INTERIORES EM BUSCA DO ETERNO PRESENTE
Existe em nós um desejo constante para encontrar um sentido de vida, seja no trabalho, nos relacionamentos, no dinheiro, na fama. Estamos sempre desejando alguma coisa, sempre na expectativa de uma satisfação. No entanto, sempre constatamos que alcançado este ou aquele ideal, surge novamente o vazio, e uma maior insatisfação. Vivemos perdidos como num sonho, que desfoca a nossa visão e adormece a nossa alma. Tal um saco furado, quanto mais o homem possuir, maior será a sua ilusão e mais distante estará de sua verdadeira meta. É a pobreza espiritual e não a material a responsável pelo sofrimento humano. Até mesmo quando tentamos alcançar o estado de perfeição, percorremos um caminho totalmente falso, que nos conduz a mais condicionamentos, a mais divisões, a mais frustrações. Acreditar que a felicidade pode ser atingida gradativamente por meio de esforços intelectuais, torna o homem apenas um erudito, mas jamais um sábio. Entender intelectualmente apenas é estar sempre no terreno do verbalismo e não é esta a verdade que o sábio tem por objetivo.
A humanidade progride lentamente semelhante a um rio que segue seu curso, e como uma gota d ĂĄgua nĂŁo pode opor-se Ă corrente que o arrasta. O rio corre rumo ao mar. A humanidade se dirige rumo a algo mais amplo do que ela. Teilhard de Chardin
SEM LIMITE
Para Simone & Roberto Saul
Limite do tempo? do espaço? da luz? que no movimento atrai e repulsa formando corrente de elo infinito, que as pedras se prendem e as águas também?
Momento do Sol... respondem as plantas; sorriso da flores é o hino de amor!! E tenta a monera a marcha infinita, que engaja o animal e o homem também!
Limite do sonho, do ódio e do amor projeta meu Eu, meus pais, meus avós! Corrente infinita nos elos do Sol se perde no Espaço, no tempo também! Semíramis Mourão
SUMÁRIO
4 12 16 28 36 54 74 84 110 125
Prefácio A natureza O primeiro dia Os caiçaras O encontro A asenção A verdade A tempestade O eterno presente Interiores
Este livro é dedicado ao meu inesquecível e sábio amigo Ossip Berlandi
Prefácio Sua visão se tornará clara somente quando você olhar para dentro do seu coração. Quem olhar para fora sonha. Quem olhar para dentro acorda. Carl Jung
E
scrito muito tempo depois do próprio livro, talvez este texto seja mais
um epílogo do que verdadeiramente um prefácio. No entanto, embora tenha sido escrito, quando eu tinha apenas vinte e três anos de idade, essa linhas ainda contêm muitos conhecimentos que permanecem fundamentais, atuais e importantes. Posso dizer que foi o início de uma paixão. Não uma paixão passageira, mas a paixão constante em descobrir a minha verdadeira identidade. “Quem sou eu” Muitos anos se passaram, e no decorrer deste tempo passei por intensas experiências que resultaram em uma grande transformação interior, e hoje percebo o quanto amadureci. No entanto, considero-me ainda apenas um estudante espiritual, e sei que tenho ainda muito que aprender e muito a desaprender. Mas, tudo tem seu tempo. De acordo com o antigo e constantemente repetido ensinamento: “O mestre aparece quando o discípulo está pronto”. O que antes eram apenas teorias nas quais eu acreditava, hoje são verdades que fazem parte da minha essência. Digo isto porque é possível que certas linhas de pensamentos possam parecer para o leitor um tanto incompletas. No entanto, procurei não modificar ou aprofundar o texto original para poder manter o mesmo clima de simplicidade e espontaneidade em que foi escrito. Apenas procurei corrigir algumas palavras, atualizar a nova ortografia, e acrescentar pensamentos de diversos autores no início de cada capítulo. Os temas abordados ocorreram durante um acampamento numa praia do litoral norte e revelam em seus capítulos, a intensa inquietação espiritual em que me encontrava. Espero que este relato possa também servir de estímulo para tantos outros buscadores, permitindo um relacionamento mais rico e mais empolgante com a vida, e que possa inspirá-los a ir mais fundo em si próprios e adquirir um melhor entendimento sobre o propósito da existência, principalmente para aqueles que estão despertando nesse momento em que o mundo se encontra num estado de grandes transformações. Devo mencionar que grande parte dos acontecimentos descritos ocorrerem de fato,
