São Torcato, a construção de um santuário Leitura do projeto a partir do espólio de Marques da Silva João Luís Marques
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São Torcato, a construção de um santuário: leitura do projeto a partir do espólio de Marques da Silva
Olhando para a obra de Marques da Silva, no Porto ou em Guimarães, talvez pareça o Santuário de São Torcato distanciar-se de obras do autor, como a Estação de São Bento e o Teatro São João, ou de outras aqui mais próximas, como a Santuário da Penha ou a Sociedade Martins Sarmento, respetivamente. Este distanciamento formal levou-nos a procurar esclarecer o verdadeiro papel de Marques da Silva no longo processo de construção deste Santuário minhoto.
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Luís Inácio de Barros Lima, Corte longitudinal do santuário de São Torcato, [1825] Arquivo da Irmandade de São Torcato
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Cesário Augusto Pinto, Estudos da cantaria que cobriria o transepto, [1894] Arquivo da Irmandade de São Torcato
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Baldaquino de S. Torcato Arquivo da Irmandade de São Torcato
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Para tal esclarecimento torna-se necessário recuar vinte anos e tomar como ponto de partida o trabalho de outros investigadores que por este trilho já passaram, com a esperança de poder acrescentar algo de novo à história da arquitetura portuguesa. Dois nomes de professores da História da Arte são incontornáveis: Regina Anacleto, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e António Cardoso, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – este último com um percurso académico intimamente ligado à criação da Fundação Marques da Silva (FIMS). Em particular, recordamos os livros Arquitectura Neomedieval Portuguesa e O Arquitecto José Marques da Silva e a arquitectura do Norte do País na primeira metade do séc. XX, ambos publicados em 1997 por aqueles investigadores e resultantes das respetivas investigações de doutoramento, realizadas no início da década de 1990. Passados vinte anos da publicação continua a ser indispensável olhar para estas obras pela riqueza dos dados que contêm, muitos deles partilhados nas valiosas notas de rodapé que hoje, com novas ferramentas ao serviço da investigação, nos permitem hoje cruzar dados e aprofundar o conhecimento em torno da construção do santuário.
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Regina Anacleto referira no seu estudo um valioso conjunto de desenhos identificados no arquivo da Irmandade de São Torcato. Dos seis publicados, apenas localizámos um que servirá para iniciar o nosso périplo. Trata-se de um desenho de Luís Inácio de Barros Lima [Fig. 01], arquiteto do qual ainda pouco sabemos. Autor da igreja matriz de Ovar, viveu em Guimarães e, de acordo com desenhos que integram o arquivo digital da Câmara Municipal do Porto, ali realizou trabalhos vários no primeiro quartel do séc. XIX. O referido desenho de Barros Lima é um corte longitudinal do santuário de São Torcato. Ora dessa proposta, cuja construção foi iniciada em 1825, foi erguida a capela-mor. Algumas fotografias antigas e gravuras que integram o arquivo da Irmandade permitem perceber melhor como era essa capela-mor. Reconhecemos as cantarias trabalhadas, bem como o enorme baldaquino que remete para o existente no Bom Jesus do Monte, não muito longe deste Santuário. A grandeza e majestosidade do baldaquino de São Torcato [Fig. 03], que incluía uma tribuna de passagem para veneração do santo, ainda é hoje percetível quando se admira o que restou daquela estrutura colossal de natureza pouco comum em Portugal. A dimensão e qualidade do trabalho da talha do plinto, da base, do fuste e do capitel, mesmo que desmontados conforme se encontram em exposição no piso térreo deste edifício sede da Irmandade, continuam a impressionar-nos. Embora não haja registo original, cópias de desenhos existentes na FIMS fazem-nos levantar a hipótese de o edifício sede da irmandade ser obra de Barros de Lima. Também aqui o projeto apenas seria parcialmente construído.
