Conteúdo para provas 3ªsérie 2ºbimestre 2015

Page 1

SITUAÇÃO DE APRENDIZAGEM 3 A CONDIÇÃO ANIMAL COMO PONTO INICIAL NO PROCESSO DE COMPREENSÃO SOBRE O HOMEM O olhar atento e reflexivo sobre a nossa condição animal nos remete a um cenário de disputas de alimento, de território, de machos e de fêmeas. Esse mesmo olhar nos remete, portanto, a um traço fundamental do ser humano, que é a possibilidade de destruição de outros seres na luta pela sobrevivência e na luta por poder e bens que, em um primeiro momento, não estão ao seu alcance. A re- flexão filosófica não pode ignorar esse traço constitutivo de nossa realidade e não pode deixar de formular duas perguntas centrais: Como a humanidade construiu sua convivência enfrentando esta disputa? Como é possível uma educação dos homens para garantir sobrevivência em cooperação e solidariedade?

O que dizem dois filósofos? Em geral, a Filosofia e as ciências contam com uma vasta literatura que aborda a importância de se distinguir o ser humano dos demais seres da natureza. Já no século XVII, e com mais vigor a partir do século XIX, as ciências se afirmaram como conhecimento capaz de não apenas demonstrar a superioridade humana na natureza, mas de conceber a necessidade de dominar essa mesma natureza, construindo a ideia de que não somos apenas diferentes, mas superiores aos outros seres. Essa consciência pode ter impulsionado todas as maravilhas técnicas e científicas que a humanidade edificou. Mas responde também pela ilusão de que somos capazes de intervir e controlar a natureza sem consequências desastrosas para nós mesmos e para todo o planeta. Uma ideia importante desta Situação de Aprendizagem é considerarmos a perspectiva de não nos vermos como seres distintos e superiores, mas distintos e ocupantes de um mesmo contexto material, natural; distintos e responsáveis justamente por sermos seres de consciência, capazes de prever consequências, assumir equívocos e de rever metas contemplando a preservação da própria vida e a de outros seres.

Descartes e Pascal nos oferecem dois textos interessantes para inspirar essa consciência sobre nossa inserção em uma natureza material assim como a todos os seres que nos cercam. Ambos foram escritos no século XVII. Destacamos dois fragmentos desses textos para a reflexão

Meditações E, primeiro, não existe nenhuma dúvida que tudo o que a natureza me ensina contém algo de verdadeiro […]. Ora, não há nada que essa natureza me ensine mais claramente nem mais sensivelmente que o fato de eu ter um corpo que fica indisposto quando sinto dor, que tem necessidade de comer ou de beber quando tenho os sentimentos de fome ou de sede etc. E, portanto, eu não posso absolutamente duvidar que tenha alguma verdade nisso. A natureza me ensina também por meio desses sentimentos de dor, fome, sede etc. que eu não estou apenas alojado em meu corpo como um comandante em seu navio, mas que, além disso, lhe estou muito intimamente conjugado e tão entrelaçado e misturado que componho um único todo com ele. [...] Além disso, a natureza me ensina que vários outros corpos existem em volta do meu, alguns dos quais devo seguir e de outros fugir. DESCARTES, René. Oeuvres philosophiques de Descartes. Adolphe Garnier (Org.). V. 1. Paris: Librairie Classique et Élémentaire de L. Hacuette, 1835. Disponível em: <http://goo.gl/bG4L0F>. Acesso em: 16 out. 2013. Tradução Célia Gambini.

O homem perante a natureza A primeira coisa que se oferece ao homem ao contemplar-se a si próprio é seu corpo, isto é, certa parcela de matéria que lhe é peculiar. Mas, para compreender o que ela representa e fixá-la dentro de seus justos limites, precisa compará-la a tudo o que se encontra acima ou abaixo dela. Não se atenha, pois, a olhar para os objetos que o cercam, simplesmente, mas contemple a natureza inteira na sua alta e plena majestade. Considere esta brilhante luz colocada acima dele como uma lâmpada eterna para iluminar o universo, e que a Terra lhe apareça como um ponto na

