´Ebó pra Oxum`

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Revisรฃo Carina Paccola Projeto grรกfico, textos e imagens Gabriela Canale Miola


Miola, Gabriela Canale. Ebó pra Oxum / Gabriela Canale Miola – 2020. 146p. ISBN 9798666028247 1.Fotografia 2.Oxum 3.Feminismo 4.Ecologia CDD 700



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Gabriela Canale Miola

EBÓ PRA OXUM

2020



A

bro os indícios deste livro.

Me deparo com uma lista de verbos no infinitivo: ouvir, viver, aprender, resistir, percorrer, sobrevoar, ler, ser. Verbo é um modo de ser que nos coloca em fluxo, conjugando tempos estendi- dos nos espaços. Aqui, os verbos estão no infinitivo. Imediatamente a chave de um tempo eternamente suspenso se ancora em minha leitura. Pronto, estou pronta. Em tempo: há tempo para as mulheres – o livro dedica suas palavras às mulheres e, nelas, as palavras engravidam sentidos em elos. Assim Gabriela tece o ebó, sua oferenda sacrificial para a abertura de sendas e atalhos e veredas e caminhos e trilhas. Abrir raízes e ventres é tarefa de entrega, do útero na casa - sem portas nem muros. E a prece me aparece como se fosse de todas para uma ou de uma em todas, dos singulares ao plural. Ebó se monta para oxum, orixá feminino reinando sobre as águas doces de um rio.


Será nesta geografia afetiva que Gabriela funda sua prece, calcada na experiência concreta em habitar um lugar assim - mesmo que temporariamente, exata- mente 7 dias – em uma casa inscrita na Mata Atlântica, sertão de Ubatumirim. A casa tem a arquitetura de uma oca: lugar coletivo onde o ar transpassa a si mesmo – venta e vento. Seria preciso ir até lá para sentir a casa na mata, a casa da mata. Ali, um rio ouve e murmura. Ali, um rio corta e massageia passagens. Ali, um rio bate e rebate ondas em fluxos desde a nascente até o braço maior do oceano. Ali, o texto tece espelhamentos invertidos, avesso às avessas entre estar e ser, entre real e ficção, entre observação e imaginário. E a memória é imemorial, extensiva feito pele. Foi nesta oca habitada por 13 mulheres, abertas às águas aéreas que não param de gemer suas curvas e rebatimentos em pedras, foi ali que Gabriela inscreveu mundos. As palavras de Gabriela rasgam enunciados, desejantes de caminhos que se ofereçam como infindos horizontes.


Mas horizontes bem próximos de cada passo, horizontes que avançam, alçando direções a uma ideia de futuro. Assim os capítulos-enunciados vão se desfolhando em tecidos caleidoscópicos , já que lidos em superfície luminosa – gota a gota deslizam pelas bordas das folhas nativas da mata barroca e tropical, agora palavras ancoradas, transitória- mente, nas folhas virtuais, igualmente deslizantes. E o texto de Gabriela cintila assim: do quente ao úmido; do miúdo ao distante; do aqui ao atemporal. E vice versa. Pois foi num dos encontros imersivos da plataforma “Bagagem: caminhada como prática poética”, que tenho o prazer imenso de coordenar, este realizado no Sertão de Ubatumirim, litoral paulista, julho de 2015, que encontro este corpo cheio de seres e entidades que é feito de Gabriela, feito de Canale, feito de Miola, feito de fatos e fados e fardos. Receber esta ação de Gabriela, em forma de livro, foi uma surpresa imensa: res- sonâncias e ecos de algo já amalgamado que Bagagem apenas fez ecoar. Edith Derdyk



Para as mulheres da casa sem portas (e suas mĂŁes, irmĂŁs e filhas)


“Afoxé leî, leî, leô”






E

u chamo todas as mulheres que já

foram deixadas ao tempo, ao vento, ao relento, ao passado, ao instante, ao nunca. As conclamo a me acalentar. As peço pra me despir e banhar, zelosas como mães, pacientes como mestres ancestrais. Eu peço calmamente para que limpem de mim a falta do que nunca foi meu. Peço que retirem todo apego do que hoje é ausente. Peço que me lavem com uma massa densa - forte, dos sonhos e dos símbolos - para retirar de mim as faltas que exibo e também as que escondo.


Peço que dissolvam o relento e o nunca junto às cinzas e à gordura, misturadas à água. Às cinzas. À água. Se juntarão toda dependência de Gênero Humano.