Intime Club – Croquis d’architecture, nº IX, Paris, Ducher & C.ie, Janeiro de 1867 Capa e F.5. FIMS/MSMS/PER-247.1
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Em meados de 1850, já o corpo do santo tinha sido transladado do antigo mosteiro para a capela-mor do novo santuário, quando arrancou uma nova frente de projeto, com um novo autor: o arranjo dos espaços envolventes, segundo risco atribuído a Daniel Fernandes, autor da fonte e escadório fronteiros à fachada principal, que limitam o espaço do ‘recinto’. Depois deste preâmbulo, introduzamos agora outros três nomes fundamentais para perceber a melhor a continuidade desta história: Cesário Augusto Pinto (*Lisboa, 1825; +Guimarães, 1896), Ludwig Bohnstedt (*São Petersburgo, 1822, +Gotha, 1885), José Marques da Silva (*Porto, 1869, +Porto, 1947). Esta sequência não respeita a ordem cronológica dos nascimentos de cada um, pretende sim revelar a ordem com que surgiram na história da construção deste santuário. Chamaria a atenção para as diferentes origens – dois são portugueses e um estrangeiro – e para os locais de formação de cada um destes arquitectos e engenheiro – Bruxelas, Berlim, Paris; respetivamente. De certo modo podemos dizer que a obra que hoje se pode contemplar em São Torcato, Guimarães, é fruto de uma rede internacional tecida no século XIX. Do engenheiro Cesário Augusto Pinto sabemos que, passando nesta região quando a capela-mor estava a ser edificada, se insurgiu com a qualidade do barroco tardio. Contudo, a vontade de construir o santuário era tal que a obra ia avançando. Estavam já lançados os alicerces da nave quando Cesário Augusto Pinto, já membro da Irmandade, propôs a realização de um concurso internacional. Este concurso, condicionado pelo estado da obra à data do seu lançamento, viria a ter lugar em 1866.
Onde entra o contributo de Marques da Silva e que relação teve ele com Ludwig Bohnstedt? Integrada na biblioteca profissional de Marques da Silva, à guarda da FIMS no Porto, encontrámos uma curiosa revista [Fig. 04 e 05], encadernada e profundamente ilustrada, datada do ano de 1867, ou seja, de dois anos antes do nascimento do mestre, pelo que é inesperada a sua pertença àquela biblioteca. Neste periódico francês Intime Club – croquis d’architecture lê-se a nota de abertura do concurso público para Ville de Guimarães - Concours pour la construction du Sanctuaire de S. Torquato que, como veremos, despertará o interesse de arquitetos estrangeiros. Em Portugal, a Associação de Arquitectos Portugueses também fizera o anúncio do concurso que era “prova de quanto desejam que aquella edificação seja executada com todos os preceitos d’arte, e que apresente ao grande número de pessoas que visitam aquella provincia, uma bella construcção religiosa; que além de ter um caracter adequado, mostre pela sua architectura alguma cousa menos vulgar (...).” E prossegue: “Louvores bem merecidos receba a confraria de S. Torquato pelo ilustrado exemplo que vae dar, o qual nunca se deveria deixar de seguir em qualquer paiz, que pertenda abraçar o progresso das bellas-artes.” Archivo de Architectura Civil – Jornal da Associação dos architectos portuguezes, 6 (Out.1866), p.96. O texto relevava a consciência de o processo não dever ser conduzido de forma amadora, uma exigência pela qualidade
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Guimarães – S. Torquato, postal ilustrado FIMS/MSMS/PostN0023f
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– o concurso visto como verdadeira ferramenta de seleção, capaz de escolher o que melhor pudesse servir São Torcato e a região. O documento citado não está nem no espólio da Irmandade, nem mesmo na FIMS. Encontrámo-lo sim no Arquivo do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, o que nos obriga a sublinhar a necessidade de trabalhar em rede para conseguir reconstituir uma história cujos vestígios, tantas vezes, não se concentram apenas num lugar. Em 1867, aquando da apreciação das propostas concorrentes, o periódico local Religião e Pátria dava conta da realização do concurso. Tinham sido consideradas três propostas, apenas uma delas apresentada por um português, Luís Caetano Pedro Ávila, um engenheiro e arquiteto que à data do concurso estava a estudar em França (mais tarde, em 1884, haveria de desenhar o Pavilhão da Exposição Agrícola da Tapada da Ajuda, em