enquanto alguns outros foram criados com o propósito de enriquecer o tema principal da história. Infelizmente, hoje eu já não poderia mais acampar naquela praia, pois tornouse com o passar do tempo, um condomínio particular e os pescadores que habitavam a região praticamente desapareceram. Aqui é essencial deixar bem claro que, para que possa haver efetivamente um despertar espiritual, a leitura deste livro ou de outro qualquer pode apenas mostrar o caminho e nada mais. Pode apenas indicar, sugerir, como se fosse um simples rascunho de um mapa que tem por única finalidade orientar aqueles que estiverem realmente em busca de uma conexão com seu verdadeiro “Ser”. Devemos também compreender que esse empenho não pode ser apenas uma mera curiosidade passageira. Pelo contrário, terá que ser um intenso, firme e sincero interesse. Será necessário um sério trabalho que começa com a atenção e vigilância da mente, disciplina, meditação e sacrifícios. Sem este empenho, sem irmos em busca da nossa verdade, estaremos apenas sob o domínio de maya (ilusão), acreditando que estamos progredindo apenas pelo fato de ter lido alguns livros, ter uma conduta pacífica, ou frequentando um centro religioso. Infelizmente, embora tudo isto seja muito positivo, não é suficiente. Enquanto não nos dermos conta da nossa verdadeira situação, estaremos andando em círculos. Mas, quando num determinado momento da nossa vida, nos defrontamos com obstáculos e adversidades, percebermos nitidamente a urgência de uma autotransformação, então quem sabe, isto poderá ser o início de uma grande e maravilhosa mudança, talvez a maior aventura do homem. “O encontro consigo mesmo”. Hoje a física quântica e a teoria das cordas nos demonstram que como cordas de um instrumento musical, os filamentos de energia compõem uma sinfonia cósmica, na qual se prevê entre outros fenômenos, a existência de mundos paralelos. De acordo com a teoria das cordas, a física pôs em cheque o conceito do materialismo e assim mente e matéria são essencialmente a mesma coisa. Ambas fazem parte do campo da consciência pura e infinita. Com certeza estamos no limiar de uma grande e impactante mudança de consciência. Concluindo, desejo expressar os meus calorosos agradecimentos ao meu amigo Sergio Ikuno, que insistiu para que publicasse este livro, pois quando
ficou sabendo que estava engavetado durante todo este tempo não se conformou, e meio exaltado bravejou: ---Eu sei que você já publicou outros livros, mas porque não publica este? Ele é tão atual, como na época em que foi escrito. E com um olhar crítico, mas também carinhoso continuou ---Você têm que divulgar este livro, esta é a melhor propaganda que você pode fazer. Aliás é o que você irá fazer quando deixar de ser um publicitário de produtos, para ser um publicitário de ideias e contribuir para o despertar da consciência. Bem depois desta puxada de orelhas, achei que ele tinha razão, e foi assim sem pensar duas vezes resolvi publicá-lo. Afinal ele já estava pronto, bastava apenas fazer uma atualização gramatical, e uma pequena burilada no texto. É claro que não poderia deixar de mencionar o meu amigo Ossip Berlandi, um verdadeiro irmão espiritual, que compartilhou com todo o seu conhecimento profundos diálogos filosóficos durante sua estadia. A minha querida amiga Semíramis Mourão, poetisa brasileira, que muito me inspirou, pois foi ela quem primeiramente leu os manuscritos e me encorajou na arte de escrever. Em sua memória transcrevo uma poesia dedicada a mim e minha irmã em um de seus livros. Um grande abraço também ao fotógrafo Eduardo Albarello, pela revelação dos filmes e cópias fotográficas. (Fotos tiradas pelo autor no próprio local), A Vera rotundo pela paciência em datilografar o texto na época em que não existiam ainda os computadores. A Milena, e Mirian Júlia Tavares na computação gráfica, e à minha querida irmã Simone pelas dicas e sugestões, e pelos longos e maravilhosos diálogos que desenvolvíamos quase todos os fins de semana, tendo como testemunhas a Mel e a Tyka nossos cães de estimação que escutavam atentas e silenciosas as nossas conversas. Se fosse possível escutar suas mentes, tenho quase certeza que deviam estar pensando algo como: ---Estes humanos são um tanto estranhos! Como conseguem ficar durante horas com este papo-furado, enquanto poderiam estar, correndo conosco pela grama, brincando e se divertindo. Talvez eles sejam mais sábios do que nós. Quem sabe... Roberto Saul
A natureza Existe um poder no silêncio e na tranquilidade. É o ponto de partida para se conectar à fonte universal de inteligência que pulsa em todos os seres. Robin S. Shaarma
O
grande oceano ainda estava dourado pelo crepúsculo da manhã. Do
