Trata-se do primeiro a ser publicado – com este objecto de estudo - numa revista internacional. O estudo fixa a taxa de prevalência do SARS-CoV-2 em 3,1 por cento dos 1.802 enfermeiros, médicos, auxiliares de enfermagem e técnicos enfermeiros testados. Assinala o Norte como a região do país com maior presença de pessoal de saúde infectado, cerca de 6,2
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
por cento, ou seja, mais dois pontos percentuais do que a Sul. Como ponto de partida para a realização dos inquéritos epidemiológicos neste grupo esteve a ausência de informação específica sobre a prevalência do vírus nos profissionais da linha da frente, o elevado risco de exposição e a preocupante percentagem de casos assintomáticos, que pode representar até 80 por cento dos casos. Para Álvaro Carvalho é essencial caracterizar e compreender a prevalência do SARS-CoV-2 junto deste universo e os factores associados à infecção pelo novo coronavírus. Só assim, defende, será possível desenvolver estratégias de protecção de profissionais de saúde e pacientes. Realizada entre Abril e Julho de 2020, a investigação cruza amostras de perto de dois mil profissionais de unidades de saúde e de unidades sociais de diferentes zonas do país, que não tivessem testado positivo à covid-19. Do total observado, 80,9 por cento são mulheres. Destas, 55 (3,1 por cento) vieram a testar positivo no
« Auxiliares de enfermagem correm mais risco de contraírem vírus do que os enfermeiros teste para anticorpos SARS-CoV-2. Perto de metade dos participantes (48,1 por cento) são enfermeiros e 29,6 por cento médicos. Factores como distribuição geográfica, profissão, ter um familiar com covid-19 e/ou contacto com familiares que contraíram a doença estão associados à taxa de infecção. Cinquenta e cinco participantes (3,6 por cento) relataram ter tido um familiar com covid-19 (consultar tabela 2 do estudo). Cinquenta e um (4,1 por cento) contactaram com familiares doentes, sendo que 11,8 por cento destes apresentavam imunidade ao SARS-CoV-2. Note-se ainda que à pergunta «Tem trabalhado com Equipamento de Proteção Individual?», cerca de um
Conferência de imprensa online no dia 17 de Fevereiro com presença de especialistas e vários órgãos de comunicação social nacionais
| P. 11
quinto dos inquiridos respondeu que nunca trabalhou com Equipamento de Protecção Individual (EPI) ou que só o usou por vezes. Outra conclusão aponta para um maior risco de os auxiliares de enfermagem contraírem o vírus quando comparados com os enfermeiros, devido ao envolvimento activo no atendimento ao paciente. Com base nesta premissa, o estudo sugere uma avaliação do tempo que os primeiros passam nos quartos dos pacientes em relação a outros profissionais, para melhor caracterizar os factores
que possam estar a contribuir para estas assimetrias. Recorde-se que em Outubro de 2020 foram apresentados os resultados de um outro estudo, também conduzido no terreno pela Ordem dos Médicos, sobre a incidência do vírus na população de Vila Nova de Gaia, considerado um concelho representativo do país, e que apontou para uma taxa de 3,2 por cento de infectados, num universo de três mil pessoas. Testagem e uso de EPI são armas essenciais no combate à pandemia As investigações reforçam a importância da testagem regular e continuada para a monitorização da propagação do vírus. No caso do estudo sobre os profissionais de saúde, destaca-se o fornecimento e uso de EPI em ambientes de saúde como uma medida essencial para reduzir a transmissão de SARS-CoV-2.
FOTOGRAFIA: BANCO DE IMAGENS
FICHA TÉCNICA Os inquéritos epidemiológicos realizados oferecem um intervalo de confiança de 95 por cento. Os estudos seguem a Declaração de Helsínquia, redigida pela Associação Médica Mundial para regular os princípios éticos na pesquisa com seres humanos. Foram aprovados pela Comissão Nacional de Ética e Deontologia da Associação Médica Portuguesa (Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos). O financiamento é assegurado pela Fundação Álvaro Carvalho, Fundação Manuel Viegas Guerreiro, Fundação Vox Populi e Fundação Claude e Sofia. São parceiros, a Ordem dos Médicos, a Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e o Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa.
MM
« ... as favas e os griséus (...) são ali de qualidade e sabor inigualáveis... CÉSAR DOS SANTOS
POSTAIS
DO ALGARVE
« A FAVA A flor da fava faz a fava e fava a fava o faval que as manda bem ambaladas num estojo almofadado em moldes amoldadas de veludo esverdeado. Mas quando saltam do estojo para a panela é porque viram chouriço ou morcela. Favas com favas são favas contadas fava-rica, sapatadas favas secas para a gula de cavalo ou de mula mas se a fava está com o bicho o bicho manda-nos à fava. TÓSSAN
« OH TARDE ALEGRE! Regozijo no campo. Já choveu. Graças a Deus, há fava e há griséu!
« Tanto Santo, tanto andor Tanta gente ajoelhada Tantas chouriças na mesa Para quem não come nada. ANTÓNIO ALEIXO
A mesa, estranho-me. Não sei que sinto Ante este quadro – vívida silhueta... A boa fava com chouriça preta! O riso tonto com o vinho tinto! EMILIANO DA COSTA
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
VIAGENS PELA OBRA DE MANUEL VIEGAS MANUEL VIEGAS GUERREIRO SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO POR JOAQUIM CERQUEIRA GONÇALVES
« considerando-se, embora, distante da Filosofia e da Teologia – destas “nem sequer hóspede sou”… - , a [questão] vai abordar, em jeito de compromisso irrenunciável, enquanto etnólogo, conjugando, com certa espontaneidade, Ciência, Filosofia e Teologia, cuja história da relação entre estas tem sido preenchida por insanáveis conflitos, como se a vida de cada uma delas dependesse da desautorização teórica das outras duas.
FOTOGRAFIA: MANUEL VIEGAS GUERREIRO
C
ircunstanciais iniciativas surpreendem, frequentemente, com fecundos resultados. Aqueles que conviveram com Manuel Viegas Guerreiro, conhecendo o seu estilo de vida, dificilmente imaginariam o modo como acolheu o convite para participar em um colóquio sobre o sagrado [1]. Em pequeno texto, ajustado aos moldes de uma comunicação, MVG desenha a raiz e o tronco da árvore das razões do seu saber, das suas preferências, dos seus mais irrecusáveis pressupostos, enfim, da sua não condescendência com voláteis teses de espumas culturais produzidas em estéreis gabinetes. Esse seu texto monta a arquitetura teórica que, inconscientemente, deu suporte ao seu convivial modo de viver e de dizer, em lhano diálogo quotidiano, sendo este de mais longo alcance do que a obediência a um rígido código linguístico-científico.
