Caderno Conforto

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Sumário 12

Por uma vida mais doce

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Projeto Love it Forward

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O modelo sustentável das ecovilas

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12 passos para começar uma horta comunitária

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Ervas Medicinais: colheita e secagem

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Viaje Conosco: 7 dias de bike pelo Vale Europeu

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Festivais multiculturais

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O Bonito do Caminho: de Florianópolis ao Uruguai

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Twin Oaks: uma comunidade que compartilha simplesmente tudo

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Por que se alimentar de forma diferente pode melhorar o mundo?

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Into the Wild

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Experiência

Pelos seus olhos eu vejo

Habilidade

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Viver junto


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Tema:

Relações Autor:

Liane Alves Fotografia:

Nir Arieli

Viver junto Como conviver em paz em um mundo de diferenças? Brigas acontecem, mas, acredite, todo mundo pode se entender, ou no mínimo se respeitar

Imagine o oceano Pacífico. Centenas de ilhotas que se distribuem por aquele mar azul-turquesa e transparente... Com suas folhas de palmeiras que murmuram ao vento e flores perfumadas de jasmim-manga. Esse cenário paradisíaco nos inspira a mais absoluta paz e felicidade. Isso porque as ilhas estão paradinhas, é claro. Muuuito paradinhas. Porque, caso se movessem um pouquinho mais para a direita ou para a esquerda, você ia ver só que salseiro que daria. Primeiro, porque as ilhas, em sua maioria, são pontas de vulcões enormes submersos. Elas se erguem do oceano como icebergs de terra. Se elas se movessem, facilmente trombariam umas nas outras, e, o que é pior, por baixo, nos seus pontos mais sensíveis, aqueles que elas nem imaginam que existem. Com a mobilidade reinante, em pouco tempo as ilhas estariam se xingando, se estapeando, ou algo do gênero. E o mar tranquilo do Pacífico iria para o beleléu. Nem preciso terminar a metáfora, não é? As ilhas, é claro, somos nós. Essa imagem nos auxilia a compreender o que não percebemos, de tão evidente que é. Nós nos machucamos na convivência porque temos uma parte oculta que nos faz esbarrar uns nos outros, e que psicólogos e psicanalistas chamam de inconsciente, a maior área de nossa psique. Portanto, somos seres de vários níveis internos, alguns abiss-


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ais, que não sabemos que estão ali. E essas pontas de vulcão, que somos nós, podem até sorrir, brincar e conviver numa boa com as outras pontas – desde que elas não cheguem muito perto. Mas, se a relação ganha mais intimidade e profundidade, um dia fatalmente vamos nos trombar e nos estranhar. “Não existe relação profunda sem conflito, sem diferença de opinião ou de olhar sobre a vida. E a intimidade, seja na convivência a dois ou na família, vai escancarar o que realmente somos ou pensamos sobre determinada coisa, pessoa ou circunstância”, diz a terapeuta paulista Soraya Nunes, especialista em dinâmica de conflitos. Pensar e ser diferente deveria ser um evento normal e natural da vida. Só que, na prática, não é. Temos a ilusão de que a unidade de pensamento seja possível, de que todos um dia vão reconhecer que temos razão (e sempre temos, é claro) e que a paz reinará absoluta na família sem nenhuma marola para incomodar. Isto é partimos de uma premissa básica que é absolutamente falsa: acreditamos que paz é ausência de conflitos. O que não é verdade. Onde existem

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diferenças de opiniões sempre há a possibilidade de atritos. Estar em paz e harmonia é simplesmente saber como lidar com eles, e considerá-los uma parte natural da existência, e não evitá-los. Em resumo: não adianta, os conflitos não vão sumir da sua vida, as pessoas não vão deixar de ser diferentes de você e muito menos aceitar tudo o que você diz sem contestar. Para evitar mais sofrimento, seria melhor desistir desse mundo ideal logo de cara. “Em vez de buscar uma unidade utópica, precisamos valorizar relações sociais que não anulem as diferenças”, diz com sabedoria o sociólogo americano Richard Sennett, que em agosto veio para o Brasil para falar do seu livro Juntos (Record) e participar do evento Fronteiras do Pensamento. Ou seja, cada vez mais teremos de treinar nossos limites e capacidade de flexibilização para acolher o que é diverso, não só em casa, mas em todas as áreas da vida. “Conviver com pessoas diferentes em termos de nível social, econômico, étnico e racial é o desafio mais urgente enfrentado pela sociedade civil hoje”, afirma Sennett. Mas, se admitimos a possibi-