Lisboa). Dava conta ainda a notícia, da exposição realizada em Lisboa, Porto e Guimarães para apresentação das diferentes propostas. Infelizmente, e tal como aconteceu com os investigadores que antes se dedicaram a este tema, nada mais foi possível apurar mais sobre essa exposição itinerante. E assim sendo conformamo-nos, por agora, por nada mais saber das propostas apresentadas pelo arquitecto Groux, de Bordéus, e por esse outro português. Recuemos a Cesário Augusto Pinto, o mentor do concurso, que acompanhou a sua realização e as fases posteriores de execução e estaleiro. Apesar de os seus escritos darem conta da sua postura crítica perante a proposta vencedora, conforme já referiu António Cardoso, ele assumiu a responsabilidade pelo acompanhamento da obra. É deste período um conjunto de desenhos que integra o arquivo da Irmandade, 7
desenhos que inclusive têm a sua assinatura [Fig. 02]. Em particular, destacamos os estudos da cantaria que cobriria o transepto, onde hoje se localizada o altar sob uma cúpula, à data de muito menor dimensão do que aquela que seria executada. Num outro desenho datado de 1895, à escala 1:1000, podemos ver a implantação do santuário e escadório fronteiro. Esta ‘Planta geral dos terrenos pertencentes à mesma irmandade indicando os melhoramentos projectados’ [Fig. 07] torna clara a intenção de criar um espaço de terreiro para acolher os romeiros e reserva uma área mais a sul para o que, futuramente, seria o parque. Ocorre por essa altura a integração na mesa da Irmandade de S. Torcato de João Gualdino Pereira, personalidade que viria a ter um papel ativo na posterior entrega de trabalhos a Marques da Silva na cidade Guimarães, nomeadamente a encomenda da sede para a Sociedade Martins Sarmento. Apenas dois postais ilustrados do Santuário integram o espólio fotográfico de Marques da Silva [Fig. 06]. É surpreendente, se pensarmos que Marques da Silva acompanhou a construção desta obra desde 1896/97 até ao final da sua vida, corria já o ano de 1947. Curiosamente, é muito provável que este postal date da fase inicial da construção acompanhada pelo jovem arquiteto Marques da Silva, recém-chegado de Paris. Foi com menos de trinta anos, que José Marques da Silva entrou na história da construção do santuário. Ao nível da fachada, tudo estaria construído até ao nível da platibanda, faltando as torres e a cobertura.
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Planta geral dos terrenos pertencentes à mesma rmandade indicando os melhoramentos projectados, 1895 FIMS/MSMS/1525-pd5479
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José Marques da Silva, Estudo do frontão com o nicho central para colocação da imagem de São Torcato, s.d. FIMS/MSMS/1525-pd2255A
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[Bernardo Marques da Silva], Elemento decorativo da fachada principal – gesso de estudo, s.d. FIMS/MSMS/Foto0129
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Juntamos agora uma fotografia e um desenho da coleção FIMS [Fig. 08 e 09]. No desenho, não datado, mas que julgamos ser um dos primeiros realizados, Marques da Silva concretiza o remate superior da cobertura com o nicho central onde será colocada a imagem de São Torcato. Estudos recentes apontam a possibilidade, que até ao momento não podemos validar, de a imagem de São Torcato que encimaria a fachada principal ter sido realizada na oficina de Bernardo Marques da Silva, pai de José Marques da Silva. Porque nem todos os estrangeirismos e modernidade(s) foram sempre bem acolhidos, recordem-se aqui as vozes ‘mais cáusticas’: “Para a materialisação em pedra d’um tal sonho, deu-se o projecto da basílica por concurso, preferindo-se a traça de certo architecto allemão, que lá me disseram ser padre, e Deus o tenha feito melhor padre que architecto! (...) trata-se d´um joujou simplesmente bonito e sem typo, d´essa architectura de thesoura que tira do romão, da renascença e do gothico, bocados que ligam por um processo de salada, dando esse catitismo chamado em architectura moderno, um dos fricassés recosinhados pela chateza dos commis voyageurs francezes de Bellas Artes, sobre a ignorância confusa do antigo. Na vestiaria vendem-se estampas do alçado das torres, frontaria e planta da basílica, por onde em conjuncto [se pode] vêr a que tende essa massa de pedras lavradas que lentamente sobe na colina.” Fialho de Almeida, ‘Estancias d’arte e da saúde’ (1921) 9