Se o estímulo exterior, o mencionado convite para participar no colóquio, passou a ser a condição sine qua non da existência deste texto de MVG, a adesão ao tema orientador, o sagrado, constitui já compromisso mais determinante, onde se cruzam questões de afinidades e de controvérsias de grande fôlego especulativo. Sabe-se, e Viegas Guerreiro confirma explicitamente, que o termo sagrado conduz a sentidos enormemente diversificados [2], nos quais figuram também referências religiosas, sendo em redor destas que MVG vai orientar o discurso da sua comunicação, aliás, observe-se desde já, de forma em boa parte enviesada, pois, se os alvos da sua crítica, têm a ver com solenes interpretações sobre a natureza e formas da religião, não é verdadeiramente esta que o Prof. Viegas Guerreiro analisa, mas, sim, um suposto dela, polo nuclear das religiões monoteístas, a questão de Deus, que é geralmente aprofundado no âmbito da Filosofia e Teologia, sem, todavia, se ocupar da fenomenologia das múltiplas formas religiosas, algumas das quais nem sequer desfrutam de constitutivos nexos com a transcendência. Em terminologia estabelecida na modernidade, esses estudos que, de certo modo, julgam, aliás indevidamente, ocupar-se de uma
| P. 15
ESPÓLIO FMVG
GUERREIRO
Págs. 44 e 45 da comunicação de Manuel Viegas Guerreiro «O sagrado em populações ditas primitivas» no colóquio/Encontros ACARTE — Fundação Calouste Gulbenkian, realizado entre 18 e 22 de Abril de 1989, Lisboa, in Povo, povos e culturas (Portugal, Angola e Moçambique)
suposta religião natural, constituem o objeto da Teodiceia. Tratando-se indiscutivelmente de uma questão de grande complexidade, que se tem mantido viva em todos os séculos, merece, todavia, atenção o modo como ela é formulada por Viegas Guerreiro, o qual, considerando-se, embora, distante da Filosofia e da
Teologia – destas “nem sequer hóspede sou”… - , a vai abordar, em jeito de compromisso irrenunciável, enquanto etnólogo, conjugando, com certa espontaneidade, Ciência, Filosofia e Teologia, cuja história da relação entre estas tem sido preenchida por insanáveis conflitos, como se a vida de cada uma delas dependesse da desautorização teórica das outras
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
(continuação)
duas. Todavia, essa exasperação de âmbito teórico é frequentemente superada no discurso quotidiano, cuja concretização, aliás, muitos de nós tiveram oportunidade de o verificar, de modo não programado, nas despretensiosas intervenções orais de Viegas Guerreiro. Mas é, contudo, significativo, por um lado, que o etnólogo chame a questão a debate, e, por outro, a tenha acompanhado com alguns assomos de indignada discussão. No século das luzes – refere-se particularmente ao século XVIII-XIX -, os racionalistas franceses e Ingleses [3] forjaram uma teoria evolucionista da cultura, a ponto de admitirem, numa seriação temporal hierarquizada, a existência de povos atrasados, os “primitivos”, se comparados com o solene momento do progresso científico. Mais ainda, tais “primitivos” careceriam da estrutura lógica da racionalidade das sociedades modernas. “Em meu tempo de estudante inundava-nos o prelogismo de Lévy-Brühl.”[4]. Contra essa “Antropologia de gabinete” [5], se ergue, frontalmente, Viegas Guerreiro, assumindo o papel do etnógrafo do nosso tempo, que não cuida de buscar as origens do sagrado, mas, sobretudo, observá-lo e descrevê-lo, em sua íntima relação com os outros aspetos da cultura [6]. É no convívio com os Macondes de Moçambique – “E vamos até aos nossos Macondes”, impõe-se a si próprio, com terna humanidade, Viegas Guerreiro [7]que este investigador vai descobrindo o essencial perfil antropológico, o dele próprio e o daqueles com quem convive, sublinhando os traços que seguidamente se equacionam, os quais, na sua configuração de convergente pluralidade, robustecem uma viva e consistente unidade: a) Constituição racional de todos os humanos, em todas as épocas e latitudes; b) Natureza dinâmica da razão que, no seu exercício, ruma, naturalmente, em direção à transcendência; c) Nesse constitutivo movimento humano de transcendência, situa MVG a religião (área desencadeada, por afinidade, com o tema do colóquio, o sagrado [8]); d) Característica monoteísta do transcendente, sobre cuja natureza, todavia, pouco se pode afirmar, legitimando-se, por isso, uma aproximação com a
denominada teologia negativa [9]. que se abre este pequeno texto destinado a ser apresentado em um colóquio, é legítimo ver nele a arquitetónica especulativa da obra do seu autor, bem como, senão sobretudo, uma intencional afirmação do posicionamento racional de Manuel Viegas Guerreiro sobre as grandes coordenadas humanísticas da cultura ocidental, pessoalmente assumidas, incluindo a categoria religiosa, não no sentido de uma opção de uma determinada manifestação exterior, mas na fidelidade à dinâmica transcendente de toda a vida humana [10]. [1] O Sagrado e as Culturas – colóquio realizado entre 18 e 22 de Abril de 1989. A comunicação apresentada por Manuel Viegas Guerreiro intitula-se O Sagrado em Populações Ditas Primitivas, cujo texto está inserido em Povo, Povos e Culturas (Portugal, Angola e Moçambique), Ed. Colibri, Lisboa, 1997, a que se reportam sempre as páginas referenciadas na presente reflexão. [2] “Conceito difícil de definir discursivamente este de o sagrado, sobretudo para mim que, em Filosofia, nem hóspede sou e muito menos em Teologia. Cuidei, contudo, de buscar definições alheias e confesso que me não contentaram. Há noções que, por simplistas que pareçam, estão carregadas de complexidade.” (p.35). [3] Lembra S. Simon, Augusto Comte, Durkheim, David Hume e Adam Schmidt (p.36). [4] P.44 [5] P.37 [6] P.38 [7] P.39 [8] “Posta de parte, por absurda, a existência de populações «primitivas» sem religião, fique-se com a certeza de que raros investigadores terão penetrado profundamente no sentido das suas crenças, o que exige profundo conhecimento da língua, dilatada convivência, humildade científica, objetividade suficiente, que mais se propõem do que se realizam.” (p.46). [9] Esta terminologia é referida por Viegas Guerreiro que, por sua vez, a recolhe em Jorge Dias, esse “mestre maior em Antropologia”, com quem trabalhou (p.41). [10] Viegas Guerreiro está bem consciente do terreno que pisa, procurando aprofundá-lo, mas não excedendo os seus limites. Se, por um lado, reconhece a referência transcendente da vida dos Macondes – “Ora o pensamento dos primitivos é tão coerente como o nosso. Aonde o saber empírico não chega, sobrevém a explicação transcendente, mas a dedução é lógica, a conclusão correta, embora partindo de premissas aparentemente falsas.” (p.44) -, por outro, não considera injunção racionalmente irrecusável a tese de uma suposta “verdade originalmente revelada” (p. 41).
| P. 17
JOAQUIM CERQUEIRA GONÇALVES Sacerdote fransciscano (OFM) - Em 1957, licenciou-se em Filosofia Escolástica, pelo Instituto Católico de Tolosa (França). - Em 1962, licenciou-se em Filosofia, pela Faculdade de Letras de Lisboa, depois de a ter frequentado, desde 1957, tendo apresentado, para o efeito, uma dissertação intitulada Distinção de Essência e Existência no Pensamento de João Duns Escoto. - Em 1970, doutorou-se em Filosofia, pela Universidade de Lisboa, tendo apresentado uma dissertação intitulada Homem e Mundo em São Boaventura. - Em 1963, iniciou funções docentes de Filosofia, na Faculdade de Letras de Lisboa. - Em 1978, realizou provas para Professor Catedrático da Faculdade de Letras, tendo sido aprovado por unanimidade. - Em 1989, tornou-se Presidente Suplente dos Estudos Gerais Livres, exerceu o cargo após o falecimento de Manuel Viegas Guerreiro. - Entre 2011 e 2014 as suas obras escolhidas foram publicadas pela IN-CM em 3 volumes com o título de Itinerâncias da Escrita. - Membro da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. - Sócio da Academia das Ciências de Lisboa.