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lidade de oposição mesmo em tempos de paz, também é verdade que existem maneiras e maneiras de vivê-la. Porém, não é negando ou engolindo diferenças que a coisa vai funsociais que não anulem as diferenças”, diz com sabedoria o sociólogo americano Richard Sennett, que em agosto veio para o Brasil para falar do seu livro Juntos (Record) e participar do evento Fronteiras do Pensamento. Ou seja, cada vez mais teremos de treinar nossos limites e capacidade de flexibilização para acolher o que é diverso, não só em casa, mas em todas as áreas da vida. “Conviver com pessoas diferentes em termos de nível social, econômico, étnico e racial é o desafio mais urgente enfrentado pela sociedade civil hoje”, afirma Sennett. Mas, se admitimos a possibilidade de oposição mesmo em tempos de paz, também é verdade que existem maneiras e maneiras de vivê-la. Porém, não é negando ou engolindo diferenças que a coisa vai funcionar. Relações doentias que duram anos se estabelecem assim, com a submissão de uma das partes à outra para que não emerja uma discussão, mas você já sabe que isso não é bom e que a saúde vai cobrar. O que resolve mesmo é ter outra visão do que seja um conflito, um acolhimento maior em relação à diferença, uma nova maneira de escutar o outro e se trabalhar internamente para ver, de fato, onde a história pega, e, assim, com mais luz e consciência, procurar resolvê-la. Esses são os alicerces de uma cultura de paz mais participativa, menos hierárquica e rígida, porém, ao mesmo tempo, estável em seus princípios. Em outras palavras, nada como trazer à tona o que machuca lá embaixo, sem ter medo do embate. Não com ódio, ou com raiva, mas com coragem de olhar a dificuldade de frente. Encará-la para trabalhar com ela, de forma pacífica. Só assim é possível procurar uma solução para a situação ou, pelo menos, buscar uma melhoria da relação para que, no mínimo, volte a paz necessária

para se estabelecer um novo diálogo entre as pessoas. Isso significa que nem sempre a solução das diferenças surge imediatamente, mas com uma atitude mais serena e uma escuta atenta podemos dar espaço para que se forme uma outra dinâmica de relação capaz de contribuir, no futuro, para uma solução final. Outra boa indicação que a metáfora das ilhas nos dá é que as trocas são dinâmicas. Relacionamentos não são como a decoração da sala, que a gente faz uma vez e só troca um vaso ou as almofadas quando enjoa. Não somos ilhas acomodadas que não se movem. Muito pelo contrário. Vivemos um universo emocional ativo, que está constantemente em mutação. Na verdade, essa é a sua característica básica. A chave, então, é como saber viver nesse mar que um dia está de um jeito e pouco tempo depois está de outro. Agora vamos ver como é possível fazer isso.

Nossas mochilas de marca Quando convivemos por muito tempo com alguém, temos duas alternativas: ou a relação se aprofunda, e um conhece mais o jeito do outro, sabe onde o bicho pega e vai com calma, ou ela se desgasta exatamente porque um conhece o calcanhar de aquiles do outro e vai em cima. Todo mundo já ouviu histórias de casais que brigam porque um aperta a pasta de dentes no meio e o outro a espreme do finalzinho até a ponta. O escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo dá outro exemplo maravilhoso desse tipo. Segundo ele, o mundo é irremediavelmente dividido entre os cutucadores e os alisadores de manteiga. Os cutucadores (ou cortadores) são ansiosos, tensos e impacientes. Os alisadores, calmos, sensuais e cuidadosos (ele deve ser um alisador). Verissimo sustenta, com bom humor, que essa diferença mínima é capaz de levar a filha de volta para a casa dos pais e que entre esses dois tipos básicos de seres humanos não há conciliação possível. Mas não importa se ele


