Revista Gerador 10

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Antigamente não havia bilhetes de identidade, nem outras formas de usarmos as fotos tipo passe. Parece pergunta afirmativa do tipo o que terá vindo antes, galinha ou ovo? Mas as nossas caras só eram coisas para o campo da memória e como se dizia, e fazia sentido, quem vê caras não vê corações. A Benvinda deve ter tirado, assim se dizia, o B.I. lá pelos dez anos quando entrou para o ciclo preparatório e isso era coisa de durar um dia entre filas e ofertas de intermediários lá para o Arquivo de Identificação. Entre nervos miudinhos sobre a real altura que tinha, a Benvinda devia estar preocupada era com a fotografia. A assinatura tinha-a treinado em casa, o dedo para a impressão digital era o que era, mas a fotografia da sua cara e como os colegas iriam reagir, isso, sim, preocupava e muito a Benvinda.

Na nossa cultura a cara é tudo. É o que nos distingue nas primeiras impressões e até o que nos coloca dentro das videovigilâncias dos centros comerciais e dos aeroportos. Mas a cara não é só a nossa fisionomia, é também o nosso manifesto. É o que pomos à frente das nossas ideias mais principais. Não sei se a tradição de atirar ao ar vem dos filmes ou não, mas parece que por cá as moedas sempre tiveram uma cara de um lado e uma coroa do outro. Já para os romanos era um navio ou uma cabeça de imperador, para os espanhóis é a cara ou cruz e para os ingleses é só cabeças e caudas, mas isso não tem nada a ver com dar a cara (ou corpo) ao manifesto. Na nossa cultura, se a Benvinda estiver no meio da rua e alguém disser cara ou coroa, é um momento mágico em que se deixa

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Monumento Gerador Caretos pela Anita dos 7 Ofícios

A crítica, pelo nosso crítico contratado Amílcar Adeusinho

Juízos Gerador, as escolhas culturais da nossa equipa

BD Baile de Máscaras, inédito do José Lopes

A Carla Trindade ofereceu-se para reportar a Supernova

Autoridade local do Alentejo por Vasco Durão

Nuno Camarneiro escreve o último capítulo do nosso romance

Joana Clara, a nossa enviada ao Atalaia Artes Performativas

O serviço educativo do Museu Berardo contado pelo Hugo Filipe Lopes

Belarmino pela Inês Moreira Santos

Fotonovela Conta-histórias de Ana Sofia Paiva

Chernobil e Rádio Macau no mesmo texto de Alex Cortez

Fui ali comer caras e sobrevivi, por Manuel Luar

Agenda, para todos os gostos e feitios

Mas o que é isso do Gerador? Parceiros, loja e sócio gerador 05

O Café Central da Joana Rita com Nuno Lopes e Tiago Pereira

Direito de Resposta erótico da Maria Arrepiada Mental


MONUMENTO GERADOR

TEXTO E FOTOS POR ANA MORAIS • A Anita dos 7 ofícios •

A Anita vai aqui e ali, anda para trás e para a frente mas no meio de tanta aventura ainda tem tempo para sonhar, e sonhar com caretos não é para qualquer um. Sabem o que é um careto? Se não sabem, hão-de sonhar um dia com um. Mais tarde ou mais cedo, homens e mulheres, todos sonhamos com os caretos.

Estamos em plena guerra dos sexos, tu e eu. Quem faz o quê em casa, quem cozinha melhor, quem se relaciona melhor com as pessoas, quem sabe mais sobre tudo ou coisa nenhuma. A casa mais parece um campo de batalha, que um lar doce lar. Nessa noite aproveitei que chegavas tarde para te evitar e dormir. Não queria que lesses em mim a minha estranheza e desconforto. Adormeci logo. Acordei a transpirar. As imagens ainda persistiam, intermitentes. “Outra vez.” – pensei. Uma madrugada nublada, numa floresta densa. O cheiro a lenha a crepitar e a copas húmidas de amieiros, aquela máscara a fitar-me castanha, tosca, como que talhada à mão, num fato estranho que se confundia com a natureza, e que aparecia e desaparecia por detrás de cada tronco que o meu tacto não conseguia alcançar. Estava no centro de uma roda, num misto de medo e admiração. Soavam foguetes e bombos, e dançavam e urravam à minha volta bispos, reis e romanos, bruxas e diabos, burros, mochos e porcos em máscaras de madeira e vestidos com fatos elaborados com barba de milho entrelaçado, folhas, pedaços de tecido e palha. Nas mãos tapadas, ora uma enxada, ora uma forquilha, outros, um cajado ou nada. Lançavam-me farinha e água sem eu sequer