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

1


órbita ampla deste astro e maravilhe-se de ver que essa amplitude não passa de um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento. E se nossa vista aí se detém, que nossa imaginação não pare; mais rapidamente se cansará ela de conceber, que a natureza de revelar. Todo esse mundo visível é apenas um traço perceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado a conhecer de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além de espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação com a realidade das coisas. [...] Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada, em relação ao infinito; tudo, em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas quanto o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e élhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve. PASCAL, Blaise. Parte dois. Pensamentos. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Reflexão do texto Merecem destaque: A afirmação enfática de que somos um corpo; A imagem de que a natureza me ensina que convivo com outros corpos;

A ideia de que fujo de alguns e de outros me aproximo; A ideia de que não vemos, não compreendemos nossos extremos: nem fim, nem princípio; A ideia de que somos nada em relação ao infinito, porém somos tudo em relação ao nada. Se um texto (Descartes) traz a visão de conflito do homem consigo mesmo, o outro (Pascal) traz a ideia de nossa limitação diante da natureza. Duas condições básicas da existência humana que precisam ser corajosa e filosoficamente enfrentadas para a compreensão do ser humano. Qualquer projeto educacional com vista à preservação da natureza, e com esta à preservação da humanidade, requer conscientização sobre nossos limites e nossas necessidades como seres corpóreos que até o presente momento nada sabe sobre seu início, seu fim e que continuam a destruir-se mutuamente.

Questões sobre o texto 1.Quais são as consequências de termos um corpo humano? A necessidade de nos alimentar, de defecar, de promover a higiene do nosso corpo, assim como as possibilidades de manusear e fabricar coisas, e como essas ações, derivadas do fato de termos um corpo, afetam outros corpos dispostos no meio ambiente. Quais desafios o fato de ter um corpo me traz?

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

2


SITUAÇÃO DE APRENDIZAGEM 4 A LINGUAGEM E A LÍNGUA COMO CARACTERÍSTICAS QUE IDENTIFICAM A ESPÉCIE HUMANA Linguagem é palavra associada aos processos de comunicação entre os seres. Compreendida em um sentido amplo, está presente nas práticas realizadas por todos os animais, incluindo gestos, movimentos, sinais de diversas naturezas, cores, sons; não é, portanto, um processo exclusivamente associado aos seres humanos. Aristóteles, em seu livro A política, anunciou essa especificidade humana afirmando que todos os animais têm vozes, mas somente o homem tem palavra. As palavras articulam-se no contexto de uma língua. Por isto é possível afirmar que não existe pensamento sem a base, sem o suporte de uma língua.

A língua e os saberes coletivos A língua, por sua vez, tem seus suportes. A língua falada tem como base física os sons, ou seja, a vibração do ar, e a língua escrita tem sua base na imagem, quer dizer, em um desenho no espaço. Ela também tem uma base física no animal que fala. A língua falada de- pende de um aparelho fonético bastante sofisticado, e a língua escrita depende de uma mão igualmente sofisticada. Há, ainda, a linguagem de sinais, que tem como base os gestos decorrentes de uma linguagem natural. Todas apresentam características exclusivas da nossa espécie. As línguas falada, escrita e de sinais têm uma base cultural, pois são indissociavelmente ligadas a uma forma de vida, uma cultura determinada. Ao mesmo tempo que a cultura é gerada pela língua, ela também gera a língua. Ao nomear, classificar, categorizar, registrar suas experiências vitais. A língua é o “saber coletivo” fundamental de um povo, de uma nação, de uma cultura. É fundamental porque, com a língua, os grupos humanos fundam sua identidade, por meio das palavras que organizam e nomeiam suas atividades para sobrevivência, suas crenças, seus valores, suas artes. Assim como é verdadeira a afirmação de que existem comunicações sem palavras, é verdadeira a impossibilidade de constituição de um agrupamento humano, seja uma