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Conviver com pessoas diferentes em nível social, econômico, étnico e racial é o desafio mais urgente enfrentado pela sociedade hoje

tem razão ou não. O mais interessante dessas historinhas é que elas falam das pequenas diferenças que são capazes de gerar conflitos e que fazem parte de uma realidade bem presente na convivência da família: a briga pela miudeza. Vamos olhar mais de perto esse exemplo da pasta e da manteiga, porque vale a pena. Na vida comum, não percebemos que essas diferenças não são pequenas. Na verdade, elas são indicadores visíveis de realidades psíquicas bem mais profundas. Vou utilizar outra imagem aqui. Ao decidir morar junto, o casal entra no novo lar feliz, mas ambos se esquecem de um detalhe fundamental: tirar a mochila. Sim, aquele acessório invisível onde cada um traz suas experiências anteriores. A gente não percebe, mas cada um leva para o casamento (ou para o emprego, ou para a convivência com os filhos ou com o vizinho) a sua mochila carregada de conceitos e preconceitos, opiniões e palpites, conclusões e achismos baseados em suas memórias. Boa parte disso é feita de conteúdos inconscientes: você aperta a pasta de dentes pelo meio, ou pelo fim, mas não sabe direito o porquê. Isso acontece exatamente porque o que causa essa ação é inconsciente. Mas, mesmo que não esteja aparente, a causa está ali bem guardadinha na mochila, e influencia


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suas atitudes sem que você se dê conta disso. Vamos voltar ao nosso casalzinho. Ao chegar à nova casa, eles trazem suas amadas mochilinhas (ou mochilonas) com marca, origem e modelos diferentes. Quando temos consciência de que carregamos valores, sonhos, projetos, ideais ou opiniões que podem ser bem diferentes do conteúdo da mochila do amado já damos um bom passo adiante. Pelo menos reconhecemos que a nossa visão depende da nossa bagagem, e que existem outras bolsas com outros conteúdos com os quais temos de conviver. Já há um reconhecimento implícito do outro, e um entendimento maior de que é necessário flexibilidade e tolerância para acolher essas diferenças. É bem melhor do que você achar que a sua mochila é a melhor e a única no mundo, e que o outro é quem tem de se adaptar. E é fatal: com o tempo juntos, uma mochila certamente vai esbarrar na outra. O casal pode até achar que está brigando apenas pela maneira como um aperta a pasta de dentes ou corta a manteiga, ou divide as despesas, mas não é. Os dois brigam por causa das bagagens individuais que trouxeram. E não percebem que isso, às vezes, incomoda o outro.

Sob a luz da consciência Quando há um conflito por causa de opiniões diversas sobre alguma coisa, o melhor a fazer é descarregar a mochila em cima da mesa e examinar a tralha que tem ali. Em palavras mais elaboradas, vamos tentar localizar no nosso inconsciente a razão que nos motiva a fazer determinada ação ou ter um pensamento. No caso do nosso casal imaginário e sua pasta de dentes, pode ser que o moço tenha vindo de uma família com poucos recursos, por exemplo. Cada item comprado na casa dos pais era considerado, mantido e vigiado. Portanto, a bagagem dele diz que o futuro é incerto, que nunca podemos contar com o dia de amanhã, que é melhor prevenir um gasto que pode ser evitado do que simplesmente comprar por impulso. Ela, ao contrário, pode ter vindo de uma família mais abastada, em que as pastas

Vivemos um universo emocional ativo, que está constantemente em mutação.

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de dentes eram trocadas logo ao ficarem meio murchinhas. Ou, então, a moça foi criada numa casa onde seus pais e irmãos não ligavam a mínima para esse negócio de apertar dentifrícios, porque eram de índole mais artística e intelectual. No fundo, ela acha essa história algo sem importância. Na sua concepção, a vida é mais provedora, e as oportunidades, inumeráveis. No fim, ela acha que está certíssima. E ele também. Se os dois não forem sábios o suficiente, ficarão esbarrando, sem perceber, suas mochilas um no outro com seus conteúdos inconscientes até chegar o fatídico dia da separação. Se houver amor e se eles tiverem o mínimo de sabedoria, reconhecerão as diferenças de origem de suas famílias e tentarão achar soluções para minimizar o problema. Nem que seja comprar duas pastas de dentes separadas.

