ANTÓNIO CARDOSO para além da evidência
Susana CardosoAqui neste lugar gostaria de partilhar breves testemunhos da vida da família que podem acrescentar algo mais a esta visão diversa da pessoa que foi António Cardoso, meu pai...
Começaria por dizer que eu própria me poderia chamar Jacqueline, não fosse o senso da minha mãe não querer para meu nome o de uma musa de Picasso! O meu irmão, com melhor sorte, ficou com o bonito nome de Eduardo Luís, sem Z, alusivo ao artista.
Está dado o tom do seu universo!
Das suas viagens sem a família chegavam postais sempre alusivos a monumentos, que entre saudades e beijinhos traziam por escrito uma lição de história e património. Mais tarde, adolescentes, recebíamos com prazer um postal de Paris, com a imagem dum Brancusi para mim ou dum grafitti no Fórum Les Halles para o meu irmão. Depois, as prendas da chegada, sempre: para a minha mãe mais um lenço, também belos colares, com composições que lhe sugeriam um quadro, um Delaunay …
A casa foi-se revestindo de livros, telhas romanas, cerâmicas…, de “ratinhos” comprados em casa de velharias que só o pai conseguia encontrar no calor de agosto do Alentejo ao meio dia…, de ex-votos, de talha dourada, de jarras diversas de sacristia, de relógios antigos, selos ou medalhas comemorativas… Peregrinávamos aos fins de semana por igrejas, exposições, antiquários e leilões (pós 25 abril) e com o beneplácito da minha mãe fazia-se uma aquisição duma jóia de Arte Nova ou duma biscoiteira de vidro opalino.
A casa foi-se recortando de mobiliário antigo, de quadros nas paredes e no chão, de pinturas suas, de esquissos emoldurados, desenhos na toalha pelo mestre José Rodrigues, de quadros de artistas-amigos…
E havia as crianças, (nós) em idade escolar, que pediam uma informação sobre estilo manuelino e chegávamos à conversa sobre Herbert Read ou perguntávamos sobre Picasso e a conversa acabava em Gréber… Adolescentes, desistimos de perguntar. Ao mesmo tempo, note-se que eu cresci com uma reprodução da Guernica numa parede do meu quarto, eu diria em tamanho real!, sentia assim pois…; e o meu irmão, por seu lado, tinha um cavalete em permanência no seu quarto, por vezes atelier.
No convívio, em casa, havia algumas condicionantes (que o digam os amigos vizinhos... ) – as cadeiras Thonet foram uma eleição estética e a sua fragilidade como sabem era relevante – a funcionalidade muitas vezes estava em segundo plano para o meu pai… Mais depressa se comeria num prato de cantão ou companhia das índias do que que nos acomodávamos num bom sofá!
No almoço de assado de domingo, com vinho verde de Amarante, era frequente a presença de Madeleine Carneiro ou dos professores Ferreira Almeida e Carlos Alberto, também Ferreira de Almeida; havia uma mesa especialmente adornada de serviços de louça antiga em toalha de linho de Amarante (a terra de ambos, pois!)
A minha mãe contribuía para este alinhamento, mas trazia também a realidade da família, dos amigos próximos, o casal Francesco e Aidé, os amigos Simões, a família Ribeirinha, e o tio Zé…
Tentava trazer também a noção do tempo, garantia a nutrição, a disciplina e a pragmática da vida –sem ela, o meu pai chegaria com toda a certeza muito mais atrasado aos seus encontros de trabalho ou de família.
Rapidamente foi, contudo, apanhada por essa idiossincrasia temporal que passou de geração “de que só estamos atrasados quando chega a hora!” - esse arrastar do tempo era harmonioso em Amarante, em que o encontro se faria numa esquina por acaso, sem marcação, ou em casa de família – ninguém esperava por ele…, estava certamente no museu! Quem o conhece sabe bem do seu assobio e do demorado caminho de leitura do Jornal de Notícias , do café até casa (no corredor de colunas do prédio de Gaia).
Em 1982, a família, os quatro, fez uma viagem de um mês pela Europa – o destino eram as Bienal de Veneza e de Kassel – mas o carro era um Fiat 850! Fomos a Vence, sul de França, ver os vitrais de Matisse e fomos a Colónia ver a sua catedral, a Europa subimos e descemos sem nada agendado – em Itália ficámos sem gasolina ao passar os Apeninos, no Mónaco ficámos a dormir no carro após chegarmos noite dentro sem hotel reservado!!
Não havia pragmatismo possível… havia sim histórias, histórias únicas!
(as histórias dos netos ficarão para eles e elas contarem!)
Agora sem ele, abrindo pastas, gavetas e escrivaninhas encontra-se o seu espírito de guardador de conhecimento.
