Vinte mil pedras caminho

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Fabian Penyy Nacer COM Jorge Tarquini Escritor de O doce veneno do escorpião – Bruna Surfistinha

Vinte Mil Pedras no Caminho A história de um piloto de avião que se tornou morador da Cracolândia

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Copyright © 2015 by Fabian Penyy Nacer com Jorge Tarquini All rights reserved. 1ª edição — Setembro de 2015 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Assistente Editorial Adriana Carvalho Capa, Projeto Gráfico e Diagramação Alan Maia Transcrições de entrevistas Lucas Biffi e Marina Cid Preparação Daniela Nogueira Revisão Josias A. de Andrade Marcia Benjamim DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nacer, Fabian Penyy Vinte mil pedras no caminho : a história de um piloto de avião que se tornou morador da Cracolândia / Fabian Penyy Nacer, com Jorge Tarquini. -- São Paulo: Geração Editorial, 2015. ISBN 978-85-8130-339-0 1. Crack (Droga) 2. Drogas - Abuso - Tratamento 3. Memórias autobiográficas 4. Nacer, Fabian Penyy I. Tarquini, Jorge. II. Título. 15-07848

CDD: 362.2938092 Índices para catálogo sistemático

1. Dependendes químicos : Reabilitação : Problemas sociais : Autobiografia 362.2938092 GERAÇÃO EDITORIAL Rua Gomes Freire, 225 – Lapa CEP: 05075-010 – São Paulo – SP Telefax.: (+ 55 11) 3256-4444 E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br www.geracaoeditorial.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil *Os nomes das personagens foram alterados para preservar suas identidades.

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AGRADECIMENTOS

A Cristina Redoschi, Edson Aran, Fernanda Zalla Sampaio, Luís Colombini, Lucas Bii, Marina Cid, Patrícia Rodrigues, Rogério de Campos, Taís Lambert e hales Guaracy.

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sumรกrio

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“Vai aí?” ............................................................... Passando de fase ................................................ Só de sarro.......................................................... The dark side of the moon ................................. Sexo dos anjos.................................................... Família margarina (sqn) .................................... Negócio fechado ................................................ Apertem os cintos .............................................. Ser ou não ser .................................................... Fim de festa ........................................................ Remédio caseiro ................................................. Toda escola tem um assim… ............................. Compulsão .......................................................... Ponte aérea ......................................................... Bateu, levou ........................................................ O nome do jogo.................................................. Vai trabalhar, vagabundo!................................. Mó lesera, mermão! ........................................... “Vai aí?” II, a missão .......................................... Em busca do dragão .......................................... Dores de amores ................................................ Do outro lado do balcão .................................... Bye bye, Brasil .................................................... Plano de voo ....................................................... “Vai aí?” III... ....................................................... In(satisfaction) ..................................................... La cucaracha, la cucaracha... ............................. “Vai aí?” IV, a saga continua ............................. (No) sex, (lots of) drugs and (some) rock and roll ......................................................

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F.ck you, bro! ...................................................... Pra quem fica, tchau! ......................................... Papo de boteco ................................................... A pele que habito ............................................... “Vai aí?” V, o fundo do poço ............................. Sapo na panela ................................................... Deixa a onda levar ............................................. Carreira internacional ....................................... Fim de carreira ................................................... Quem tem boca... ............................................... Oh, baby... ........................................................... O som não se propaga no vácuo... ................... “Vai aí?” VI, o encontro com o dragão ............ Demon rules!....................................................... Parabéns! É um menino!!! ................................. They tried to make me go to rehab, but I said... ......................................... Fechando o cerco ............................................... Vai com fé ........................................................... Mergulho de cabeça .......................................... De volta para o futuro ....................................... Crack reloaded.................................................... Tá de brincadeira… ........................................... Apertando o botão do f…-se ............................ Bem-vindo à Cracolândia ................................. Os nove círculos do inferno .............................. Capitalismo selvagem ........................................ Como desaparecer sem truques ....................... Dá pra piorar? Sempre dá... ............................. Para, noia, para... ...............................................

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É um assalto! ...................................................... Exército branco .................................................. Frieza dos fatos .................................................. “V” de vingança.................................................. Expansão............................................................. Quando gira o mundo... .................................... Mundo cão .......................................................... Inimigo no espelho ............................................ Alta temporada no Juqueri ............................... Sinais de Deus .................................................... Muy amigo... ....................................................... Intratável ............................................................. Não nos deixeis cair em tentação..................... Consciência tranquila ........................................ Mão na cabeça! Mão na cabeça! ...................... Entocado feito um bicho ................................... Esgotosfera ......................................................... Chumbo grosso .................................................. Bolacha ou biscoito? .......................................... (Re)caindo na real .............................................. Fé demais ............................................................ Caminho de volta ............................................... “Vai aí?” XXXII, the revival ............................... Conjunções adversativas .................................. Em nome do pai ................................................. Servindo a dois senhores .................................. A metamorfose ................................................... Reboot ................................................................. Chega! ................................................................. Isso não é um conto de fadas... ........................