O poder da parceria Nesse momento em que eles vão se olhar de frente e examinar o conteúdo de suas mochilas, facilitará, e muito, se tiverem uma culturade parceria. “O modelo de parceria apoia relações de respeito e cuidado mútuo. Como não há necessidade de manter hierarquias de controle rígidas (como existe no modelo de dominação), também não há embutida a necessidade de abuso ou violência”, diz a autora Riane Eisler em O Poder da Parceria (Palas Athena). E continua: “As relações de parceria liberam nossa capacidade inata de sentir alegria e brincar. Elas nos permitem crescer mental, emocional e espiritualmente. O conflito é visto como uma oportunidade para aprender e ser criativo”. Portanto, esse exame da tralha que cada um traz pode ser feito com leveza pelos dois. Porque o respeito, o amor e o cuidado dão base à relação. E assim há chances de as diferenças serem superadas. Dentro de uma cultura de paz, o diálogo e a cooperação estão mais presentes do que os


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É o nosso apego fanático que impede que outras soluções surjam. Em um clima mais pacífico e generoso, o entendimento pode brotar.


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julgamentos e as divergências. São modelos mais generosos e abertos de convivência, em que não precisamos nos aferrar tanto às nossas ideias, e em que admitimos que não é vergonhoso querer mudá-las quando há uma boa razão para isso. Porque, afinal, ideias são apenas ideias. O diálogo é como uma dança em que trocamos ideias com leveza, sem querer matar ou morrer por elas. O físico David Bohm trabalhou durante anos com o mestre indiano Jiddu Krishnamurti em uma técnica chamada “Diálogo”. “Para que algo aconteça, é necessário que abandonemos a defesa de nossas posições”, diz Bohm. “A verdade não emerge de opiniões, ela deve emergir de algo maior”, complementa. Opiniões são naturalmente limitadas, partes de um todo. A meditação pode nos ajudar a entrar em contato com esse todo. Ou técnicas que, como o “Diálogo”, procuram chegar até ele. E nesse todo pode estar o que eu penso, e o que o outro pensa. É o nosso apego fanático que impede que outras soluções surjam. Mas, ao baixarmos a guarda, nasce aquilo que Bohm chama de “abrandamento”. É nesse clima mais pacífico, harmonioso e generoso que o entendimento pode brotar.

Terceira força O conflito num relacionamento pode chegar a um ponto em que pensamos que só a separação é capaz de resolvê-lo. Porém, muitos aspectos devem ser considerados antes disso. Acontece que nem sabemos que eles existem. Não fomos treinados para isso. Para suprir essa necessidade, surgiu a mediação de conflito, desde julho passado uma profissão reconhecida no Brasil (mas ainda não regularizada). Hoje em dia, os mediadores atuam como auxiliares em promotorias de Justiça, em varas de família e em outras áreas institucionais. Esse profissional se senta com uma equipe de psicólogos, educadores ou outros mediadores, ao lado dos interessados O con-

flito num relacionamento pode chegar a um ponto em que pensamos que só a separação é capaz de resolvê-lo. Porém, muitos aspectos devem ser considerados antes disso. Acontece que nem sabemos que eles existem. Não fomos treinados para isso. Esse profissional se senta com uma equipe de psicólogos, educadores ou outros mediadores, ao lado dos interessados briguentos e... escuta.Nesse encontro, um vai ouvir o que o outro acha sem que seja interrompido (mas quem discorda pode anotar as dúvidas e falar depois). briguentos e... escuta. “Muitas vezes chegase a um grande conflito sem ao menos se ter ideia do que o outro pensa”, diz a professora de mediação de conflitos Valéria Perez, de São Paulo. Nesse encontro, um vai ouvir o que o outro acha sem que seja interrompido (mas quem discorda pode anotar as dúvidas e falar depois). “Mesmo em casa, quando se quer discutir sobre algo com um filho, ou com o marido, é sempre bom reservar uma hora especial para isso, para que não haja interrupção, e nenhuma tensão com horários.” Pode ser que o assunto se resolva na hora, pode ser que necessite de outros encontros parecidos. Com técnicas e recursos aprendidos em cursos de um a dois anos de duração, o mediador que trabalha numa promotoria de Justiça, por exemplo, faz determinadas perguntas para cada um. Ao escutar as respostas, os próprios interessados começam a compreender o ponto de vista do outro. É bom dizer que o mediador nunca toma partido ou julga, ele apenas cria um espaço emocional mais pacífico para que haja um começo de entendimento. Pronto. Com todas essas novas informações, talvez você não tenha mais tanto medo quando se apresentar a próxima discussão. Vai saber que há formas de resolvê-la de forma pacífica, irá examinar com mais profundidade o que está atrás de suas ações e opiniões e com certeza terá mais espaço interno para acolher diferenças. Acredito que seja um ótimo começo.


