Gazeta Vargas - 98

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Gazeta Vargas • Edição 98 • Outubro de 2018

A 98º revista da Gazeta Vargas chega nesse segundo semestre de 2018 elucidando todo o quadro nacional que se encontra ao redor do aluno, do professor e do funcionário da Fundação Getulio Vargas. Em um ano de eleições, a constante dinâmica de incentivar um debate institucional sobre a horizontalidade brasileira é crucial para estabelecer um canal de diálogo efetivo e igualitário dentro de um ambiente estudantil. Você verá todo um trabalho para o aprimoramento do debate político dentro de uma instituição educacional frequentada por futuros advogados, economistas, administradores de empresa e administradores públicos. Em parceria com a entidade Estudos de Política em Pauta (EPEP), com o Diretório Acadêmico (DA) e com o Centro Acadêmico (CA), um grupo de estudantes decidiu dedicar seu tempo à árdua tarefa de entender o pensamento gvniano frente às contestações polêmicas que englobam o cenário político nacional. Todo este material que está em suas mãos foi feito com muita dedicação e reflexão para que o aluno, o professor e o funcionário presente dentro da “realidade FGV” tenham, para além do conhecimento sobre assuntos polêmicos, o costume de informatizar e discutir o espetáculo político-social neste cenário de descrença cidadã. Os espectadores, sejam eles de dentro ou de fora da realidade gvniana, precisam compreender a complexidade atual do eleitorado brasileiro antes que as cortinas se fechem e os atores se tornem pessoas de difícil acesso. Toda a equipe entrega a 98º Revista com o sentimento de dever cumprido e espera que esta revista fomente ainda mais o crescimento de iniciativas como essa.

Giuliana Garcia Paro

Presidente da Gazeta Vargas

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Gazeta Vargas • Edição 98 • Outubro de 2018

DENTRO DA CABEÇA DE UM GVNIANO Quem é o GVniano que no dia a dia você encontra nos corredores, elevadores, na biblioteca ou no DA? Quem está ao seu lado? Centenas de histórias, ideias e formas de pensar coexistem em cada ambiente e é incrível tentar imaginar o que justifica cada posicionamento dos indivíduos. Mais que isso, em muitos sentidos é simplesmente incompreensível, questões conscientes ou não influenciam diversas de nossas escolhas. As diferenças, contudo, não são meramente aleatórias. Indivíduos não se fazem por si e para si, suas opiniões são constantemente moldadas por uma coletividade; afinal, o mundo de cada pessoa é o mundo com a qual ela esteve em contato. Há posicionamentos que diferem enormemente levando em conta o curso ou a renda dos conjuntos. Assim como mesmo entre conjuntos similares existem diferentes posicionamentos, de modo que a unanimidade é rara e o que sobra são tendências. Ficará claro ao longo dos resultados desta pesquisa que as opiniões são heterogêneas, embora nossa lupa observe um estrato homogêneo se comparado à realidade social brasileira. É importante mostrar que temos similaridades e diferenças entre si, mas não se pode esquecer o maior dos contrastes: somos alunos da Fundação Getulio Vargas. Sem debate, não prosperamos. Sem leitura política, não mudamos. Fatos válidos para fora e para dentro dos muros da Bela Vista. O panorama político-social no Brasil parece mudar de semana em semana. Nós, alunos da instituição que formará grandes profissionais do futuro, quiçá da política brasileira, somos mais que um objeto investigativo. Somos um pressuposto na compreensão do que afeta o pensamento dos jovens estudantes e como eles se diferenciam de toda a sociedade brasileira. Trazemos comentários de especialistas, conteúdos educativos sobre as eleições e muitas reflexões sobre o ano de 2018. O jornalista, escritor e mineiro Fernando Sabino já dizia que a “democracia oportuniza a todos do mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um”. Proporcionar essa pesquisa traz crucial importância para o ambiente universitário e para o cenário nacional, onde a descrença na política instaura-se como cerne de qualquer debate. Mas compreender o ambiente em que vivemos, as ideias que nos circundam, será comparar o ponto de chegada de cada estudante da Fundação Getulio Vargas ao ponto de partida de cada cidadão comum brasileiro.

Giuliana Paro - Presidente da Gazeta Vargas Igor Baran - Presidente da EPEP

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EXPEDIENTE

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CURSOS & SEMESTRE

QUEM SÃO OS GEVENIANOS QUE PARTICIPARAM DA PESQUISA ELEITORAL RENDA FAMILIAR

GÊNERO

IDADE RELIGIÃO

ESCOLA NA QUAL CURSOU O ENSINO MÉDIO

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PÁTRIA AMADA, BRASIL: CONQUISTAREMOS COM BRAÇO FORTE? Por Giuliana Paro

Instabilidade, medo, ódio e fanatismo. Esses são alguns dos substantivos que acredito definirem o ano de 2018. Frente ao segundo turno mais importante da história depois da ditadura militar, o Brasil se divide drasticamente, alguns clamando por justiça, outros clamando por ideologia. Mas o que é fato é: O Brasil ainda é um só. É um país que grita na escuridão pelo aprimoramento da democracia que, desde 1988, comemorou seu prosseguimento constitucional. A verdade ficou escancarada diante de todos aqueles que, antes de 2018, nem mesmo se preocupavam em ler sobre política. É um presidente preso ou um governador condenado que deixaram de camuflar o verdadeiro povo brasileiro, nunca antes tão dividido. Se o nosso hino nacional grita “pelo povo em liberdade em raios fúlgidos”, a nossa bandeira então nunca teve um emblema tão inerente à nossa realidade. A sociedade clama por ordem e progresso. Cada cidadão que se sentiu enganado pelo presidente, pelo governador, pelo prefeito em que votou quer justiça. Mas não justiça do Estado Democrático de Direito. É justiça com sangue no olho e faca nas mãos. E então eu me pergunto: O que nos custará a ordem? O que nos custará o progresso? A resposta ainda é inexistente porque só o tempo nos dirá. Talvez muito. A nação brasileira está absolutamente desestabilizada. “Vou votar nesse porque no outro eu não voto” virou a frase mais comum dessas eleições. Escolher o “menos pior” dói. Dói porque não incita esperança e não dá perspectiva de mudança. E agora em pleno século XXI, em plena globalização extrema e tecnologia de comunicação avançada, enxergamos uma sociedade que espalha o ódio ainda mais rápido. Racismo, 12

bolsa família, intervenção militar, taxação de grandes fortunas, privatização da Petrobrás, legalização do aborto. Esses foram alguns dos temas escolhidos para fazermos a pesquisa dentro da FGV, uma vez que, para além de serem polêmicos, são alguns aspectos pelos quais as propostas dos governantes traçam. É difícil de enxergar que democracias são do povo, são da sociedade. Enxergar um governante como salvador da pátria é ilusão. Quem salva a pátria é a sociedade, é o voto; e por isso a democracia brasileira está falhando. Albert Einstein já clamava: “meu ideal político é a democracia, para que todo homem seja respeitado e nenhum venerado”. Pode ser que amanhã Jair Bolsonaro seja presidente. Mas também é possível que Fernando Haddad seja presidente. O que importa é que a premissa política de qualquer cidadão precisa e deve ser a sua liberdade. Nenhum ideal pode se sobrepor aos seus direitos humanos. O Brasil precisa dialogar sobre política, com força e discernimento, trazendo pertinência crítica e amor ao próximo. Acorda. O Brasil não é um paradoxo, uma dicotomia política e nem uma metáfora de heresia contemporânea. O Brasil é mais um país em crise, que mais que tudo agora precisa de seus princípios democráticos para superar o que já é fato: há corrupção, há pobreza, há fome, há racismo, há homofobia, há preconceito, há ódio, há muito temor, há insegurança. É olhar para cima e perceber que “conquistar com braço forte” não é sinônimo de conquistar com violência, é conquistar com sabedoria, com força e luta. Para além disso, lembrar de um Brasil formado por guerreiros que andam juntos, em defesa de todos. Absolutamente todos.

SEGUNDO TURNO: EM NOME DA PÁTRIA AMADA E DE ALTOS ÍNDICES DE REJEIÇÃO Por Giuliana Paro

A Gazeta Vargas entrevistou o professor Cláudio Couto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Com graduação em ciências sociais, mestrado em ciência política, e doutorado em ciência política, o professor concedeu aos alunos uma análise da conjuntura política no segundo turno para com os altos índices de rejeição de ambos os candidatos Jair Bolsonaro e Fernando Haddad.

Prof. Cláudio Couto

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PERGUNTA: Hoje tanto Fernando Haddad quanto Jair Bolsonaro possuem um alto índice de rejeição para o segundo turno, assim como tinham para o primeiro turno. O que o senhor acha que culminou na presença justamente de ambos, mesmo com alto índice de rejeição, no segundo turno? CLÁUDIO: “Vivemos um período de muita polarização política, o que explica, por um lado, a ascensão de Bolsonaro, que se apresenta como o contraponto do PT e da política tradicional como um todo. Por outro lado, o PT é ainda o mais organizado de nossos partidos políticos e conta com o apoio firme de algumas parcelas da sociedade: a esquerda mais engajada com o petismo e a população beneficiária (e saudosa) das políticas sociais e econômicas do governo Lula. Diante desse cenário, a popularidade de Lula catapultou a candidatura petista, mesmo depois da substituição dele por Fernando Haddad. Essa resiliência do PT teve um duplo efeito: primeiramente, fez com que as demais alternativas à esquerda fossem ofuscadas, inviabilizando sua ida para o segundo turno. Em segundo lugar, reforçou o espaço para um contraponto alicerçado no antipetismo – e Bolsonaro encarnou esse contraponto como nenhum outro candidato seria capaz na atual conjuntura, propícia à radicalização.” P: Em tempos de crise, o senhor acredita que a condenação em segunda instância do ex-presidente Lula tenha ocasionado no fortalecimento de Jair Bolsonaro e o enfraquecimento do PT? C: “Quando se anunciava a saída de Lula da disputa eleitoral, por conta da condenação em segunda instância, eu entendia que isso seria prejudicial para a candidatura de Bolsonaro, pois retiraria dele o principal contraponto do qual se nutria. Não creio que a avaliação estivesse incorreta. A questão é que, na prática, Lula não saiu da disputa política; pelo contrário, mesmo sem ser candidato, teve sua presença reforçada na cena pública pela mobilização 14

