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Cartas para adiar o fim do mundo

A essência dessa ação mediativa é buscar interações entre múltiplas espécies, possibilitando percepções com a natureza pelo exercício da escrita reflexiva e poética. Por meio da escrita de cartas destinadas a entes não humanos, buscamos criar um espaço de sensibilização, em que os participantes puderam compartilhar suas memórias e entendimentos sobre o que é “natureza”. A proposta se fundamenta nas discussões abordadas por Ailton Krenak, convidado para inaugurar o 1°Ciclo Formativa.

O pensador e escritor, ao compartilhar as experiências dos povos Krenak e sua relação de intimidade com as árvores, as pedras, os rios e os lagos, convida-nos a pensar em como o modo de viver impulsionado pelo “antropoceno” nos afasta da perspectiva de “natureza” como companheira, levando-a não só à sua destruição como também à de nós mesmos.

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Em sua fala no webinário de abertura do 1° Ciclo Formativa, Ailton Krenak nos inspirou a criar uma ação mediativa que convoque adultos a se imaginarem como adubos, isto é, como entes férteis e regenerativos. Ao discorrer sobre a sociedade e sua relação com a natureza, Ailton considera a experiência social alienante e produtora de corpos adultos dissociados do mundo natural, cegos de sua própria construção. Krenak nos convida a virarmos adubo para uma sociedade que viva com a natureza e não contra ou dissociada dela.

Ele explica que, para além das ideias que foram socialmente construídas ao longo do século XX, hoje as instituições culturais são chamadas a cumprir uma nova função no campo da cultura, da arte e da produção de novos conhecimentos sobre a sociedade e sobre nós mesmos. Assim, Krenak nos convoca, como entes do Programa Educativa do Museu Nacional, a imaginar uma ação que convide corpos adultos a serem adubo para as gerações futuras, pensando um maior envolvimento da comunidade na aprendizagem.

Tem como imaginar experiências dialógicas e inspiradoras para trabalhar em um campo como esse do Programa Educativa e dos museus. Porque cada vez mais os museus são chamados a assumir para além daquelas ideias demarcadas de um museu que tínhamos até o século XX. Hoje os museus são convocados a cumprir outras funções no campo da cultura, no campo da arte, no campo da produção de novos conhecimentos sobre a sociedade, sobre nós. Então é muito interessante que, por exemplo, a gente imaginasse uma ação que convocasse esses corpos adultos, conscientemente, a gente quer convidar a ser adubo. (KRENAK, A. 2021)

Assim, surge a ação mediativa Cartas para adiar o fim do mundo, buscando promover a criação e a escrita de histórias com elementos da natureza. A ideia é simples: trata-se de uma grande troca de cartas em que cada um escreve uma correspondência para um destinatário não usual, um ente natural não humano (por exemplo, uma planta, uma pedra, um rio). Ao escrever essas cartas, contamos e criamos histórias, discutimos ideias e acessamos memórias que instiguem a reflexão sobre a natureza.

Como método da mediação cultural como pesquisa, antes de lançar a ação na esfera pública, experimentamos internamente uma oficina de escrita que fomentou um segundo momento interno, em que cada uma das mediadoras escreveu cartas às plantas que (elas, as mediadoras) representam no Programa. As cartas foram compartilhadas nas redes sociais e no site da Educativa como material de apoio e divulgação da ação. Esse processo interno de pesquisa e produção serviu para aprofundar as ideias, técnicas e propostas de exercício de escrita, que foram compartilhadas em uma Oficina de escrita criativa realizada no dia 28 de julho com os públicos interessados.9

Identificamos algumas etapas principais para a escrita das cartas:

• Escolha um(a) destinatário(a). Deve ser um ente natural não humano, de preferência algum elemento com que partilhe significados, talvez até histórias. Algo do nosso meio ambiente que instigue curiosidade, força

9. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vgZ_-KjEE3U

ou sabedoria, como o mar, uma árvore, uma floresta, uma planta, uma montanha, a areia da praia, a pedra no leito do rio onde aprendeu a nadar, a Chapada, um cogumelo, as formigas do quintal de sua avó. • Com a sua escolha em mente, feche os olhos. Conectese com uma memória ou uma história potente que envolva a(o) sua(seu) destinatária(o). Abra os olhos. • Escreva uma carta à(ao) sua(seu) destinatária(o). Ponha a memória para dialogar com a imaginação, reflita e discuta com sua(seu) destinatária(o) sobre como podemos participar mais ativamente da educação de nossas gerações futuras, ajudando a preparar o mundo que irão receber, e ajudando a pensar de que maneiras essas práticas podem mediar a aprendizagem por meio do contato com a “natureza”. • Sugerimos que você escreva, descreva, crie, induza as sensações que cada um desses pensamentos lhe causa.

Lembre-se que o corpo também é paisagem, também é “natureza”, também é matéria criativa e também se transforma. Se necessário, veja os materiais de apoio produzido pelo Programa Educativa, como as cartas das mediadoras e a oficina de escrita criativa.

Nossa equipe de mediadoras, ao receber as cartas da ação, fez uma leitura atenta e uma redistribuição cruzada dessas cartas. Ou seja, cada carta foi remetida a algum outro participante da ação, e cada participante também recebeu uma carta escrita por outra pessoa. Cada uma das cartas teve um trecho destacado e relacionado com obras do acervo do MuN em um vídeo de encerramento da ação. Além das cartas enviadas individualmente, duas professoras que participaram do encontro de apresentação e estímulo à experimentação da ação das cartas desenvolveram esta atividade com seus estudantes. Das 49 cartas que recebemos, 13 foram de estudantes da Escola CIEP 358 Alberto Pasqualini, em Nova Iguaçu (RJ), e 29 foram de estudantes da Escola Estadual Professor Leopoldo Miranda, em Diamantina (MG). Como desdobramento dessa ação, também produzimos dois episódios da Rádio Educativa (que detalhamos adiante) conversando com as professoras sobre a experimentação da atividade e as cartas dos estudantes.

Os textos Histórias para suspender o céu e Um breve ensaio sobre como escrever Cerrado trazem outras reflexões acerca da ação das cartas.

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