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Tema:

Sentimento Autor:

Ana Holanda/ Gustavo Gitti Fotografia:

Mariam Sitchinava

Pelos seus olhos eu vejo A empatia, ou a arte de se colocar no lugar do outro, é um valor que anda em falta ultimamente e cujo exercício poderia não apenas melhorar a nossa vida mas transformar o mundo

Patricia Moore é uma britânica que, na década de 1980, revolucionou o design dos eletrodomésticos ao passar quase três anos (de 1979 a 1982) vivendo a rotina de uma senhora de 85 anos. Todos os dias, ela cumpria um ritual: aplicava camadas de látex no rosto para parecer enrugada, colocava óculos que lhe borravam a visão, tapava parcialmente os ouvidos para ter dificuldade de escutar, vestia suspensórios e enrolava bandagens para se manter encurvada, prendia talas nos braços e pernas que dificultavam a flexibilidade e, ainda, calçava sapatos desiguais que a obrigavam a andar de maneira trôpega. E assim seguia realizando tarefas que uma octogenária precisaria fazer no cotidiano. Ela cozinhava, utilizava eletrodomésticos, caminhava pelas ruas, tentava subir e descer escadas. Mas por que ela fez isso? A motivação de Patricia era entender o mundo pelo ponto de vista das pessoas mais velhas e descobrir os reais obstáculos pelos quais elas passavam diariamente. A partir dessa experiência, ela desenvolveu uma série de objetos e desenhou eletrodomésticos mais acessíveis para todos (só para lembrar, nessa época, muitos dos acessórios de uma cozinha, como a geladeira, eram incrivelmente pesados). Moore é considerada a fundadora do design inclusivo ou universal. A inglesa Jo Berry tinha 27 anos quando o pai, um parlamentar conservador, foi morto por uma bomba


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numa conferência do partido do qual ele fazia parte. Era 1984. Entre os responsáveis pelo atentado estava Pat Magee, que foi preso e libertado anos depois, em 1999. Jo quis se reunir com ele para uma conversa. “Quis me encon trar com Pat para pôr um rosto no inimigo e vê-lo como um ser humano real”, conta. Os dois se sentaram frente a frente dezenas de vezes. E tiveram diálogos penosos para ambos, mas que ajudaram, cada um, a ter uma compreensão da perspectiva do outro sobre o atentado. O que a experiência trouxe para Jo? Ela fundou, junto com Pat, uma organização chamada Building Bridges for Peace (Construindo Pontes para a Paz, em tradução livre), que incentiva a conversa entre inimigos declarados para que cada um passe a entender a ótica do outro e, assim, se aproximar da paz. “Compreendi que, seja qual for o lado do conflito em que você esteja, se tivéssemos todos nós vivido a vida uns dos outros, poderíamos ter feito o que o outro fez. Em outras palavras, se eu tivesse vindo de um meio republicano, poderia facilmente ter feito as mesmas escolhas que Pat fez”, acredita Jo Berry.

O que Patricia Moore e Jo Berry têm em comum é que ambas conseguiram desenvolver verdadeiramente a empatia. Essas histórias fazem parte do ótimo livro O Poder da Empatia (Zahar), que traz histórias, pesquisas e projetos em que o mote é entender a importância de perceber o mundo pela visão do outro. O autor da obra, o filósofo australiano Roman Krznaric e um dos criadores da The School of Life, mergulhou por mais de dez anos no tema da empatia. Para ele, esse valor pode transformar o mundo, uma vez que melhoraria a compreensão mútua e a relação entre as pessoas.

Como fazer isso na prática Quantas vezes dizemos: “Coloque-se no meu lugar” ou “coloque-se no lugar dele”? Como conseguimos sentir as emoções de outra pessoa ou mesmo pressentir suas intenções e compreender suas motivações? Um grupo de pesquisadores franceses se dedicou a responder essas perguntas. O estudo deu origem ao livro L’Émpathie (A Empatia, sem tradução para o português), uma obra coletiva que trata do tema sob diferentes aspectos