em torno de sua prisão, pela postergação do cancelamento de sua candidatura e pela estratégia de lhe colar à postulação de Fernando Haddad. O próprio slogan adotado pelo PT, “Haddad é Lula”, fez com que o ex-presidente não saísse de cena. Desse modo, se Lula não saía de cena, o contraponto a ele continuava válido. Essa situação ganhou ainda mais profundidade com a visita de Haddad ao ex-presidente logo no dia seguinte ao primeiro turno – além de enfraquecer o nome de Haddad como um candidato pelos seus próprios méritos. Mais do que ser visto como um “poste”, passou a ser tratado como um “fantoche”, o que é mortal eleitoralmente. Tanto é assim que o evento da visita foi explorado por Bolsonaro em sua propaganda eleitoral exaustivamente. Ademais, o fato do PT seguir afirmando o nome de Lula, um político preso em virtude de uma condenação por corrupção, contribuiu para reforçar a indignação de muitos eleitores com os escândalos protagonizados pelo partido. Mesmo que a corrupção não seja exclusividade do PT e mesmo que haja outros partidos mais contaminados do que ele, nenhuma outra agremiação defende os seus condenados por corrupção da forma como o PT o faz. Isso ofende ao senso comum do eleitorado, exacerbando o antipetismo. A campanha pelo “Lula Livre” é um movimento para convertidos; o mesmo vale para a insistência no nome de Lula como candidato real ou como candidato virtual. O resto do eleitorado ou é afugentado, ou simplesmente permanece alienado, sem disposição para votar no partido. P: Quais são os pilares que, na sua opinião, sustentam o sentimento antipetista hoje no Brasil? C: “São várias as causas do antipetismo, mas eu diria que há uma espiral de radicalização que o produziu da forma como hoje o vemos. Vamos começar do começo. Antes mesmo da eleição de Lula, havia uma rejeição e um temor ao PT advindo da imagem do

partido em sua fase juvenil, mais radical, quando se comportava mais como um movimento do que como um partido institucional. Era, assim, a agremiação sempre presente nas ruas e nas mobilizações da sociedade, negando a institucionalidade política da qual, apesar do discurso e do movimentismo, participava. Isso foi sendo mitigado aos poucos, na medida em que o partido passou a virar governo e precisou adequar-se à institucionalidade e moderar suas posições. É um movimento comum a partidos de esquerda historicamente e foi também descrito, num intervalo de tempo bem mais longo, pelos partidos socialdemocratas europeus. Discuto esse assunto no meu livro, O Desafio de ser governo.

Também, a ascensão social de amplos segmentos sociais incomodou alguns segmentos das camadas médias e altas, que perdiam seu lugar de distinção social assegurado por padrões de consumo diferenciado. O problema era menos econômico do que simbólico e pode ser sintetizado na metonímia de que “aeroporto virou rodoviária”. Esse ressentimento era vocalizado principalmente à boca miúda, entre os iguais, mas era pouco legítimo para ser defendido em público. Não se pode dizer, contudo, que tal sentimento era amplamente compartilhado pela maior parte das classes médias e altas, como erroneamente supôs a Marilena Chauí em sua famigerada invectiva contra a “classe média”.

Apesar dessa moderação crescente, o PT seguiu sendo um partido de discurso radical na oposição a outros governos, como no caso da administração FHC. Ao fazer isso, espantava parte do eleitorado, mas reforçava sua imagem de a única e autêntica oposição para valer no país. Precisou moderar seu discurso novamente na disputa de 2002, quando surgiu o “Lulinha Paz e Amor” e foi redigida a “Carta ao Povo Brasileiro”, que era na verdade uma “Carta ao Mercado Financeiro”. Não obstante, o partido apavorou os mercados, com os efeitos da expectativa da vitória de Lula se fazendo sentir antes da eleição e mesmo já depois dela. Com o início do governo, a ida de Palocci para a Fazenda e de Meirelles para o Banco Central, as coisas foram se acalmando e permitiram até mesmo que o país chegasse ao grau de investimento.

A coisa ganhou outra dimensão quando advieram os escândalos de corrupção do PT, como o Mensalão e, depois, o Petrolão. Aí, mais do que uma oposição às políticas de cunho redistributivista, ou de esquerda, o que passou a se atacar foram práticas que o próprio partido condenava – mas que praticava. E aí veio o grande passo em falso do PT: a tentativa de se esquivar, afirmando se tratar de práticas comuns a todos os partidos, e a adoção de um discurso de polarização, denunciando as acusações ao partido como uma conspiração das elites – aquelas mesmas elites que o governo apoiava por meio de sua política econômica.

Porém, as políticas sociais do governo Lula, redistributivas e de combate à pobreza, produziram resistências. Segmentos mais conservadores das classes médias e altas rechaçavam tais políticas, como se podia notar nas condenações repetidas ao “assistencialismo” do Bolsa Família, apelidado por alguns de seus detratores como “Bolsa Esmola”.

Embora o discurso do PT sobre as elites, bem como o bordão de Lula – “Nunca antes na história deste país...” – não fossem radicais, como eles surgiam na forma de uma defesa do partido e do governo contra acusações de malfeitos, foram recebidos negativamente. Daí a leitura de que o partido fazia um discurso de “nós contra eles” e que isso era inaceitável. Polarizar é do jogo democrático, desde que não implique na defesa da eliminação do adversário; e isso o PT nunca fez. Mas a reação a esse discurso passou a ser a de que o PT deveria ser extirpado da vida nacional, inclusive tendo o registro partidário cassado – o que é grave, já 15


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que se trata de um partido que, bem ou mal, expressa as preferências de amplas parcelas da sociedade. O discurso antipetista assumiu então um tom bem mais radical do que o discurso polarizador do PT. Se este último não preconizava a eliminação do adversário, o primeiro pregava, estigmatizando o PT. Nada mais representativo disso do que a adoção de termos como “petralha” (equiparando automaticamente qualquer petista a um bandido) e “esquerdopata” (associando uma posição política legítima a uma patologia mental). A espiral de polarização, portanto, chegava à radicalização e iniciava um caminho problemático de ilegitimação do adversário. E o PT também contribuiu para reforçar essa situação, jamais fazendo uma autocrítica ou de fato punindo os membros do partido envolvidos em malfeitos. Isso só piorava as coisas. O governo Dilma, com sua política econômica desastrosa e com toda a incompetência política da presidenta, só pioraram as coisas, aumentando o fosso de radicalização. O ponto crucial na inflexão foram as manifestações de junho de 2013 (e as que lhe seguiram), que deram vida a uma direita que parecia adormecida para sempre depois da redemocratização. Costumo dizer que o MPL pariu o MBL. E não foi só o MBL – um movimento que se diz liberal, mas que pratica uma intolerância incompatível com o liberalismo –, mas toda uma nova direita pouco afeita aos valores liberais e democráticos da tolerância, do debate honesto e do tratamento do oponente como adversário, em vez de inimigo. O grau máximo dessa guinada à direita radicalizada é o bolsonarismo, nossa versão pósmoderna, tosca e iletrada do fascismo. E nada é mais antipetista do que isso. O PSDB, que havia sido ao antiPT durante tantos anos, perdeu espaço, pois não era suficientemente radical. O que é mais radical dentro do PSDB – esses assim chamados “cabeças pretas”, dentre os quais destaca-se o Dória – está mais próximo desse pseudo liberalismo intolerante, no máximo um mercadismo, que pouco tem a ver com as razões que 16

motivaram a criação do partido em 1988.” P: Vimos nessas eleições que a propaganda eleitoral foi uma estratégia arcaica, deixada no passado. As redes sociais, sobretudo o WhatsApp, foram mecanismos que se destacaram tanto no primeiro quanto agora no segundo turno. O senhor acha que isso foi determinante para o cenário polarizado que temos hoje? A mídia tradicional ainda tem um papel determinante para construir rejeição ou aceitação para algum candidato? A tendência mundial da extrema direita de deslegitimar a mídia tradicional (o “establishment”) tem a ver com uma estratégia de evitar essa influência? C: “Decerto estas eleições podem ser consideradas as primeiras, entre nós, nas quais a campanha pelas redes sociais na Internet superaram, em importância, a propaganda do horário eleitoral gratuito na TV e no rádio. Não fosse assim, Bolsonaro, com seus parcos 10 segundos no primeiro turno, não teria chegado aonde chegou; e Alckmin, com seu latifúndio de tempo, não teria ficado com a votação pífia que ficou. Mas o ambiente político que vivemos não foi construído apenas nas semanas que antecederam a eleição. Durante anos a mídia tradicional atuou e, pode-se dizer, contribuiu para criar o clima atual. Toda a cobertura sobre os escândalos de corrupção dos vários partidos – e em especial do PT – contribuiu para essa rejeição à política que hoje vemos, de que Bolsonaro (apesar de seus oito mandatos parlamentares e da família toda na política) é o principal beneficiário. Mas isso, como você bem observa, é algo de que essa direita intolerante, ou extrema-direita, tem-se beneficiado mundo afora. Ela é beneficiária do descrédito da política tradicional, dos partidos estabelecidos e da mídia que professa valores liberais – mesmo porque, trata-se de uma nova direita que, mesmo quando se autoproclama liberal, é na verdade antiliberal politicamente. No máximo, defende mercados mais livres – por isso eu a denomino mercadista, em vez de liberal.”

P: Sobre o futuro democrático no Brasil, como o senhor acha que esse segundo turno de 2018 entre dois candidatos com alto índice de rejeição pode influenciar governos posteriores? Como ficaria a instabilidade desses governos? C: “Creio que teremos tempos tenebrosos diante de nós, qualquer que seja o candidato vencedor. O eleito será visto como uma ameaça, ou como um governante ilegítimo, por uma grande parcela da sociedade. Essa radicalização do embate político veio para ficar e não sairá de cena tão cedo. Com Bolsonaro creio que a situação será ainda pior, já que ele mesmo não tem qualquer compromisso com a democracia, com o respeito a adversários políticos e com o Estado de direito. Por isso, temo que ele opere ativamente para correr a democracia e para solapá-la em prol de seu projeto político, atuando para exterminar seus adversários políticos e os instrumentos institucionais de controle. No caso de Haddad, eu não vejo tal ameaça, pois ele mesmo tem compromisso com a democracia e o PT, apesar de suas contradições e erros, é um partido de esquerda moderado, social democrata, que já governou o país por 12 anos sem ameaçar as instituições democráticas em qualquer momento. Mas creio que na eventualidade de um governo petista, o bolsonarismo atuaria para desestabilizá-lo, contribuindo para a corrosão da democracia mesmo na oposição. Em suma, não temos razões para sermos otimistas, seja qual for o desfecho da eleição presidencial.”