lado direito da praia, um pequeno lago era formado pelo rio que vinha do alto da serra. Em sua superfície se viam os reflexos das nuvens e das árvores e qual um ser vivo, suas águas se mesclavam pacificamente ao encontro do mar, celebrando magicamente esta amorosa união. Nem mesmo os barcos dos pescadores pareciam perturbar esta sagrada convergência. A percepção deste relaxante silêncio, e o envolvimento total com a natureza me conduzia gradativamente à um estado meditativo. Quando o sol já se elevava sobre a região e as aves iniciavam seu coro matinal, um som agudo de uma corneta reunia os pescadores as margem do mar para mais um dia de pescaria. A minha intenção era permanecer acampado nesta praia aproximadamente uma ou duas semanas, longe do turbilhão das grandes cidades. Os primeiros dias foram tranquilos e ensolarados, mas no sexto dia o céu se cobriu de espessas nuvens, e choveu torrencialmente durante grande parte da noite. Tinha então que permanecer quase sempre na barraca, saindo apenas para reforçar algumas estacas que se soltavam pela força da tempestade. Foi precisamente nesse dia que vivi uma das histórias mais estranhas se assim posso dizer, porque até então, jamais me ocorrera nada parecido. Tudo começou naquele entardecer. Foi uma noite longa e tenebrosa. Uma noite que dificilmente podemos esquecer. Ela surgiu sem aviso; repentina, inesperada, descortinando um mundo até então desconhecido. Eram como verdadeiros relâmpagos ofuscando minha alma. Sentimentos inexplicáveis de tristeza, euforia e angustia dominavam meu ser. Para quem tinha intenção de passar dias tranquilos, pacíficos e prazerosos, este acontecimento inesperado alteraram as minhas expectativas, e as intensificaram ainda mais, de forma totalmente alheia à minha vontade. Era como se eu tivesse que passar por estas experiências. Hoje posso afirmar que este novo mundo no qual tive que mergulhar foi sem dúvida um eterno presente. Porém, se me permitem, antes de prosseguir com a história, quero em forma de um diário, descrever os primeiros dias do acampamento onde
ocorreu esta inesquecĂvel aventura, e tambĂŠm outros importantes acontecimentos que tiveram para mim um valor inestimĂĄvel para o meu amadurecimento espiritual.
O primeiro dia Você cuida de tudo, das coisas mais trivais, mas nunca presta atenção na coisa mais preciosa que tem: Você mesmo. Mestre Kabir
O
primeiro dia é sempre o mais excitante. Armamos logo a barraca,
colocamos todas as coisas nos seus devidos lugares e sentimos uma grande sensação de liberdade, longe da poluição, do barulho e dos problemas. Para quem já acampou, sabe o que isto significa. É verdade que existem contratempos e pequenos incômodos ao longo dos dias; o gelo derreteu, a cerveja terminou, o queijo foi roubado pelo danado do vira-lata, esqueci de trazer isto e aquilo, mas no final a gente sempre acaba dando um jeito. Eu me lembro ainda das peripécias que passei nos meus primeiros “campings”. Ainda era novato e no início confesso que era um tanto desconfortável, principalmente para quem como eu estava acostumado ao conforto e as mordomias do lar. Naquela época as praias eram quase desertas, os “campings” quase desconhecidos, e não existiam ainda as modernas e confortáveis barracas, nem os sofisticados utensílios de hoje. Entretanto, embora fosse um tanto trabalhoso e cansativo, tinha os seus encantos. Podem não acredita, mas minha barraca por exemplo era só uma grande lona sustentada por canos de ferros, e eu tinha que procurar um bambuzal por perto para reforçar sua estrutura. A água era trazida da bica que ficava quase aos pés da serra. Porém o mais trabalhoso era quando a comida terminava, e era preciso ir até a cidade mais próxima para poder renovar o estoque. Mas apesar de tudo isso, havia surpresa, emoção e liberdade. Havia o prazer do desprendimento, do silêncio e da paz. Com certeza esta é a razão principal do meu amor pelo campismo; este encontro com a natureza que me acolhe amorosamente em seus braços e que me protege da vida artificial das grandes cidades. Nunca esqueço de uma frase de um seriado televisivo que assistia assiduamente chamado Kung Fu* em que numa das histórias, o mestre se dirigindo para seu discípulo chamado carinhosamente de “Gafanhoto” lhe dizia: “Quando o homem é um com a natureza, mesmo que ele tenha que lutar, não existe violência em sua mente. Mas quem não é um com a natureza o seu corpo pode estar em repouso, mas há violência em sua mente” Sempre tenho acampado em grupo, três ou quatro amigos, não mais. Desta vez, porém, acabei vindo só. Não porque eu assim o quisesse, mas porque infelizmente os meus companheiros estavam todos atarefados. Confesso que no início fiquei um pouco indeciso, mas depois refletindo um pouco mais, achei que pelo contrário, até que seria uma experiência interessante longe de todos,