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“Vai aí?” A mão estendida com o baseado apareceu do nada, bem na minha frente. — Vai ou não, Fabian? — repetiu Caco. O tempo parou na fumaça suspensa. Um olhando pro outro. E eu ali, 16 anos de idade, descolado, meio bêbado, meio paralisado. A viagem dentro da viagem. Road trip para subir a serra até Campos do Jordão com meus amigos motoqueiros: Arthur, Caco e Pedro. Momento perfeito: amigos, boas risadas, um pouco de bebida na ideia, lugar bacana. Todo mundo meio alto. Nada demais. Só diversão com a minha turma. Nenhuma novidade na minha história. É isso o que rola mais cedo ou mais tarde com qualquer adolescente: a hora da maconha‑surpresa. Seus amigos, com quem você se identiica e que são superbacanas, no meio da diversão acham um jeito casual de contar para o “contra maconha” da turma (no caso, eu) que curtem um baseado. Quase sem querer. Mas querendo. Eles não parecem viciados. São meus amigos. Não é verdade que quem fuma maconha é má companhia... Não faz diferença nenhuma se eles fumam ou não: meus “irmãos” são gente do bem. Caretice da minha parte. “Vou?” — era isso o que eu pensava sem parar. O baseado ali e a cabeça a mil... Estava esperando uma reação do grupo, uma dica qualquer do que seria “o certo” a fazer. Ou não. Pertencer ao grupo de verdade — ou não. Fabian Penyy Nacer COM Jorge Tarquini

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Que ique claro: eu tinha 16 anos, não era ingênuo e nem inocente... Desde os 13, já havia experimentado um monte de coisas: cigarro, álcool, até chá de cogumelo e remédios. Drogas? Não são drogas... Eu era contra elas. Drogas de verdade, como aquela maconha? Nunca! Sempre falei mal de baseado, de maconheiro, de cocaína. Radicalmente contra as drogas. Meus amigos motoqueiros sabiam disso. E por isso escondiam a maconha de mim. Até ali. — Eu vou! — disse Arthur, já pegando o baseado. — Vou também! — emendou Pedro. “Como não percebi?” — pensei. “Esses caras são meus amigos. Mentiram para mim sobre maconha? Não, não tem nada demais... Me enganaram esse tempo todo? Não, eles são da hora. E agora? Que drama, Fabian... Que caretice!!! É só um baseado” — ia tentando me convencer. Um misto de curiosidade e pressão do grupo. Fumaça, cheiro da ma‑ conha, o coração dispara. E minha mão se estende. — Vou dar um pega. E o mundo não acabou. Foi ruim? NÃO!!! Tá maluco? Foi divertido. Foi da paz. Perigo? Não vi nenhum... A gente deu muita risada e a viagem se multiplicou. Foi libertador: inalmente, eu fazia parte dessa turma 110%. Dessa e da tur‑ ma do lado do meu prédio, do Viseu, do Miro, do Beto e do Duda, que também fumavam e escondiam de mim. Não havia mais segredos entre nós. E era o im das brincadeiras “ingênuas” de remédios e bebedeiras com o pessoal da Fernanda, da Lara e do Rogério. A brincadeira agora era de gente grande. Passados tantos anos, me pergunto: por que entrei nas drogas? Pelo assédio? Pela curiosidade? Pela vontade de pertencer? Pelo prazer que a droga me apresentou? Sei lá... Teimosia, pagar pra ver. Até os 12 ou 13 anos, acreditava no discurso adulto, de que droga faz mal, vicia. Aos poucos, os amigos bacanas que não passam mal e nem parecem drogados ou viciados me provaram o contrário. Eu também via gente da família, que enchia a cara no inal de semana e ia trabalhar no dia seguinte...

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Nada de novo sob o sol para mim ou para qualquer outro adolescente na face da Terra. A decisão de estender o braço foi minha. O enredo é igual para todo mundo — mudam apenas o cenário, o nome dos amigos e o momento em que o baseado aparece: na viagem para a praia, na hora da brincadeira, na festinha de 15 anos. Você já esteve lá — ou ainda vai estar. “E se eu não for?”, você deve estar se perguntando. Simples: vão te zoar, te excluir, te provocar, te sacanear. Resumo da ópera: você vai se dar mal. Quando você tem 13 ou 14, é o im do mundo. Com 17, pouco importa: você só vai ser zoado se deixar. Nessa idade, você só faz o que quiser, como todo mundo. Mas e a amizade? — Não me oferece mais, tá bom? Eu nunca disse isso.