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(PSL). Ela postula uma série de acusações ao partido: afirma que o PT é o articulador principal dos esquemas de corrupção que ocorreram no passado; que o plano de governo do partido é administrar o país para tornálo “uma Venezuela”; que o partido deseja implantar o comunismo no Brasil; que o partido prega a “destruição dos valores cristãos” como a família e o casamento entre o homem e a mulher, entre outras de igual conteúdo. Essa narrativa repercutiu e foi fortemente aceita pelo eleitorado, ao menos por parte expressiva dele.

NARRATIVAS E BASTIÕES Por Felipe Takehara e Gabriel Freitas

Para se entender o fenômeno do voto útil, particularmente diverso nesta eleição, é preciso demonstrar primeiramente em qual contexto ele se deu e quais são as principais narrativas apresentadas ao eleitor. Em 27 de outubro de 2002, elegeu-se após três tentativas frustradas, Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT). Lula foi eleito com mais de 52 milhões de votos, vitória substancialmente expressiva contra seu adversário, o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) José Serra, cuja candidatura recebeu 33 milhões de votos. A partir daí, configuraram-se os principais pólos sobre os quais a política brasileira operaria: de um lado, o PT, representado na figura de Lula, configuraria o partido governante; de outro lado, o PSDB, representado pelos seus “caciques” – Alckmin, Serra, Neves, entre outros – seria o principal partido que comporia a oposição ao PT. O Partido dos Trabalhadores conseguiu eleger seus candidatos à presidência nas três eleições subsequentes: em 2006, Lula disputou a reeleição contra Geraldo Alckmin e venceu; em 2010, foi eleita Dilma Rousseff, em disputa contra José Serra; em 2014, Dilma reelegeu-se vencendo a candidatura de Aécio Neves. Durante os governos petistas, a economia brasileira cresceu razoavelmente, políticas públicas inclusivas foram criadas e ampliadas, e os indicadores sociais demonstravam que o país se desenvolvia de maneira aceitável. Contudo, a administração 18

petista também foi marcada por graves escândalos de corrupção, notadamente o “Mensalão” (2005), o “Petrolão” (2014), e os demais desdobramentos da Operação Lava Jato. Também houve a tomada de medidas econômicas equivocadas, principalmente a partir do governo de Dilma Rousseff, que protagonizaram papel importante nos desdobramentos da atual crise econômica. Essas medidas, somadas ao isolamento da presidente em relação ao Congresso, e a crescente insatisfação popular culminaram no impeachment de Dilma em 2016. Portanto, constata-se o seguinte: o Partido dos Trabalhadores administrou o país por um período razoavelmente extenso, iniciando com elevado nível de aprovação popular. Contudo, esta foi paulatinamente minada pelos acontecimentos envolvendo escândalos de corrupção e as medidas econômicas que desembocaram na atual crise. As manifestações de 2013 evidenciaram a crescente insatisfação popular não só diante dos problemas sociais e econômicos presentes no país, mas também diante do partido. A conjuntura atual é particular na política brasileira, pois o tradicional oponente ao Partido dos Trabalhadores, o PSDB, se encontra enfraquecido, carente do apoio que outrora possuía. Nesse contexto de insatisfação, surgiu uma narrativa que apresentava o PT como a causa dos principais problemas enfrentados pelo país. Essa narrativa foi explorada principalmente pelo candidato Jair Bolsonaro, candidato à presidência pelo Partido Social Liberal

Ao lado desta, coloca-se a narrativa que surgiu principalmente nos setores de esquerda e eleitores que rejeitam a candidatura Bolsonaro. Ela apresenta a vitória do candidato do PSL como a volta a um passado autoritário, de caráter fascista, caracterizado pela repressão aos movimentos sociais e o não reconhecimento dos direitos das minorias. Isto é sustentado pelas declarações polêmicas do candidato, como a caracterização do golpe militar de 1964 como uma “revolução”, a apologia à tortura, o desprezo em relação aos grupos LGBT, e vários comentários de caráter machista. Bolsonaro seria o déspota que destruiria todas as conquistas sociais acumuladas ao longo do período democrático – na verdade, a vitória do candidato representaria a própria derrocada da democracia brasileira. Observa-se, então, o eleitor mediano diante dessas narrativas, precariamente informado, insatisfeito e preocupado: o eleitor que não se atenta ao programa de governo e às propostas do seu candidato, mas sim à percepção que ele tem sobre este e como ele se encaixa nas narrativas – como o bastião que defenderá seus interesses, ou o bárbaro que os destruirá. Na polarização que o país se encontra, a maioria dos eleitores pode ser classificada a partir da narrativa que eles internalizam. Podem-se dividir os votos, então, em anti-PT e antiBolsonaro. Com relação aos primeiros, certamente o candidato do PSL captou a sua maioria, pois como foi dito anteriormente, ele foi o principal expoente da narrativa que acusava o PT de causador da crise e destruidor dos “valores tradicionais” brasileiros. Os votos anti-Bolsonaro foram principalmente direcionados ao candidato Fernando Haddad do PT, uma vez que o eleitor que rejeita o candidato do PSL percebeu o contínuo crescimento do petista nas pesquisas de intenção de voto e seu desempenho vitorioso num hipotético segundo turno contra Bolsonaro. É preciso dizer também que houve a tentativa de configurar uma candidatura “terceira via” que acolheria as posições anti-PT e anti-Bolsonaro. Seria esta a proposta de Ciro Gomes, que foi aceita em grande parte por setores da esquerda brasileira, mas não agregou votos suficientes para disputar o segundo turno. 19


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O QUE O GVNIANO PENSA SOBRE...

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A orientação do seu voto O segundo driver é a inflação. Este é outro conceito que não é de conhecimento amplo dos eleitores brasileiros. Embora sinta cotidianamente o impacto da inflação, o brasileiro tem a ideia geral de que “inflação alta é inflação ruim”. O que, evidentemente, é verdade. Mas o ponto é: o candidato que apelar com maior sensacionalismo para a queda da inflação é aquele que ganhará mais um ponto! Ele é Bolsonaro. O terceiro driver é o desemprego. E desse a população entende muito bem. O emprego tem um aspecto individual gritante. É ele que viabiliza a renda que comporá a restrição orçamentária mensal de um indivíduo. Beneficiando-se do alto nível de desemprego e da recessão brasileira, quando um candidato é assimilado como aquele que trará os empregos de volta – como Donald Trump foi nas eleições americanas ­– já sabem: ponto para ele! E ele, novamente, é Jair Bolsonaro.

Frente à crise de representatividade política no Brasil, é bastante difícil fundamentar a escolha de candidatos com ideais e convicções políticas – muito disso por conta de um ceticismo frente às instituições. Nesse sentido, os resultados acabam sendo os elementos responsáveis pela escolha eleitoral, especialmente os resultados na economia e no desenvolvimento do país, independentemente do que esses discursos carregam de carona.

o governo Dilma. A despeito de anos de amizade – especialmente vividos no governo Lula –, o mercado rompeu com o PT e não dá nenhum sinal de que almeja fazer as pazes.

Inserido no 2o turno das eleições presidenciais, o brasileiro é apresentado a duas opções: Fernando Haddad, representando o Partido dos Trabalhadores, e Jair Bolsonaro, representando o Partido Social Liberal.

O valor do dólar frente ao real é o indicador mais palpável e próximo ao eleitor. Mesmo que muitos não compreendam o que significa a alta ou a queda da moeda americana, assimilou-se à queda do dólar e a valorização da moeda nacional a fatores necessariamente positivos na economia. Se com Bolsonaro o dólar cai, ponto para ele!

A eleição de Haddad, a princípio, não apresenta um ambiente otimista para a economia brasileira após 22

Ao mesmo tempo, Bolsonaro é o candidato do mercado. A cada sinal de vitória do candidato a bolsa sobe, o dólar sofre queda. Chegamos aqui ao primeiro driver do voto do brasileiro: o dólar.

Poderíamos elencar infinitos drivers econômicos. Mas o que, afinal, explica a economia ser o principal motor do voto do indivíduo? O que explica algo que a população conhece de maneira superficial ser o guia do voto, das discussões acaloradas de Facebook e das discussões familiares? Em primeiro lugar, não se engane, o movimento não é uma jaboticaba! Há um movimento global de valorização de aspectos econômicos frente a outros. Um dos grandes juristas do mundo, Anthony Kronman, percebeu isso também.

jurídico-político e não econômico: as independências, o contrato social, as ideologias políticas, as guerras territoriais, os golpes de estado, as revoluções. O primeiro grande fato histórico de ordem econômica é a Crise de 1929 – pelo menos quando se trata de história geral. A economia nem sempre foi o principal driver do voto. Ela, enquanto ciência, na verdade, não teve um papel de protagonista na história por muito tempo. Ocorre que, em decorrência do sistema econômico em que vivemos, as balanças de poder foram modificadas e, finalmente, a economia alcançou os holofotes da história mundial. O argumento jurídico ou político, hoje, é fraco frente ao econômico. Em uma sociedade capitalista, o inconsciente coletivo dos indivíduos tem algumas máximas: eficiência é mais importante que legalidade e empregabilidade é mais importante que democracia. Não é uma curiosidade que nas eleições de 2014 os dois candidatos eram economistas de formação. Não é à toa que o Ministério da Fazenda é um tema de manchetes de jornal. Portanto, sendo o candidato do mercado, é mesmo uma surpresa Jair Bolsonaro ser o candidato liderando as pesquisas a despeito de seus discursos ofensivos, suas alusões a ditaduras e suas ameaças às liberdades individuais? Por Gabriel Dos Anjos e André Nogueira

O autor, em sua literatura, busca combater a preponderância recente que o economicismo recebeu, especialmente, frente ao direito. Uma breve análise histórica nos mostra que os feitos mais valorizados e mais discutidos na história mundial têm fundo 23


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Intervenção militar

Os militares tiraram proveito deste abismo entre os grupos de direita e de esquerda para instaurar um golpe de Estado, dando início aos vinte anos mais perversos e repletos de atrocidades da nação. O resultado foi nada mais, nada menos, que caótico. A censura tornou-se uma máxima e a liberdade de expressão virou história para contar. Artistas célebres e engajados como Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que recorreram à música para externalizar a indignação com o regime ditatorial, foram brutalmente torturados e exilados. Falar o que pensava neste período era declarar a própria sentença de morte.