tribo, uma cidade ou um país, sem a edificação de saberes coletivos que são planejados, registrados – ainda que na memória da tradição oral – e comunicados pela língua de geração em geração. A língua é o saber coletivo mais bem repartido de um povo ou comunidade. Além disso, é um saber em contínua transformação e crescimento. Todos nós aprendemos a língua constantemente e todos nós ensinamos a língua constantemente. A língua de um povo, portanto, é um instrumento valioso para a sua identidade. Ela é a espinha dorsal de uma sociedade ou cultura. E é por isso que os antropólogos, quando se deparam com uma nação tribal em risco, imediatamente chamam os linguistas para fixarem a língua em uma escrita, na tentativa de não a deixar morrer. Pensamos, falamos, lemos e escrevemos as palavras que herdamos como seres nascidos em tempo e espaço determinados, em meio a saberes coletivos já consolidados. Herdamos a língua com as palavras já enredadas em significados. É com essas palavras, com essa herança que é a língua, que abarca os saberes coletivos de nosso grupo cultural e o universo de significados por ele produzidos, que construímos nossa arte, nossa expressão escrita e falada, nosso modo de ler e dizer o mundo.

A língua como criadora de realidades Outra característica importante do ser humano que é permitida pela linguagem pode ser encontrada na capacidade de sair do presente e da presença do que é visto para lançar--se ao passado, ao futuro e a mundos nunca visitados. Aliadas à faculdade da memória, a língua e a linguagem nos trazem registros do passado; e aliadas à nossa capacidade imaginativa, nos projetam para o futuro. Passado e futuro só existem por causa da linguagem e da palavra. A característica virtual da linguagem e da língua permite essa fuga para lugares não existentes. Tal virtualidade permite, ainda, que pensemos em objetos que não estão presentes e sobre experiências que não são nossas. Com a linguagem e a língua, representamos o mundo, imaginamos outras

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

3


formas de viver e elaboramos saberes coletivos que herdamos e transmitimos para gerações que nos sucedem.

A Filosofia como o cuidado com as criações da palavra Até o momento, vimos que o homem é um ser de linguagem assim como os outros animais, mas que em sua linguagem há uma especificidade que o distingue e que se chama “palavra”. A palavra relaciona-se ao pensamento, criando-o e sendo criada por ele. Vimos que as palavras se articulam na língua de forma a descrever e nomear as coisas do mundo, mas não somente isso. A língua é um processo bastante complexo, associado às ações humanas, ao que os seres humanos fazem para sobreviver, mas, sobretudo, é um processo que permite a construção de significados ou de saberes coletivos como a ciência, a religião, a técnica, a tecnologia, a arte. Vimos que linguagem e língua permitem, ainda, que o ser humano ocupe um lugar imaginário, escapando do mundo tal como se mostra. E a Filosofia? Também resulta da capacidade humana de criar a língua e é criada por essa capacidade reciprocamente. Os conceitos filosóficos e os modos de sua enunciação nada mais são do que o resultado de uma depuração do uso comum de uma língua. Esse processo pode ocorrer deliberadamente e resultar na criação de um sistema filosófico, como quando, por exemplo, um filósofo se debruça sobre noções morais encontradas no senso comum para examinar se estão corretamente

formuladas ou não, como fez Kant em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes (1784). Pode ser também que um filósofo se sirva da linguagem comum para expressar concepções inusitadas, valendo-se, para tanto, do recurso a um estilo particular, como Rousseau, no Discurso sobre os fundamentos e a origem da desigualdade entre os homens (1756), obra que pretende demonstrar uma verdade que poucos perceberam, por meio de uma linguagem que todos conhecem, moldada por um estilo elevado e comovente. Por fim, frequentemente acontece de a própria linguagem comum embutir conceitos e raciocínios filosóficos de maneira irrefletida, que ali se encontram pelo acúmulo de experiências dos diferentes usuários da língua ao longo do tempo. Encontramos exemplos abundantes disso na maneira como são utilizadas as definições de nomes, ou como são estabelecidas as relações entre sujeito e predicado, na atribuição dos gêneros, nas flexões e declinações, em praticamente todas as operações gramaticais. Toda língua tem regras, é como um sistema, e funciona como uma espécie de reflexão sobre si mesma, ou seja, sobre a sua própria capacidade de enunciação. Isso mostra que há muito em comum entre o uso de uma língua e o pensamento filosófico. É curioso notar que o sentido e o significado são transmitidos, nas línguas, pela expressividade dos sons, e que, portanto, o que a língua pensa, ou permite pensar, quando a falamos ou a ouvimos, é comunicado pela sensibilidade e tem efeito direto nesta. Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