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Passando de fase

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Na boa: como conheço o roteiro e os personagens, também acho isso um papo “moralista”. Fumou um baseado e virou viciado? Não. Ninguém se vicia aos 14, 15, 16 anos... O “homem do saco” é mais real do que esse mito babaca, do que esse discurso desinformado, uma verdadeira história da carochinha. Nem por isso a coisa é tão sem importância como pareceu pra mim. Comigo foi assim. Foi bacana, foi divertido, mas eu não acordei no dia seguinte pensando em maconha. “Putz, meu, eu tenho que fumar maconha! Calma... é tudo bem mais lento que o barato do baseado... Não deu pra perceber que havia progra‑ mado um timer pra explodir bem lá na frente. A gente esquece da maconha. Vai passar um dia, uma semana, um mês ou mais para pintar de novo aquela ocasião perfeita: amigos reunidos, tudo de bom e surge o baseadinho na roda. Do primeiro pega até o aniversário de primeiro ano dele, não vão ser muitas as ocasiões, as festinhas, em que vai rolar maconha eventualmente. Talvez três ou quatro vezes. Eu chamo isso de ‘fase um’, quando você não corre atrás da maconha: ela aparece como mágica, num ritual de diversão, risos e amizade — e você embarca. Depois desses três ou quatro baseadinhos, numa tarde chuvosa você está de bobeira, em casa, sem nada pra fazer, e a ideia brota.” “Pô, meu, se eu tivesse um baseadinho agora ia ser da hora...” Entre um game e outro, um ilminho na TV e outro, bate de novo. “Como é que eu posso arrumar um baseado?” Liga pra um amigo, que fala pra ligar pro outro e um deles vai ter. Vocês se encontram e fumam um. Não é o acaso que traz a maconha até você: você é que vai atrás dela. Parabéns! Você chegou à “fase dois”. Fabian Penyy Nacer COM Jorge Tarquini

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“Tudo bem, foi só essa...” — você está pensando. Tomara! Só que outras tardes de chuva e de icar “bundando” vão rolar. E vai chegar uma hora em que você vai icar sem jeito de ir atrás de seus amigos que têm a maconha. E também vai rolar em breve uma viagem, uma festa, uma excursão da escola. “Se eu tivesse meu baseadinho lá ia ser da hora.” Você liga para quem sempre tem e se informa de como se faz para ar‑ rumar e dá um jeito de comprar o primeiro baseado com aquele colega da escola que sempre tem (imagina: ir até uma boca? Tá maluco?) e mudamos de fase: bem‑vindos à fase três! Nada, porém, com que se deva preocupar: não é para fumar durante a semana, sem motivo algum. A compra é para um momento especial. E meia dúzia de momentos especiais merecem que a gente tenha nossa própria maconha. Só tem uma coisa que irrita: icar pagando 10 reais pro colega, por um baseado, é um assalto. Na boa, babaquice icar com esse medo bobo. Tem um monte de amigo que vai na boca e nada acontece. Vou também.

Musiquinha de mudança de fase. Chegamos à fase quatro. E qualquer hora vira hora: com o chuveiro ligado, vaporzão e você na janela, pro cheiro não dar na vista, muita balinha, colírio, desodorante... E a maconha virou um hábito solitário. E vai seguir a vida inteira fumando um todo dia. Game over.

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A maioria não vai precisar de internação, não vai deixar de trabalhar, nada disso. Levou um tempo até eu entender que a maconha virou minha muleta, um band-aid. Qualquer coisa na minha vida, eu corro pro meu remedinho. Um dia não estava bom, noutro meio assim, no outro meio assado — e no quarto, meio cozido. Se algo me incomodava, lá corria eu pra acender meu baseado. Virei um cara que postergava tudo, que me achava mais criativo com a maconha, mas na verdade eu não realizava nada. E nunca amadureci. Ninguém que, na adolescência, precise de muleta todo dia amadurece. Não estou aqui para icar com papo moralista (nem moral pra isso eu teria). Estou contando como enxergo, visto de dentro e em retrospectiva, o caminho que percorri, as razões pelas quais experimentei e me entreguei a tudo o que apareceu na minha frente. “Eu não sou você!” — você pode estar pensando nesse momento. Só não vira a página, não. A gente tem mais em comum do que você imagina. Ainda mais se você já passou por alguma das fases dessa experiência — e “escolheu” icar nela. Eu escolhi, por desconhecimento, por curiosidade e por pressão do grupo. E iquei nela por 22 anos, para sair depois de doze quilos de maconha, dez quilos de cocaína, 20 mil pedras de crack, 250 LSDs, incontáveis chás de lírio e cogumelo, heroína, lança, seis anos de rua e vinte e cinco internações. Até o meu novo dia de nascimento: 3 de novembro de 2003. Nesse meio‑tempo, escolhi sempre ir ao fundo das coisas — até escolher sair de casa para viver na rua, na Cracolândia. As coisas que eu iz, que tive de fazer, por causa das minhas “escolhas”, não escondo que iz. Mas tenho vergonha de muitas delas. Contá‑las aqui também é um jeito de lamber as feridas.

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