"Távora: Desenho de viagem, Desenho Objeto"

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Sร RGIO FERNANDEZ

Tรกvora DESENHO DE VIAGEM, DESENHO OBJETO


Távora DESENHO DE VIAGEM, DESENHO OBJETO

Agradeço o convite que o Pelouro da Cultura da Câmara do Porto me dirigiu para participar nesta sessão onde se evoca a figura do Professor Fernando Távora, personalidade cujo relevo no campo da docência e no do exercício profissional como arquiteto é por todos reconhecido. A ele devo, estou certo, o que possa eventualmente haver de mais relevante na minha formação como arquiteto e ainda como cidadão. Gostaria, também, de fazer menção especial ao Doutor Paulo Cunha e Silva, extraordinário agente cultural que, com a sua inteligência e invulgar dinâmica, depois de um pesado e longo marasmo, como já foi dito, “iluminou a nossa cidade”. Ações como esta que aqui nos convoca, creio, estão diretamente ligadas à sua criatividade e capacidade de organização. Uma referência muito especial à Fundação Instituto Marques da Silva, casa de preservação e divulgação do saber, designadamente no campo disciplinar da arquitetura, extensão que tem complementado, de modo exemplar, a ação dessa outra casa que é nossa, a Universidade do Porto. O meu reconhecimento aos diferentes interventores nestas iniciativas que vão abrindo caminho à felicidade de todos nós. É com particular emoção que venho, mais uma vez, a esta Fundação a que estou ligado por estreitos laços de uma já longa colaboração. Originalmente de caráter meramente profissional, a nossa relação, mercê da qualidade humana de todos os que nela colaboraram e colaboram, foi-se ampliando em sucessivas e, cada vez mais ricas, conivências. Saúdo, de modo especial, a Senhora Vice-Reitora, Professora Fátima Marinho, Presidente da Fundação, o Professor da Faculdade de Arquitetura, Nuno Sousa e, igualmente, todos os presentes. Não quero deixar de assinalar o significado de que certamente se reveste a presente circunstância de podermos, hoje, construir em conjunto, uma reflexão sobre um tema cujo mote tem origem num desenho do Professor Távora, aqui, na sede da própria Fundação, fiel depositária de uma parte particularmente significativa do seu espólio, na qual se reflete a sua produção enquanto docente, arquiteto e homem de cultura. Não se inclui naquela imensa e valiosíssima coleção de documentos, o desenho que aqui trago. Não é por vaidade ou exibicionismo que o declaro como minha pertença, ato de posse de que não abdico por razões de caráter sentimental que ampliam a sua importância enquanto documento, testemunho ou objeto de arte.


Conheci o arquiteto Távora logo que entrei, como estudante, na Esco-

intensa do lanternim central, multiplicada na brancura das abóbadas.

la Superior de Belas Artes. Era uma escola pequena, então, onde facil-

Este desenho de viagem, lição no papel onde está patente a recomen-

mente se estabeleciam relações e onde era comum haver grande proxi-

dação que sempre fazia aos seus estudantes, de que “não basta olhar; é

midade entre docentes e alunos, tradição que, de resto, se mantém até

necessário ver; olhar e ver são coisas distintas”, foi-me dado como lem-

hoje, agora na Faculdade de Arquitetura. Foi meu professor apenas da

brança da última visita a Valverde antes da sua jubilação. Ao significa-

cadeira de projeto, no quarto ano do curso, mas já nessa ocasião a nos-

do desse gesto que me tocou profundamente, acrescento o da conversa

sa convivência ia muito para além da do simples âmbito escolar. Para

que tivemos de seguida: disse-lhe que, por gostar muito do desenho,

isso contribuiria, certamente, o facto de eu ser colaborador do arquiteto

iria colocá-lo em casa, como coloquei, objeto em local bem visível que

Viana de Lima, seu amigo e assíduo companheiro de luta em defesa da

me permitisse o seu permanente usufruto. Disse-lhe que tinha, no en-

afirmação da modernidade na arquitetura portuguesa.

tanto, algum medo que descolorisse, fosse perdendo intensidade, fosse

Eram correntes os passeios e as visitas que fazíamos em comum e até

desaparecendo. Com a tranquilidade que o caraterizava, respondeu-me

viagens ao estrangeiro como a que me permitiu, enquanto estudante,

sabiamente: “deixe lá, é mesmo assim! Vamos desaparecendo os três!”.

assistir, na Holanda, em1959, ao último CIAM, Congressos de Arqui-

O desenho, de facto, já não tem o mesmo vigor. Assim vai sendo. Assim

tetura Moderna, organização de importância mundial no campo disci-

se vai consumindo este afeto!

plinar.

