Luísa dos Ventos

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Luisa dos Ventos


Gabriela Canale

LUISA DOS VENTOS

Foz do Iguaรงu, 2015.


Para Luisa B. M.


***

Quando conheci Luisa nós duas tínhamos a mesma idade de sonho. Ela ampliava sua coleção de mistérios e eu começava a minha de pedras despreciosas.


Luisa era muito interessada em mistĂŠrios. Dizia que um dia descobriria cada um e todos mistĂŠrios do universo.


Luisa descobriu que a vida é um acidente. Foi quando viu se romper um ovo bem pequeninho. De dentro dele saiu um bichinho minúsculo, do tamanho do mindinho de um bebê. Na hora Luisa pensou: “os ovos são casinhas temporárias muito perfeitinhas”. Quase sem penas, frágil e cego o bichinho saiu do ovinho com o corpinho perfeito e com uma garganta potente – logo se pôs a piar bem alto. Luisa achou que ele gritava: sou um beijaflor, estou vivo!


Luisa era exímia observadora de estrelas. Assistia ao céu todas as noites. Na sua primeira chuva de meteoros decidiu que a vida na Terra veio voando junto com uma estrela cadente. Sentiu que a vida que bombeava seu coração vinha do ventre das galáxias. Nesse dia se apaixonou pela astronomia.


Quando aprendeu que podia mudar de opiniĂŁo sempre que quisesse, Luisa encontrou a palavra LIBERDADE.


Encontrei Luisa muito concentrada numa tarde de verão. Ela desenhava com cuidado usando lápis grafite e de cor. Perguntei quem era a menina colorida do desenho. Ela me disse que era Nina, a menina que sabia dizer 'Sim' e 'Não'. Tentei investigar mais sobre a personagem nova que Luisa criara, mas ele estava tão concentrada que preferi ficar na minha. Quando Luisa desenha o tempo e eu respeitamos seus silêncios.


Luísa descobriu que o tempo descasca as árvores. Me contou que quando isso acontecia apareciam passagens-secretas nos troncos. Ela enfiava os dedinhos em todos os buracos que alcançava, e girava, como se fossem pequenas chaves. Luisa me disse que tinha aprendido a abrir passagens-secretas com um amigo da tribo dos Khraó. Ela disse que conheceu seu amigo índio quando ele saiu de uma árvore gigante e cheia de flores. Ele falava palavras muito difíceis, contou Luisa. A única coisa que ela havia entendido é que o menino conseguia entrar e sair das árvores e que dentro delas ficava um lugar chamado Alemanha.


Desde então ela pesquisa com o dedo quais as árvores poderão levá-la pra Berlim.


LuĂ­sa acreditava no canto dos sabiĂĄs como aqueles que creem nas Aves Marias.


Luísa descobriu que o mamute é o tatatatatatatataravô do elefante. E que a tatatatatatatatatataravó da girafa tinha o pescoço pequenininho. Ela pensou, pensou, pensou...e descobriu que o tempo trabalha junto com a adaptação para esculpir os bichos.


Quando completou 8 anos Luisa decidiu ser astronauta. Seu trabalho era construir pequenos foguetes de papelĂŁo e tinta guache. Ficou contrariada quando descobriu que um ano equivale a uma volta inteira em torno do sol e 365,4 voltas da Terra ao redor de si mesma. Luisa queria que os anos fossem muito mais compridos. Ficou obcecada com a ideia de que a Terra deveria dar voltas maiores ao redor do Sol. Ela me disse que assim os dias passariam mais devagar. LuĂ­sa queria ser a astronauta que reinventaria o tempo.


Luisa colou muitas folhas brancas até formar uma grande tira de papel. Passou algum tempo desenhando, rabiscando, cortando. Quando terminou foi correndo contar que tinha inventado uma máquina de teletransporte. Perguntei para onde ela iria. Luisa disse que queria ir até o Japão, mas estava triste porque a viagem era muito comprida e, por isso, tinha que colar outras muitas folhas de papel. O que você vai fazer lá, perguntei curiosa. Ela me disse que queria comer sushi e descobrir como conseguiria voltar já que ela não sabia inventar uma máquina de teletransporte com passagm de volta.


O polvo é o bicho mais sábio, Luisa descobriu depois de ganhar um baita abraço.


Luisa descobriu que os peixes namoram sem se encostar. Os sapos, mais ou menos parecido. Ela achou curioso e bastante higiênico e muito sem graça.


Luisa perseguiu um caracol. Depois de uma semana de insistência descobriu o mesmo que Einstein levou décadas pra teorizar: o tempo é mesmo muito relativo.


Luisa nascera com sabedoria de alguns mistérios. Nos dias agitados se concentrava na respiração para dormir bem. Sabia que uma ótima noite de sono colocaria tudo no seu devido tempo.


Um dia Luisa me contou que tinha uma amiga que pensava em fugir de casa. Eu perguntei que conselho Luisa lhe dera. Ela me disse que demorou pra entender o que dizer a amiga, e que talvez ainda demorasse mais, mas que precisava fazer alguma coisa mesmo sem entender. Luísa pegou um papel e uns lápis e desenhou várias flechas, entradas e saídas. Era um plano de fuga pra sua amiga. Me disse que todas as saídas davam direto para dentro do seu quarto. Satisfeita, contou que assim sua amiga estaria segura sempre que fugisse. Foi a segunda vez que me falou sobre Nina, a menina que sabia dizer “Sim” e “Não”.


Não conheceu seu bisavó paterno. Nem precisava, guardava nos sorrisos suas sabedorias e na garalhada a sapequice que ele lhe teria ensinado. Tem coisas que as pessoas aprendem de nascença, ela dizia.


Ganhou um microscópio eletrônico. Acho divertido por algumas horas. Depois disse que queria ver as coisas ainda mais de perto. Luísa não se conformava em não conseguir enxergar as coisas tão de perto, o suficiente para ver que nada fica completamente parado. Ela era ciente da engenhosidade volátil do mundo.


Seu cachorrinho não acordou. Naquele dia Luísa descobriu que algumas coisas a gente demora a entender. Outras, nunca entenderá.


Ela planta as sementes de tudo que come. Luísa entende que nas sementes está a alma da mata. Luísa salvará a floresta.


Descobriu um lugar mĂĄgico. Tirou fĂŠrias imaginĂĄrias nele para sempre.


Luísa era feita de paciências organizadas. Calculou com o coração quantos ventos eram necessários para formar uma onda. Refez suas contas e descobriu quantas saudades sumiam em um abraço. Luísa tinha o dom da álgebra das alegrias do peito.


Uma manhã encontrei Luísa calada e pensativa. Me disse que tinha visto uma fotografia de um pinguim. Perguntei o que tinha na imagem que a deixara tão preocupada. Ela contou que o bichinho era um filhote e que nunca terminaria sua viagem pelo Oceano. Luísa disse que o pinguinzinho tinha ficado preso em uma sacola plástica. Me olhou no fundo dos olhos e disse que nunca mais usaria nada plástico. E foi o que Luísa fez.


LuĂ­sa conhecia a sequĂŞncia das luas. Esperava a cheia para plantar seus maiores sonhos.


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