apenas eu comigo mesmo. Não pude deixar de me lembrar do escritor e filósofo Henry Thoreau* que num determinado momento de sua vida, resolveu voluntariamente se isolar da sociedade, e foi morar numa casa que ele mesmo construiu nas margens do lago Walden em Concord -Massachusetts, vivendo a vida apenas com o trabalho de suas mãos. Foi lá que escreveu a sua obra prima “Walden ou A vida nos Bosques em 1854. Li este livro ainda na adolescência e devo dizer que me causou um grande impacto. É incrível como o seu conteúdo continua tão atual como na época em que foi editado. A diferença é que eu fiquei acampado durante uma semana, enquanto que o Henry Thoreau viveu dois anos e dois meses. No entanto embora eu tenha desfrutado deste paradisíaco local, ocorreram imprevistas situações, que jamais poderia imaginar. Talvez mesmo que tivesse tido algum pressentimento, uma pequena intuição das situações que se seguiram, sinto que as forças do destino teriam sido muito mais fortes para evitar as experiências pelas quais passei. Era como se tudo que ocorreu tivesse sido programado para acelerar o meu despertar. Na verdade, eu não estava totalmente só. Havia os pescadores que diariamente iam com suas canoas em busca do peixe; eles só voltavam ao entardecer, de maneira que meu contato resumia-se em formais saudações, com exceção de Onofre, um velho pescador com o qual costumava me visitar quase todos os dias no mesmo horário. Soube mais tarde que foi o construtor destas canoas feitas de pesados troncos, trazidas do alto da serra. Nunca esqueço o seu jeito de falar, e seu sotaque característico. ---Comê moço, te trouxe um peixe bom pra janta, olhe só! E com orgulho e satisfação me mostrava o peixão que acabara de pescar ainda a se debater na areia branca. Seu Onofre não era moço. Era difícil determinar sua idade, mas seu rosto marcado por profundas rugas não disfarçava a sua velhice. Entretanto seu corpo ainda era ágil e musculoso. Vinha sempre acompanhado do seu velho e inseparável cão preto, que respondia pelo nome de “Negrinha” As vezes, chegava meio sério, e sentado na areia ao meu lado, olhava bem em meus olhos e começava a falar:
---Isto aqui não dá não! Vou vender minha plantação de bananas e vou me aposentar. Cristo há de me ajudar, não posso mais pescar. Tô é ficando velho, minhas pernas estão fracas, e minha vista um tanto embasada De repente ele fazia uma pausa e parava de falar. Ficava por alguns segundos em silêncio, acariciava a cabeça de seu cãozinho, e depois olhando novamente para mim, continuava a sua conversa mas agora um tanto confusa, como se tivesse esquecido do assunto em que falara. Então olhava novamente para mim e com sua voz rouca perguntava com certa timidez: ---Escuta moço, quando voltar outra vez aqui, me traz de presente um rádio. Desses pequenos de pilha. Você pode? ---Sim, claro. Pode ficar tranquilo seu Onofre. Da próxima vez que vier aqui vou lhe trazer esse rádio, e tudo o que o senhor quiser. respondi, sem saber ao certo se o dia em que fosse voltar, ele ainda estaria aqui. Ele não disfarçava seu contentamento. Se agitava todo, e com seus olhos arregalados esfregava as mãos de alegria, tal qual um adolescente. Depois aos poucos se acalmava e voltava a contar as suas pitorescas e estranhas histórias. Às vezes eu sentia pena de sua situação. Outras vezes tinha vontade de lhe explicar muitas coisas. Mas confesso que ficava em dúvida. Afinal o que poderia lhe dizer! Talvez pela sua ingenuidade ele fosse mais feliz por estar mais enraizado com a natureza. Quantos homens ricos, mas estressados de tantas ocupações e preocupações, não gostariam de estar vivendo com simplicidade como ele. A compreensão vai além das palavras. Ela surge pela simples observação de viver o momento. As palavras são meros símbolos, insuficientes para explicar a magia da existência. Somente por meio da meditação entramos num silêncio que nos possibilita remover entulhos inúteis que acumulamos com o passar dos anos, até que nada reste, nem mesmo o “eu” que tanto defendemos. Somente neste momento sagrado surge a verdadeira liberdade, a paz o amor e a bem-aventurança. O grande paradoxo é que já somos tudo isso, apenas não temos consciência. É como ter um diamante no bolso, sem saber do seu valor. Na verdade todo trabalho espiritual é se dar conta desta riqueza para despertar da nossa amnésia e reconhecer a nossa verdadeira natureza. Se não tivermos esta consciência, de fato vamos nos sentir como mendigos, e nesta carência tentaremos buscar lá fora, aquilo que sempre esteve conosco. A nossa autêntica riqueza que jamais pode ser perdida ou extinta.