Setembro de 1973. Ana Lídia Braga foi sequestrada em frente ao colégio em que estudava. Apareceu no dia seguinte, morta, enterrada em uma vala, nua e com marcas de cigarro pelo corpo. Ana foi estuprada e asfixiada. Ela tinha apenas 7 anos. Pendurados no pau-de-arara, opositores agonizavam ao serem eletrocutados. Furadeiras elétricas perfuravam os corpos. Cigarros queimavam órgãos genitais. Mulheres eram estupradas. Socos, pontapés e afogamentos eram apenas o início do pior pesadelo de muitos brasileiros que foram torturados ao longo do regime militar. O regime militar decretou 17 atos institucionais. De 1964 a 1985, o Brasil viveu um dos períodos mais autoritários e cruéis de sua história - já manchada, nos séculos anteriores, com o sangue de muitos. A ditadura militar foi implantada por meio de um golpe que já vinha sendo arquitetado desde os primeiros meses 24

do governo de João Goulart. As reformas de base propostas por Jango incomodavam os grupos mais conservadores da sociedade por conta de seu caráter mais esquerdista e igualitário, já que pretendiam a desapropriações de terras, a nacionalização das refinarias de petróleo, a reforma eleitoral garantindo o voto para analfabetos, entre outros. Diante disso, a direita conservadora viu-se solapada, aterrorizada com uma possível “ameaça comunista”, como ela, fortemente, afirmava existir. Acontece que este argumento pouco fundamentado não passou de uma estratégia para plantar o medo nos setores mais tradicionais da população e ganhar apoio e sustentação para a implantação do golpe. O medo do comunismo, devido ao cenário bipolar instituído pela Guerra Fria, acabou dando força ao lema ‘’o Brasil não será uma nova Cuba”, mostrando a repulsa por governos com viés comunista.

A democracia era uma memória vaga dos brasileiros, uma memória que trazia saudade e um desejo efervescente por direitos fundamentais. O cenário político polarizado atual do Brasil nos leva ao passado e traz à tona todos esses sentimentos mais uma vez. Jair Bolsonaro, candidato à presidência pelo PSL, é visto por muitos como uma ameaça a nossa democracia. Lidar com discursos de ódio e com falas que fazem apologia à ditadura são aspectos que fazem alguns eleitores pensarem duas vezes antes de escolher um candidato que fere a luta de minorias e, principalmente, os princípios dos direitos humanos. Ainda como deputado pelo PSC-RJ, em novembro de 2016, Bolsonaro afirmou em uma sessão do Conselho de Ética da Câmara que o coronel Carlos Brilhante Ustra - reconhecido na primeira instância da Justiça como torturador no período da ditadura militar - era um “herói brasileiro”. Exaltar um dos maiores torturadores desse período é fechar o olhos para um passado que envergonha a história brasileira, agindo assim com indiferença àquelas que, infelizmente, sofreram na mão desse sistema.

A dúvida que fica é se o regime ditatorial possui mesmo forças de voltar para o nosso país. Nos artigos 15 e 142 da Constituição Federal, está previsto que as forças armadas podem ser acionadas pelo presidente da República a pedido de um dos três poderes para a manutenção da lei e da ordem. Também vale lembrar que a Constituição estabelece no artigo 5° que é crime a ação de militares em oposição aos preceitos constitucionais e ao sistema democrático. Tendo isso em vista, pesquisadores alegam que não há uma possibilidade iminente de ocorrer um golpe militar. De qualquer forma, não pode-se descartar essa viabilidade, partindo do pressuposto de que muitos brasileiros ainda retomam o discurso da volta do militarismo no Brasil. A partir de um levantamento realizado pelo Instituto Paraná Pesquisas, divulgado no início de setembro, quase 70% dos brasileiros acreditam que as Forças Armadas apresentam um índice de corrupção menor do que nos outros órgãos do governo. Assim, a angústia de grande parte dos brasileiros gira em torno do posicionamento do candidato Jair Bolsonaro e de seus discursos de ódio que fazem apologia à ditadura. O medo cresce a cada dia porque o brasileiro não apagou suas memórias que os anos de 1964 a 1985 criaram. O sentimento de desespero em relação ao retrocesso e à possível morte da democracia sufoca uma parte da nação, que se vê de mãos atadas frente à conjuntura catastrófica. Quantas Anas Lídia serão necessárias para que a democracia nunca mais se encontre em uma posição de extrema vulnerabilidade? Por Isabella Grimaldi e Fernanda Sabino 25


Gazeta Vargas • Edição 98 • Outubro de 2018

Aborto Cotas Raciais

A Gazeta Vargas entrevistou duas membras do coletivo 20 de Novembro, Joyce Aparecida Araujo da Silva e Beatriz Moraes Santos. Recebemos opiniões sobre a presença de cotas raciais nas universidades brasileiras e como isso é encarado dentro da FGV. Lembrando que as entrevistas foram estritamente respondidas individualmente e, portanto, o posicionamento do coletivo não se justifica segundo as respostas tidas pelas entrevistadas. PERGUNTA: Na sua visão, o que é ser negro na Fundação Getulio Vargas? JOYCE: “É um desafio. Todas as instituições escolares que eu frequentei tinham a presença de pessoas negras e ir para a Fundação foi, no primeiro momento, um banho de solidão. Parece que tudo que se sente é em dobro; sempre preparada para um comentário “idiota” e preconceituoso que virá com um olhar 26

culpado e em seguida “foi mal”, isso quando a desculpa vier; algumas vezes pode ser encarada como uma fala qualquer. Desafio porque não sei decifrar os olhares que estou recebendo, na maioria das vezes. E resistindo todas as vezes, principalmente no começo do primeiro semestre quando algo na minha cabeça dizia que essa faculdade não era pra mim. É preciso ter um psicológico bem trabalhado e resistência.” P: Ao falarmos de Cotas raciais, o Brasil e muitos de seus cidadãos esbarram em conceitos como o da Meritocracia, onde colocar um aluno “em vantagem” sobre o outro é visto como um ato injusto, ilógico e não democrático. Como você enxerga essa visão? J: ”Exergo que é impossível se aplicar meritocracia no Brasil. A disputa já começa ao nascer: Uma criança branca nasce em berço de ouro, com todas as estruturas e regalias garantidas; a negra com a mãe 27


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sofrendo ao ser maltratada na mesa de parto e em seguida já começa a vida lutando e sobrevivendo em um lugar precário de se morar. Se vê que partimos de graus diferentes e sabemos também que a criança de berço de ouro, que nunca será seguida em lojas por ser negro, irá vencer. A maioria das crianças negras estão nas periferias estudando por ser obrigatório e muitas vezes largando, pois aquilo não faz sentido, elas vêem um ciclo repetitivo, na família, no qual ninguém entrou em faculdade alguma e estão todos “bem”. Cotas raciais não são vantagens, mas sim correção das desvantagens. Injusto é ver vários talentos negros perdidos, por não verem esperança no futuro que o estudo pode proporcionar.” P: Estando em ano de eleições, você enxerga o programa de cotas como prioridade dos governos? Se não, por que você acha que isso acontece? J: ”Acho que nos dois governos o programa de cotas não é uma prioridade. Haddad fez coisas importantes relacionadas a cotas raciais no seu mandato como prefeito, mas não sei se agora, como presidente, ele focará nessa questão em específico. Já Bolsonaro alegou publicamente (no programa Roda Vida) que não sumirá com elas, mas tentará diminui-las. Bolsonaro faz isso por causa do seu preconceito e falta de conhecimento do aspecto; está sendo guiado pela sua ignorância e trazendo uma gama de pessoas mais ignorantes ainda do assunto. Haddad, creio eu, parece estar mais preocupado com as cotas sociais e com o aumento de pessoas de vulnerabilidade econômica nas faculdades.” P: Hoje o Brasil possui a maior população afrodescendente do mundo, estando apenas atrás de um país propriamente africano, a Nigéria. Tal aspecto deveria representar uma maior predominância 28

de negros em todos os patamares e “andares” da sociedade, o que não acontece. Acoplado à isso, é evidente a predominância do racismo em todos os ambientes de trabalho e estudo no Brasil. Você acha que o racismo é o principal vilão e ponto de partida para a não presença significativa de negros nas universidades? Ele ainda tem muita força para impedir alunos de ingressarem no ensino superior e somente cotas raciais são capazes impedir isso J: ”Acho que a falta de representatividade é algo muito forte e que somada ao racismo faz um imenso estrago. Crianças e jovens negros não veem seus semelhantes em papéis importantes em novelas ou seriados. Num núcleo de atores de novela, a maioria de negros será numa favela e quando houver bandido, o chefe será negro. Não são mostradas “mocinhas” e “mocinhos” negros. Temos, por exemplo, a falta de informação sobre Milton Santos. Eu mesma só fui descobrir sobre ele ano passado, no meu último ano do ensino médio e acredito que meus colegas de classe ao menos sabiam que ele era negro, pois quase nunca nos são mostradas figuras importantes e acadêmicas negras. O racismo é uma barreira que impede o ingresso no ensino superior. As cotas raciais ajudam nisso, mas se faladas de maneira erradas, podem piorar a situação, como por exemplo diminuir alguém, usar a auto-estima de uma pessoa negra contra ela mesma, falando que sem esse empurrão, ela não sairia do lugar. É uma medida muito válida, desde que bem explicada.” P: Como você enxerga os resultados tidos nessa pesquisa dentro de uma faculdade como a FGV? Você acredita que a política de cotas deveria agir em universidades públicas e privadas da mesma forma? Algo deveria ser diferente?

J: ”Enxergo que a falta de posicionamento já é um posicionamento em si e que quem concorda parcialmente ou não concorda nem discorda, talvez seja super contra as cotas, mas não queria admitir isso para si mesmo, nem para os outros. Quando penso em um resultado desse numa faculdade como a GV, levo direto para o fato de que a entrada de negros em todas as universidades será o aumento de competitividade em muitos ramos e como isso afeta alunos, não só gvnianos, eles se sentem ameaçados com essa possibilidade. Acredito na política de cotas em universidades privadas e públicas, pois é um direito que um estudante negro tem para escolher qual será a melhor universidade para a sua formação e qual se encaixa melhor em seus planos. Seria como dar, finalmente, o benefício da dúvida para quem quase nunca o teve. Quando as cotas raciais fossem instaladas no âmbito privado, seria legal pensar que a maioria dos negros no Brasil são de classe econômica baixa e que um auxílio e bolsa deveriam ser uma garantia, algo que o ajudasse a se manter no ambiente acadêmico.”

Milton Almeida dos Santos foi um geógrafo brasileiro. Graduado em Direito, destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geografia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na década de 1970.