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– do fisiológico e psicológico ao neurológico, passando pelo filosófico e ético. De acordo com os especialistas envolvidos nesse estudo, sem a capacidade de adotar o ponto de vista do outro, o mundo seria habitado por psicopatas e autistas. Mesmo existindo também em alguns primatas e pássaros e nos golfinhos, é no homem que a empatia se desenvolve de forma mais elaborada. Mais do que pela linguagem, é pelo olhar que a empatia se manifesta em nós. Graças aos avanços dos estudos das imagens do cérebro, sabe-se que o contato do olhar ativa a amígdala (região do cérebro onde se processam algumas sensações) e todo o sistema de emoções. “A troca de olhar é a forma mais fundamental de compreensão e aceitação do outro”, nota Alain Berthoz, diretor do Laboratório de Fisiologia da Percepção e da Ação, do Collège de France. Segundo ele, na troca do olhar encontramos três componentes da empatia: eu te olho; você me olha, mas eu devo compreender o que esse olhar, experimentado por nós e dirigido para mim, significa; e nasce da troca do olhar um elo que não pertence nem mais a mim nem a você, mas ocorre entre nós. “Isto é, de repente percebo esse elo que nos liga no mundo como se sobrevoasse a cena. Eu nos percebo juntos como um objeto no mundo”, afirma Berthoz, explicando que essa empatia garante, nas relações, a escolha de pontos de vista próprios.

Simpatia é outra coisa É preciso, antes de tudo, não confundir empatia com simpatia, assinala o francês Gérard Jorland, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Sociais, em Paris. Designa-se por empatia a capacidade de se colocar no lugar do outro para tentar compreender seus sentimentos sem necessariamente experimentar as mesmas emoções. A simpatia, ao contrário, é vivenciar as emoções do outro sem obrigatoriamente se colocar no lugar dele. A

simpatia é um contágio de emoções, sendo o riso em cadeia um exemplo típico. Da mesma maneira que podemos chorar ao ver alguém chorando, mesmo sem saber o motivo disso. A empatia pode alimentar a simpatia, mas esta não é uma consequência necessária, acrescenta Élisabeth Pacherie, filósofa do Instituto francês Jean-Nicod. Compreender o sofrimento ou a alegria que ele sente, se colocando no lugar do outro, não implica o desejo de ajudá-lo. “O objeto da empatia é a compreensão, e o objeto da simpatia é o bem-estar do outro. Em resumo, a empatia é um modo de conhecimento e a simpatia, um modo de encontro com o outro”, define o psicólogo americano Lauren Wispe. No entanto, o que os pesquisadores franceses ou mesmo o escritor Roman Krznaric perceberam é que quando temos um olhar mais empático passamos a conhecer melhor o outro, o mundo e também a nós mesmos. Em uma sociedade egocêntrica, em que cada um se preocupa apenas consigo mesmo, desenvolver essa qualidade pode ser um caminho para um futuro de relações mais generosas e com mais afeto. Krznaric aponta algumas maneiras de fazer isso no nosso dia a dia. Um exercício poderoso é puxar conversa com um desconhecido. “Concentre-se não em trivialidades como o tempo ou os esportes, mas em temas importantes como as prioridades na vida, as ideias, esperanças e sonhos. Isso significa não excluir ninguém: todas as pessoas, não importa que aparência tenham ou de onde venham, podem ser um singular e cativante interlocutor, se você conseguir encontrar uma maneira gentil de ter acesso à sua alma”, escreve Krznaric. “Conversar com estranhos pode ser uma aventura em termos de aprendizado pessoal e compreensão, uma maneira de desafiar suas ideias e descobrir novas. Em outras palavras, de compreender que a conversa pode ser boa para você.” Para finalizar, Krznaric dá um último motivo para


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que eu e você comecemos a desenvolver a empatia já: “O hábito de empatizar pode criar laços humanos que fazem valer a pena viver. Nosso bem-estar depende de sairmos do nosso próprio ego e entrarmos na vida de outros. Os prazeres que isso proporciona são reais e profundos. Sem isso somos seres menores, e apenas parte do que poderíamos ser”.