4


SITUAÇÃO DE APRENDIZAGEM 5 FILOSOFIA E RELIGIÃO Diferenças entre Filosofia e Religião O primeiro esforço para pensar as relações entre a Filosofia, a Mitologia e a Religião conduz à questão sobre a origem da Filosofia. É bastante divulgada a ideia de que o modo de pensar, que hoje identificamos como próprio da Filosofia, tem origem na Grécia Antiga, no final do século VII a.C. e início do século VI a.C. Atribui-se a Pitágoras (570 a.C.-496 a.C.) o emprego da palavra “filosofia” pela primeira vez, unindo dois termos: philia ou philos (amizade) e sophia ou sophos (saber), o que resultou em uma palavra que expressa amor pela sabedoria. Esse modo de pensar teria surgido com a necessidade de se responder a questões sobre o mundo natural e sobre os homens, que não haviam sido respondidas, de maneira plenamente satisfatória, pelas narrativas mitológicas. O segundo esforço para pensar as relações entre a Filosofia, a Mitologia e a Religião é justamente de distinguir perguntas e respostas próprias a cada um desses modos de pensar. Sobre a origem da Filosofia como necessidade grega de criar uma forma de pensamento que pudesse melhor explicar o mundo, deve-se considerar que egípcios, mesopotâmios, hindus e chineses, ou seja, o oriente e norte da África, também criaram filosofias em períodos concomitantes ou anteriores aos primeiros filósofos gregos. Historiadores como Abel Rey – pesquisador português contemporâneo – defendem a ideia de que não se pode afirmar que a origem da Filosofia tenha se dado exclusivamente na Grécia, porque os próprios gregos exaltaram a sabedoria oriental. Dessa forma, o ideal é perguntarmos pela origem da Filosofia tanto no campo do pensamento oriental como no campo do pensamento ocidental. Historiadores da Filosofia, entre os quais destacamos Werner Jaeger, defendem ainda que a Filosofia não surgiu em contraposição e como algo absolutamente diferente dos mitos, mas sim com base nesses, com base em temas e preocupações predominantes nos discursos religioso e mitológico registrados em poemas como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, e nos poemas de Hesíodo, por exemplo. Os historiadores destacam vários aspectos que são comuns a ambos: preocupação dos poetas por apresentar causas e motivos das ações; esforço para

descrever os fatos em uma abrangência que abarca deuses, homens, terra, céu, guerra, paz, bem e mal; preocupação dos poetas por construir narrativas para ensinar a justiça como virtude fundamental. O mito, assim, já contemplaria a estrutura de apresentação dos fatos e os temas valorizados pela Filosofia. Se a Filosofia não é uma inovação que rompe radicalmente com o discurso próprio dos mitos, dos poemas e da Religião, deve-se perguntar, então, qual é a sua novidade, qual é a sua diferença? Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola.

Crítica da razão pura, de Immanuel Kant I. Da diferença entre o conhecimento puro e o conhecimento empírico Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; pois de que outro modo poderia a nossa faculdade de conhecimento ser despertada para o exercício, não fosse por meio de objetos que estimulam nossos sentidos e, em parte, produzem representações por si mesmos, em parte colocam em movimento a atividade de nosso entendimento, levando-a a compará-las, conectá-las ou separá-las e, assim, transformar a matéria bruta das impressões sensíveis em um conhecimento de objetos chamado experiência? No que diz respeito a um tempo, portanto, nenhum conhecimento antecede em nós à experiência, e com esta começam todos. Ainda, porém, que todo nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso surge ele apenas da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento por experiência fosse um composto daquilo que recebemos por meio de impressões e daquilo que nossa própria faculdade de conhecimento (apenas movida por impressões sensíveis) produz por si mesma; uma soma que não podemos diferenciar daquela matéria básica enquanto um longo exercício não nos tenha tornado atentos a isso e aptos a efetuar tal distinção. Aquela expressão não é suficientemente determinada, contudo, para designar de maneira adequada o sentido integral da questão posta. Pois, se