P: O que você entende por “branqueamento cultural”? O que fazer para alterá-lo? J: ”Entendo como sendo algo que prevê acabar com resíduos de etnias diferentes nas universidades e voltar aquilo que era nos séculos passados, onde só brancos estavam presentes. O resultado da pesquisa foi visto por mim como uma tentativa de “branqueamento cultural”. Para alterá-lo é importante a presença de negros nas universidades, nas grandes empresas e usando cotas raciais como medidas provisórias, só para criar uma boa base étnica nesses ambientes de difíceis acessos. Acredito também que é necessário um trabalho que comece desde cedo, na primeira infância com as crianças, em um intensivo trabalho com a auto-estima das crianças negras, principalmente; e trabalhar sobre a possibilidade de ingresso na academia e não deixar isso se perder no resto do ensino básico.” 29


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PERGUNTA: Na sua visão, o que é ser negro na Fundação Getúlio Vargas? BEATRIZ MORAES SANTOS: ”Ser negro na FGV é algo dual. Para as pessoas de fora, ser negro na FGV é algo como “nossa, você estuda na GV?!?’’. Na sua quebrada, é ser um exemplo e uma esperança para aqueles que te cercam. Para família é orgulho, esperança de ascensão e uma filha formada em uma grande faculdade. Ou seja, dentro da minha bolha, ser uma estudante da Fundação Getulio Vargas é algo grande em que eu não posso falhar. Quando eu penso a mesma frase: ‘’ser negro na FGV’’ na perspectiva da bolha GV, é algo completamente diferente. É se sentir diferente, é saber que você é 1% do alunato e que são poucas as pessoas que te entendem nesse ambiente. É se provar diariamente para os seguranças, para os alunos, e para a própria instituição. É entender que existe uma parcela de pessoas dentro da faculdade que não querem você ali, que acham que não é o seu lugar e ter dias e situações que te fazem acreditar – mesmo que rapidamente nisso. É saber que são poucos os ambientes que não são racistas no Brasil, e que a FGV não é um deles. É ter um caso de racismo escancarado na mídia e saber que ninguém lembra disso, que a indignação é passageira e que a instituição não puniu ninguém. É saber que pra você, uma faculdade brasileira ter apenas 40 alunxs negrxs é um absurdo, mas que para muitos, é um número grande e motivo de orgulho, porque há 10 anos, esse número se restringia a 4 pessoas. Ser negro na Fundação Getulio Vargas é resistir às adversidades e ao padrão que gritam na sua cara que esse espaço não te pertence. Por outro lado, é a resistência e a força de saber que não importa o espaço, os negros vão ocupar, mesmo que aos 30

poucos. Ser negro na GV é saber que não vai ser fácil, é admitir que eu vou conseguir e querer que mais negros tenham a oportunidade que eu estou tendo.”

P: Estando em ano de eleições, você enxerga o programa de cotas como prioridade dos governos? Se não, por que você acha que isso acontece?

P: Ao falarmos de Cotas raciais, o Brasil e muitos de seus cidadãos esbarram em conceitos como o da Meritocracia, onde colocar um aluno “em vantagem” sobre o outro é visto como um ato injusto, ilógico e não democrático. Como você enxerga essa visão?

B: ”Não enxergo. Em nenhum momento as políticas de ações afirmativas foram prioridade em campanhas eleitorais e não me lembro de ouvir algo do tipo em nenhum dos debates em que assisti. As cotas raciais estão naquela lista de assuntos que envolvem as minorias e só são citadas pelos candidatos quando os mesmos são diretamente questionados.

B: “Eu enxergo essa visão como algo completamente ignorante. Quando uma pessoa expõe esse tipo de argumento, fica claro que nós temos uma sociedade leiga quanto a questão da desigualdade racial. Mas eu não atrelo isso ao individual, desde pequenos somos ensinados que a abolição da escravatura era a única coisa que o Estado poderia fazer pela população negra, esquecendo completamente as políticas de inserção dos negros à sociedade, ao mercado de trabalho; o acesso igual a segurança, saúde e educação. Fomos ensinados a ver o branqueamento da população na Velha República como algo bom e a partir dai, o negro na história brasileira foi completamente apagado. Para muitos, após 1888, é como se tivéssemos sido inteiramente integrados e que a nossa história fosse uma só; isso não deixa de ser um grande erro/ingenuidade ou a negação de que existe uma grande desigualdade racial no Brasil e que no século XXI nada foi feito para diminuir isso. É complicado entender toda essa exclusão quando estrategicamente ela foi apagada dos livros populares ou quando são poucos os professores que abordam essa temática de forma crítica e reflexiva. O Estado nos moldou a ter esse pensamento, porque por anos esse também foi (ainda é) o pensamento do governo racial que temos. Negar que existe uma dívida histórica com a população negra, sempre marginalizada no Brasil, é negar a existência do racismo institucional e acreditar no mito da democracia racial.”

No momento político em que vivemos, com ideias conservadoras em alta e com o pensamento antiesquerda sendo tão forte, falar de cotas é uma medida impopular. A separação da sociedade por raças nasceu para ser uma ferramenta de poder, e por isso tem uma força para influenciar grandes momentos e grandes decisões. Quando políticas desse tipo ganham cunho impopular, fica claro o pensamento sobre desigualdade racial que a sociedade possui e sobre as pessoas que estão no poder hoje; e isso evidencia qual é o rumo que um candidato tem que tomar para se eleger. Essa acaba sendo a estratégia de muitos; ir contra ou não se posicionar quanto as políticas afirmativas para agradar e conquistar o eleitorado.” P: Hoje o Brasil possui a maior população afrodescendente do mundo, estando apenas atrás de um país propriamente africano, a Nigéria. Tal aspecto deveria representar uma maior predominância de negros em todos os patamares e “andares” da sociedade, o que não acontece. Acoplado à isso, é evidente a predominância do racismo em todos os ambientes de trabalho e estudo no Brasil. Você acha que o racismo é o principal vilão e ponto de partida para a não presença significativa de negros nas universidades? Ele ainda tem muita força para

impedir alunos de ingressarem no ensino superior e somente cotas raciais são capazes impedir isso? B: “Acredito que as cotas raciais e a adesão às notas do ENEM são uma boa forma de dar oportunidade para os negros ingressarem nas universidades; é pouco, mas é um bom começo. Penso que o racismo institucional é um ‘’vilão’’, mas é preciso considerar que as instituições foram criadas para apagar as raças e ao longo dos anos isso não mudou. Então sim, é o racismo institucional, mas para além disso, as instituições precisam começar a se questionar quanto à questão de raça, entender o processo e querer quebrar ele. O fato de querer quebrar com o racismo institucional é a parte complicada, porque qualquer instituição nega que é racista, mas poucas se manifestam e adotam políticas anti-racistas. Esse é o momento em que as cotas raciais se encaixam, a adesão do ENEM é importante porque em teoria, a matéria cobrada no exame é a base de todo Ensino Médio. Por último, bons programas de bolsas integrais de estudo também são uma medida muito possível e excelente para tornar o negro presente nas universidades.” P: Como você enxerga os resultados tidos nessa pesquisa dentro de uma faculdade como a FGV? Você acredita que a política de cotas deveria agir em universidades públicas e privadas da mesma forma? Algo deveria ser diferente? B: “Fico feliz que quase 70% das respostas foram positivas para as cotas raciais, o resultado é surpreendente considerando o perfil de alunos da GV. É muito importante que a gente entenda que a educação no Brasil é um privilégio. Ensino superior para pessoas negras é uma exceção da regra e apenas 12,5% dos jovens negros conseguem ingressar no 31


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ensino superior hoje. É essencial que o jovem de elite consiga enxergar isso e reconhecer seu privilégio, eu só me questiono que, se a pergunta da pesquisa fosse “Você é a favor das cotas raciais dentro da FGV?’’, se o resultado seria o mesmo. Eu acredito que a política de cotas não deveria agir em universidades públicas e privadas da mesma forma; apesar de desejar que isso acontecesse, eu tenho a ciência de que universidades privadas adotarem o sistema de cotas é difícil, e, portanto, adotarem nos moldes em que a esfera pública adota, seria mais difícil ainda. Não adianta uma universidade privada ter cotas raciais se não tiver bolsas para essas pessoas; enfim, muitas implicações como essa podem acontecer. Mesmo defendendo que é obrigação da sociedade inteira reparar a desigualdade racial em que vivemos hoje, eu acredito que as cotas nas universidades públicas deveriam acontecer de forma diferente. Penso isso porque sabemos que o perfil da maioria dos jovens de universidades públicas é o mesmo de jovens de universidades privadas. Com isso, quero me dirigir especificamente a condição financeira desses dois perfis. As universidades públicas sempre foram um ambiente elitizado e nasceram com esse fim: formar os jovens de elites, a ‘’nobreza do Estado’’. Porém, sabendo que as universidades públicas são uma oportunidade única de ensino de qualidade para todos, é plausível exigir que o sistema de cotas dessas instituições sejam melhores, com mais vagas e mais abrangentes do que os sistemas de universidades privadas. Porque é preciso que aqueles que foram lesados durante o caminho, consigam ingressar e ter seu direito de educação garantido.” P: O que você entende por “branqueamento cultural”? O que fazer para alterá-lo?

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esfera educacional, podemos ver a desvalorização da cultura negra nos livros e no currículo escolar como uma medida desse movimento. Na esfera universitária, temos hoje as grandes elites contra qualquer política afirmativa em universidades de ponta. Além disso, existe um grande esforço dessas pessoas para realocar recursos, cortar verbas e até fechar universidades federais que estejam promovendo a ascensão de grupos que durante a história brasileira foram considerados subalternos. Essas universidades sofrem com diversos ataques e constantes tentativas de boicotes para que o padrão de alunos universitários se mantenha. Ou seja, para que pessoas brancas e ricas não percam seu espaço dominante nas universidades federais.