A crítica é severa e espelha bem a resistência às modas passageiras, à maneira como evoluíam as formas no campo da arquitetura em finais do séc. XIX e início do séc. XX. É muito provável que as duas estampas existentes no arquivo FIMS [Fig. 10 e 11] sejam destas que se vendiam aqui no Santuário. Numa, o Sanctuario de S. Torquato, uma fotografia de Phot. Talbot com a perspetiva da proposta vencedora (a mesma que Regina Anacleto publicou). Noutra, a Basílica de S. Torquato (subúrbios de Guimarães), uma desconhecida reprodução colorida da Lit. Emilio Biel & Cª., em que a fachada surge coroada por uma cúpula de desenho e dimensão inexistentes na proposta premiada. Ludwig Bohnstedt é o nome do ‘arquiteto alemão’, o vencedor do concurso internacional. Em São Torcato ouvimos falar de Marques da Silva, de Cesário Augusto Pinto, mas de Ludwig Bohnstedt pouco, ou mesmo nada! Contudo, esta nossa pesquisa permitiu saber que, na Alemanha, houve já quem tenha estudado o percurso deste arquitecto, no final da década de 1970. Dieter Dolgner foi o autor de Architektur im 19. Jahrhundert: Ludwig Bohnstedt, Leben und Werk. Dolgner apresenta-nos Bohnsetd, o arquiteto de origem russa, que estuda em Berlim, na escola de Schinkel, e que faz obras um pouco por toda a Europa, principalmente através de concursos. Foi desta forma que desenvolveu o projeto para a sede do banco da Finlândia, em Helsinkia (construída em 1883), e outras duas obras, Reichstag (concurso de 1871, não construído), o Teatro de Riga e hoje Ópera Nacional (1863). Ou seja, temos um sólido percurso profissional marcadamente centro europeu, e com gosto clássico, cuja obra se estende até à arquitetura em Guimarães, sem que nunca o autor da obra de
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Sanctuario de S. Torquato, Porto, Phot. Talbot, s.d. FIMS/MSMS/Foto092
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Basílica de S. Torquato (Suburbios de Guimarães), Porto, Lit. Emilio Biel, s.d. FIMS/MSMS/1525-0419
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Ludwig Bohnstedt, S. Torquato Kirche in Guimarães, planta e corte longitudinal, [1867], Architekturmuseum da Technische Universität Berlin 12
Ludwig Bohnstedt, S. Torquato Kirche in Guimarães, cortes transversais, [1867], Architekturmuseum da Technische Universität Berlin 13
Ludwig Bohnstedt, Cathedrale von Guimarães, pormenores construtivos, [1867], Architekturmuseum da Technische Universität Berlin 14
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São Torcato tenha sido, até agora, estudado, em Portugal, no seu verdadeiro contexto internacional.
grande retábulo, com tabernáculo e, na extremidade oposta, no coro, um órgão que ocultaria a rosácea da fachada.
Será possível encontrar alguma referência destas obras lá fora? E porque razão não encontramos em São Torcato este seu estilo de referência mais clássica?
Nas folhas de pormenorização encontramos toda a gramática estilística deste edifício, assim como as soluções a adotar em cada elemento.
A resposta à segunda pergunta vinha logo expressa nos requisitos do próprio concurso onde se lia: “arquitectura religiosa não admite Grego nem Romano”. Quanto à primeira questão, a resposta encontrámo-la no Architekturmuseum da Technische Universität Berlin, que possui uma cópia da coleção S. Torquato Kirche – Cathedrale von Guimarães de sete estampas de enorme qualidade publicadas no final do séc. XIX [Fig. 12, 13 e 14]: uma perspetiva, a fachada principal, a fachada lateral, corte longitudinal, dois cortes transversais e duas folhas de detalhes construtivos de diversos elementos. Quem conhece o interior do santuário percebe a diferença entre o que vemos hoje e o que fora projetado. Chamo a atenção para a solução da cúpula que tão diferente é do modelo de gesso aqui exposto que viria a ser idealizada por Maria José Marques da Silva, filha do arquiteto José Marques da Silva – apenas concluída em 2006. Mas não é esta a única diferença visível no corte. Atente-se na localização da urna do Santo, que não estaria na capela-mor, mas sim no transepto, no local onde está a pia batismal. Ludwig Bohnstedt tira completamente o aparato monumental ao baldaquino de composição barroca de que já falámos e integra-o no espaço de uma forma completamente distinta, reduzido a uma delicada urna colocada sobre um plinto. Por sua vez, para a abside da capela-mor estava previsto um 13