Detalhe da capa de O sagrado e as Culturas – Colóquio realizado entre 18 e 22 de Abril de 1989, Lisboa: ACARTE – Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, onde a comunicação de MVG foi dada pela primeira vez à estampa.
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
VIAGENS PELA OBRA DE MANUEL VIEGAS MANUEL VIEGAS GUERREIRO E O ESTUDO «OS JUDEUS NA HISTÓRIA DE PORTUGAL» POR JOSÉ ALBERTO RODRIGUES DA SILVA TAVIM
C
onvidou-me amavelmente a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, no intuito de divulgar a produção científica do autor, para comentar a separata Os Judeus na História de Portugal, que corresponde ao artigo que lhe foi incumbido sobre “Judeus”, publicado no volume III do famoso Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão [1]. A leitura atenta desta síntese revela antes de mais um conhecimento bastante actualizado, para a época, das investigações realizadas sobre o tema. Estão patentes na bibliografia J. Lúcio de Azevedo, e a sua História dos Cristãos-Novos Portugueses [2], e os espanhóis Julio Caro Baroja, com os seus três tomos acerca de Los Judíos en la España Moderna y Contemporânea [3], e José Amador de los Rios, com a sua Historia Social, Politica y Religiosa de los Judios de España y Portugal [4], ambos com vastas referências aos judeus e cristãos-novos de Portugal. Não falta também o recurso às fontes publicadas, como as da Monumenta Historica, as Ordenações Régias, os cronistas portugueses e o texto famoso de Samuel Usque, Consolação às Tribulações de Israel. Também recorre aos grandes clássicos da Historiografia Portuguesa, como Alexandre Herculano e a sua História da Inquisição [5], ou à obra matricial do professor Joaquim Mendes dos Remédios, Os judeus em Portugal [6]. O seu intuito de obter informação actual leva-o à leitura da dissertação de Licenciatura em História de Aida
«
... uma das sínteses mais brilhantes que se escreveram sobre o assunto, tal é a sua actualidade. das Neves Faria, Análise Sócio-Económica das
Comunidades Judaicas Portuguesas (1439-1496),
de 1963. O seu interesse pelas fontes materiais como documentos produzidos pelas comunidades judaicas leva-o ao conhecimento do entusiasta Samuel Schwarz, nas suas Inscrições Hebraicas em Portugal [7]. O etnólogo e antropólogo seduz-se pelas recolhas do Abade de Baçal, padre Francisco Manuel Alves, que nas suas Memórias ArqueológicoHistóricas do Distrito de Bragança consagra um volume aos Judeus [8]. Mas como seria lógico,
| P. 19
ESPÓLIO FMVG
GUERREIRO
Capa e pág. 3 do artigo «Os judeus na História de Portugal». in Separata do Dicionário História de Portugal. Lisboa: E.N.P., 1965, 8 p.
encimando toda a bibliografia de referência, vem a obra do mestre José Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, editada em Lisboa. Foi sem dúvida o trabalho de edição desta obra do seu mestre que o levou, no volume IV, onde existe um vasto estudo sobre os judeus em Portugal, a aprofundar o conhecimento sobre esta matéria, espelhado já no artigo sobre o qual aqui nos pronunciamos. Orlando Ribeiro na “Notícia
Introdutória” de 1956, ao volume IV da Etnografia, menciona que há cerca de dois anos que Manuel Viegas Guerreiro trabalhava como bolseiro no Centro de Estudos Geográficos, com o objectivo de editar a obra de Vasconcelos [9]. Na verdade, no enorme capítulo 1, da Parte II do referido volume, designado “Grupos étnicos” – verificamos o profissionalismo de Manuel Viegas Guerreiro para colectar dados que ao mesmo tempo suportam,
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
(continuação)
« Muito interessante é o facto de tomar consciência de fenómenos de aculturação e de clivagem social dentro das comunas, assim como do discurso antijudaico perpetrado em crescendo pela Igreja, que levou à imposição do uso de um sinal distintivo. contextualizam e actualizam os dados recolhidos por Vasconcelos [10]. Se compararmos o mencionado trabalho de Viegas no volume IV da Etnografia com o artigo publicado no Dicionário de História de Portugal (e também em separata) verificamos que o autor, face à necessidade de economizar a informação, decidiu quase limitar-se à cronologia histórica que vai desde os primeiros vestígios hebraicos no território português até às consequências do estabelecimento da Inquisição no reino, com uma menção muito sumária à entrada de judeus em Portugal no século XX, enveredando assim por uma das sínteses mais brilhantes que se escreveram sobre o assunto, tal é a sua actualidade. O facto de eleger estas balizas históricas deve-se provavelmente ao facto de compreender que havia necessidade dessa visão de síntese, depois dos estudos exaustivos e detalhados dos autores em que se baseia, e da sua leitura de fontes impressas. Isso significa que toda a informação habilmente reunida sobre os tempos modernos - sobretudo a produção de Samuel Schwarz e do Abade de Baçal e outros - foi preterida no Dicionário de História de Portugal, talvez porque tinha consciência das “novidades” dificilmente sintetizáveis desses autores, ou de ser uma informação menos compatível com um dicionário de História de Portugal. O seu estudo começa com a referência às lápides de Espiche, como primeiro vestígio - material - da presença judaica no território que será português; continua com uma análise da presença judaica
durante a primeira dinastia, elucidando sobre matérias importantes de teor administrativo e institucional, como a constituição de uma comuna, os cargos governativos dentro desta, a carga tributária a que os judeus estavam sujeitos em troca da protecção régia; dos motivos da sua dedicação a actividades em que se privilegiava a propriedade imobiliária, e das consequências xenófobas do exercício de algumas actividades como a usura e o arrendamento da cobrança dos impostos devidos a reis, nobres, e até à Igreja. Muito interessante é o facto de tomar consciência de fenómenos de aculturação e de clivagem social dentro das comunas, assim como do discurso antijudaico perpetrado em crescendo pela Igreja, que levou à imposição do uso de um sinal distintivo. Informa igualmente sobre irrupções sociais contra os judeus, em que se destaca o ataque à Judiaria Grande de Lisboa, em 1449. Depois da conjuntura das expulsões peninsulares e o fenómeno do baptismo forçado, em finais do século XV, que deram origem a um extenso grupo de cristãos-novos, menciona também a vinda de judeus de Marrocos e Gibraltar, na primeira década do século XX. O autor termina o artigo com uma reflexão filosófica sobre a crispação entre cristãos e judeus na Idade Média, devido a móbeis de teor sócio-económico, ideológico e religioso, atestando, contudo, que em Portugal eles “viveram com relativa tranquilidade”. A grande inovação em relação ao conhecimento dos judeus na Idade Média em Portugal dá-se com a publicação, mais tarde, dos trabalhos metódicos de investigação documental e revisão bibliográfica a cargo da professora Maria José Pimenta Ferro Tavares, sobretudo das suas obras Os judeus em Portugal no século XIV (1979) [11]; e Os judeus em Portugal no século XV (1982-1984) [12]. Mas tal não retira, como já mencionámos, o grande valor à síntese de Manuel Viegas Guerreiro.