conseguir discernir homens de mulheres, nem lhes reconhecer características humanas. Quem seriam estes seres místicos e grotescos? Em segundos, deambulava por ruas estreitas, desconhecidas, com um cheiro intenso a lareiras ao relento, ao mesmo tempo que ouvia escárnio e maldizer. “Como sabem tudo isso?” – gritava eu para o nada envolta em nevoeiro. Ali só existiam as vozes e eu. Acordei já nos teus braços, confusa. Levantei-me decidida a deslindar este mistério e entre os teus “tu tens é uma imaginação muito fértil!” e “anda-te mas é deitar” encontrei estupefacta as máscaras que reincidiam nos meus sonhos: os caretos de Lazarim. “Afinal existem mesmo!” – exclamei alto para provocar o teu silêncio. Precisava de respostas rápidas a tantas questões que se acumulavam. Encontrei o contacto do Centro Interpretativo da Máscara Ibérica (CIMI) na vila de Lazarim e decidi seguir viagem até lá no dia seguinte, com ou sem ti. Embarcamos os dois nas minhas “loucuras” – como tu lhes chamas – e, à medida que te ia contando todos os detalhes dos sonhos que me assolavam nos últimos tempos, mais o teu silêncio se alongava.

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Embarcamos os dois nas minhas “loucuras” — como tu lhes chamas — e, à medida que te ia contando todos os detalhes dos sonhos que me assolavam nos últimos tempos, mais o teu silêncio se alongava.

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©josé lopes

BAILE DE MÁSCARAS Nasceu no planeta Terra em 1977. Estudou a arte do desenrascanço na universidade da vida. O seu trabalho principal é “dormir enquanto trabalha”, “não fazer nada sem que ninguém dê por isso”, e “façam o que quiserem desde que não me lixem”. Escreveu, produziu, realizou e montou uma vida de merda. Da sua obra não publicada consta: “A grande obraprima que eu nunca vou escrever nem desenhar porque sou um génio”. Na BD já perdeu a conta à quantidade de prémios que não ganhou, portanto não vai mencionar nenhum. Tem histórias publicadas em vários sítios mas não se lembra do caminho para a maior parte delas porque tem um péssimo sentido de orientação. Vive actualmente em Lisboa onde exerce a actividade de adulto responsável.

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da Bela Vista e no bairro da Jamaica. O filme podia correr o risco de parecer uma ficção inventada por nós, que servisse só para contar uma história. Queríamos falar na crise. Nós íamos para lá, atravessávamos a ponte e ouvíamos na rádio “estamos a viver acima das nossas possibilidades” e chegamos ao bairro e não é isso que encontramos. A maior parte das pessoas do filme são pessoas do bairro, são pessoas do boxe e o discurso não é imposto. Ensaiamos com eles alguns temas, porque isso é algo que faz parte do nosso processo de pesquisa. O que está no filme são coisas que nós não podíamos guionar ou escrever. Há coisas no filme que são coisas com as quais nós não concordamos. O lado documental transforma este problema, dá cara aos números do desemprego que para nós eram só números”.

caso houvesse um holocausto, e as pessoas do campo certamente sobreviviam todas. Há muita ignorância sobre este assunto: há preconceito e depois também não se quer saber”. O trabalho do Tiago permite que cada pessoa que é gravada, a cantar ou a tocar um tema da sua terra, dê a cara por si próprio. Muitas vezes, Tiago encontra o discurso ah isto que eu faço não vale nada, não tem importância nenhuma. E depois acontece algo: “Quando tu gravas e as pessoas vão ver, elas ganham outra perspectiva sobre si próprias. Isso é de tal forma gigante, que as pessoas até ganham memória”. Como assim, Tiago? “Encontras, por exemplo, uma senhora que te diz que não sabe nada, mas tu chegas lá e gravas uma música, mostras-lhe o vídeo e depois mais tarde ela liga-te a dizer olha que já me lembrei de mais umas músicas. Ensinas a pessoas a dar a cara sobre si próprias. Fazes um trabalho que é um despertar através do sentimento de que isso é possível. Não são elas que se estão a documentar a elas próprias, é verdade. Mas há um processo de consciencialização”.