Aparecem por toda a casa referências literárias, artísticas, patrimoniais a Amarante – publicações de poesia do Abade de Jazente, Agustina, Teixeira de Pascoaes, Manuel Amaral, entre outros – , gravuras antigas de Amarante, edições diversas, antigas ou primeiras, que resgatava na Académica, catálogos e convites de exposições no museu de Amarante…
E há também panfletos de exposições na Galeria Alvarez, nos anos 50, com Francesco, Ângelo, Armando Alves, Leonor Praça …, com António Bronze; há também escritos do Ilídio Sardoeira; correspondência com José Augusto França, correspondência com colegas e artistas. Há também cartões de “boas festas” sempre vistos como especiais porque tinham um desenho, uma composição ou simplesmente uma assinatura. Há mesmo uma secção de autógrafos e assinaturas de artistas e personalidades que admirava!
Luís, lembras-te?!, muito pequenos, na praia, no Algarve, de corrermos para o Urbano Tavares Rodrigues (ele de fato de banho…) a pedir um autógrafo?! Incitados é claro pelo pai, que não deixava escapar uma fala com alguém, que de algum modo reconhecia e apreciava.
Havia nele uma vontade constante de conhecer, criar e apreciar, até ao último sopro:
“Olha isto! Não é bonito?!”, enquadrando parte da estante predilecta e da janela vista-céu- poente…
Mais um quadro, este com cor de memória!
Imagens:
2 Casal (António Cardoso e Virgínia) e os dois filhos (Susana e Eduardo Luís), Gaia, 1966.
4 António Cardoso, Amarante, anos 50.
6 António Cardoso, Marselha, 1956.
8 Albúm de família, anos 60.
10 António Cardoso, Pavilhão Mies van der Rohe, Barcelona, [1994].
14-15 António Cardoso, Pintura II, óleo sobre tela, 1959.
© Arquivo da família
5/6/10/12-13 Fotografias da exposição Isto não é só um quadro: António Cardoso para além da evidência, Casa-Atelier José Marques da Silva, 2022. Pormenores das salas "óleos", "altares", "geometrias intersetantes" e "outros caminhos".
© Fundação Marques da Silva, Paula Abrunhosa e Telma Dias.
Quantas vidas cabem numa vida? Ao olharmos para a de António a resposta surge sem hesitações: muitas e todas elas com muito para contar. Desempenhou um papel determinante no processo que viria a dar lugar à criação da Fundação Marques da Silva, no Porto, e à construção do Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante. Deixou uma extensa e significativa produção artística. As suas obras de pintura, desenho e gravura foram amplamente expostas e encontram-se representadas em coleções particulares e no Museu de Amarante. Viajou, conviveu, ensinou. Lutou pela defesa do património, em particular o amarantino. Homem culto, colecionador atento e comunicador de excelência influenciou várias gerações de alunos que ajudou a formar, da Telescola à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de onde viria a jubilar-se em 2002. Esta exposição é a devida homenagem ao legado de uma figura que sempre se distinguiu pela atenção ao outro, pela bonomia e espírito conciliador, mas sobretudo pela exigência de qualidade e pela procura de sentido em tudo quanto fazia.
ANTÓNIO CARDOSO , nascido em Amarante a 21 de julho de 1932, veio a falecer no Porto a 3 de junho de 2021. A 7 de maio de 2022, a Fundação Marques da Silva inaugurou na Casa-Atelier José Marques da Silva a exposição Isto não é só um quadro: António Cardoso para além da evidência. Foi um primeiro olhar retrospetivo sobre essa teia de interesses e de paixões que foram moldando a sua vida, sobre os múltiplos caminhos que percorreu. Historiador de formação, artista por convicção, António Cardoso trabalhou sobre a memória sem nunca perder o sentido do seu tempo. A exposição, uma iniciativa da Fundação Marques da Silva que tornou visível a importância, amplitude, pluralidade e significado do seu legado, foi materializada com o contributo da família e de um conjunto alargado de instituições parceiras: a Direcção-Geral de Cultura do Norte, a Faculdade de Letras e a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso. Para a pensar, reuniuse um coletivo de curadores formado por Susana Cardoso, Laura Castro, Domingas Vasconcelos, Celso Santos, Leonor Soares e Paula Abrunhosa.
O texto aqui publicado é um excerto da intervenção de Susana Cardoso que teve lugar na sessão de abertura da exposição, onde duplamente participou, na qualidade de filha e de membro da equipa curatorial. O seu olhar cúmplice deteve--se, então, sobre a intimidade da vida familiar, deixando entrever a forma como a dimensão pública e privada desta figura idiossincrática e solar sempre se intersetaram harmoniosamente, deixando perceber como uma ajuda a melhor entender a outra.