Se a obra estava assim tão detalhada, que fez então Marques da Silva? Ludwig Bohnstedt já tinha falecido quando, regressado a Portugal após terminar a formação em França, Marques da Silva entra ao serviço da Irmandade de São Torcato. Num dos seus blocos de notas datado de 1911 encontramos, a par de registos duma viagem a Itália, esquissos de estudo relativos à torre [Fig. 16 e 17]. A torre por si projetada, com ligeiras alterações à linguagem arquitetónica do projeto original, acabaria por ser atingida durante uma trovoada no ano 1912. Esta derrocada parcial ficou registada em fotografia [Fig. 18]. Foi no arquivo da Coleção da Muralha, tratado pelo projeto “Reimaginar Guimarães”, que encontramos muitas imagens que nos permitem perceber melhor a evolução da construção do Santuário. Na década de 20, Marques da Silva deu continuidade à obra. Foram construídas as sacristias e a Casa dos Milagres, segundo o projeto de Ludwig Bohnstedt. O trabalho prolongou-se, porém, a tal ponto que foram já Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva, filha e genro do arquiteto portuense, a completar a partir da década de 1950 o desenho dos vitrais, das serralharias e dos motivos do pavimento em mosaico hidráulico que ainda hoje encontramos [Fig. 20 e 21].
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José Marques da Silva, Estudo para a torre, s.d. FIMS/MSMS/1525-pd0073
José Marques da Silva, Bloco de notas: estudo para a torre, 1911 FIMS/MSMS/0628-0029
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Durante a colaboração com a Irmandade, Marques da Silva fez também cartazes para as romarias do Santuário [Fig. 19], como os reunidos por Artur Ornelas Vasconcelos na sua tese de doutoramento, Do retrato à paisagem: memórias operativas de Marques Silva. O trabalho gráfico é um bom exemplo de ‘merchandising arquitetónico’, como que a antecipar a publicidade dos atuais renders imobiliáriários – ‘Veja como será este lugar de Romaria!’ Em jeito de provocação (e parêntesis) diríamos que a obra de São Torcato persegue Marques da Silva ao longo de toda a vida – veja-se a representação da Romaria Grande pela mão Jorge Reis Colaço, retratada num dos painéis de azulejo do átrio da Gare ferroviária de São Bento (Porto), uma obra incontornável do percurso profissional do arquiteto. Mas voltemos ao cartaz e a esta coluna e arco toral profundamente decorados [Fig. 14 e 19]. Atente-se ao capitel coríntio, onde o ábaco tem óculos, onde o fuste da coluna é facetado e não canelado – tudo isto é uma reinterpretação livre do que a gramática estilística clássica não previa. Gostava também de chamar a atenção para as legendas das estampas de Ludwig Bohnstedt onde, note-se, havia até a previsão do uso das cores – lilás, vermelho, azul e dourado, como se lê nas legendas da pormenorização decorativa. Ou seja, estava previsto que as superfícies esculpidas fossem pintadas e não deixadas à cor natural, como hoje as vemos. Complementava o projeto iconográfico a pintura a fresco dos painéis dos tramos da nave, das capelas laterais até à própria abóbada, ideia que não chegaria a ser executada.
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18 Derrocada parcial da torre [1912], Santuário em construção, capela-mor preexistente, A Muralha, PTRMGMRCFM0162.
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José Marques da Silva, Cartaz para a romaria do Santuário, 1910 FIMS/MSMS/3417
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Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva, S. Torcato - Casa dos Milagres: pormenor do mosaico cerâmico do pavimento, 1953 FIMS/MSMS/1525-pd0011
Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva, S. Torcato - Casa dos Milagres: pormenor do mosaico cerâmico do pavimento, 1953 FIMS/MSMS/1525-pd0016
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Sobrepondo diferentes desenhos podemos seguir a evolução da cúpula, desde uma cúpula celestial, aberta ao céu e rematada por um lanternim em vidro, à cúpula assente num tambor octogonal rasgado por janelas.
ques da Silva era ao tempo Diretor da Escola de Belas Artes do Porto, revelando enorme sensibilidade e admiração por todas artes plásticas para lá da arquitetura e a vontade de as promover.