*Kung Fu- Seriado realizado a partir de 1971, interpretado por David Carradine *Henry D. Thoreau – Filósofo e escritor americano -1817- 1862
Os caiçaras Você não pode encontrar a si mesmo no passado ou no futuro. O único lugar onde você pode se encontrar é no agora. Portanto a única coisa real, a única coisa que sempre existe, é o agora. Eckhart Tolle
E
ra o segundo dia do meu acampamento. O sol já estava quase
desaparecendo na linha do horizonte, quando vejo os pescadores todos reunidos na praia. Eram aproximadamente cerca de uns dez homens das mais variadas idades, e todos eles puxando uma grossa corda de náilon para retirar a rede do mar. Depois de um prolongado esforço, conseguiam com muito suor trazê-la na praia. Mas para minha surpresa e também de todos, encontraram apenas um só peixe. Mas não era um peixe comum. Era um cação! Sim isto mesmo um cação de uns 130 quilos aproximadamente. Confesso que nunca tinha visto um peixe tão grande. ---Me dá a peixeira, Zezé! Vamos dividir o bicho. Quem assim falava era Zuca, um dos pescadores. Era de pequena altura, mas talvez o mais musculoso de todos. Puxaram o peixe até a praia, e com a peixeira afiada o cortavam em pedaços. Ficavam satisfeitos, rindo e olhando os pedaços do cação, num misto de prazer e orgulho. Depois ficava apenas grandes manchas vermelhas na areia, que as águas do mar limpava lentamente. Embora fosse muito raro aparecer tubarões naquela praia, lembro-me que a partir desse dia, procurei não entrar mar adentro. Afinal ser mordido por um deles não deve ser nada agradável, principalmente se ele estiver com fome, ou talvez com ímpetos de vingança pelo desaparecimento de seu companheiro. É interessante notar que esta brava gente, apesar de ter como cenário a natureza em toda a sua plenitude, deveriam ser mais humildes e desprendidos. Mas isso não acontece. Ao contrário, muitos deles são ambiciosos, egoístas e se pudessem, deixariam suas simples cabanas em troca de uma habitação nas grandes cidades em busca de riquezas e poder. É claro que havia exceções e não posso deixar de mencionar que conheci alguns caiçaras realmente amáveis e generosos com os quais mantive uma boa amizade. Isto prova que as virtudes do homem, não depende do belo cenário exterior, mas sim da maturidade do seu mundo interior. Não que eu não quisesse manter maior contato com os caiçaras, mas o meu estado de espírito ansiava pelo recolhimento.
Nunca esqueço uma grande verdade de Tomas Merton, famoso monge americano que em um de seus livros escreveu: “O homem se torna solitário no momento em que, seja qual for seu ambiente externo, toma de repente consciência de sua própria e inalienável solidão e compreende que jamais será outra coisa senão um solitário”. E essa solidão é uma das coisas mais belas do mundo. Talvez “solitude” seja a palavra mais adequada para definir este estado mais apaziguador, porque somente por meio de uma mente silenciosa entramos na intemporalidade e então, a verdadeira consciência pode despertar. “O homem é a medida de todas as coisas” já dizia Heráclito. E no templo de Delfos, o mais famoso santuário da antiguidade grega, existe uma pequena inscrição, mas que sintetiza a alma de toda a filosofia: “Conhece-te a ti mesmo” Este era o principal objetivo do meu isolamento.
O encontro Quando liberamos os pensamentos baseados no medo que nos foram ensinados por um mundo assustado, podemos ver a verdade de Deus revelada: Que nĂłs somos, em essĂŞncia, o prĂłprio amor. Marianne Willamson
E
stava calmamente deitado na areia a beira da praia. As águas do mar
vinham de tempos em tempos acariciar e refrescar o meu corpo. Como o sol era abrasador, fiz uma pequena cobertura com meu lençol preso por duas varas de bambu e esticado por pedaços de corda. Gostava imensamente de ficar assim sem nada pensar, apenas unificado com a natureza e sentindo suas energias percorrendo todo meu corpo. De repente, sem poder determinar em que momento, buzinadas insistentes de um carro vieram interromper o meu silêncio; talvez fossem umas dez horas pela posição do sol. Quando estiquei a cabeça, vi um Opala prateado avançar em direção à barraca. Não pude acreditar! Para minha surpresa, quem era senão; Ossip, o meu melhor e mais sincero amigo que resolveu vir me visitar. Gostava muito dele, e sua presença principalmente depois de um longo período relativamente isolado, foi muito confortador e de grande emoção. Logo fui ao seu encontro. ---Como é, ficou com saudades de mim seu malandro? Perguntei: .---Mas é claro Roby. Eu queria ver como você se arranjava aqui sozinho e depois fiquei um pouco folgado no trabalho e resolvi aproveitar um pouco da praia e do sol. Você não esperava que eu viesse, heim? Olhou para mim, piscou um olho e logo me abraçou. ---Não pelo contrário. Até pensei em você. Com dias tão lindos assim, achei que seria quase impossível que você não viesse. Enquanto se dirigia para a barraca segurando uma maleta e uma pesada caixa do carro, perguntou em voz alta: ---E você como tem passado aqui neste paraíso ? ---Oh! Muito bem. Pode crer. Se pudesse ficaria aqui por mais tempo, mas... e você Ossip o que conta? Quais são as últimas novas? ---Nada. Nada de especial. O mundo gira, mas as coisas permanecem quase as mesmas. Bem... Mas agora se me der licença vou me desfazer destas incômodas roupas suadas, e aproveitar o máximo deste maravilhoso dia.