Apenas a empatia não é suficiente É uma alegria ouvir mais e mais a palavra “empatia”. No entanto, ela tende a ser usada como um guarda-chuva para coisas bem diferentes, às vezes como se fosse algo completo por si só. Com essa linguagem vaga, fica mais difícil reconhecer os processos internos que queremos estimular quando falamos em empatia. Por isso recomendo a leitura de A revolução do altruísmo, do francês Matthieu Ricard (doutor em genética molecular, fotógrafo e monge budista, com grande experiência em integrar neurociência e métodos contemplativos em primeira pessoa), que acabou de ser publicado no Brasil pela Palas Athena. Para evidenciar o limite da empatia, Matthieu pesquisou o fenômeno do burnout, exaustão emocional muito comum entre cuidadores que lidam diariamente com o sofrimento, como profissionais de saúde e agentes sociais. Junto com a psicóloga alemã Tania Singer (diretora de neurociência social no Instituto Max Planck) e usando ressonância magnética funcional para gerar imagens em tempo real da atividade do cérebro, Matthieu sentiu apenas empatia por uma hora e meia, visualizando cenas de pessoas em sofrimento extremo. O resultado de isolar a empatia foi cansaço, mal-estar, sensação de impotência e um impulso de se distanciar. Logo depois, mantendo o mesmo contato empático com o sofrimento, assim que ele introduziu a prática de compaixão, sua mente se transformou: a aflição se dissipou e surgiu disposição amorosa para ajudar. Eles descobriram que, de fato, as re-

des neuronais ativadas pela empatia são bem diferentes das ativadas pela compaixão. É uma alegria ouvir mais e mais a palavra “empatia”. No entanto, ela tende a ser usada como um guarda-chuva para coisas bem diferentes, às vezes como se fosse algo completo por si só. Com essa linguagem vaga, fica mais difícil reconhecer os processos internos que queremos estimular quando falamos em empatia. Por isso recomendo a leitura de A revolução do altruísmo, do francês Matthieu Ricard (doutor em genética molecular, fotógrafo e monge budista, com grande experiência em integrar neurociência e métodos contemplativos em primeira pessoa), que acabou de ser publicado no Brasil pela Palas Athena. Mais do que pela linguagem, é pelo olhar que a empatia se manifesta em nós. Graças aos avanços dos estudos das imagens do cérebro, sabe-se que o contato do olhar ativa a amígdala (região do cérebro onde se processam algumas sensações) e todo o sistema de emoções. Portanto, não é uma questão de definição teórica, mas de processos que podemos praticar. Empatia é a capacidade de entrar no mundo dos outros (via imaginação cognitiva ou ressonância afetiva). Amor é o desejo de que todos os seres sejam felizes e encontrem as causas da felicidade — inseparável do altruísmo, a motivação de valorizar e beneficiar os outros. E compaixão é o desejo de que todos os seres não sofram e superem as causas do sofrimento — como diz Matthieu, quando o amor altruísta encontra o sofrimento do outro por meio da empatia, ele se torna compaixão. Para cultivar o altruísmo, é crucial ampliar a capacidade de não se perturbar, de se manter calmo e estável em meio a uma situação com grande potencial aflitivo. Precisamos também de sabedoria ou clareza sobre a realidade, de modo a entender como o sofrimento se constrói e quais métodos podem liberá-lo. Às vezes ajudamos bem mais quando oferecemos o que o outro precisa, não o que diz querer.


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O hábito de empatizar pode criar laços humanos que fazem valer a pena viver.


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Tema:

Coluna Autora:

Liane Alves Fotografia:

Raphael Zulianello

Por uma vida mais doce Saiba como espalhar pequenas doses de açúcar no seu dia a dia e, assim, transformá-lo em algo mais leve, tranquilo e feliz.

O vento frio é cortante, e o som da banda de rock, altíssimo e metálico. O limo no chão de tijolos aparentes faz escorregar na entrada do pequeno teatro e, dentro dele, a máquina de gelo seco mistura cores, luzes e formas. Tudo parece desconfortável e úmido nessa manhã gélida de sábado, quando o espaço do antigo bairro do Ipiranga, em São Paulo, se assemelha mais ao East Village de Nova York. Porém, raras vezes na vida me senti rodeada de demonstrações de afeto tão doces. É o lançamento do Projeto jam, que procura unir e apoiar os músicos roqueiros de vários conjuntos dispersos pela cidade, das garage bands aos grupos iniciantes que não têm onde tocar. Como nas jam sessions americanas, os integrantes das bandas se revezam nas apresentações desse teatro, que fica nos fundos do casarão da tradutora e poeta concretista paulista Maria José de Carvalho, que o cedeu à prefeitura para que beneficiasse outros artistas após a sua morte. Gesto doce o dela, que se somou a outros exemplos amorosos daquele dia: quem recebe o dinheiro dos ingressos é o pai de um dos integrantes de uma banda; quem fez o molho dos sanduíches de carne-louca, vendidos no local, foi a avó. O pai de outro solista tira as fotos e um primo querido faz os vídeos. Todos cooperam e enfrentam o desconforto sem maiores problemas para que o projeto vingue, se