A construção de São Torcato foi uma obra profundamente condicionada pelo seu tempo – constrangimentos orçamentais, situação política, guerras, etc. – e, por isso, prolongou-se no tempo. Como contraponto o que ouvíamos de Fialho de Almeida, leia-se o que escrevia Marques da Silva em 1937:
Entre o final da década de 1930 e 1946 (ano da grande celebração da transladação do corpo do Santo da antiga capela mor para a nave da nova basílica) Marques da Silva é chamado para ‘fechar a obra’, ou seja, rematar, ainda que provisoriamente, a nave da igreja.
“Feita a construção em granito fino da região fica-se perplexo no que mais há de admirar. Se na persistência de fazer trabalhos de tão grande lavor, se na habilidade e domínio com que o material é vencido para que se consiga dele os efeitos mais delicados. No momento actual, em que materiais artificiais estão em maior voga é acto patriótico auxiliar a continuidade da construção em que ainda há imenso a fazer.”
“Quanto à cobertura dos arcos Vossa Ex. cia é o único que sabe o que melhor convém fazer-se. Os mesários, no entanto, se lhes é lícito emitir opinião, não vão para a cobertura em madeira. Não só porque a não há farta e é caríssima, mas... porque é madeira. A não ser cimento armado, prefeririam, mármore nosso se é que é possível e de harmonia com a obra feita. Para esta obra temos dinheiro.”
Memória descritiva e justificativa 31.dez.1937; Arquivo FIMS/MSMS/1525-pe0005 Leia-se este “acto patriótico” no momento da ascensão/ consolidação do Estado Novo, a partir de um argumento facilmente entendido e partilhado por quem podia libertar verba pública para comparticipação nos custos. O que estava realmente por fazer? Abóbada, pavimento, altar, vitrine do santo, vitrais, portas, escola de canteiros e pintura mural. É interessante percebermos que Marques da Silva antecipa a fundação da escola de canteiros, realmente só criada em S. Torcato cinquenta anos depois, em 1982. Será também importante recordar que Mar17
Carta do Pe. Henrique José Gonçalves Pereira 15.jan.1944, Arquivo FIMS/MSMS/1525-peA10052 A solução conduzida por Marques da Silva deu continuidade à construção da abóbada, conforme documentam os vários desenhos existentes na FIMS [Fig. 24 e 25]. Veja-se a evolução desde os primeiros estudos de estereotomia de pedra dos vãos, datados 1897, aos das estruturas de andaimes de madeira necessários à execução das cofragens da abóbada em novas soluções construtivas mistas, de 1944. As soluções de engenharia adotadas são já merecedoras de estudo no campo da história da construção.
Fotografia da nave a céu aberto, [c.1895] A Muralha, PTRMGMRCFM1939 22
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Fotografia da nave, coberta mas sem abóbada, s.d. A Muralha, PTRMGMRCFM0396 23
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José Marques da Silva, S. Torcato: corte transversal e corte longitudinal, 1945 FIMS/MSMS/1525-pd2264
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José Marques da Silva, S. Torcato: corte transversal e longitudinal da abóbada da nave, 1944 FIMS/MSMS/1525-pd2273
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Vidraria Antunes, Cartão de vitral final, 1946 FIMS/MSMS/1525
José Marques da Silva, Igreja de S. Torquato: estudo para vitrais (janela e óculo), 1944 FIMS/MSMS/1525-pd0074
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“O único homem, carpinteiro, cá da terra capaz de executá-la é o portador desta (...) que apesar de ter feito muitas obras, não quer fazer esta sem ter a certeza de que agrada V. Ex.cia. Rogo a V. Ex.cia a finesa de o atender com paciência e pôr-lhe tudo muito claro, porque é trabalhador, de boa vontade, mas não devemos estranhar, porque é novo, que não saiba ler bem os riscos das plantas.” Carta do Pe. Henrique José Gonçalves Pereira 21.fev.1944, Arquivo FIMS/MSMS/1525-peA10061 Podemos com alguma segurança dizer que o mestre Marques da Silva, não só acompanha a obra, como assume uma postura de pedagogo no estaleiro, nomeadamente na partilha de conhecimentos com quem a obra executa. Também os estudos dos vitrais evoluíram desde os iniciais [Fig. 26 e 27]. Colocando lado a lado as diferentes peças desenhadas são bem visíveis as alterações desde a proposta de Ludwig Bohnstedt até aos cartões de vitrais finais, que seriam executados na oficina Vidraria Antunes em 1946. A correspondência semanal do padre Henrique José Gonçalves Pereira dirigida a Marques da Silva revela bem o trabalho no estaleiro e o difícil avanço das obras: “Logo que o tempo o permita, vai-se para a pedreira, que levará tempo a cometer, como dizem os pedreiros, porque há muita pedra amarela (...) antes de chegar à branca” (27.out.1945) “Traremos no monte os operários a abrir a pedreira. Se gastássemos amarela, já está a sair.” (8.nov.1945)