José Alberto Rodrigues da Silva Tavim Centro de História; Chair : Seminário Os Judeus em Portugal e na Diáspora
| P. 21
[1] Cito a edição do Porto, Livraria Figueirinhas, 1981, onde o artigo se espraia entre as pp. 409 e 414. [2] Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1922. [3] Madrid, Arión, 1962. [4] Madrid, Imprenta de Fontanet, 1876. [5] De facto, o título da obra é História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1854-1859. [6] Coimbra, F. França Amado, Coimbra Editora, 18951928. [7] Separata de Arqueologia e História, 1923. [8] Os Judeus no Distrito de Bragança: Memórias
arqueológico-históricas do Distrito de Bragança, Bragança: Tip. Geraldo da Assunção, 1925. [9] Orlando Ribeiro, “Notícia Introdutória”, in J. Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa. Tentame de Sistematização, vol. IV, elaborado segundo os materiais do autor, ampliados com nova informação por M. Viegas Guerreiro, notícia introdutória, notas e conclusão por Orlando Ribeiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, pp. XXII-XXIII. [10] Vide Capítulo 1 – Judeus – in Parte II, Grupos Étnicos, in J. Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa. Tentame de Sistematização, vol. IV, elaborado segundo os materiais do autor, ampliados com nova informação por M. Viegas Guerreiro, notícia introdutória, notas e conclusão por Orlando Ribeiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, pp. 63-253. [11] Lisboa, Guimarães Editora. [12] Lisboa, UNL, FCSH-INIC, 2 volumes.
«OS JUDEUS NA HISTÓRIA DE PORTUGAL», DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO AQUI: http://www.fundacao-mvg.pt/uploads/page/ Binder15.pdf
JOSÉ ALBERTO RODRIGUES DA SILVA TAVIM Doutor em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, investigador sénior no Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, professor na mesma faculdade e membro colaborador do Centro de Investigação CIDEHUS, na Universidade de Évora. É também Chair do Seminário “Os Judeus em Portugal e na Diáspora”, na Universidade de Lisboa. É autor de três livros, editou seis volumes e publicou mais de 60 artigos e capítulos sobre os judeus em Portugal e na Diáspora, em português, castelhano, francês, inglês, italiano, hebraico, turco e árabe, participando igualmente na The Encyclopaedia of the Jews in Islam, publicada pela editora Brill, a convite do professor Daniel Schroeter. Pertence também à Comissão Executiva da Society Sefarad (ver www.sefarad-studies.org/) e presidiu ao projeto “Portuguese Jewish Mediaeval Sources” (Évora, 2015-2017) (http:// www.pjsmt.cidehus.uevora.pt/). Juntamente com a professora Maria Filomena Lopes de Barros, recentemente falecida, é editor de Hamsa: Journal of Judaic and Islamic Studies (http://www.hamsa.cidehus.uevora.pt/index_pt.htm). Recentemente editou As Diásporas dos judeus e cristãos-
novos de origem ibérica entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico. Estudos. Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2020.
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
AS TRADIÇÕES E A COMUNIDADE Os Reis vieram à Fundação. A partir da história O rosto da avó, de Simona Ciraolo, @s alun@s de Querença foram à descoberta das rugas das árvores com história. A Aristolochia baetica L., endémica desta região e em floração nesta altura do ano, foi alvo de observação nos muros e valados do Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro.
IMAGEM: FACEBOOK AGR. .CABANITA
AS TRADIÇÕES E A COMUNIDADE A D. Odília Coelho, natural de Querença, contribuiu uma vez mais com um dos seus arranjos de Natal, tornando o espaço da Fundação, que é de todos, ainda mais acolhedor. Também como em anos anteriores, @s alun@s de Querença ofereceram trabalhos artísticos e mimos de Natal. O nosso obrigado a todos pelo carinho e atenção.
FOTOGRAFIA: MJM
FOTOGRAFIA: MM
DIÁRIO DE CAMPO
FMVG E O CONCURSO NACIONAL DE LEITURA Fundação Manuel Viegas Guerreiro foi palco de leitura para @s alun@s de Querença a concurso, no dia 7 de Janeiro. A primeira fase do CNL— fase de escola— envolveu ainda, em Loulé, alun@s da escola Padre João Coelho Cabanita, EB Prof. Sebastião Teixeira, EB n.º 3, EB n.º 4, EB Prof. Manuel Alves e EB de Alte.
FÁTIMA MARQUES ABRAÇA UMA NOVA FASE DA VIDA A colaboradora Fátima Marques, a quem a Fundação agradece a lealdade e dedicação ao longo de cerca de 10 anos, aposenta-se agora. É tempo para novos projectos e desafios, a um outro ritmo, com outros sabores e tons. A Fundação fica mais enriquecida com o contributo e a marca da Fátima, de voz cristalina e doce.
| P. 23
GARRETTONLINE Leitura crítica, digital, do poema de Garrett, 178 anos após publicação em papel
«O Anjo e a Princesa» é o poema de estreia de Garrettonline. Que critérios fundamentam a escolha? Nós pretendíamos que o poema de estreia desta edição digital pertencesse ao Livro I do Romanceiro, que Garrett designou «Romances da Renascença» em 1853. Esta opção não é inocente. É neste primeiro livro que encontramos os textos que apresentam maiores complexidades do ponto de vista filológico. Em primeiro lugar, porque correspondem a poemas de “invenção própria”, ou seja, romances que se situam no domínio pleno da criação autoral, em que o romanceiro tradicional apenas se entrevê ou é mesmo nulo. Depois, porque os poemas deste livro foram (exceto dois deles) editados mais do que uma vez por Almeida Garrett, com variantes da sua responsabilidade. Acresce o facto de dispormos de testemunhos manuscritos (campanhas de escrita anteriores) de quase todos os poemas do Livro I. «O Anjo e a Princesa» preenche todos estes requisitos de complexidade cuja representação digital se pretende experimentar. Por outro lado, é um texto (gosto de utilizar o termo “dossiê textual”) que apresenta ele próprio três componentes: a introdução em prosa, uma carta-dedicatória e o poema propriamente dito. Tudo isto representou um grande desafio para a equipa mas com uma enorme vantagem, perante outros textos: é relativamente curto quando comparado
FOTOGRAFIA: ROMANCEIRO.PT
As gralhas, a descodificação de passagens mais obscuras, o percurso criativo e as possíveis leituras da balada romântica de Almeida Garrett «O Anjo e a Princesa». Tudo isto e muito mais é o que se compreende da apresentação dos primeiros resultados de Garrettonline, no dia 17 de Fevereiro. Em entrevista, Sandra Boto, coordenadora científica de Romanceiro.pt, explica os desafios que se colocam à edição crítica de uma obra com a complexidade filológica do Romanceiro garrettiano. Para trás, existe um percurso de oito anos que também interessa conhecer.
