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: Arquiteturas para a intervenção
“Aquiteturas para a intervenção”: Projetos de intervenção no espaço de valor histórico regional em diversas escalas, sobre sítios arruinados, catalogados ou não, nos quais se é possível gerar novos usos e atividades, ao passo que lhes é respeitada a memória.
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na ruína da paisagem.
“Ruína da paisagem”: Lugar de importância para o desenvolvimento de uma civilização antiga, os Marsos, que lhe deram o nome respeitado até hoje. ‘Lugar’ como aquele de pertencimento, ancestralidade, cuja história tem o potencial de fazer parte da memória. Os remanescentes claros do lago, tanto nas cidades quanto nas características naturais e topográficas do território podem, como exercício de hipótese e de projetação, configurar o vale do Fucino como a ruína de uma paisagem, ao invés de simplesmente uma paisagem pontuada de ruínas. A intervenção, assim, qualifica-se como um sistema de projetos conectados diretamente com o dia-a-dia da planície e com a sua história.
POR QUE INTERVIR?
Um território antagônico
As paisagens de extensos territórios podem ser rapidamente transformadas de forma artificial urilizando-se da topografia para acomodar corpos d’água. Os lagos artificiais criados com o propósito de servirem às urbanizações, são gentilezas urbanas singulares que pontuam a história recente da arquitetura da paisagem. O que sucede, porém, quando um lago natural rodeado por cidades milenares, parte da identidade e da cultura de um território, é artificialmente drenado para servir às necessidades rurais de uma nação em desenvolvimento? Este trabalho analisa e intervém em um território antagônico, um lugar pertencente tanto ao mundo antigo quanto ao velho mundo, que se desenvoleu não para criar a paisagem hídrica de um novo centro urbano, mas para privar daqueles existentes a sua. Um territórito transfigurado, ruína de uma paisagem quase apagada da memória. A partir da narrativa milenar do lugar e do que o lago significou, insere-se intervenções construídas, equipamentos regionais sobre uma ruína natural. Compreende-se a grande escala para intervir na do Homem. E por que da Universidade de Brasília investigar tal paisagem histórica? O imaginário de Brasília é permeado pela presença do Lago Paranoá. Habitamos e estudamos uma cidade construída às margens de uma megaobra de infraestrutura, marca do Brasil moderno, da grande intervenção na paisagem direcionada ao conforto, abastecimento e lazer. Explorar um território essencialmente antagônico a esse modelo, tanto projetualmente como historicamente, é dar os primeiros passos em um território de desafios de investigação e possibilidades de projeto. É, acima de tudo, lugar de discussão do novo que desafia-se a intervir no antigo, na ruína. Vontade, também, exacerbada por um tipo pouco usual de ruína: a de uma paisagem toda. O território também é dotado de diversos possíveis objetos de análise que despertaram especial interesse para a realização deste trabalho. Algumas características se destacam à primeira vista na paisagem e morfologia do Fucino: Os grandes eixos que cortam a planície e organizam o território, nascidos do projeto de drenagem do lago ao final do século XIX; as manchas urbanas que pontuam e desenham o histórico de urbanização da região; as margens históricas, ainda muito bem visíveis e o novo planejamento interno da planície de vias, vilas agricolas e canais de irrigação. Sendo assim, em resumo, torna-se relevante intervir no Fucino pelas seguintes razões:
1. Trata-se de um território pouco explorado em termos projetuais, sobre o qual produziu-se uma literatura de arquitetura e urbanismo escassa, focada na publicação nacional e em análises geológicas e arqueológicas; 2. Paisagem antagônica ao moderno, transfigurada e ressignificada diversas vezes ao longo da história, cujo caráter morfológico extremo conta de forma singular a história da cidade através da ruína da paisagem; 3. Posição estratégica em um contexto geopolítico e histórico (internacional) e na produção de alimentos (nacional); 4. Interesse pessoal pela intervenção contemporânea no sítio arruinado e na análise territorial a partir da cartografia crítica. 5. Conjunto de características que despertam a vontade de compreender todo um território como uma só ruína e abrir à discussão sobre a ruína “da” paisagem, uma que é palco de intensa produção e troca entre as cidades que a circundam. (Ao lado) Diagramas cronológicos das megaobras hídricas antagônicas: Paranoá: a criação de um novo lago para uma cidade nova. Fucino: a drenagem de um lago histórico para responder a uma vontade milenar de exploração agrícola. Fonte: elaborados pelo autor.
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Fucino: camadas de mancha urbana, topografia e sitema viário.
0 2,5 5km
Fonte: camadas do Geoportal do Governo Regional de Abruzzo (2010). Cartografia realizada pelo autor.
Brasília: camada do sistema viário. Lago Paranoá em destaque.
0 2,5 5km
Fonte: camadas do Geoportal do Governo do Distrito Fedeal (SEDUH, 2022). Cartografia realizada pelo autor.
Sobreposição do Lago Paranoá sobre o Vale do Fucino. Semelhantes em área, os dois lagos se distribuem no território de maneira bastante distinta. O lago Paranoá, contudo, é mais profundo do que o Fucino jamais fora, já que em suas cheias mais severas, não ultrapassava os 30m de profundidade.
0 2,5 5km
Fonte: camadas do Geoportal do Governo Regional de Abruzzo (2010). Cartografia realizada pelo autor.
Sobreposição do desenho do Plano Piloto de Brasília, muito bem delinado pelo seu sistema viário, sobre a planície do Fucino. A distribuição urbana é o principal contraste, com centros muito densos separados entre si que circundam o vale.