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Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva, Desenho de estudo para encerramento da cúpula: alçado, s.d. FIMS/MSMS/1525-pd0089
Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva, Desenho de estudo para encerramento da cúpula: corte, s.d. FIMS/MSMS/1525-pd5478
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José Marques da Silva, Estudo aguarelado para urna de cristal, s.d. FIMS/MSMS/1525-pd2269
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“Os pedreiros devem chegar breve à pedra fina e é bem que cheguem” (24.Nov.1945) “A pedra branca vai começar a sair” (14.dez.1945) “O Inverno vai prejudicar o trabalho na pedreira por algum tempo, mas pouco falta para começar o corte da pedra branca” (18.dez.1945) “Depois de tanto tempo e tanto dinheiro veio um tiro descobrir que o penedo, em que se trabalhava, é bom mas todo amarelo.” (9. jan.1946) Correspondência do Pe. Henrique José Gonçalves Pereira Arquivo FIMS/MSMS/1525-peA1 Por fim, mais um desenho de pormenor – uma aguarela da urna de cristal [Fig. 30] que hoje se encontra em exposição no museu da Irmandade. Tal como o baldaquino, também a urna mais antiga sofrera um ataque da formiga branca, razão pela qual foi encomendada uma nova a Marques da Silva. Trata-se duma peça de latão e vidro, executada pela oficina metalúrgica Custódio Ferreira Lino (Porto). O delicado desenho da nova peça, entretanto substituída pela antiga que foi restaurada, seguiu as orientações de Ludwig Bohnstedt que a colocava sobre um plinto, num conjunto de grande simplicidade, em oposição ao antigo e aparatoso baldaquino barroco. Esta é apenas mais uma das encomendas de São Torcato que se encontram documentadas no processo existente na FIMS. A esta poderíamos juntar tantas outras, como a das portas esculpidas com relevos, entregues à firma do Comendador Alberto Pimenta Machado, conforme informam os desenhos, faturas e correspondência existentes na Fundação.
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Quando, em 1947, morreu Marques da Silva a obra do Santuário de São Torcato continuava ainda por acabar. Uma fotografia desse período, existente no acervo da Irmandade, mostra o transepto a céu aberto e a relação entre os dois corpos, a antiga capela-mor de Luís Inácio de Barros Lima e a nave de Ludwig Bohnstedt já encerrada, unidos por um telheiro. Seria Maria José Marques da Silva e seu marido a darem continuidade ao trabalho, encerrando a cúpula que Marques da Silva estudara. Um conjunto de desenhos não datados mostram-nos estudos variados, da cúpula assente sobre um tambor cilíndrico à assente em tambor realizada [Fig. 28 e 29]. Ao aproximar-me do fim, partilho um postal ilustrado, cujo negativo identificámos nos Arquivos do Centro Português de Fotografia, com uma vista aérea do santuário pela lente de Tavares da Fonseca [Fig. 34]. A imagem, cuidada, mostra-nos toda a área do santuário dominada pelo verde que o envolve. Ainda que pareça obra acabada, um olhar atento nota que, na posição que ocupa, a torre sineira poente oculta o fecho do cruzeiro. No postal é legível a matriz do projeto do final do século XIX – o espaço do santuário dividido em três níveis: o adro, o terreiro (aqui já arborizado) e, à cota inferior, o parque. Note-se ainda a articulação de cotas entre a Casa dos Milagres e o parque de estacionamento, desenvolvido pela dupla Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva. Datada de 1907, a fotografia estereoscópica de Aurélio Paz dos Reis integra a coleção do Centro Português de Fotografia. Este documento dá-nos conta das estruturas móveis erguidas por ocasião da Romaria anual, ressaltando à vista o coreto que recorda outros desenhos de Marques da Silva, nomeadamente propostas para coretos desenvolvidas por volta de 1910 [Fig. 32].