Sandra Boto, investigadora auxiliar do IELT- Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa
com outras baladas românticas do mesmo livro, o que, portanto, o catapultou para a categoria de “rato de laboratório” ideal. Sem esquecer que é uma balada de uma elegância estética insuperável que recupera a vetusta tradição da paixão entre anjos e humanos cujas origens reportam ao Antigo Testamento. A partir de Garrettonline, que páginas novas se abrem à investigação no âmbito da Literatura e Tradição? É preciso esclarecer que a representação das relações entre a literatura de transmissão oral memorial (é isso o que significa “tradicional”) e a literatura dita canónica que vamos entender aqui como “autoral”, individual,
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
(continuação)
portanto- é um dos maiores problemas que se deparam ao filólogo. Sobretudo porque as suas interferências e interconexões são uma constante ao longo da História da Literatura Ocidental. Não se trata de algo exclusivo da poesia narrativa ibérica, ou seja, o romanceiro. O ecossistema digital, por natureza aberto e não linear, parece apresentar-se como uma forma mais adequada de representar esta mesma natureza aberta, líquida, fugaz, da literatura que se transmite de memória em memória. É com base nessa hipótese de “casamento” entre duas realidades que partilham características de alguma maneira coincidentes que parte este projeto. No caso do Romanceiro de Almeida Garrett, comprovamos que as tecnologias de código aberto já nos vão proporcionando ferramentas que, na prática, permitem comprovar o acerto desta hipótese. Por outro lado, rompe-se com a inflexibilidade da edição em papel que, por ser um objeto necessariamente sequencial e estanque, dificilmente se presta à conjugação destas relações complexas que se escondem num texto literário com as características do romance tradicional. Refiro-me, em concreto, ao conceito de “edição-arquivo” digital, que explorámos aqui e que outros projetos se encontram a desenvolver aplicado a outras obras e autores. É curioso que outra obra que tem beneficiado de forma excecional desta conceção de “edição-arquivo” seja justamente o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa (através do projeto «ArquivoLdoD»), de cuja abertura ninguém duvida. Penso que Garrettonline pode contribuir para encorajar outros investigadores a uma abordagem digital das obras que editam e não apenas no panorama português. Pelo menos o retorno que tenho recebido após o webinar que promovemos no passado dia 17, vai nesse sentido. Só por isso já valeu a pena. Que sinergias ou que novos caminhos se podem encetar a partir do Garrettonline? Se se vierem a concretizar os meus planos, este constitui um protótipo editorial que, a ser bemsucedido, poderá e deverá ser replicado a muitas outras obras. Penso essencialmente numa aplicação a outros “clássicos” da nossa literatura, com as devidas adaptações. Mas, claro, este é um plano
a longo prazo que exigiria recursos e apoios de grande dimensão. Qual o argumento que falta mencionar sobre o valor do projecto ao nível do património cultural nacional? Existe uma dupla vertente patrimonial nesta plataforma. Por um lado, ela disponibiliza uma obra de inquestionável valor patrimonial no contexto da História da Cultura e da Literatura Portuguesa. Almeida Garrett é o autor mais importante do nosso Romantismo, o mais visionário, sem dúvida, aquele que projetou e concretizou um certo Portugal cosmopolita, assente na construção de uma identidade coletiva que o romanceiro de origens medievais representa. Ao concedermos acesso livre ao património documental do autor (os seus manuscritos, o seu laboratório criativo) numa plataforma digital como esta, assumimos uma responsabilidade de valorização e divulgação desse mesmo património a que, de outro modo, só poderiam aceder investigadores credenciados. O valor patrimonial destes materiais repercute-se, por isso, no investimento económico que o Estado português tem feito para conservar o espólio documental garrettiano desde meados do século XX, atentando no elevado significado de que se revestem para a formação da nossa bagagem cultural comum. São inquestionavelmente pertença coletiva da nossa memória, deixando de ser apenas uns manuscritos de autor. Por isso é que as edições crítico-genéticas das obras de Almeida Garrett ou de Eça de Queirós são acolhidas pelo grupo de investigação “Património literário” do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, ao qual também se encontra vinculado o projecto Garrettonline. A outra dimensão patrimonial reside no fator hereditário e coletivo da poesia narrativa tradicional. Ao ser transmitida de geração em geração, século após século, mesmo considerando as sucessivas interferências que registamos entre a transmissão escrita e a oral, o romanceiro anonimiza-se, torna-se de autoria coletiva (o autor-legión, na feliz designação de Menéndez Pidal). É, portanto, património de todos quantos o transmitem e o sentem como legado. O seu autor somos todos,
| P. 25
mesmo quando Garrett, na primeira metade do século XIX, antevendo a sua importância quando mais ninguém ainda lha reconhecia, decide assentar uma identidade nacional neste género poético, devido justamente à sua vivência coletiva. Como despertar a curiosidade de um adolescente para os conteúdos disponibilizados? Essa é claramente a the one million question. Na realidade, a tentação de dizer que só porque se encontram online já são conteúdos apetecíveis para um adolescente não passaria de uma enorme falácia. Não é por serem digitais que os conteúdos são atrativos para um adolescente, embora seja verdade que alguém que domina a comunicação digital sentirá sem dúvida menos obstáculos no acesso à informação online. Daí a pretender aceder à informação vai outro passo de gigante. Talvez a resposta resida na responsabilidade que nos assiste a todos aqueles que partilhamos conteúdos especializados (neste caso, literários) de criarmos um universo de referência à altura das necessidades de um público adolescente,
sem juízos críticos pré-concebidos. Ninguém com 17 anos terá a possibilidade, em 2021, de ler Os Lusíadas sem uma mediação adequada. Do mesmo modo, se eu não sei o que é um romance tradicional, por que motivo irei consultar esta plataforma? Portanto, a disponibilização dos conteúdos, que, no caso dos textos editados em Garrettonline, são acompanhados de mediadores de leitura que auxiliam na descodificação de passagens hipoteticamente mais obscuras através de uma simples ativação de uma janela pop-up, não pode deixar de ser feita em concomitância com uma ação de mediação muito despretensiosa. Por outro lado, como ferramenta eventualmente escolar, é evidente que se uma plataforma oferecer um texto e todo um contexto rico que gravita em seu redor, eventualmente recorrendo também a outras linguagens (imagens, recursos audiovisuais como sejam documentários, performances artísticas, notas auxiliares de leitura), a probabilidade de um adolescente se motivar e despertar curiosidade aumenta exponencialmente. Futuramente, temos planeado
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
(continuação)