Viajar pressupõe o desejo de romper, ainda que por períodos limitados,

O espírito extraordinariamente aberto do arquiteto Távora, a sua in-

com o que nos é familiar, com o que nos é tão conhecido que quase dis-

finita curiosidade, a vontade de saber, a sua vastíssima cultura, a sua

pensa a nossa atenção. Viajar, contraditoriamente, pressupõe regresso,

permanente jovialidade, o seu prazer em viver, em viver com toda a in-

um regresso enriquecido pelos reflexos da descoberta de novas realida-

tensidade tudo o que a realidade da vida lhe pudesse proporcionar, ti-

des que, assimilados, passarão a integrar o património da nossa vivên-

vesse um caráter erudito ou não, conferiam-lhe especiais qualidades de

cia do dia a dia.

comunicação. Sem que houvesse qualquer barreira devida à diferença

As pontes de que nos servimos para captar o conteúdo daquelas desco-

de idades, foi naturalmente que, entre nós, se foi a sedimentando uma

bertas são as mais diversas, implicando a nossa racionalidade, aliada,

profunda amizade, de que guardo as mais gratas recordações. Figura

em simultâneo, a todos os mecanismos da sensibilidade ou, inclusiva-

ímpar da nossa arquitetura, aliava às suas extraordinárias qualidades

mente, a dispositivos auxiliares, como, por exemplo, os do registo so-

enquanto profissional e pedagogo, as que lhe eram conferidas por um

noro ou fotográfico.

rigoroso sentido ético enriquecido pela sua natural simplicidade e pela

O desenho é, certamente, um meio privilegiado para a observação da

capacidade de dar-se aos outros.

realidade. Não o afirmo apenas porque sou arquiteto e porque dele faço

Depois do 25 de Abril ingressei na Escola como docente, tendo sido, por

uso, diria permanente, não só para documentar o real, como, essencial-

um longo período, seu assistente. Todos os anos, para além de visitas

mente, para procurar os caminhos para a concretização de uma ideia e

com menor extensão, se organizava, com os alunos, uma viagem a Évo-

da forma que possa transformar-se em construção. Digo-o porque não

ra, cidade que é detentora, como se sabe, de um riquíssimo patrimó-

tenho dúvida de que o desenho do real, registo hesitante que se socor-

nio arquitetónico, abarcando períodos que vão da pré-história até à

re do tempo, da capacidade de observação e descoberta, dando sem-

atualidade. Nos seus arredores, a capela do convento de Bom Jesus de

pre espaço à subjetividade e à poesia, é o processo que, do modo mais

Valverde, na Quinta da Mitra, é um das mais belas obras arquitetónicas

consequente, pode transformar o ato de olhar em ver. “Ver é uma forma

portuguesas do século XVI. A sua autoria, não está atribuída com toda

de pensar...”, ou “..no intervalo de uma verdadeira viagem, os olhos, e

a segurança, oscilando, de qualquer modo, entre mestres da craveira de

através deles a mente, ganham insuspeitadas capacidades...”,como diria

Diogo Torralva, Manuel Pires, Miguel Arruda, ou mesmo Nicolau Chan-

o arquiteto e Professor madrilenho, Luís Mansilla. Desenhar é, certa-

trenne. O seu espaço diminuto, não excedendo, na sua maior dimensão,

mente, “cosa mentale”, como disse Leonardo da Vinci.

os vinte e um pés (cerca de 6,9m), organiza-se de modo centralizado,

O desenho, na viagem, normalmente tem um caráter eminentemente

com base em cinco corpos de planta octogonal, unidos entre si, cobertos

pessoal e não tem como objetivo primeiro a transmissão de uma mensa-

com cúpulas, das quais se destaca apenas a que marca o centro de toda a

gem específica pré-concebida. Não se substitui ao real, objeto da expe-

composição. Local de intimidade e recolhimento, de reduzidíssima es-

riência direta mas, representando-o através da sua observação atenta,

cala, contém em si impressionantes atributos da mais rica monumenta-

vai revelando todos os seus atributos, ou, mais exatamente, aqueles que

lidade. A perceção completa e rigorosa de todos os seus componentes,

ao seu autor se revelam como mais importantes. Transforma-se em

colunas, cúpulas, tetos planos quadrados, a relação harmónica entre

processo de estudo e fonte de prazer, fundamental porque beneficiário

todos eles e, mais do que isso, o espírito da sua espacialidade e o prazer

da contribuição pessoal do viajante, cuja identidade fica plasmada no

do seu usufruto, estão patentes neste maravilhoso desenho do arquiteto

que desenha.