De repente respirou fundo e gritou com todas as suas forças, tentando imitar o famoso uivo do Tarzan, como era aliás do seu costume quando se sentia feliz e envolvido pela natureza. Ossip era de origem israelense mas veio para o Brasil ainda pequeno com seus pais. Tinha 32 anos. Um rosto ligeiramente arredondado sem rugas se destacava pela pureza de seus olhos. Cabelos pretos encaracolados e um tórax bastante desenvolvido pelos exercícios de natação que fizera quando adolescente estudando em Rio Claro. Mas o que realmente mais o caracterizava era seu romantismo em relação à vida. Tinha uma memória prodigiosa. Confesso que ficava impressionado quando recitava de cor pensamentos inteiros de Castro Alves, Goethe e Schopenhauer. Havia em seu rosto as marcas de um doce sofrimento. Uma chama invisível ardia e ansiava por compreender e transcender as ilusões do mundo. Muitas vezes pude vê-lo totalmente compenetrado olhando para o mar. Ficava assim horas e horas imóvel e pensativo, invadido por uma felicidade extrema, que não poderia definir. Sinto-me até hoje infinitamente afortunado por ter encontrado em Ossip uma sincera e nobre amizade, e que ao longo dos anos foi ele quem mais me ensinou e me estimulou em trilhar a senda da espiritualidade. Pequenas nuvens cobriam de vez em quando os raios do sol. O mar passava gradativamente do azul turquesa para o verde esmeralda. Estas alterações cromáticas provocavam em mim uma sensação de imenso prazer, como se estivesse sendo inundado por energias que estavam além da minha compreensão. ---Contemple a majestosa natureza que nos circunda, disse Ossip, caminhando ao meu lado e com seus braços abertos. Veja o céu, as montanhas, o oceano, o lago, o rio. Sinta o ar puro e o silêncio da manhã. Que mais necessita o homem para sua felicidade... qual a utilidade de suas riquezas e bens materiais, quando a maior delas se encontra aqui ao nosso lado? Veja, por exemplo, Onassis*, um homem riquíssimo. Tinha tudo: indústrias, iates, mulheres, castelos, bibliotecas e até uma ilha particular; no entanto, morreu solitário, triste e infeliz. Ossip fez uma pequena pausa, olhou para mim por alguns segundos, como que me dando tempo para avaliar ou compreender suas palavras. A seguir deu alguns passos e foi sentar-se num pequeno rochedo a beira do rio e colocando seus pés na correnteza da água.
Sentindo a sua presença tão inspiradora, ansiava em compartilhar os inúmeros problemas, dúvidas e inquietações que atormentavam minha alma. Confesso que algumas vezes ele me desconcertava, principalmente quando meu ego era atingido, por me mostrar fraquezas e comportamentos inadequados que eu ainda não tinha superado. Entretanto sabia que sua intenção sempre foi em me despertar, para adquirir maior consciência. O que mais me surpreendia era o seu raro dom de saber explicar, mesmo as mais complexas questões filosóficas, com simplicidade e doçura incomum. Não poderia perder essa grande oportunidade. Fui sentar-me ao seu lado e logo perguntei: ---Você que leu bastante e adquiriu um grande conhecimento filosófico, como pode me explicar esta obstinação que o homem tem em trabalhar, acumular, competir, lutar sem descanso para obter aquilo que ele chama de “sucesso” para depois morrer repentinamente de um enfarte. Será que estou exagerando ou estou falando a verdade? Fez-se a seguir um pequeno silêncio. Enquanto esperava pela sua resposta, o rio continuava tranquilo e de uma beleza extasiante. Pequenas baratas do mar corriam por sobre as rochas, enquanto algumas gaivotas mergulhavam sobre a superfície do mar em busca do peixe. Bastante compenetrado Ossip olhou para mim e respondeu: ---Realmente, o que você acaba de dizer é a mais pura verdade. Respondeu com muita calma, como se a minha pergunta não o tivesse totalmente surpreendido, e sem nenhuma pausa continuou: ---São várias as causas. No entanto creio que a principal causa é o vazio que todos nós sentimos. Quando o homem procura preencher esse vazio, esta pobreza interior por meio do acúmulo de objetos, estes se tornam verdadeiros obstáculos para o autoconhecimento. Penso que deve haver um equilíbrio, isto é, não devemos permitir que as riquezas assumam uma importância maior do que a do próprio homem. Os bens devem ter apenas o seu justo valor. Todo excesso é prejudicial, pois demonstra medo e preocupação. De nada vale toda essa luta em busca de segurança por meio da riqueza, porque a verdadeira sabedoria consiste em saber viver justamente na insegurança. Quem realmente pode estar seguro de alguma coisa neste mundo transitório e impermanente? Afinal não vivemos, de certa forma como num grande acampamento? Depois de um certo tempo, todos acabam deixando suas barracas ou palácios e vão embora. É muito importante compreender que não é a prosperidade material