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

5


costuma dizer, de muitos conhecimentos derivados de fontes da experiência que nós somos capazes ou participantes deles a priori, na medida em que não os derivamos imediatamente da experiência, mas sim de uma regra universal que, no entanto, tomamos emprestada da própria experiência. Assim, diz-se de alguém que solapou os fundamentos de sua casa que ele poderia saber a priori que ela cairia, i.e., ele não precisava esperar pela experiência em que ela de fato caísse. Inteiramente a priori, contudo, ele não poderia mesmo sabê-lo. Pois teria que aprender antes, por meio da experiência, que os corpos são pesados e, por isso, caem quando lhes é retirado o suporte. No que segue, portanto, entendermos por conhecimento a priori aqueles que se dão não independentemente desta ou daquela, mas de toda e qualquer experiência. A eles se supõe os conhecimentos empíricos ou aqueles que só são possíveis a posteriori, i.e., por meio da experiência. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Fernando Costa Mattos. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013. p. 45-46.

Diferenças entre Mito e religião Ao compararmos o texto filosófico e o texto mitológico, podemos observar diferenças no que se refere ao conteúdo e à forma de abordá-lo. Mas quais seriam as relações e as diferenças entre as narrativas mitológicas e o discurso religioso? Podemos identificar um caminho seguro que nos permita estabelecer relações e rupturas entre o mito e a religião? Trata-se de um tema muito complexo, mas, em linhas gerais, procuramos trazer alguns elementos para o entendimento do tema e aprofundar as nossas reflexões. Partimos do entendimento de que a crescente complexidade dos mitos e a fundação de religiões têm relação com o aumento da complexidade na relação entre os homens e entre os homens e a natureza. As mudanças na produção da vida, nas relações com os outros, a crescente complexidade na relação com o mundo e com os outros refletem nas práticas produtivas, na relação com o simbólico e com as práticas relacionadas ao sagrado. Nesse sentido, podemos estabelecer uma ligação entre a produção da vida material, a narrativa mitológica e a composição do sentimento religioso. Apesar de estabelecermos essa ligação, não é possível identificar com precisão um momento específico em que o mito é relegado em prol da religião, ou em que momento o mito torna-se base para a fundação de uma crença religiosa ou até que

ponto o mito proporciona a experiência religiosa. Mas, se não podemos identificar esse momento, podemos, a partir das contribuições oriundas de estudos antropológicos, reconhecer diferentes etapas mitológicas e até conjecturar sobre como a crescente complexidade das relações entre a produção da vida e dos mitos permitiram o estabelecimento de religiões. Indicamos três etapas básicas, nas quais consideramos um trajeto em que a inquietação e o empenho em desvendar os mistérios do mundo compõem um sentimento e um certo estabelecimento da história do sagrado. Primeira etapa: Recortamos como primeira etapa a relação entre os homens, seus sentimentos e anseios e as forças da natureza. Os homens reconhecem as suas necessidades e fragilidades e que estão diante de um mundo hostil, cujos eventos ainda não podem ser explicados. Os homens reconhecem que as forças naturais podem ser benéficas ou prejudiciais aos empreendimentos humanos e essa percepção é marcada pelo medo e pela alegria. A força do sagrado manifesta-se nos elementos e nos fenômenos naturais, assim como nas disposições do humano. Segunda etapa: A segunda etapa tem relação com a presença de deuses mais personalizados, mais próximos dos homens e das suas artes; a complexidade da vida exige deuses mais personalizados e com funções específicas. Mais do que favorecimento em relação às forças da natureza, existe a perspectiva de fundamentar as regras e as normas relativas a ações mais complexas como, por exemplo, as regras para a composição e harmonia do lar ou regras para promover a fertilidade do solo, favorecer a colheita abundante, provocar as chuvas, entre outras. Pela complexidade da função dos deuses em relação às necessidades e atividades humanas, a evocação passa a ter características específicas e, assim, convertidas em práticas de rituais. Terceira etapa: Os deuses compartilham dos sentimentos humanos e a complexidade de suas intervenções fica cada vez maior. Com o desenvolvimento dessa fase representada por uma crescente complexidade da vida e das ações humanas, há condições para o estabelecimento de religiões monoteístas e politeístas. O entendimento do divino, nessa fase, passa por questões de ordem subjetiva e moral e, dessa forma, a divindade passa a atuar nas relações entre o bem e o mal e atua como poder de