Taxação de grandes fortunas

É difícil falar algo para combater os padrões, medidas para valorizar e reconhecer a cultura são ações que tendem a dar certo, porque é uma forma de educar e conscientizar uma população quanto ao assunto. Mas essa é uma medida simplória perto do poder que as elites têm sobre qualquer interesse pessoal no Brasil. Para combater essas pessoas, é preciso deixar com que as pessoas negras ascendam e ganhem espaço para defender os seus direitos perante a sociedade. Ou seja, combater o racismo institucional em todas as esferas possíveis, aprovar políticas de ação afirmativas, cotas, cobrar as empresas quanto ao posicionamento e contratação de pessoas negras, e fazer com que negros ocupem os espaços e ganhem falas. Nada mais justo do que a raça predominante da população brasileira ter voz e conseguir se representar em todos os lugares.” “Nós, a classe média, não queremos direitos; queremos privilégios…”

B: “Entendo como branqueamento cultural o processo de instalação de um padrão de cultura eurocêntrico em todo o mundo, promovendo um padrão de “branqueamento” ou “eurobranqueamento” em todas as culturas, onde tudo aquilo que, antes visto como o modelo de cultura dos países europeus, agora começa a ser enraizado nas mais distintas culturas. Desde cremes que clareiam a pele, até um padrão de música descrito como cultura e enaltecido nos países ao redor do mundo. Na história do Brasil, essa prática foi promovida pelos colonos, que mais tarde se tornariam os grandes senhores de engenho/latifundiários e que hoje são os empresários que formam a elite brasileira.

Com essa máxima, o renomado geógrafo Milton Santos sintetiza os desejos de uma elite brasileira que prioriza o setor financeiro ao social enquanto interesses primordiais de um Estado. Não distante, portanto, encontra-se a Fundação Getúlio Vargas: uma universidade ainda inacessível para muitos e conhecida por concentrar uma parcela considerável de detentores do tal pensamento. Em um viés no qual o ensino superior demanda um investimento financeiro tão grande, é impossível não associar esse recorte de classe ao pensamento intrínseco do “rico” brasileiro, no qual estudantes nascidos nos melhores berços defendem a “meritocracia” com unhas e dentes - e isso não poderia ser diferente no espectro ideológico.

Quando trazemos o branqueamento cultural para a

Sabe-se que hoje a taxação de grandes fortunas

é prevista pela Constituição brasileira, mas não regulamentada; isso significa que, na prática, os impostos permanecem incidindo de maneira desproporcional sob as distintas esferas sociais. A problemática vista, no entanto, em um universo de alunos privilegiados, transcende a defesa de interesses pessoais. Na FGV, lugar onde a maioria dos estudantes ainda detém poder aquisitivo para arcar com as mensalidades exacerbadas, falta - e muita consciência de classe. Ademais, o espaço amostral das faculdades corrobora diretamente para que isso aconteça, o que naturaliza esse tipo de pensamento. Comumente discutido por diversas partes do globo, o tema gera polêmica. Em 2012, a França optou pela taxação das grandes fortunas, porém o resultado não foi o esperado; milionários franceses passaram a buscar uma nova cidadania para escapar dos impostos. Um dos exemplos mais conhecidos é do ator 33


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Gérard Depardieu que já transferiu suas declarações para a Bélgica. A Noruega, no entanto, tem costume neste tipo de taxação: o imposto já chegou a atingir 17% da população adulta e a taxação de grandes fortunas é preferida. Outro argumento muito utilizado contra a taxação está ligado à pouca efetividade da tributação, já que o rico encontraria meios para não pagar o imposto. Deste modo, a arrecadação total acabaria por ser reduzida e os pobres sairiam mais prejudicados. O aluno gvniano, majoritariamente, vem de um ambiente elitista, o que favorece e reforça a ideia de que seria problemática a taxação de grandes riquezas. A partir do momento que sua inserção social não tem nenhum tipo de ligação com uma sociedade mais humilde, o indivíduo tem dificuldade e se recusa a perceber a verdadeira motivação dessa ideia tributária, que é a de reduzir as desigualdades e proporcionar uma melhor qualidade de vida aos mais pobres. Impostos são a maneira que se adotou no nosso contexto para arrecadar recursos por parte do governo. Parece algo justo e talvez até lógico que essa arrecadação deva se dar de maneira crescente e proporcional à riqueza dos indivíduos. No entanto, se o objetivo é maximizar a arrecadação, o problema não é tão simples. A aplicação de impostos sobre a renda (responsável por 17.8% da arrecadação) distorce as escolhas e pode até mesmo levar as pessoas a tirar o seu dinheiro do país. Se os impostos incidirem no preço de bens e serviços, afetará o consumo - este é, inclusive, o responsável por quase metade da arrecadação total. De qualquer maneira, trocas que são benéficas para o consumidor e para o produtor deixarão de ser feitas. No microcosmo gvniano, 54.4% da amostra de alunos observada está inclinada positivamente em relação à uma maior taxação para grandes fortunas. Atualmente, existem no Brasil 5 faixas de renda (Nos EUA, são 8) com alíquotas diferentes (0%, 7.5%, 15%, 22.5%, 27.5%). Elevar o imposto sobre grandes fortunas significaria, então, aumentar o número de faixas aproximando cada vez mais as alíquotas progressivas de um gradiente. Contudo, isso é muito 34

difícil de aplicar na prática. Um importante problema de ter poucas faixas de renda com grandes diferenças de alíquota é que leva as pessoas a preferirem ter um patrimônio um pouco menor (ou, quando possível, declarar um patrimônio um pouco menor) para sofrer um nível de taxação menor. Dessa maneira, é possível ter uma maior renda após o desconto de impostos. Incentivar pessoas a preferir ganhar menos ou a preferir declarar que ganham menos do que seria em um mercado sem taxação, leva a uma arrecadação menor por parte do governo.

Privatização da Petrobrás

No entanto, um quinto da amostra desta pesquisa declarou ser contra a taxação de grandes fortunas. Existem algumas hipóteses sobre o que levaria a este posicionamento que, em uma análise simplista do contexto da comunidade gvniana, parece uma questão de ganância da elite. Aumentar a taxação de grandes fortunas também desincentiva a permanência dos recursos dos mais ricos no Brasil. Impostos baixos em relação a outros países seria uma maneira de atrair ricos brasileiros e estrangeiros a deixar seus recursos no país. A arrecadação poderia ser menor, mas esses recursos poderiam ser usados para investir em setores importantes para o desenvolvimento do país ou o bem estar da população. Mas fica a questão: Em termos de geração de emprego, o investimento do governo na indústria (a partir da arrecadação) é realmente tão melhor que o investimento de milionários na indústria? Existe também a discussão sobre taxação de heranças e doações. No Brasil, cobra-se em média 3.86% do valor herdado, o que é pouquíssimo em comparação com outros países como o Chile (13%) e a Inglaterra (40%). No entanto, um aumento exacerbado e descuidado deste imposto poderia violar a própria constituição. Os impostos sobre doações (ITB) também são baixos em relação aos outros países: aqui, 3.32%, em média; no Chile, 18.2%. Seriam essas alternativas mais eficientes para atuar como Robin Hood? Porque, afinal, o alvo desses impostos ainda são as camadas mais ricas da sociedade. Por Carolina Zweig, Camila Merino e Letícia Vilar

A Petrobras foi criada em 1953, durante o segundo governo Vargas, garantindo ao Estado o monopólio da indústria brasileira de petróleo. Contudo, a lei 2.004/1953 foi revogada em 1997 e modificada em 2010, abrindo atividades da indústria, como a distribuição de combustíveis, às empresas brasileiras. Atualmente, a União é responsável por 64% das ações da Petrobras, o que garante ao Estado um estratégico ativo que, à luz dos contrários à privatização, asseguraria o interesse nacional acima da obtenção de lucros. Assim como no Brasil, os países que mais exportam petróleo asseguram ao Estado maior participação, como no caso da PDVSA, Statoil e Saudi Aramco. Com a privatização, haveria a necessidade da formulação da política energética de longo prazo dado à enorme participação da estatal no refino de petróleo e distribuição dos combustíveis. O economista-chefe do banco Fator reafirma que “(..) privatizar é, antes

de mais nada, definir qual será a política estratégica do país para o setor, definir prioridades, como desenvolvimento tecnológico, geração de empregos.” O atual debate, por conseguinte, ultrapassa a visão maniqueísta entre a continuidade da incompetência da gestão pública corrupta e a gestão privada incorruptível e unicamente capaz de aumentar a produtividade do setor petrolífero. A petroleira brasileira foi envolvida em escândalos como a Operação Lava Jato, o que colocou a sua forma de gestão em evidência no debate nacional. O escândalo envolveu políticos, empresários e membros administrativos da Petrobras, e uma vez nacionalmente conhecido, gerou uma acentuada crise política que se agravou frente à severa recessão econômica de 2014. Em junho de 2018, a greve dos caminhoneiros resultou no pedido de demissão de Pedro Parente, então presidente da Petrobras. A consequência foi 35


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uma queda de 14,86% nas ações da Petrobras e a volta do questionamento sobre a privatização da petrolífera brasileira, sob intensa instabilidade desde o início das investigações criminais. Assim, a privatização (ou não) é uma pauta dos planos de governo de ambos candidatos ao segundo turno. O candidato Jair Bolsonaro, após o fracasso de Alckmin no primeiro turno das eleições, se tornou a principal expectativa do mercado. Em seu plano de governo, o candidato do PSL apresenta uma visão mais liberal e pró mercado, comparado ao petista Fernando Haddad. Com o objetivo de recuperar as contas públicas, Bolsonaro, acompanhado por Paulo Guedes, assessor econômico de seu plano de governo, propõe a privatização de algumas estatais; entre elas, a Petrobras. Para viabilizar o processo de privatização, a sua equipe aposta em “golden shares’’, tipos especiais de ações que trazem ao estado os mesmos direitos dos detentores de ações ordinárias e confere poder de veto em algumas decisões da empresa privatizada. Isto é, independente da participação que o Estado tenha, ele terá poder nas decisões das empresas. Quanto à Petrobras, Bolsonaro afirma que, após a descoberta do pré-sal, a regulação estatista trouxe ineficiências econômicas e corrupção. Em seu plano de governo, o candidato propõe que a estatal deva vender uma parcela substancial da capacidade de refino, varejo, transporte e outras atividades que tenha poder de mercado e, por conseguinte, trazer mais competição no setor de óleo e gás. Entretanto, no dia 11 de outubro, o mercado reagiu de maneira negativa em relação a fala do presidenciável na qual afirmou que o “miolo” da Petrobras não poderia ser vendido, e que a empresa não poderia “usar o monopólio para tirar o lucro que bem entende”. Mais tarde, o Presidente do PSL, Gustavo Bebiano, disse que não existe plano para privatizar a estatal. Como reação, a empresa, que no dia 2 de outubro registrou a segunda maior alta do ano com valor de mercado de 319,928 bilhões, teve desvalorização de 12,8 bilhões. Diante disso, o mercado se contraiu devido ao aumento dos cenários de riscos e incertezas para o próximo mandato presidencial. Porém, mesmo após essas declarações não tão liberais comparadas às ideias defendidas por seu assessor econômico, Paulo Guedes, o mercado ainda tem preferência por Bolsonaro, por considerar que o possível futuro ministro da área econômica conseguirá colocar em prática as esperadas reformas. Em um cenário otimista, em que exista a aprovação da reforma da previdência, a manutenção do teto de gastos e a 36

privatização das empresas estatais, o PIB poderia crescer em 3% em 2019, o Dólar chegaria a 3,20 R$ e a dívida bruta possivelmente cairia para 76%, de acordo com dados da Consultoria MB Associados, publicados pela revista Exame. Por outro lado, o plano de Governo do Petista Fernando Haddad tem como principal objetivo avançar nas reformas de Estado de modo a interromper as privatizações e a venda do patrimônio público, fatores que, na visão dos economistas, podem trazer aumento da inflação e da taxa de juros. De acordo com o petista, seu governo visa aperfeiçoar as leis e procedimentos de privatização para garantir cada vez mais transparência e prevenção à corrupção. No entanto, essa pauta não poderia servir à criminalização da política, impondo uma agenda pragmática que visa privatizar os serviços e o patrimônio público.