À água. Minha fé. Meu remédio. Meu veneno. Peço que as mulheres expliquem a meticulosa desconstrução das muralhas transparentes, a dissolução dos isolamentos impostos, o fim de todo degredo.


Peço que desenhem no chão o mapa sem fronteiras. E que nele possamos brincar. Peço às mulheres que me dêem a água que eu me- reço. Peço que aqueçam meus pés. Peço que me batizem como se eu fosse uma força vital de sabedoria. Que me banhem de calma.


Peço que me deixem chorar e que entendam esta brutalidade. Peço que limpem minhas unhas, meus cílios, que me acariciem os lábios descansados.






Peço que não digam nada. Nunca. Peço que apaziguem os silêncios. Quando eu estiver plenamente banhada, peço que tragam Eros para conversar comigo. Peço que o retirem do barco de Caronte e o rece- bam com gentileza. Peço que elas sejam ternas com Eros, ternas e sábias, ternas e maternas.


Peço que tragam Eros ao meu abraço. Peço que elas vigiem nosso encontro e nada enten- dam. Peço que fiquem comigo enquanto o perdôo. E, quando formos capazes de nos olhar profunda- mente sem t(r)emer, que o levem até os limites da visão.


Então peço que me embrulhem em tecido branco, suave, mas antes protejam todos os meus chacras. Peço que liberem a água que me banhou. Limpa, completamente limpa, peço que permitam que eu ande lentamente. Peço que elas, as mulheres que sobreviveram aos homens que se foram, cubram meu útero vazio com amêndoas e pólen de flores brancas e gelatinosas.


Peço que me deixem sentar sob o sol e que me ensinem a respirar. Peço que cantem músicas que eu nunca ouvi, sons que me acalmem. Peço que desarmem minha desconfiança e me relaxem para que eu seja forte o sufi- ciente para me defender sem resistir. Peço que cantem até que eu durma. Peço que não estejam mais lá quando eu acordar.



Querida Estrela, Existem 13 mulheres. Vivem, todas e cada uma, em uma casa sem portas. Elas dizem teu nome e olham pra cima. Existe, também, um gato. Vive ele, e tão somente ele, entre as mulheres da casa sem portas. O gato ignora a palavra “porta”. Sua ignorância de léxico é oposta à sua potência de pulos e pulgas.




Temos dificuldade de

amar a mariposa na mesma matemรกtica com que

amamos

os gatos.





NĂłs, as mulheres da casa sem portas, recolhemos galhos e gravetos. Juntamos suas pontas. De perto vemos as tramas dos galhos. De longe avistamos nosso ninho. Estamos costurando de clarezas o mundo pro filho da Ana chegar.





Desentender Ê o começo do hoje. Ouvir o rio emprestando das pedras a aspereza. Deitar na margem reconhecendo o leito. Perguntar: Quando dorme o rio? Quando descansa o rio da gravidade?



O rio ĂŠ teimoso de continuidades.





Como podemos nos oferecer ao rio sendo o que somos, sendo o rio?



Queremos abandonar nossa vontade de passar todos os minutos pedindo desculpas. Pela pressa, pela falta de tato, pelas assimetrias dolorosas. Pedir desculpas por existir entre os barulhos violentos da cidade. Por comer animais mortos, alimentos transgênicos, sementes que não brotarão. Pedir desculpas por não conseguir negociar com a síndica a separação do lixo, o trans- porte público com o prefeito, a educação generosa com o ministro, as trocas mais ho- nestas com os presidentes, a clareza com os gerentes. Pedir desculpas por ter mais dinheiro que muita gente. Por ter menos dinheiro que tanta gente.



Por sentir raiva do cimento, da energia e da hidrelétrica e, ao mesmo tempo, de precisar disso tudo. Pelo dia mal dormido, pela xícara suja de café, pela nossa brutal ignorância. Queremos nos desculpar pela atroz velocidade que nos cega. Pedir desculpas pela pressa, sobretudo por ela.



A culpa ĂŠ nossa desculpa pra nunca conseguir descansar em paz.


A linha mais feliz entre dois pontos Ê o arco. Deitar, balançar e sonhar na geometria Guarani Ê nossa festa secreta.





Voam as cadeiras bocejam as espreguiçadeiras. Tudo Ê sono leve no cair da tarde.




Deram boa noite e apagaram a lâmpada. Seguiram madrugada adentro ouvindo o rio roçar as pedras. Sem luz, o silêncio se esconde mais forte.





Quando a Ăşltima mulher dormiu \ OXUM cantou para a casa sem portas \ sonhar com os bichos.