Tiago, e o projecto Música Portuguesa A Gostar Dela Própria? “Aquilo é só sobre as pessoas reais. Há um estigma muito grande sobre o rural. Ser do campo é ser pobre ou ser mais burro do que os outros... eu não saberia sobreviver,

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É evidente a dedicação e a entrega com que Nuno e Tiago falam dos seus trabalhos. Falam disso com emoção e o brilho nos olhos de quem assume que isto é a sua vida e que não saberiam ser de outra forma.

estão a dar-te o que têm de mais íntimo. E isso, sim, é mesmo profundo”. Nuno acrescenta a estas palavras de Tiago: “E és constantemente surpreendido. Descobres coisas sobre ti, que não sabias. É muito gratificante, para nós. Há coisas que têm a ver contigo e que descobres neste processo em que somos vampiros e vamos lá sugar a vida às pessoas”. O actor traz à conversa o trabalho Estaleiros, uma peça de teatro encenada por si, a meias com Marco Martins, na qual dezasseis trabalhadores dos Estaleiros de Viana do Castelo assumem o trabalho de actores. Falam da sua experiência de vida que consistia em entrar todos os dias no seu local de trabalho para não fazer nada, durante dois anos. Nuno refere este como um dos trabalhos mais importantes da sua vida, por ter contribuído para outro olhar sobre os trabalhadores junto da população, por ter sentido que tinha acontecido uma mudança efectiva na vida das pessoas que estavam no palco e das que estavam na plateia.

“Lembro-me perfeitamente de pensar que quando gravo, por exemplo quando fiz a série O Povo que Canta, para a RTP2, ter esta ideia de que as pessoas não vêem desdentados na televisão. E tu ali tens pessoas que estão completamente orgulhosas do que estão a fazer, estão a cantar, estão a tocar e depois não têm dentes. E é o país. Isso, sim, é o país profundo. O país real é da mesma maneira que o Nuno sente que o discurso “vivemos acima das nossas possibilidades” não funciona naquele bairro que ele está a visitar... o país real é teres aquelas pessoas que não têm nada e que

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© elisa azevedo

Pudemos ver arte urbana até que o sol se pôs. Ao vivo, no momento, pelas mãos do genial Nicolae Negura, enquanto atravessávamos o Campus. No atelier da sexualidade, ouvimos a Carmo Gê Pereira pôr os pontos nos Gês. Questionámos tudo, sem tabus. Colocámos todas as nossas dúvidas sobre prazer, pecado, ética, pornografia... devias mesmo ter vindo! Na aula de fotografia, o Vitorino teve Coragem e abriu o jogo de luzes connosco. Ensinou-nos algumas das técnicas que utiliza nos seus magníficos e invejáveis trabalhos, de que nos falou com paixão. Mostrou-nos o homem por detrás da lente e, explicando-nos como ele mesmo desconstrói as imagens, desfazendo o conceito do bonito, incentivou-nos a encontrarmos o nosso próprio estilo. Tivemos terapia: foi preciso aguardarmos na sala de espera dos consultórios cheios, para conseguirmos os melhores conselhos médicos sobre música, livros e filmes, daqueles mesmo bons, dos que curam tudo. O Dr. Pedro Saavedra, especialista em Biblioterapia, recomendou os melhores livros para os nossos