Armas

Em relação à privatização da Petrobras, o candidato do Partido dos Trabalhadores pretende colocar a estatal na sua função de agente estratégico do desenvolvimento brasileiro, garantindo-a como empresa petrolífera verticalizada, atuando em exploração, produção, transporte, refino, distribuição e revenda de combustíveis. Além disso, o governo visa ampliar o parque de refino de modo a atingir com maior totalidade o território nacional, conceder subsídios na venda do gás de cozinha à população (programa gás a preço justo) e acabar com a política de preços do governo Temer em vigor (PPI: paridade de preços internacionais). Considerando as expectativas do mercado, o candidato do PT é visto com uma visão mais pessimista. Em uma entrevista da consultoria de gestão BTA com 404 presidentes conselheiros e diretores de grandes empresas, 51% preveem impactos negativos nas empresas, devido a possibilidade de mais intervenção estatal na economia, revisão da reforma trabalhista, alta do dólar e desemprego, fatores que poderiam contribuir, também, para a perda de valor de mercado da Petrobras. Entretanto, considerando um cenário mais otimista, em que Haddad possa tomar atitudes pró mercado, como uma reforma mínima na previdência, temos: o crescimento do PIB poderia alcançar 2% e o dólar ficar entre R$3,70 e R$3,80, segundo dados da consultoria MB Associados, publicados na revista Exame. A dívida externa, entretanto, ainda continuaria a crescer. Por Gabriel Santini e Ivan Pistelli

Gazeta Vargas entrevistou o professor Rafael Alcadipani da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o professor traz algumas reflexões sobre a legalização do porte de armas no Brasil e sua relação com a segurança pública atual, de um cenário politicamente instável e polarizado. PERGUNTA: Primeiramente, o senhor poderia falar um pouco sobre como funciona o porte de armas atualmente no Brasil? RAFAEL: “No momento, está em vigor o Estatuto do Desarmamento. É crime portar armas de fogo e munições. Uma pessoa que tenha uma simples munição de um calibre 22 pode ser presa em flagrante. A exceção se dá para pessoas que possuem um porte 37


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campanhas eleitorais de rua sofreu um atentado contra a própria vida. Como o senhor enxerga essa dicotomia presente? R: “Porte é uma das maiores bandeiras dele. O atentado absurdo que ele sofreu mostra que armas não são boas para a defesa. Elas elas são ótimas para o ataque. Possivelmente, em poucos lugares havia mais gente armada do que no entorno do Bolsonaro. Bastou uma faca para feri-lo gravemente. Mas, mesmo assim, o paradoxo está aí e as pessoas não querem entender ou não conseguem entender que liberar as armas não irá reduzir nossa criminalidade. Muito pelo contrário. Estudos como os do Daniel Cerqueira do IPEA mostram que “mais armas, mais crimes” e “mais armas legais, mais armas que podem facilmente cair nas mãos do crime”. É isso que mostra os estudos tanto do Daniel quanto de inúmeros criminalistas sérios do mundo.”

de arma dado pela Polícia Federal. Para ter este porte, a pessoa precisa realizar cursos de tiro, testes psicológicos e justificar a sua necessidade. É decisão do delegado de polícia conceder o porte e ao menos que haja uma forte justificativa (ex.: você consegue provar que sua vida está em risco) é muito difícil conseguir o porte. Há colecionadores e pessoas de clubs de tiro que podem transportar a arma desde que desmuniciada. Na prática, é muito difícil conseguir o porte hoje no Brasil. E é um processo longo e burocrático.” P: Uma pesquisa feita pela Folha de São Paulo (Fonte Datafolha) no início do ano de 2018 mostra um aumento na porcentagem de cidadãos a favor da liberalização do porte de armas e uma diminuição na porcentagem daqueles que acreditam na sua proibição. Quais, em sua opinião, são as razões para tal acontecimento? R: “As pessoas não sentem que o Estado está provendo segurança pública e tem muito medo. Elas têm muito medo de serem assaltadas ou serem vítimas de crimes. Com isso, o apelo para a solução pessoal ganha espaço e respaldo na sociedade.” P: Frente às eleições de 2018 para a presidência da república em um cenário tão polarizado acoplado aos altos índices de rejeição dos dois candidatos do segundo turno, o senhor acredita que a segurança pública teve um papel essencial na delimitação dos resultados e ainda terá no dia 28 de outubro? É possível dizer que o tema segurança foi realmente um dos principais orientadores de votos nessas eleições? R: “Eu considero que sim. Segurança foi o catalizador da campanha de Jair Bolsonaro que até aqui parece ser o nosso próximo Presidente. O Estado Brasileiro está falhando há anos na questão da Segurança. Por 38

P: O quanto é possível afirmar que a ideologia política liberal influencia na opinião sobre a descriminalização do porte de armas? Ou é apenas uma questão de defesa pessoal em um cenário de segurança pública tida como caótica?

exemplo, o plano de combate aos homicídios nunca saiu do papel, nunca criamos um sistema verdadeiro de penas alternativas ou de condicional que iria ajudar a evitar a reincidência criminal. Não temos sequer estatísticas nacionais de Segurança Pública e uma política nacional organizada. A situação chegou no limite. E isso faz com que as pessoas tenham muito medo. E quando temos medo, queremos soluções drásticas para resolver o problema. E aí entra Bolsonaro: ele propõe solução de exterminar, literalmente, o medo e as pessoas acham que isso irá resolver o problema. Em contrapartida, o PT não conseguiu em todos os seus mandatos articular uma política nacional de segurança pública e mesmo as propostas do Haddad são difíceis de explicar para a população. Bolsonaro, não. Ele é direto e objetivo e mostra uma lógica simplória que as pessoas acreditam.” P: O candidato Jair Bolsonaro, do PSL, está no segundo turno e defende o porte de armas pelo cidadão. Ao mesmo tempo, foi o candidato que durante as

R: “Acho que as duas coisas. Ideologia liberal é coisa de uma elite. A grande maioria não tem muita ideia do que é isso e busca nas armas uma forma de se defender de uma situação caótica. Bolsonaro traz consigo uma enorme carga ideológica. E veja, até o The Economist, uma das revistas que adota uma linha liberal, defende a restrição das armas de fogo. Mas, este é um debate quase religioso e que não adianta trazer argumentos científicos. Quem defende as armas jamais deixa o seu dogma de lado.”

P: O quão significativo e/ou impactante será o porte de armas no combate à violência doméstica? R: “Eu acho que o efeito será inverso. Mais uma vez - arma serve mais para atacar do que para se defender. O agressor doméstico terá disponível mais um instrumento para praticar a violência. O número de suicídios irá também aumentar. Arma em casa é receita para o desastre.” P: Considerando que o Brasil é um país com altos índices de homicídio e uma população carcerária em crescimento, ao legalizar o porte de armas, até que ponto tal ação interferiria no tráfico de armas? R: “Se houver armas disponíveis na sociedade o criminoso irá começar a assaltar para roubar armas. Se ele souber que em uma casa tem uma pistola ou um fuzil, ele pode tentar entrar na casa para pegar essas armas e pode agir de surpresa para que o dono não perceba. O tráfico de armas continuará a existir, mas o preço das armas poderá diminuir, é uma questão de oferta e procura. Mas, no Brasil de hoje, não adianta trazer estudos, argumentos científicos, etc. As pessoas acreditam apenas nas suas ideias pré-concebidas. Liberar as armas será um dos maiores erros que acontecerá no Brasil em relação à segurança pública. Mas os efeitos irão demorar para serem sentidos, pois até as armas entrarem de fato no cotidiano levará tempo.” 39


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Bolsa Família

O Programa Bolsa-Família (PBF) é um programa de combate à extrema-pobreza através da transferência direta de renda, que atende mais de 13 milhões de famílias no país. O máximo que uma mesma família pode receber, pelo programa, é 205 reais mensais. O mínimo é 35 reais. São elegíveis apenas as famílias que tenham renda per capita menor que 89 reais. A contrapartida exigida destas famílias é a frequência escolar das crianças e a vacinação. Vale ressaltar que o cadastramento para o programa é anual, uma vez que o resultado final esperado é que essas famílias consigam sair da situação financeira que se encontram. O Bolsa-Família, da forma que existe hoje, e com esta denominação, foi criado em 2003, no governo Lula. Mas, na verdade, a estrutura do programa já existia. Originalmente eram 5 programas diferentes, como Bolsa-Escola e Bolsa-Gás; o Bolsa-Família é a 40

unificação e ampliação destes 5 programas. Por ter como exigência a frequência escolar, evidentemente o programa tem efeitos sobre a educação no país. Uma pesquisa contratada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome mostrou que não houve melhora significativa no desempenho escolar dos beneficiados pelo programa. Por outro lado, uma outra pesquisa mostrou uma melhora significativa na frequência escolar dos alunos. Ademais, o programa também é um dos principais motores na significativa redução da extrema pobreza que ocorreu no Brasil. A estimativa desta redução é de 75%. Desse modo, observa-se que a política vai além de uma simples transferência de renda numa tentativa direta de ruptura do ciclo da pobreza, dado que o projeto

contribui tanto para a diminuição da evasão escolar quanto para a saúde. Por sua vez, o SUS também é responsável por parte da atual modificação do PBF, contribuindo ao acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança menor de sete anos, ao seguimento do calendário de pré-natal da gestante, a assistência pós-parto, bem como à realização da vigilância nutricional. Estudos comprovam que crianças de até 3 anos com má nutrição têm problemas de formação intelectual e alfabetização para o resto da vida, o que gera futuros gastos ao governo. De uma forma geral, o PBF assim como qualquer outra política pública redistributiva, tem como objetivo o deslocamento consciente de recursos entre camadas da sociedade. Fato que gera conflito, não pelo efeito redistributivo em si, mas pelos interesses antagônicos de grupos sociais diversos. Por Gabriel Magalhães e Victória Rieser 41