0 2,5 5km
Fonte: camadas do Geoportal do Governo Regional de Abruzzo (2010). Cartografia realizada pelo autor.
Os grandes eixos cardeais, resquícios da megaobra de drenagem que hoje organizam o território. Fonte: Imagens de Gogle Earth (2018), manipuladas graficamente pelo autor.
As margens históricas, muito bem delimitadas pela separação entre áreas cultiváveis, paisagem natural e paisagem urbana e pontuadas pela intervenção milenar humana na região. Fonte: Imagens de Gogle Earth (2018), manipuladas graficamente pelo autor.
As manchas urbanas circundantes, desenhadas pelas margens históricas e freadas pela fronteira agrícola. Fonte: Imagens de Gogle Earth (2018), manipuladas graficamente pelo autor.
No antigo leito, a cuidadosa grelha das cooperativas e vilas agrícolas, um meticuloso planejamento de habitação rural, direcionado à produção e ao escoamento. Fonte: Imagens de Gogle Earth (2018), manipuladas graficamente pelo autor.
3. REFERÊNCIAS DE PROJETO
90 PONTOS SOBRE A CIDADE DE 900KM DO NILO
A análise e a intervenção genérica no território
Atelier Kempe Thill, 2011. Egito - El Monash.
Um projeto especulativo de intergração das cidades ao longo do Rio Nilo, que propõe, depois de extensos mapeamentos e análises territoriais, uma série de intervenções urbanas e de infra-estrutura. É relevante para este trabalho pela sua minuciosa metodologia de análise de um território como um todo e do excelente resultado de sua cartografia crítica e simplicidade do material de projeto, bem exemplificando uma possibilidade de produto final para a disciplina de TFG I. A escolha de um território como objeto de estudo e intervenção implica na dificuldade de apresentar propostas específicas em detalhe em um primeiro momento. Sendo assim, o caráter analítico dos mapeamentos e preliminares das proposições de intervenção fazem desse projeto um bom ponto de partida metodológico. Apresenta uma análise territorial textual que acompanha os mapeamentos, elencando 90 pontos sobre o território reconhecido em torno do Rio Nilo que, gradativamente, justificam a necessidade ali de um projeto de integração territorial. Alguns dos pontos se estruturam da seguinte forma, a exemplo:
“(...) 7. The Nile City is an accident. There was never the will or the wish to create it; it just happened. There is also no consciousness of it as a perceivable object because it is a biotope for 26,000,000 people – a zone whose residents hardly leave it and therefore cannot see it. The Nile City is a city without a name. 8.Inhabitants of the Nile City have no idea of the Nile City’s existence. They are not citizens of the Nile City. To introduce this revolutionary notion, a project is required. 9. It will be possible to produce difference within the valley only by beginning with a new awareness of its present homogeneity. (...)” (Atelier Kempe Thill, 2011).
Enquanto as breves análises apresentam o território, elas também começam a evidenciar as intenções de projeto. Por fim, um sistema de intervenções urbanas e infra-estruturais é criado para integrar o que se propõe como a “Cidade do Nilo”, que compreende boa parte da extensão do rio. Apesar da diferença na escala do território analisado e no caráter da intervenção, as similaridades aqui são importantes: ambos tratam de territórios de desenvolvimento histórico que remonta à antiguidade e que se desenvolveram na sociedade industrial como lugar desconexo e vítimas de gigantes obras de infra-estrutura. A barreira para integração neste trabalho é o Nilo, e no Fucino é a planície que resultou da drenagem do lago.
(Ao lado) Cartografia regional com as camadas de área agricultada, agricultável, mancha urbana e hidrografia. Fonte: Atelier Kempe Thill (2011).
(Acima) Recorte da cartografia da uma das margens férteis do Nilo. (Ao lado) Mapeamento sintético do sistema de intervenções. Fonte: Atelier Kempe Thill (2011).
(Acima) Pontes e canais de integração do Nilo, proposta genérica. (Ao lado) Padrão de urbanização proposto. Fonte: Atelier Kempe Thill (2011).
ÁREA ARQUEOLÓGICA DO CASTELO DE SÃO JORGE
A intervenção na ruína antiga.
João Carrilho da Graça, 2010. Lisboa, Portugal.
Primoroso exemplo da intervenção em sítios arqueológicos na arquitetura portuguesa, o projeto de Carrilho da Graça compreende o local e suas camadas históricas, alternando materialidades e diferentes graus de intervenção para cada. Nos alicerces mais preservados, estudou-se a possível forma inicial da casa, que foi reinterpretada com a pureza de um pavilhão que mais parece uma “projeção” do que ali existia. Sem se preocupar com a mesclagem à materialidade do lugar, o arquiteto assume a genericidade do objeto e dá seu destaque material em branco. Não compete com os alicerces e ruínas porque, apesar de desenhar sua possível forma inicial, não se confunde com ela. Tal gesto é intensificado pela soltura das paredes dos alicerces e o seu apoio em poucos pontos, possíveis através de um sistema estrutural em grandes treliças metálicas planas cobertas por placas de madeira e gesso pintadas em branco.
(Acima) Planta-baixa do pavilhão e perspetiva explodida total. (Ao lado) Ampliação construtiva do sistema de paredes duplas suspensas. Fonte: Carrilho da Graça Arquitectos (2011).
(Acima) Fotografia da fachada principal do pavilhão branco. (Ao lado) Pátio interior. Fonte: Acervo do autor (2022).