Távora, feito “in loco”, enquanto os alunos ensaiavam as suas próprias

Essa, chamemos-lhe interferência de cada intérprete, é claramente ex-

tentativas de apreensão daquele espaço. Ao olhar para este desenho re-

plicitada por Louis Kahn, quando refere: (cito livremente) “...tento em

vejo o Arquiteto Távora a fazer notar como era estranho e sedutor o uso

todos os meus apontamentos sobre um motivo não reproduzir servil-

simultâneo e contrastante do granito, pesado e rude, nos tetos quadra-

mente o sujeito; ao contrário, respeito-o e considero-o algo tangível,

dos e nas cornijas que os definem, e o mármore macio e delicado das

vivo, onde devem surgir os meus sentimentos. Aprendi a apreciar que

colunas e dos capitéis que os sustentam. Vejo-o a chamar a atenção dos

não era materialmente impossível deslocar montanhas e árvores, ou

alunos para a importância que, na caraterização do espaço, adquire a luz

modificar cúpulas e torres, de acordo com o meu gosto pessoal..”.


Desde sempre desenho e história, por outras palavras, desenho e identi-

Os recursos empregues ou as soluções propostas diferem conforme as

dade são realidades indissociáveis do percurso da cultura. “Desenhar, é

circunstâncias. Poder-se-ia dizer que, genericamente, aos desenhos de

de fato olhar com os seus olhos, observar, descobrir. Desenhar é apren-

projeto corresponde maior densidade de traço e, muitas vezes o uso da

der a ver, a ver nascer, crescer, desenvolver, morrer as coisas e as gentes.

cor. Os desenhos de viagem, naturalmente condicionados pela dispo-

É necessário desenhar para levar ao nosso interior aquilo que foi visto e

nibilidade de tempo e de utensilagem, são quase exclusivamente exe-

que ficará inscrito na nossa memória para toda a vida”, disse Le Corbu-

cutados à pena.

sier. Mais do que desenho no papel é desenho na memória. Relembro o

Meios de aquisição de conhecimento e suportes da memória, nestes

provérbio de origem insegura, grega ou latina, consagrado pelo arquite-

últimos, como naqueles que integram os processos de projeto, surgem

to e teórico francês do século XIX, Viollet le Duc, provérbio que Távora

frequentemente anotações com caráter descritivo ou dados métricos.

sempre citava aos seus alunos “Nulle dies sine linea”, nenhum dia sem

Todos estes desenhos foram realizados essencialmente como ato de

uma linha, sem um desenho. Explicava-lhes que desenhar é tão natural,

conhecimento. Mostram o que o arquiteto Távora queria ver, perceber

acrescentaria tão necessário, como respirar.

e fixar. Foram feitos visando um certo sentido de utilidade, não tendo

Távora desenhava intensamente, apaixonadamente, adotando as mais

sido, por certo, realizados com o desígnio de desempenharem a função

diversas tonalidades e interessando-se por temas que tanto poderiam

de obra de arte. Ganharam esse estatuto, pela sua própria qualidade,

dizer respeito a um auto- retrato, a um episódio de rua, como o docu-

pelo valor de documento que representam e pela fidelidade do retrato

mentado em Kioto, no Japão, a um pormenor como o que fixa o contor-

que nos dão do seu autor.

no de uma das esculturas que ladeiam o portal da muralha de Damão, ou

Tenho comigo, pois, agora, uma obra de arte, um objeto a que estou es-

a cadeira do museu do Cairo, a uma obra de arte como as esculturas do

pecialmente ligado, porque, tal como acontecerá a muitos dos presen-

Parténon, a um conjunto edificado, como o da Praça da Erba, em Siena,

tes, não posso deixar de manter-me profundamente ligado ao Arquiteto

ao Palácio dos Doges, em Veneza, ou a um ambiente urbano como o do

Távora.

Bairro Gótico, em Barcelona, raras vezes a uma paisagem. Sergio Fernandez Porto, Março de 2016



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