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Jam Session no bar Blue Bird em Florianópolis, Santa Catarina

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torne economicamente viável e realmente possa apoiar os jovens músicos. Hoje, mais estruturada, a iniciativa dos integrantes da banda EZDP incentiva esses encontros em outros locais da capital paulista. Mas agradecem à doçura do empurrão inicial. E aqui vai a primeira lição que aprendi ao realizar esta matéria: nem sempre o que é quentinho, confortável e aconchegante para o corpo é o que é doce para a alma. E vice-versa. E que é sábio perceber o que é mais importante para nós em um determinado momento. Outros aprendizados me aguardariam nesse caminho de como tornar a vida mais doce. E que esse processo pode começar já, no instante em que terminar a leitura deste artigo. Basta querer saborear com mais gosto a vida, não estar impermeável a ela e, paradoxalmente, sair da sua zona de conforto. Assim é a existência: um desafio, que pode exigir certo esforço, mudança de olhar e compromisso. Qual a recompensa? Ser mais vivo, alegre e participante.


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Tema:

Compartilhe Autor:

Carol T. Moré Fotografia:

Nir Arieli

Projeto Love It Forward Projeto envia amor por correio para quem está passando por um momento difícil

Já falamos na Alter sobre o projeto Word Rocks, no qual uma brasileira e seu filho espalham pedras com mensagens positivas pelo mundo. De uns tempos para cá, a gente soube de muita gente se interessou pela ideia e começou a deixar positividade por onde se passa, através da hashtag #wordrocks. Muitas vezes não paramos para pensar justamente que uma pequena ação como essa pode fazer uma enorme diferença na vida de uma pessoa. Recentemente, Carolina Areas, criadora do Word Rocks, quis ir além e criar uma corrente do bem ao se juntar com pessoas que tem o mesmo intuito que ela: levar um pouco mais de cor aos dias cinzas. Carol criou o que chama de ‘Love it Forward List’, uma pequena lista de pessoas que entram em ação, através de cartões/cartas, quando é preciso enviar um pouco de amor para alguém passando por um momento difícil. A ideia começou com pessoas nos Estados Unidos e, recentemente, vários brasileiros afora querem participar. Carol explica: “Quando fico sabendo de alguém que está passando por um momento difícil, eu aciono esta lista de pessoas e todo mundo manda uma lembrança, o que puder. Neste mundo em que se digita mais do que se escreve, o poder de um envelope recheado de palavras amorosas é incrível. Imagina, então, quando são vários? Um cartão, uma carta, um poema, um desenho, uma foto, uma lembrança… É tão fácil doar amor!” Alguns exemplos para entender melhor.


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Há um mês, Carol soube de uma menina de 4 anos que perdeu a irmã mais velha. Acionou a lista e ela recebeu um monte de coisas: cartinhas, brinquedo, desenhos de outras crianças, um anjinho de decoração. Depois soube de uma pessoa no Rio que estava com depressão. Sua mãe, que faz parte, passou na portaria e deixou uma caixinha cheia de brigadeiros e um cartão. Mesmo na era digital, o poder de receber uma coisa calorosa é imenso. Saber que as pessoas param meia hora do seu dia para se dedicar a escreverem para um desconhecido, faz um bem danado. Tanto para quem envia, quanto para quem recebe. Carol diz: “Eu mesma acabei de vir dos correios. Mandei uma pedra com um cartão para uma mãe

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americana que acabou de perder um dos filhos por suicídio. E uma cartinha para uma senhora no Brasil com depressão.”

Quer participar? É muito fácil: toda vez que a Carol tiver uma solicitação, um email será enviado. E se você estiver com tempo e disposição, envia a cartinha, a caixa, um mimo, o que puder para a pessoa. O fato de você estar na lista não significa que tenha que enviar algo a cada vez que uma solicitação for enviada. Que tal espalhar um pouco mais de amor ao próximo? Se quiser ser incluído, basta mandar umemail com o título #Love it Forward List para loveitforwardlist@gmail.com. Ajude a espalhar a ideia por aí!


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