que irá nos proporcionar a felicidade. O verdadeiro sucesso só pode ser determinado na medida em que sua paz interior possa te proporcionar um sono sereno e revigorante. Porque se a fartura do rico, não o deixa dormir, então ele estará acumulando ao mesmo tempo a sua riqueza e a sua desgraça. Parece uma sábia resposta para os dias de hoje, no entanto foram ditas a 2.300 anos no Eclesiastes do velho testamento. Após uma pequena pausa continuou, sem perder o pique; --- Isto me faz recordar também as sábias palavras de um autêntico filósofo da vida, que há dois mil anos, na antiga Galiléia, ensinava nas montanhas: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde os ladrões escavam e roubam. Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que as vestes? Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros. Contudo vosso Pai celeste as sustenta. Porventura não valei vós muito mais do que as aves?” Após pronunciar com muita inspiração estes ensinamentos do mestre Jesus, estava deveras emocionado. Fechei por alguns segundos meus olhos, e permaneci assim imóvel e pensativo. Depois, balançando a cabeça comentei: ----É... você tocou bem no fundo da minha alma, você tem toda razão. Mas parece que mesmo conscientes destas grandes verdades, a maior parte das pessoas como que sugestionadas e hipnotizadas, continuam vivendo uma vida de ilusões. ---Sim você tem toda razão respondeu Ossip, e sem nenhum intervalo, continuou: ---Infelizmente grande parte da nossa civilização se desviou do seu principal propósito, e se distanciou de sua realeza. Como a nossa cultura é dominada pelo ego, (falso-eu) isto gera conflitos internos e consequentemente se refletem em competição, violência, guerras, causando muito sofrimento. Segundo a sabedoria dos grande mestres, só existe uma resposta para essa ausência de paz. “A crença que estamos separados do nosso “Ser”. Quando acreditamos nesta ilusão, invade-nos uma sensação de tristeza, desamparo, e desânimo. Como tudo é psicossomático, estes
sentimentos acabam se manifestando em nosso corpo. Afinal, somos aquilo que pensamos. Somos aquilo que acreditamos, e o corpo é o nosso termômetro. Preste bastante atenção. Quando a mente é dominada pelo ego por se identificar com este mundo de dualidades, é facilmente perturbada e vive em constante turbulência interior. Enquanto o sábio por estar com a mente apaziguada, percebe por detrás das máscaras a sua realidade imortal, e vive em constante bem-aventurança. Por longos momentos me detive na profundidade de suas palavras, saboreando toda a sua sabedoria. Depois de algum tempo respirou profundamente, e em posição de lótus parecendo um lama tibetano, continuou a falar com a mesma convicção que eu já tinha presenciado antes. ---Agora veja bem. A simples conscientização da verdade é insuficiente. Ter consciência é apenas um mero conceito, simples ideias em nossas mentes. Enquanto o homem não atingir um nível de consciência onde todas as suas virtudes possam florescer, continuará a sofrer inevitavelmente, seja ele pobre seja rico, pois a verdade não possui preço, nem tampouco se encontra à venda, em algum supermercado ou drogaria. A verdade não se descobre nos livros, na bíblia ou seguindo os ensinamentos de um novo professor. É claro que isto pode ajudar, mas a verdade se revela somente por meio da “vivência”. ---E como se consegue essa vivência? Perguntei. Ossip no entanto permaneceu em silêncio enquanto aguardava ansioso por sua resposta. Ele como ninguém, sabia com mestria explicar os mais complexos temas, e suas palavras fluíam sem esforço. Deparei-me que seus olhos observava docemente os meus, quando subitamente respondeu sem nenhuma interrupção. ---A vivência só ocorre quando o homem se der conta de suas fraquezas e com coragem e determinação lutar como um guerreiro, sem medo, frente a frente com ele mesmo. Quando enfrentar os seus mais terríveis e traiçoeiros inimigos, os vícios, a ambição, o orgulho, o egoísmo, a inveja, a hipocrisia, a vaidade... então pode surgir o amor, a felicidade e a paz. Enquanto o homem não encontrar a verdade, estará vivendo nas trevas que ele mesmo criou. Somente quando viver sua própria verdade, então se tornará a própria claridade a iluminar o mundo. Existe aliás uma antiga história que exemplifica esta condição e acho que vale a pena relatá-la, pois explicará muito melhor o que quero lhe transmitir. A história começa quando um discípulo pede ao seu mestre que lhe mostre Deus.