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

6


justiça, cujo critério nas religiões monoteístas é revelado por um profeta e escrito em um livro sagrado e, nas religiões politeístas (gregos antigos, indígenas e alguns países do continente africano), que não são pautadas por escrituras sagradas, os acessos aos mistérios do mundo são diversos. Essas breves considerações tiveram o sentido de mostrar possíveis aspectos da relação entre mito e religião; a partir delas, podemos pensar, num primeiro momento, que, para os homens, nas suas re- lações com os eventos da natureza e com os eventos humanos, nada é natural. Essa perspectiva está presente na narrativa mitológica, cujos eventos sempre têm uma explicação que está além da natureza, e no discurso religioso, cuja valorização da vontade em

relação à adesão ao bem deve estar acima de qualquer força da natureza. Esse tema e as possíveis reflexões e discussões que ele suscita é atual e é preciso destacar que esses discursos convivem. Não podemos dizer que a religião suplantou as narrativas mitológicas, assim como não podemos afirmar que o discurso religioso tem se fragilizado diante do discurso científico. O convite desta Situação de Aprendizagem tem o sentido de sensibilizar para reconhecer a especificidade de cada um desses discursos e narrativas e procurar estabelecer possibilidades de aproximações, rompi- mentos e até que ponto um não pode ser reconhecido sem o outro. Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola.

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

7


SITUAÇÃO DE APRENDIZAGEM 6 O HOMEM COMO SER POLÍTICO Como teria surgido a referência à política na história da Filosofia? Os Grego e a Democracia Entre as diversas questões que a filosofia visa investigar, pode-se perguntar sobre como é e como deveria ser o convívio em sociedade. Se for investigada a palavra política, que vem do grego, será compreendido que politika refere-se aos assuntos da cidade (pólis). É neste sentido que, em filosofia política, pergunta-se sobre a natureza das leis, a natureza do governo, a origem da organização social e sobre qual seria a melhor forma de convívio entre os indivíduos. Todos estes temas nos levam a pensar sobre o espaço público, que é o espaço da política. O primeiro filósofo a sistematizar uma ideia política foi Platão (428-7 – 348-7 a.C.). Ele escreveu sobre o assunto principalmente em dois livros, A república e As leis. Nestes livros, apresenta a ideia de que uma sociedade bem ordenada é aquela onde cada indivíduo desempenha a função na qual é mais habilidoso. Os hábeis com as mãos deveriam ser artesãos, os fortes devem proteger a cidade e os sábios devem governá-la. Platão pensa também sobre como deve ser a educação nesta cidade ideal, para conseguir desenvolver em cada criança o seu potencial a fim de que possa executar melhor a sua função. Cada indivíduo, para ele, será livre enquanto estiver cumprindo as leis, criadas com o intuito de melhor conduzir a cidade. Ainda no mundo grego, Aristóteles (384 – 322 a.C.) vai discordar de Platão. Em Política, Aristóteles pensa que a cidade ideal de Platão, onde há prioridade daquilo que é público sobre aquilo que é privado, não funcionaria muito bem. Para ele, as pessoas dão mais valor ao que pertence a si mesmo, do que ao que pertence a todos. Aristóteles se preocupou menos com hipóteses de uma sociedade perfeita e mais em compreender a realidade política de seu tempo, estudando as leis de diferentes cidades e as formas de governo existentes. A melhor forma de organização política, defendida por ele, é um sistema misto de democracia e aristocracia, chamado política, para evitar os conflitos de interesses entre os ricos e pobres. É dele também a ideia de que o homem é um animal