problemas. O Dr. Domingos Coimbra, especialista em Musicoterapia, recomendou as melhores melodias. E o Dr. João Leitão, especialista em Filmoterapia, recomendou os melhores filmes. Tudo adaptado a ti, depois de ouvirem os teus problemas, numa consulta à séria. Mas aconteceram muitas mais coisas. Um café filosófico para ouvirmos temas que nos fazem pensar. Uma selfie tirada lá do alto da Torre da Nova, com uma incrível vista sobre a cidade a vermos o pôr-do-sol. Um atelier de Bullet Journaling. Uma aula aberta de Bollywood. O Chá dos Cinco, num debate sobre os temas mais complexos da actualidade. Imagina só esta cena: um sofá, onde ninguém se sentou, um cão de loiça e um candeeiro de pé, e, depois de nos oferecerem um gin tónico, estivemos a ouvir o Ivo Canelas projetar a sua poderosa voz pelo auditório da Nova, com o seu dom natural para o teatro, a caminhar por entre os ouvintes e a dar vida aos Contos do Gin-Tónic do surrealista Mário-Henrique Leiria. Foi deveras surreal! Se, com tudo o que fizemos até aqui, te consideras

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velho para estas andanças, aviso já que até A Avó Veio Trabalhar, com 74 anos, porque se sentiu Supernova! O Ângelo trouxe as avós todas para nos ensinarem a arte da serigrafia e, na sala dos ofícios, eu fui uma das convidadas a pôr as mãos na tinta. Se até eu consigo fazer... e não percebo supernada daquilo.

de escolha. Se o problema é a viagem até lá, podes trazer a tua bicla até à porta da Nova, aproveitas para a reparar e lavar gratuitamente. Ou apanhas a Órbita Supernova, que é grátis. Se quiseres brilhar mais ainda, podes mesmo chegar à Nova como uma estrela, basta aproveitares o desconto da Uber. Se gostas da liberdade, desde o momento em que te colocam a pulseira és livre para sair e entrar no recinto: podes ir ao estacionamento, espreitar se o carro se está a portar bem, as vezes que quiseres. Sempre que te sentires sozinho, abraças o Panda Jorge, a mascote da Supernova. Resumindo, foi um fenómeno inesperado. Se perdeste esta Supernova, não podes mesmo perder a próxima ou corres o risco de não fazeres parte desta galáxia! Como sabes, o Universo está sempre em expansão e tu, queres ficar de fora? Começa já a sacudir a poeira interestelar dos livros, dos discos e dos teus ombros... aqui só entra gente Supernova! E, como podes calcular, não é de idade que falamos.

Ah, espera, então não foi um festival de música? Foi, também... Fica a saber que a Supernova foi mesmo uma explosão de várias estrelas. Desde que a tarde começou que pudemos ouvir as Tunas da Nova a tocarem música moderna portuguesa, só com pandeiretas. O David Maranha e o Gabriel Ferrandini criaram um Buraco Negro: um jazz experimental às escuras. A Cafetra com montes de artistas, tais como o Éme, o João Dória, o Funcionário, o Yan-Gant Y-Tan & 666mfRAS, entre outros... o Coro da Nova, o Bernardo Lemos, os Bosque (a banda que ganhou o concurso de bandas da Nova deste ano), os Pista que trouxeram as guitarras desde o Barreiro e os Capitão Fausto, que nem morreram na praia nem têm os dias contados.

Carla Trindade, 18 Setembro 2016 (escrito em pleno desacordo)

© guilherme afonso

Queres mais algum motivo para não perderes a próxima Supernova? É que não tens desculpas. Tens vários sítios para comer e beber, com imensa variedade

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JoĂŁo de Azevedo por Nicolae Segura


MODERNISTA TRADICIONALISTA DÉCIMO E ÚLTIMO CAPÍTULO

© edite queiroz

Nuno Camarneiro nasceu na Figueira da Foz em 1977. Licenciou-se em Engenharia Física pela Universidade de Coimbra, trabalhou no CERN e doutorou-se em Ciência Aplicada ao Património Cultural pela Universidade de Florença, Itália. Em 2011 publicou o seu primeiro romance, No Meu Peito Não Cabem Pássaros, saudado pela crítica, publicado também no Brasil e em França. Em 2012 venceu o prémio Leya com o romance Debaixo de Algum Céu, já traduzido em italiano e brevemente em francês. Em 2015 publicou Se Eu Fosse Chão, um livro de contos, e Não Acordem os Pardais, um livro infantil, ambos pela editora Dom Quixote.