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MAS E DAÍ? Por Victor Coutinho

A 98ª edição da Gazeta Vargas veio cheia de informações e reflexões importantes. Trata-se de uma edição riquíssima, justamente por trazer dados e conclusões tão importantes sobre o perfil da comunidade gvniana no atual contexto de tensão eleitoral. Um fato é que, inegavelmente, a gama de assuntos e problemas a serem discutidos é grande e complexa, bem como interligada o suficiente para gerar os resultados que pudemos observar. Isso sem contar que toda a análise feita a priori foi apenas no ambiente de uma única faculdade, de perfis e pessoas muito bem definidos – quão mais complexo não será o debate a nível municipal, estadual ou nacional, de que a GV é apenas uma minúscula fração? Com isso em mente, resta-nos a indagação sobre o que sabemos de novo, o que podemos aprender ao cabo dessa experiência. Como, afinal, considerando ao menos uma perspectiva generalista e ressalvada a multitude de opiniões, pensa o gvniano? Valha a pena, talvez, começar por essa ressalva. A despeito de todas as críticas que poderiam, justificada e acertadamente, ser feitas sobre o caráter elitista da GV, ainda é minimamente acalentador saber que há nesta Fundação uma pluralidade de pensamento digna de nota e alguma mentalidade progressista. Não que sejam suficientes, mas o importante é que existem e isso é destacável pelo fato de serem um alicerce já construído para o desenvolvimento de uma FGV cada vez mais consciente. No mais, melhor ainda seria se houvesse perfis étnicos e socioeconômicos mais variados na Fundação, e é precisamente aí que entra a questão do elitismo. Talvez, então, superar essa homogeneidade socioeconômica seja o próximo passo do supracitado desenvolvimento, mas, até lá, a GV segue como um conjunto de rostos e rendas tão semelhantes que, se não mais geram uma total alienação e padronização de pensamento, tampouco podem ser apontados como as causas de qualquer pluralismo existente. 42

É por isso, assim, que, feita a ressalva, podese indicar um perfil geral para o pensamento gvniano. É notável como alguns temas parecem estar mais próximos de um consenso, no caso da recusa a uma intervenção militar (quase 90% das respostas) e, em menor escala (cerca de ¾ das pessoas), no caso da descriminalização do aborto, ao passo que outros temas enfrentam uma interessante resistência, ou fragmentação. É o caso das cotas raciais - a única das pautas sociais com menos de 50% de respostas convergentes - e dos temas econômicos, envolvendo tributação e privatizações. Quanto às cotas, talvez o resultado evidencie uma das consequências do perfil étnico e socioeconômico relativamente homogêneo da Fundação, bem como uma provável resistência a que tais medidas sejam implementadas nos nossos próprios cursos. As pautas econômicas, por sua vez, foram as que mais obtiveram respostas fragmentadas: a taxação de lucros e dividendos de acionistas, o imposto sobre grandes fortunas e a privatização da Petrobrás foram temas reveladores de uma forte pluralidade de posições, ainda que haja também, em bom número, uma visão mais voltada ao liberalismo, contra aumento de impostos e a favor de privatizações. Chegamos ao fim desta edição com muitas lições aprendidas, muito conhecimento acumulado e, também, desafios a serem superados. Penso que posso falar por todos que participaram desse projeto ao dizer o quão gratificante é ver a consolidação de todo o trabalho feito para explorar e mapear o pensamento gvniano. Mas o trabalho não acaba aqui. Há muito a ser debatido e feito politicamente, há um país em reconstrução e uma democracia fragilizada e desacreditada. Que esta revista possa servir de ponto de partida para entendermos mais profundamente nossa própria comunidade e nos direcionar à luta necessária que há de vir pela democracia e pelos direitos fundamentais. 43


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O ESPELHO DO AUTORITARISMO: A SOCIEDADE E A POLÍTICA Por Igor Baran

Lembro-me de uns tempos atrás quando eu curtia a página de Jair Bolsonaro apenas para acompanhá-lo. Sempre tentei entender porque ele é um fenômeno da internet. Naquele momento, começava a existir uma publicação que viralizou no Facebook, com a descrição: “saiba em um clique quem dos seus amigos curte a página do Jair Bolsonaro para excluílo”, acompanhada de um link com todos os seus amigos do Face que curtiam a página dele. Tive a boa ideia - que posteriormente me espantaria - de olhar meu perfil para ver quantos amigos eu tinha no Face no momento em que aquilo estava começando. Em 24 horas eu perdi em torno de 16 “amigos” no Face. Fiquei com medo de acharem que eu era um eleitor dele, então parei de curti-lo. Hoje, tenho a impressão de que foi um erro. Aliás, deixo ainda de seguir vários outros políticos com que não concordo para evitar que algumas pessoas com interpretação binária achem que: “Ahá, agora você está apoiando fulano”. Neste Brasil de debate tão escasso e ânimos tão aflorados, o diálogo perdido abre espaço para o pior: o monólogo a dois. Monologar a dois é conversar consigo mesmo e querer que o outro escute, é falar e não querer ouvir, é gritar a verdade do indivíduo para o coletivo, é 44

aquilo que deveria ser um diálogo mas não envolve nenhum tipo de troca de informações e mudanças de opinião, é o que estamos fazendo. Em consequência do monólogo a dois, agrupamentos tão distintos (como pró e anti-Bolsonaro) excluem-se do Facebook e, muitas vezes, da vida, fechando-se em seus nichos. Disso decorre a falsa sensação de que - para alguns dos pró-Bolsonaro - ele ganhará as eleições pois, afinal, todos que conhecem votarão nele. Um exemplo interessante é que parte desses apoiadores fazem “pesquisas eleitorais” com “reaction” de Facebook entre seus amigos ou em comentários de veículos de comunicação para “provar” como o povo apoia seu candidato, embora não haja embasamento estatístico algum para isso. Essa é uma das razões pelas quais, nas recentes eleições, há sempre a suspeita de que as urnas foram fraudadas e, por fim, ocorre uma descrença na própria democracia, afinal: “Como o resultado foi esse se todos votaram no candidato X?”. Esquecem, porém, que o nosso mundo é apenas a parte do mundo com a qual mantivemos contato (como escreveu o filósofo inglês John Stuart Mill) e que estamos reduzindo o nosso mundo constantemente.

Parecemos não querer amigos e sim seguidores. Nesse sentido, aparentamos todos - independentemente da posição política - reacionários, inclusive naquilo que convencionou-se chamar “progressismo”. Somos avessos às mudanças daquilo em que acreditamos e temos muita convicção, mas poucas dúvidas. A falta de incerteza resulta na idealização dos ídolos e, por fim, na criação de salvadores da pátria, à esquerda ou à direita.

Se Bolsonaro não é - metaforicamente - enxergado como um político, o que ele é? O herói, aquele que trará a - suposta - moral perdida de volta, a segurança, os costumes, a honestidade. Desde sempre estamos simplificando o mundo para legitimar as ações simplórias, as falas simplórias, os votos simplórios. É mais fácil acreditar que meia dúzia de frases raivosas resolverão o problema do que entendê-lo em sua complexidade, que é a sua real dimensão.

Não bastasse o monólogo a dois e a exclusão dos diferentes, a arrogância do conhecimento político e o monopólio das soluções para o país pairam nas bocas do povo. Nunca imaginei que faria referência ao Cabo Daciolo, mas ele tem um ponto quando afirma no debate que “agora todos têm solução para tudo”. Entretanto, isso não ocorre apenas entre candidatos. Na verdade, parece que parte considerável da população tem solução para tudo. Quando a política está em pauta, frases que começam com “é só” e terminam com “(...) que resolve” são frequentes. Disso resulta que é simplesmente impossível dialogar com o diferente, já que “é só matar bandido que resolve”, ou “é só parar de roubar que funciona”.

Por isso, Bolsonaro é um herói. Houve e haverá outros, desde Joaquim Barbosa ao Japônes da Federal, que foram prestigiados com máscaras de carnaval como os salvadores do momento. Há uma tendência à aceitação desses supostos salvadores porque eles fazem uso de um dos mais fortes sentimentos humanos: a esperança. Em um país com tamanhos transtornos como o nosso, o que muitos fazem é “esperar que alguém venha e resolva o problema”. Acontece que esse “alguém” sempre vem, entretanto nunca “resolve”.

As pessoas, infelizmente, parecem buscar mais unanimidades do que consensos (porque consenso implica diálogo) e mais seguidores do que amigos. Devemos, sim, criticar o Bolsonaro, mas não podemos deixar de notar que somos, muitas vezes, extremamente autoritários com quem pensa diferente (em todas as vertentes) e, o que é pior: sequer estamos percebendo. Pode alguém querer democracia sem ser democrático no cotidiano? Parece que estamos incluindo as unanimidades e excluindo a possibilidade de consensos.

O lema de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” instiga os mais vastos corações a darem-lhe um voto de confiança, mas é mentiroso. Não há pátria acima de tudo e tampouco há uma a ser salva, apenas a ser construída. O sufoco é que não queremos construí-la, mas tão somente alimentar nossa esperança. E pensar que se ele for eleito, não resolverá o problema e se tornará o vilão. Ironicamente, disso resulta que nascerá um novo herói.

É fato que estamos em um período eleitoral extremamente polarizado. Os anti-bolsonaro diriam que ele fala absurdos e é fascista, os pró diriam que ele apenas diz “a verdade”. Assim sendo, se Bolsonaro diz a verdade e a característica do político (para a maioria da população) é a mentira e a ladroagem (uma das poucas unanimidades no Brasil de hoje), é quase como se ele realmente não fosse político no imaginário coletivo de quem o apoia. Não sendo político, ele estaria imune a esses problemas, tornando-se uma possível solução. Para corroborar com essa ideia, veja como as pessoas que o seguem evitam chamá-lo de “deputado”, preferindo sempre o termo “Capitão” para se descolar da política e associá-lo diretamente à moralidade e à disciplina. 45



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