político, isto é, que faz parte da natureza humana se organizar politicamente. A ideia de que é natural se organizar politicamente perdurou até o séc. XVII. Thomas Hobbes (1588 – 1679), conhecido por ter escrito Leviatã, propôs a ideia de que a sociedade se organiza a partir de um contrato social. Pensou assim, pois é possível imaginar uma hipótese sobre o convívio humano antes da formação das sociedades. Hobbes via esse momento como uma guerra de todos contra todos, onde, em liberdade, cada indivíduo iria apenas pensar em sua conservação. Deste momento, no qual o homem é o lobo do homem, a racionalidade faz o homem perceber que a melhor forma de conservar a sua vida é perdendo um pouco de liberdade. É neste instante que os homens assinam um contrato fictício de convívio social. A partir desta origem da sociedade, Hobbes pensa no melhor governo para evitar o retorno para um estado de natureza caótico. Com isto, vê a garantia da vida como função vital do Estado, que deve defendê-la mesmo que use de seu poder para coagir a liberdade dos cidadãos. Pensando na ideia de um contrato social, John Locke (1632 – 1704), em seus dois tratados políticos, escreveu que antes da formação das sociedades os indivíduos não viviam em guerra, pois estavam debaixo de leis naturais. Para ele, é natural a garantia da vida e os homens racionais respeitariam esta lei. A formação das sociedades ocorre pela necessidade da garantia da propriedade. O melhor governo, para Locke, é aquele que garanta os direitos à vida, liberdade, propriedade e de se revoltar contra governos injustos e leis injustas. Ainda pensando sobre a noção de contrato, JeanJacques Rousseau (1712 – 1778) via o homem vivendo antes da formação das sociedades de forma bem otimista. Para Rousseau, havia terra e alimento para todos e não haveria motivos para que guerreassem entre si. Via no surgimento da propriedade o surgimento da desigualdade, de onde resultam diversos males sociais, como os roubos e os assassinatos. Neste sentido, sendo impossível retornar a um estado de natureza, o melhor governo é aquele que esteja de acordo com a vontade da maioria. A forma de pensar dos contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau) foi retomada no século XX por John Rawls (1921 – 2002). Para ele, a sociedade deve

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

8


basear-se em princípios de justiça escolhidos na fundação da sociedade. Em igualdade, ele pensa, os indivíduos escolheriam dois princípios de justiça, o de liberdades iguais para todos e o de que as desigualdades devem trazer maior benefício para os menos favorecidos e serem acessíveis a todos por igualdade de oportunidade. Filipe Rangel Celeti: Bacharel em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP; Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP

Sócrates e a Virtude Política Segundo a tradição filosófica grega, pode-se destacar, mais uma vez, a contribuição de Platão e Aristóteles para pensarmos a política em uma

perspectiva original, distante das conotações assumidas em nossa sociedade e na sociedade brasileira em especial. Um dos diálogos de Platão (428 a.C.- 347 a.C.) apresenta uma das teses mais antigas sobre a arte da política. Além de antiga, ela tornou-se um marco na história da Filosofia. O diálogo chama-se Protágoras, e a tese sobre a virtude política encontra-se no trecho que ficou conhecido como o Mito de Protágoras. Um jovem chamado Hipócrates pede que Sócrates o apresente a Protágoras (480 a.C.- 410 a.C.) na esperança de tornar-se seu discípulo, por quem tem grande admiração. Sócrates leva Hipócrates a uma reunião, na qual Protágoras se exibe para uma pequena plateia de atenienses. Ler texto no caderno do aluno página 58 a 59.

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

9


SITUAÇÃO DE APRENDIZAGEM 8 A DESIGUALDADE SEGUNDO ROUSSEAU Em 1753, Rousseau decide trabalhar no novo assunto proposto para a Academia de Dijon: "qual é a origem da desigualdade entre os homens, e se ela é autorizada pela lei natural". Esse seu retorno evidencia que, apesar da reforma que impusera à sua própria vida, a glória ainda o seduzia. Embora habitasse Paris, Rousseau fez à Saint Germain "uma viagem de sete ou oito dias" para "meditar à vontade sobre esse grande assunto". "Embrenhado na floresta, procurava nela e nela encontrei a imagem dos primeiros tempos, de que fielmente traçava a história" dizia ele; "peguei as pequenas mentiras dos homens; ousei desvendar sua natureza, seguir o progresso do tempo e das coisas que às desfiguraram e comparando o homem do homem com o homem natural mostrar-lhes em seu pretenso aperfeiçoamento à verdadeira fonte de suas misérias".