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José Marques da Silva, Irmandade de S. Torquato: Planta do parque, 1919 FIMS/MSMS/1525-pd0086
José Marques da Silva, Estudo aguarelado para coreto, 1910 FIMS/MSMS/1525-pd2248
José Marques da Silva, Estudo para a torre do parque, 1911 FIMS/MSMS/1525-pd2271
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Da mesma época são os primeiros desenhos aguarelados do parque, situado à cota baixa do recinto. Numa primeira versão surge um desenho com matriz geométrica clara, talvez de canteiros e fontes. Mais tarde, a proposta é redesenhada. Marques da Silva incluiria neste novo estudo um hotel [Fig. 31]. Sobre esta encomenda nada conseguimos apurar: seria desejo da irmandade ou autoproposta do arquiteto? A construção do parque tardou, mas nele ainda hoje reconhecemos algumas ideias e formas dos percursos curvilíneos, o lago com embarcadouro e casa de fresco. Para rematar o parque propunha Marques da Silva uma torre para lançar o foguetório – estrutura da qual não há memória. Embora com a certeza de termos deixado questões em aberto esperamos ter contribuído para a clarificação do real papel de Marques da Silva no longo processo da construção do Santuário de São Torcato. Graças à colaboração de diversas instituições e arquivos pudemos aqui reconstituir este processo que atravessou todas as escalas do desenho, do mobiliário ao plano do espaço público. Foi obra pioneira no percurso profissional do mestre Marques da Silva – uma obra que soube continuar ao longo de toda a vida, uma obra cuja história nos cabe a nós saber contar.
Nota
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34 Tavares da Fonseca, Vista aérea do santuário de S. Torquato, postal ilustrado, s.d. Colecção particular
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João Luís Marques, licenciado pela FAUP (2006), doutorou-se em Arquitetura pela mesma escola em 2017 com a tese “A igreja na cidade, serviço e acolhimento, arquitetura portuguesa 1950-1975”, financiada pela FCT. Estudante Erasmus no Istituto Universitario di Architettura di Venezia, fez depois estágio curricular em Barcelona, com Carlos Ferrater. Iniciou atividade profissional no Porto, colaborando com Camilo Cortesão, Serôdio Furtado e Correia Ragazzi, a par da profissão liberal que prossegue hoje. Investigador do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo - grupo Arquitectura, Teoria, Projeto e História desde 2013, é colaborador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, desde 2015. Focando a investigação na arquitetura portuguesa, tem dinamizado encontros, exposições e projetos, muitos para fora do meio académico, graças a uma rede de parcerias com instituições diversas, entre elas a Fundação Marques da Silva e a Calouste Gulbenkian. Realiza diversos trabalhos de consultadoria sobre património edificado. É Professor Auxiliar Convidado da unidade curricular História da Arquitectura Portuguesa, do MIarq-FAUP e membro da plataforma internacional OARC - Observatório de Arquitectura Religiosa Contemporánea.
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A presente publicação São Torcato, a construção de um santuário: leitura do projeto a partir do espólio de Marques da Silva resulta do trabalho de investigação levado a cabo pelo autor para preparação da conferência apresentada no ciclo Olhares sobre São Torcato, em representação da Fundação Marques da Silva. Organizado pela Mesa daquela Irmandade, este ciclo de conferências decorreu a 19 de fevereiro de 2019. O Santuário foi posteriormente elevado a Basílica Menor, numa consagração que viria a ser publicamente celebrada a 27 de fevereiro de 2020.
Título São Torcato, a construção de um santuário: leitura do projeto a partir do espólio de Marques da Silva Autor João Luís Marques Imagem da Capa J. Marques da Silva, Romaria S. Torcato: Estudo p/ cartaz, 1898 (pormenor) Edição Fundação Marques da Silva Coordenação editorial e revisão Paula Abrunhosa Design gráfico Rui Guimarães © João Luís Marques © Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva Porto, Fevereiro de 2021 ISBN ISBN 978-989-99852-7-8
Agradecimento Irmandade de S Torcato; Associação ‘Muralha’
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