encetar algumas ações de envolvimento da comunidade escolar ao projeto Garrettonline. Tudo vem ao encontro da questão da mediação afável, não paternalista e despreconceituosa. Quer falar-nos um pouco mais sobre o poema agora disponibilizado? «O anjo e a princesa» é um belíssimo exemplo da maravilhosa balada romântica portuguesa, extremamente rico em hipotextos (de Thomas Moore, The Loves of the Angels; La Chute d’un Ange, de Lamartine; o Génesis; o romance tradicional Conde Ninho, do qual há ecos neste poema, entre outros) que convergem num maravilhoso e só aparentemente singelo poema. O nosso trabalho consiste em dar a ver tudo isto ao leitor, dentro das nossas próprias limitações leitoras, claro. De uma perspetiva pessoal, foi o último texto de Garrett cujo trabalho de edição contou com a sabedoria e a generosidade da grande especialista garrettiana, a saudosa Professora Ofélia Paiva Monteiro, que lutou a meu lado para descodificar algumas passagens mais obscuras dos manuscritos. Além de «O Anjo e a Princesa», que outro poema de Garrett destacaria? Dos 99 poemas de Almeida Garrett, sublinharia a longa balada Adozinda, cuja panóplia de versões manuscritas, mistas (manuscritas e impressas), e reedições impressas em vida do autor oferecem um verdadeiro quebra-cabeças ao editor. Até diversas mãos (caligrafias) encontramos num dos manuscritos. As dificuldades de representação digital de tudo isto são, como se pode adivinhar, monumentais. Será o próximo a ser digitalizado e trabalhado nessa vertente de edição crítico-genética? Em princípio, vamos a partir de agora respeitar a ordem da disposição dos textos na obra (Livro I). Neste sentido, iremos terminar para disponibilização online os primeiros paratextos em prosa e, claro, o grande manifesto romântico português, a carta «Ao Sr. Duarte Lessa». O Garrettonline está alojado no Romanceiro.pt. Para quem não conhece, pode dizer-nos o que é e a quem se "recomenda" esta plataforma arquivística? Romanceiro.pt consiste numa plataforma de estudo
e edição do romanceiro português em acesso aberto. É importante começar por explicar que o romanceiro é um género poético narrativo de origem medieval, frequentemente cantado (o mais antigo documento localizado remonta ao século XIV), que veio a assumir diversas (re)configurações posteriores ao longo dos tempos, adequando-se às idiossincrasias de cada época. É um universo, só por si, com um elevado valor patrimonial. Em Romanceiro.pt acolhemos atualmente o «Arquivo do Romanceiro Tradicional em Língua Portuguesa», o nosso projeto mais emblemático e aquele com que demos início a esta viagem digital em 2013, adstrito na altura à tradição oral portuguesa (continental e insular). Lembro que este projeto teve o seu pontapé de saída graças ao magnífico acolhimento e disponibilidade total da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, que lhe reconheceu na altura o interesse, apoio sem o qual o mecenato da Fundação Calouste Gulbenkian não se teria concretizado. Foi uma instituição visionária, quando outras não lhe viam o alcance. Este projeto, em concreto, encontra-se,
IMAGEM: Doc. 60 do Espólio Literário de Almeida Garrett, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (cedido pelo projeto Garrettonline)
| P. 27
«
Romanceiro como matéria-prima, o clique para o universo criativo: Sophia de Mello Breyner Andresen é um bom exemplo. hoje, em vias de expansão em diferentes frentes, uma das quais promove a inscrição do romanceiro como bem patrimonial no quadro da Língua Portuguesa. Para isso, encontramo-nos já a programar investigação em rede com instituições no Brasil. Garrettonline é outro projeto acolhido pela plataforma Romanceiro.pt. Tudo nestes projetos está pensado para servir a comunidade académica, o que tem vindo a acontecer, passo a modéstia, com um êxito que nos satisfaz. No entanto, o nosso objetivo é continuar a explorar o contacto com o público em geral, não especialista, através de ações de divulgação. No fundo, o romanceiro tradicional está-nos impregnado na pele, mesmo na daqueles que não o sabem. Quem nunca ouviu falar da «Nau Catrineta» ou da «Bela Infanta»? É impossível passar à margem de um património que nos transporta para aquilo que de mais íntimo ou primordial guardamos na nossa memória. Note-se que são vários os escritores que se referem ao romanceiro como a matéria-prima, o clique que os catapultou para o universo criativo: Sophia de Mello Breyner Andresen é um bom exemplo. Somos feitos de memória e, ao dizer isto, refiro-me a todos, sem exceção: dos criadores (escritores e músicos), à comunidade académica (filólogos, antropólogos, etnógrafos, musicólogos, etc.), passando, claro, pelo público geral que associará o romanceiro à afetividade de uma avó ou à mera recordação de um tempo pretérito em que a partilha destas memórias criava sólidos laços de união. Atesouramos perto de 11.000 versões de romances tradicionais em Língua Portuguesa só no «Arquivo do Romanceiro Tradicional em Língua Portuguesa» e trabalhamos atualmente em rede com outras instituições e investigadores para fazer aquilo que o nosso tempo digital coloca à nossa disposição: ligar, ampliar, relacionar os nossos conteúdos com outros que consideramos que permitem ampliar a visão sobre o romanceiro. Portanto, Romanceiro.pt destina-se a
qualquer utilizador que pretenda aceder sem grandes mediações e com qualquer que seja a sua motivação prévia, a um património riquíssimo como este. No entanto, como qualquer interface exige uma descodificação, por mais simples que possa ser o intuito que lhe esteja na origem, cá estaremos sempre para ajudar os nossos utilizadores a chegar à informação pretendida. Que balanço faz da apresentação do projecto, no passado dia 17 de Fevereiro? A sessão ultrapassou largamente as melhores expectativas que tínhamos. Não pensávamos contar com mais de 10 ou 20 inscritos (no máximo) e afinal tivemos perto de 100 inscrições e mais de 60 participantes em linha oriundos de vários países: para além de Portugal, contabilizámos participantes de Espanha e do Brasil (pelo menos). Tendo em consideração que o acesso ao link para a assistência requeria uma inscrição prévia e sabendo nós que qualquer esforço exigido a um utilizador na web resulta frequentemente na renúncia deste a despender tempo e esforço, então concluímos que o interesse no webinar foi realmente assombroso. Para além de que antevíamos um público com interesses muito concretos em Humanidades Digitais e, na verdade, não foi isso o que se verificou, ou não foi apenas esse o público que esteve connosco. Contámos, efetivamente, com a participação de alguns dos mais prestigiados filólogos portugueses, o que coloca sobre os nossos ombros uma responsabilidade imensa. Na sequência da sessão, tivemos oportunidade de discutir ideias e metodologias com investigadores portugueses e estrangeiros que trabalham em edição digital. Outros afirmaram ter ficado com a intenção de se lançar em projetos desta tipologia, depois de nos ouvir. Não consigo imaginar um retorno mais positivo. No webinar foi mencionada uma nova sessão de apresentação, menos centrada na vertente tecnológica do projecto. Existe perspectiva de data? Ainda não há perspectiva de data. Para já, é necessário avançar com o trabalho de bastidores para disponibilizar mais textos online, de modo a termos outros materiais sobre os quais incidir a apresentação. Para além desta sessão breve, está em aberto, ainda, criação de um formato MOOC ou de um curso livre de Verão.