Desigualdade natural e desigualdade social Em 1753, a Academia de Dijon, na França, lançou um concurso no qual os interessados deveriam discorrer sobre as seguintes questões: Qual é a origem da desigualdade entre os homens? É autorizada pela lei natural? Jean-Jacques Rousseau já havia vencido anteriormente um concurso semelhante, proposto pela mesma academia, sobre o tema “Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para cor- romper ou apurar os costumes”. Ele resolveu, então, participar de novo, escrevendo seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Vejamos como, nesse texto, o autor explicou o surgimento da desigualdade social. Rousseau iniciou distinguindo dois tipos de desigualdade: uma instituída pela natureza e outra produzida pelos homens. Deixemos, porém, que o próprio autor, em sua obra, explique mais claramente a diferença entre elas: “Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade; uma, que chamo de natural ou física, por- que é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo

consentimento dos homens. Esta consiste nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo fazerem-se obedecer por eles. ” Diz Rousseau: “Não se pode perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, porque a resposta se encontraria enunciada na simples definição da palavra”: ela decorre da natureza. Por isso, o autor dedicou-se a investigar as origens da desigualdade que ele chamou de “moral ou política”, isto é, da desigualdade social, procurando compreender o processo pelo qual ela foi gradualmente instituída pelos homens, desde os tempos mais remotos, até chegar ao estado em que se encontrava à época em que ele vivia (Europa do século XVIII). Quanto ao método adotado para empreender tal investigação, Rousseau esclareceu que “Não se deve tomar as pesquisas que podemos realizar sobre este tema por verdades históricas, mas somente por raciocínios hipotéticos e condicionais”. Ele também não levou em consideração as explicações dadas pela religião, segundo as quais a desigualdade resultaria da vontade de Deus, preferindo deixar de lado os dogmas da fé e, fazendo uso apenas da razão, “formar conjecturas, tiradas somente da natureza do homem e dos seres que o rodeiam”. Esclarece, ainda, que não se preocuparia em “considerá-lo [o homem] desde a sua origem e examiná-lo [...] no primeiro embrião da espécie”. Para entender como por meio de sucessivos desenvolvimentos ele chegou a ser o que é atualmente. Disse o autor: “Não me deterei a buscar no sistema animal o que pode ter sido no começo para se tornar afinal o que é. Não examinarei, como pensa Aristóteles, se suas unhas alongadas não foram a princípio garras recurvadas; se não era peludo como um urso; e se, ao andar sobre quatro patas, seu olhar dirigido para a terra e limitado a um horizonte de alguns passos não marcaria ao mesmo tempo o caráter e o limite de suas ideias”. Na realidade, Rousseau optou por não recorrer aos conhecimentos disponíveis já naquela época sobre as possíveis mudanças na conformação física e na anatomia do homem, por se tratar de assunto sobre o qual ele apenas poderia formular “conjecturas vagas e

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

10


quase imaginárias”. Em vez disso, preferiu supor o homem como ele é hoje: “andando com dois pés, servindo-se de suas mãos como fazemos com as nossas, dirigindo o olhar para toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu”. Vale lembrar que Rousseau não conheceu a teoria da evolução, de Darwin, que somente surgiria no século XIX. Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola.

Comentário do Texto A nosso ver, importa destacar nesse texto as duas espécies de desigualdade definidas por Rousseau e suas considerações quanto aos procedimentos metodológicos que ele adotou. No primeiro caso, Rousseau distinguiu desigualdade natural de desigualdade convencional, esclarecendo que é desta última que irá tratar na obra em questão. No segundo, explicou que utilizará raciocínios hipotéticos e condicionais e que, por isso, suas conclusões não

podem ser tomadas como verdades históricas. Acreditamos que essa informação é importante para que os alunos evitem justamente tomá-las como tais e também para que entrem em contato com esse tipo de raciocínio (hipotético e condicional) empregado pelo autor. Ainda sobre as considerações metodológicas do autor, convém reforçar também que ele opta por deixar de lado tanto as explicações religiosas para a desigualdade, preferindo buscar compreender seu objeto de estudo apenas à luz da razão (e neste ponto ele parece estar em perfeita sintonia com o movimento Iluminista), quanto os conhecimentos já disponíveis em sua época sobre as mudanças na conformação física e anatômica do ser humano. Não está preocupado, portanto, em descrever a evolução biológica do homem, mas em compreender os traços característicos de sua natureza e os caminhos pelos quais passou do estado de natureza ao estado social, culminando com a instituição da desigualdade.

RESUMO GERAL PARA AVALIAÇÕES DE FILOSOFIA – 3ªSÉRIE – 2ºBIMESTRE

11


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.