Para onde vĂŁo os medos das meninas de cabelos grisalhos?




Carochinha e outras ideologias perigosas Na casa sem portas as mulheres lembram que ordem e progresso foi o conto de fadas mais infeliz que tiveram que decorar.




A vida Ê a gente enganando a gravidade pra poder dançar.




Bandeira Branca pra Estrela da Sorte.


Tem um pedaço da gente que fica na cachoeira entre a pedra e o liso do rio. deitado, olhando o ar. Esta permanência nossa que não quer voltar um dia vai morar no mar.




Quem nos ensinou a nadar?

Quem nos contou que boiar Ê uma forma disfarçada de voar?




OXUM ensina que basta seguir o cipó. Na vertical, enroscado nas plantas, o olho da gente dissolve as dúvidas da filosofia clássica e aprende a conhecer com a sabedoria ameríndia. Bandeira branca apontada pro Norte.




Nas profundezas descansaram nossas exaustĂľes sem nome.



Oxum ensina infinitas variações de gratidão.



O que

rio é coragem.

quer


Na Mata Atlântica a manhã é muito oferecida de verdes.




Bananeira Cipó Bromélia Imensidão Na Mata Atlântica tudo é um só.

.




As gavinhas desconhecem o nome que usamos para classificá-las. Ignorante das palavras rotacionam inclinam abraçam Abraçar com cuidados é o ensinamento das gavinhas



nOutra Histรณria Antes de Richard Long Monet ou Manet um tupi danรงava desenhava esculpia e amava aqui Sem moldura, palco, ou pedestal.




Nos tornamos lagarto formiga samambaia fungo. Derretemos nossos carbonos, adubamos palavras. Agora, aqui somos nosso prรณprio mapa.





O oposto da clorofila é o chão úmido.

















Estamos aprendendo a descolonizar nossos corpos. Precisamos nos irmanar das coisas. Queremos ser bananeira. Ser coisa ĂŠ nosso descobrimento. Queremos ser pessoas bananeiramente.



Nos descobrimos pedra. Somos inteireza de frestas. LentidĂŁo silenciosa na vastidĂŁo da Floresta.



A cidade morrerá. Tudo renascerá cipó para juntar outra vez chão e céu Sabedoria Guarani.



Respirar imensidão sem saber o alcance do mar. Ser a rocha que recebe a onda que recebe o vento que recebe o calor. Ser calor. Saber o calor de cada parte. Co- nhecer o corpo. Saber o nome das vísceras e entender para que servem. Servir às abelhas. Nutrir de açucares sua majestade, a rainha do mar. Abraçar com o peito o gelado gela- do gelado da água que desce nos rios. Ser o rio. Ser subserviente ao plano de sua majesta- de, a rainha das águas doces. Orixá nossa mãe. Aquela que resiste aos embates. Aque- la que escorre. E socorre quem da retidão da vida duvida.


Descobrir o isolamento dos bichos que dormem. Respeitar. Como saber respeitar? Como aprender a ser? A filosofia da pe- dra, ante o abismo. Antes da queda. A metafísica do cacto. A desconfiança da bromélia. O oco redondo que a paisagem abriu em nós para sempre. Para sempre este tempo que só há na fé. Crer nos abra- ços do tempo. Nas manhãs de buen día. Investigar muitas formas de abraçar uma mu- lher, sem que ela caia. Sem que ela ceda. Ceder à sedimentação dos musgos. Deitar a noite sem porquê algum. Ouvir o estalar da fogueira que já não existe. Mas persiste em imagem da nossa chegada aqui. Aqui.





De onde sairemos. De onde partiremos. Partilharemos. Partir daqui sabendo que o rio ressoa a pedra que ressoa o rio que ressoa a pedra. E que pedra, cada um leva, escolhe e carrega a sua. E a ela devota seu instante. Como devotam as folhas Ă luz, e a ela respondem se transformando. E o fim acontece. Mesmo que nenhuma de nĂłs queira. E o fim ĂŠ bonito, sabe? Como a primeira vez que nos vimos e sorrimos, com a rebeldia potente da sinceridade.



As coisas estão refazendo suas existências. Um novo cometa se aproxima. A lua abre a estrada. É tempo de ir e rir. É tempo de recomeçar. .


Sobre a autora Gabriela Canale Miola é a artista e educadora. Graduada em Comunicação Social e mestre em Letras - Estudos Literários pela Universida- de Estadual de Londrina; doutora em Letras Teoria Literária e Lite- ratura Comparada pela Universida- de de São Paulo.



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