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
ESCAPARATE
SINOPSE | As platibandas são uma referência marcante dos edifícios do Algarve e elemento de grande valor patrimonial. Embora mais evidentes na região do sotavento, a sua presença é uma constante em todo o território do Algarve. São também um testemunho do gosto de criar formas e da perícia de construir do povo algarvio. Esta edição é ilustrada com mais de 160 imagens. Resulta de um significativo levantamento fotográfico de Filipe da Palma, base de um estudo para a identidade da região.
SINOPSE | O livro, produto de uma parceria entre a Arandis Editora e a Edições Colibri, foi organizado em pleno período de confinamento. Pretende trazer a lume contos inéditos de autores contemporâneos, maioritariamente produzidos para esta antologia, dando uma perspectiva de futuro e uma motivação adicional à criação literária. A antologia, composta por 20 contos, reúne três gerações de autores ligados ao Algarve, de quase toda a região.
SINOPSE | Originalmente publicado no vol. 19 da Revista de História da Sociedade e da Cultura (UC), a pretexto dos 550 anos do episódio histórico, o novo trabalho de Fernando Pessanha é agora lançado em separata pela Editora Guadiana, de Vila Real de Santo António. Por estas páginas navegam os motivos que desencadearam tal operação e o perfil social e militar de D. Fernando, no quadro da política expansionista portuguesa do séc. XV. SINOPSE | Estudo histórico e historiográfico sobre João de Deus, personalidade incontornável na cultura nacional e imprescindível no imaginário do Algarve. Perdura e perdurará na cultura portuguesa. João de Deus é um natural portador do pensamento dos filósofos da Antiguidade.
SINOPSE | O naufrágio anunciado é o de uma velha casa de família – uma jangada de pedra e cal – que vai ser demolida para dar lugar a um prédio de muitos andares (metáfora do Algarve actual, em que a sua paisagem e alma são sacrificadas ao altar venal do turismo). De veraneio na velha casa, estão um adolescente (a tentar compreender-se e ao mundo que é o seu), a sua mãe (cujo casamento se afunda) e a avó (que nasceu naquela casa, que ama, e teme naufragar com ela).
| P. 29
IN MEMORIAM GONÇALO RIBEIRO TELLES O arquitecto paisagista Fernando dos Santos Pessoa recorda o Mestre num artigo publicado no Jornal de Letras. Em 2011 a Fundação Manuel Viegas Guerreiro apresentou o livro da sua Autoria, Fotobiografia, onde revela o homem multifacetado, Gonçalo Ribeiro Telles.
NÃO, MEUS OLHOS, NÃO CHOREIS, SOB AS NUVENS BRANCAS A SOMBRA É LENTA, UMA VELHA ÁRVORE HUMANA VAI CAIR, ARRANCARAM SUAS GROSSAS RAÍZES, CAMINHA. MARIA ALIETE GALHOZ
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
IN MEMORIAM MORRESTE-NOS, EDUARDO LOURENÇO! Como é possível? Ainda há tão pouco tempo te vi, pleno de vida! Morreste como eu quero morrer: sem envelhecer – estavas inteiro por dentro, esse dentro que anima o nosso fora. Não vou ao teu enterro porque não estarás lá. Fui, não há muito tempo, acompanhar-te quando morreu a tua mulher. Falaste à beira da sua cova da nossa finitude. Foste uma das raras pessoas que conheci com a superioridade de se rir de si própria, o António José Saraiva foi outra. Contaste-me que um motorista de táxi te tomou por maluco, evadido do hospital Júlio de Matos, que ficava perto da casa da tua irmã onde nessa altura moravas quando cá vinhas. O teu ar «despassarado» fê-lo pensar-te foragido desse local e perguntou-te se tinhas dinheiro para pagar a viagem. Asseguraste que sim mas ele intimoute: “Mostra lá!” Congresso em que não estivesses não era congresso, eras tu que os abrias e fechavas. Contavas que a tua mulher desaprovava, tu dizias que não podias faltar porque…, ela retorquia que ias porque querias, porque gostavas, e era verdade – e ainda bem! Também contavas que ela te acusava “Não sabes dizer que não nem ao teu cão!” Mas não era por isso, não, era porque até morreres disseste sempre “sim!” à vida!
a impressão que residia em Paris porque estava lá sempre connosco, a pretexto de reuniões, congressos, sessões de todas as qualidades e feitios em que nós, os exilados, éramos férteis – nomeadamente a chamada Liga do Ensino, filial portuguesa da Ligue pour l’Enseignement Laique, de que eu, a Maria Lamas e o A. J. Saraiva éramos dirigentes. Lembro-me da sua presença entusiasta nessas sessões. Impossível fixar o percurso da nossa convivência e amizade, tão longo foi, e fecundo em acontecimentos, lá como cá, depois do 25 de Abril. A última vez que o tive comigo foi numa sessão no Grémio Literário, que resolveu comemorar o meu longo percurso de vida e trabalho. Sem ter sido convidado para intervir, apareceu lá – e puseram-no logo na mesa, é claro. (Vejam a foto.) Querido amigo, vais-te juntar a tantos outros que me tomaram a dianteira – alguns teus amigos também. O mundo fica mais só sem ti. Diz-lhes que esperem sentados por mim, que eu ainda tenho muita coisa que fazer por cá! 1 de Dezembro de 2020
FOTOGRAFIA: ELISA C. PINTO
1 de Dezembro de 2020
AUTOBIOGRAFIA Tenho falado muitas vezes do Eduardo Lourenço, vem a propósito quando conto a minha vida. Existe nela há mais de cinquenta anos, quando nos encontrávamos em Paris – eu, recém-exilada, ele, eterno transeunte, então em trânsito entre Vence e Paris, onde acontecia a cultura portuguesa. A mulher, francesa, teve sempre que o repartir com outros amores: pessoas e lugares. Encontrávamo-nos, nesses anos sessenta, num cafezinho no Quartier Latin, numa mini-tertúlia com o António José Saraiva e outros. Era então autor de um livro só, “Heterodoxia” – e como esse título era oportuno! Apesar dos exilados políticos serem conotados com o PCP, tanto eu como o A. J. Saraiva torcíamos o nariz ao Neorrealismo, perfilhado pelos da Esquerda ortodoxa. (Pela minha parte, sempre torci o nariz a todos os ismos.) Gostávamos de Agustina, desdenhada pelos neorrealistas, “A Síbila” era do nosso agrado. Dele creio que também. Nessa altura, o Eduardo colaborava no Diário de Coimbra e pediu-me poemas para a sua página literária (que dei, mas já não sei quais). Estava matriculado para fazer um Doctorat d’État, para ter direito a um lugar de Prof., na Universidade, mas nunca defendeu essa tese que, imagino, nunca chegou a escrever. Deve ter sentido o ridículo da situação porque, já nessa altura, o considerávamos um mestre. Tínhamos
Eduardo Lourenço e Teresa Rita Lopes em encerramento de Congresso sobre Literatura Tradicional. Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1983.