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VISITA GUIADA AO FESTIVAL

POR GIL SOUSA • Estagiário promovido a repórter •

Enviar um repórter muito jovem e um fotógrafo muito experiente, sozinhos, a um festival no meio da serra dos Candeeiros só poderia correr bem. Chegaram a horas, nunca se perderam e até entregaram os conteúdos no dia combinado. Será o triângulo de Mira D’Aire?

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Torres Novas, juntamente com Minde e Alcalena, é a casa do Materiais Diversos. E não fica assim tão longe. Ir e vir é um pulo, a viagem nem dá tempo de cansar. Porque o Materiais Diversos é um festival descentralizado, perguntávamo-nos se seria difícil descrevê-lo. Minde, Torres Novas e Alcalena ficam a uns bons quilómetros umas das outras; não há, como noutros festivais, um ambiente próprio de um evento que se instala num lugar e o toma de assalto. No dia que passámos a conhecer o festival, os espectáculos estavam instalados na Praça do Peixe e no Teatro Virgínia, tudo em Torres Novas, e as ruas estavam tão cheias quanto seria de esperar numa cidade do interior num sábado à tarde. O primeiro contacto da equipa Gerador com torrejanos (assim se chamam os autóctones) ocorreu por necessidade: precisávamos de saber a localização da Praça do Peixe e perguntámos pela dita a quatro convivas numa esplanada, que nos indicaram, à vez, quatro maneiras de fazer o percurso de dois minutos. Depois de agradecermos acrescentaram:

“mas olhe que isso é só às seis e meia”. Ficou estabelecido que o Materiais Diversos é mais subtil do que outros festivais do seu género, mas não é menos presente. Os transeuntes em Torres Novas sabem o que e onde se passa, e alguns, como as famílias que participaram no espectáculo Family Affair, da companhia Zimmerfrei, participam como artistas. Family Affair é um diálogo sobre a família. Ao longo dos anos, os Zimmerfrei, um colectivo de artistas cujo trabalho incide sobre a videoarte e o documentário, fizeram várias edições do espectáculo, cada uma contemplando um subtema diferente. No Materiais Diversos o tema é o legado, o encontro geracional e a comunicação neste momento privilegiado da história, em que alguém com vinte anos ainda pode ter contacto com um bisavô e vice-versa. Um dos assuntos que mais nos interessava explorar era a relação do festival com o espaço e a comunidade, e o Family Affair é o exemplo

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©estelle valente

CONTA-ESTÓRIAS

A estória entra pelo ouvido e sai pela boca. Mas antes agita-se, palpita, anda às voltas pela casa do nosso dentro, rasga corredores na carne e no espírito e cristaliza o conta-estórias num estado latente, catatónico. Fica-se interrompido da realidade, suspenso, encantado. Contar a estória é o processo de desencantamento desse estado. A estória sai e o contador liberta-se: manifesta-se. Aquela mulher que rasga a noite com o seu canto de espera não canta Abre a boca E solta os pássaros Que lhe povoam a garganta. Ana Paula Tavares, in O Lago da Lua

FOTONOVELA de Ana Sofia Paiva e Estelle Valente

Actriz, conta-estórias, cantadora e investigadora de folclore poético e narrativo. Dedica-se desde 2007 a recolher e recontar estórias, dentro e fora de Portugal. Conta estórias da tradição oral portuguesa, com breves incursões por outras partes do mundo: versões de contos, lendas, romances e cantigas que foi escutando a várias vozes, directa ou indirectamente. Conta para estar, para gerar, para semear, para ir – ao fundo e estruturando, palavra a palavra, a sua própria narrativa.

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VISITA GUIADA AO SERVIÇO EDUCATIVO

POR HUGO FILIPE LOPES • Se não tiver nada, pelo menos tem a mania •

Já toda a gente foi ao Museu Berardo milhões de vezes. Porque é de borla, porque está mesmo à mão ou para esmoer os pastéis de Belém. Porque é que desta vez havia de ser diferente? Porque fomos conhecer o Projecto Árvore, que o serviço educativo do Museu criou em parceria com jovens da Casa Pia a fim de dar utilidade à arte, neste caso enquanto forma de integração social.