Teresa Rita Lopes (TRL) e Eduardo Lourenço na homenagem a TRL. Grémio Literário, Lisboa, 2016.
| P. 31
Por TERESA RITA LOPES Ontem à noite, REGALEI-ME A OUVIR O EDUARDO LOURENÇO, numa Grande Entrevista de há 5 anos (creio que no canal 2). Ouvi-lo foi sempre um prazer – maior, confesso, que lê-lo. Surpreendeu-me que respondesse à pergunta sobre o maior prazer da sua vida ter sido ter encontrado a sua mulher. Conheci-os juntos: ela era uma perfeita francesa cartesiana dedicada, sem dúvida, até lhe traduzia os livros para francês. Contou-me, com essa sua rara qualidade de se rir de si próprio, que ela se impacientava no emaranhado do seu discurso, e lhe perguntava: Mais où est le sujet? (Onde está o sujeito?) Comportava-se, às vezes, na ausência dela, como um menino rebelde. Numa das suas constantes passagens por Paris, no intervalo para almoço de algum congresso, coincidimos à mesa de um restaurante. Encomendou o prato mais pesado da ementa. Ralhei: «Porque é que pediu essa comezaina? Isso nem sequer é bom!» Pensou, e respondeu-me: “Acho que só porque a minha mulher não está aqui para me impedir!" Viveu sempre le cul entre deux chaises – nome de um grupo de teatro de jovens franceses filhos de emigrantes portugueses. Passou mais de quarenta anos em França mas, como alguns peixes que emigram, voltou à pedra natal para desovar e morrer. 2 de Dezembro de 2020 A PRINCIPAL AFINIDADE ENTRE EDUARDO LOURENÇO E ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA – eram amigos e admiravam-se um ao outro – era a natural coragem de dizer e escrever coisas impopulares. Não vou falar nas de Saraiva, conhecidas pelos amigos da sua roda, em Paris – E. Lourenço era um deles – apenas sobrevoar as reveladas pelo livro de E. Lourenço, Heterodoxia, 1 (de 1949, houve outro em 69) que contestavam não só a ortodoxia marxista dos intelectuais de então, seus amigos, mas também a católica, dos sustentáculos do salazarismo, em que tinha sido educado (a Mãe queria que fosse padre, tem uma irmã freira). É claro que também desagradou profundamente aos da “presença”, muitos seus amigos, ao declarar que essa revista representava “a contra-revolução do Modernismo”. Na Grande Entrevista de há 5 anos, reapresentada ontem, desagradou com certeza a muita gente ao comentar, a propósito de só sermos célebres no mundo graças aos nossos heróis do bolapé, que «cada país tem os heróis que merece». 3 de Dezembro de 2020 Textos publicados por Teresa Rita Lopes no Facebook, transcritos na Newsletter FMVG com a autorização da escritora que amavelmente cedeu as fotografias da página 30, à esq.
ADEUS, EDUARDO LOURENÇO Morreste-nos, querido amigo! Eras o meu exemplo e a minha esperança de ter o tempo ainda de que preciso para os escritos que me cumprem. Estamos todos no corredor da morte desde que nascemos, eu sei, querido amigo. Recordo-te a falar da nossa finitude à beira da cova da tua mulher que te precedeu na última viagem. Não irei ao teu enterro porque não estarás lá. Vou estar aqui contigo a lembrar-te por escrito. Dizias que tinhas pena de não ser poeta mas eras, oh se eras! mesmo que não escrevesses em aparente verso. Vens me lembrar que tenho que me despachar que o tempo urge, como imbecilmente se diz por aí. O que urge é a vida, a vida que quero deixar atrás de mim: os meus escritos. Sorrio-te. Sorrimo-nos: “Até sempre” ou “Até logo”? Vendo bem, vem tudo a dar no mesmo. 1 de Dezembro de 2020
EDUARDO LOURENÇO (1923-2020) Tenho uma relação com o tempo ontologicamente distraída. O tempo passa, acabou. Eu estou cansado de ter tanto tempo! Para mim talvez interessante seja que haja gerações mais novas que encontrem em mim alguma coisa de estimulante naquilo que escrevo. Isso é que é realmente a consolação das consolações. Jornal Público, 2003
POSTAIS
DO ALGARVE
« Olha a amêndoa que partiste Em vez de um miolo tem dois! Neste símbolo não viste Unidos dois corações?! EMILIANO DA COSTA
« Inocência Era quente o sol que abençoou uma amendoeira, e eu apanhei um abraço de flores, porque queria um colar no meu peito!... IDÁLIA FARINHO CUSTÓDIO
POSTAIS
DO ALGARVE
« Cubro a imagem do mar com um lençol de amendoeiras selvagens. Os seus ramos estendem-se NUNO JÚDICE
BIBLIOGRAFIA
Afonso, José – Cantar de novo. Tomar : Nova Realidade, 1970. Andresen, Sophia de Mello Breyner - Dual. Lisboa : Moraes Editores, 1972. Brandão, Raul - Algarve. Coimbra : Edição Alma Azul, 2008. Braz, João - Esta Riqueza que o senhor me deu. [S.I] : Edições Sit., 1953. Cabrita, Fernando - A Cidade e o Mar na Poesia do Algarve. Armação de Pêra : Algarve Mais, 2005. Costa, Emiliano da - Pinturescas : poemas. Faro : [s.n.], 1959. Custódio, Idália Farinho - Põe as palavras na Lua [e outros poemas]. Loulé : Edição I.F.C., 2015. Espanca, Florbela - A mensageira das violetas : antologia. Porto Alegre : L&PM, 1999. Fonseca, Manuel da - Crónicas Algarvias. Lisboa : Caminho, 1986. Gomes, Manuel Teixeira - Agosto Azul. Lisboa : Seara Nova, 1930. Guimarães, Luís de Oliveira - Júlio Dantas : uma vida, uma obra, uma época. Lisboa : Romano Torres, 1963. Júdice, Nuno - Geometria Variável. Lisboa : Publicações Dom Quixote, 2007 Mourão-Ferreira, David - Antologia da Terra Portuguesa. Vol. 13. O Algarve. Lisboa : Bertrand [s.d.] Neves, Leonel - Natural do Algarve. Faro : Universidade do Algarve, 1986. Saramago, José – Viagem a Portugal. Lisboa : Caminho, 1998. Tóssan - O Homem que Só Queria Ser Tóssan. Vol. Lógica zoológica, Frutos e desfrutos, Animalia, Contos e descontos. Lisboa, Loulé : Arranha-céus, 2019.