Imitar não chega, a vida tem de ser arte. Normalmente a arte é aquela coisa snob, com gente emproada frente a uma pintura a discutir o vigor do traço e o contexto metafísico da obra. Pelo menos quando está nos museus. Mesmo quando olhamos para uma afirmação tão destruidora do status quo como o foram os ready-mades (espécie de obras pré-fabricadas) do percursor da arte conceptual Marcel Duchamp numa exposição, o seu poder dilui-se tornando o que outrora foi um acto incendiário em apenas outro longo bocejo. Por alguma razão durante a revolução do Maio de 68 se afirmava que a única altura em que uma biblioteca iluminaria alguém, seria quando estivesse em chamas e o mesmo é aplicável aos museus, que por estes dias pouco mais são do que cemitérios de arte. Mas da mesma forma que a dissecação de cadáveres ajuda no ensino da medicina, também a aprendizagem da arte (se tal for possível) se pode fazer com base em obras dos museus. Especialmente se falarmos

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de crianças e mais ainda se forem crianças retiradas das famílias, como o são as da Casa Pia. Mas que diferença poderá um programa educacional de um museu efectivamente fazer na vida de crianças cheias de problemas de integração, quando provavelmente até no ensino regular se deparam com grandes desafios? Como explica a coordenadora do serviço educativo do Museu Berardo, Cristina Gameiro, o contacto destas crianças com a arte resulta “porque é inclusivo”. O que, para jovens desenraizados, tem lógica pois parece ajudá-los a superar o estigma de não terem uma das coisas que mais contribui para definir a identidade de qualquer pessoa ocidental: uma casa. O facto de serem expostos a obras cujos autores estão muitas vezes ou a marimbar-se para o modo ortodoxo de viver ou fazem mesmo questão de o derrubar, é essencial para libertar o pensamento de estereótipos. Se a isso juntarmos o facto de o seu papel


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Ficha Técnica Edição #10 PROPRIETÁRIO E EDITOR Associação Cultural Gerador, Avenida Infante Santo, Número 60 L, 3.º A, 1350-179 Lisboa CONTRIBUINTE 513078690 REGISTO ERC 126542 Depósito legal 378686/14 DIRETOR Pedro Saavedra Periodicidade Trimestral Tiragem média 5000 exemplares SEDE DE REDAÇÃO Avenida Infante Santo, Número 60 L, 3.º A, 1350-179 Lisboa TIPOGRAFIA Jorge Fernandes Lda., Rua Quinta Conde de Mascarenhas, 9, 2820-652 Charneca da Caparica.

COLABORADORES

AUTORES

DIRECTOR

Alex Cortez Alex Gamela Ana Azevedo Ana Isabel Fernandes Ana Morais Carla Trindade Cláudia Ferreira Henriques Cláudia Lucas Chéu Gil Sousa Hugo Filipe Lopes Inês Moreira Santos Joana Clara Joana Rita Manuel Luar Márcia Balsas Miguel Ponte Pedro Antas Sara Fernandes Terry Costa Vasco Durão

Ana Gil Ana Sofia Paiva António Monteiro Dois Vês José Lopes Leonor Cunha Leslie Wang Maria Arrepiada Mental Maria Chinês Nicolae Negura Nuno Camarneiro Nuno Saraiva

Pedro Saavedra pedro.saavedra@gerador.eu

DESIGNER #10 Catarina Paulo catarinapaulo@gmail.com

FOTÓGRAFO E RETRATISTA Herberto Smith herbertosmith@gmail.com

REVISORA DE TEXTO Susana Vieira susanatvieira@gmail.com

DIRECTORA DE ARTE Sónia Rodrigues surumaki@gmail.com

ESTAGIÁRIO André Imenso Cruz revista@gerador.eu

MESTRE DE OBRAS

«ELE»

ARTISTA EDITOR

MEGAFONE

tiago.sigorelho @gerador.eu

miguel.bica @gerador.eu

pedro.saavedra @gerador.eu

margarida.marques @gerador.eu

AGRADECIMENTOS Adão Almeida | António da Cunha Telles | Café Garrett Cátia Nunes | CIMI e Progestur | Deolinda Mendes | Edições Tinta da China | Elisa Alves Festival Todos | Hélder Ferreira | João Almeida | João Rocha | Madalena Alfaia Miguel Antunes | Sara Oliveira | Teatro Nacional D. Maria II | Vitor Alves Brotas

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