---Como não? Responde o mestre, e tomando uma grande pedra o golpeou violentamente na cabeça. Este em meio a surpresa e dor censurou o mestre dizendo: ---Não posso acreditar, arregalando os olhos. Como pode responder com esta atitude a um pedido tão espiritual como o que fiz? ---É que esta é a resposta, afirmou o mestre. ---Mas a única coisa que sinto é dor! ---Perfeito disse o mestre. Se você puder me mostrar a dor, então eu lhe mostrarei Deus. Sem poder nos conter, caímos numa longa gargalhada, pois era engraçado perceber como os mestres procuram transmitir a verdade não apenas com palavras, mas através de parábolas, analogias ou ações práticas, embora muitas vezes com consequências um tanto dolorosas. Após uma breve pausa para recuperar o fôlego, continuei meu diálogo com Ossip: ---Realmente esta história é muito engraçada. Mas agora lhe pergunto e por favor não estranhe minha indignação; e a sociedade? Não se deve levar em consideração as influências do mundo exterior, com todas as suas leis, regras, dogmas, superstições, preconceitos? Como podemos viver e participar deste jogo desleal? Pude perceber em Ossip uma expressão de surpresa pela minha inesperada pergunta. Mas ele apenas sacudiu a cabeça, franziu a testa e calmamente respondeu com muita convicção, ao mesmo tempo em que balançava em suas mãos uma pequena concha que tinha retirado da praia. ---Sim, claro. Para o homem não amadurecido, a sociedade em razão de seu estado de consciência, investe seu tempo nos seus interesses econômicos, e tenta de mil maneiras subjugar o homem, tirando-lhe a liberdade e transformando-o num simples robô consumidor da grande engrenagem. Mas não esqueça que a sociedade é uma abstração. Não existe sociedade, existe tão somente uma reunião de pessoas. Da mesma forma não existe a floresta,
mas tĂŁo somente um conjunto de ĂĄrvores. O pobre homem que psicologicamente ainda se encontra inseguro e necessita de um poder maior para se sentir protegido, acaba por adorar o Deus tecnologia, o Deus dinheiro, o Deus estado.
Mas, para o homem de verdadeira sabedoria, aquele que não é mais ludibriado pelas ilusões materiais, as influências e os conceitos do meio social não terão nenhum poder sobre ele. Assim como a chama não bruxuleia quando protegida do vento, o sábio se mantém calmo e sereno, mesmo contra as tempestades da ignorância. Assim, para ter uma visão de Deus, é imprescindível como primeiro passo mergulhar em seu interior e conhecer-se a si mesmo. “Se conectar com seu “Ser”verdadeiro. Esta é a síntese dos ensinamentos que os mestres de todos os tempos quiseram transmitir aos seus discípulos. Quando perguntavam para o Buda: Mestre, eu desejo ser feliz, ele respondia: ---Em primeiro lugar retire a palavra eu, depois elimina a palavra desejo. Então só sobra “ser feliz”. A noite estava quente. De vez em quando pequenas brisas vinham balançar suavemente os bambuzais que rodeavam a barraca. Envolvidos pelas estrelas e pelas galáxias que começavam a brilhar, estas testemunhavam silenciosamente, verdadeiras viagens filosóficas que desenvolvíamos com muita inspiração. Deitado na rede, Ossip balançava-se suavemente. Nem mesmo os borrachudos que naquela hora surgiam em maior número pareciam incomodá-lo. Era o anoitecer de um dia empolgante e enriquecido por tão sábios esclarecimentos. Devido à claridade que ainda vinha por detrás de uma colina, diversos halos em degradê davam-lhe um aspecto místico e misterioso. Esta luminosidade que aos poucos desaparecia, entrecortava a colina, destacando sua silhueta ondulada e irregular no fundo quase escuro do céu. O mais fantástico era uma alta palmeira, “a única” que ficava bem no topo, e era quase impossível não acreditar estar vendo uma bandeira a tremular contra o vento. Reinava solitária, mas soberana.
A ascensão Você nunca pode se separar daquilo que criou. Se conseguir pensar em Deus como um oceano e em você como um recipiente, talvez considere útil nos momentos de dúvida e desamparo, lembrar que é um receptáculo de Deus. Quando mergulha seu copo no oceano, o que você tem é um copo de Deus. Dr. Wayne W. Dyer
H
avia um sentimento mútuo de bem-estar, de paz e tranquilidade.
Extensos diálogos foram desenvolvidos sobre os mais variados assuntos.
Embora Ossip quisesse permanecer por mais tempo, uma série de compromissos não permitiram que ele ficasse. Jamais poderei esquecer este nosso encontro, pois a sua presença não somente despertou em mim um entendimento muito mais vasto sobre a vida, mas também, consolidou a minha fé espiritual. Em sua última noite Ossip me deixou um estoque de comestíveis, pois os meus já estavam no término, e as últimas notícias da civilização, como sempre nada animadoras. Não acreditei no momento em que me contou, mas quando peguei o último número da revista Manchete que ele tinha trazido, me deparei com este triste título: “BEIRUTE. UM VERDADEIRO CAMPO DE BATALHA” Senti um arrepio a percorrer meu corpo. Digo isto porque por estranha coincidência, antes de sua chegada, havia lido um verso de Kahlil Gibran, o grande poeta libanês que tinha como tema central a unificação das religiões por possuírem os mesmos princípios. Fiquei verdadeiramente chocado com a reportagem. Além de várias fotos mostrando os ataques, o texto dizia mais ou menos assim: “Mil e quinhentas pessoas morreram na última semana, em mais uma sangrenta escalada da luta no Líbano, transformando a cidade de Beirute num verdadeiro campo de batalha...”. Pobre Gibran. Em que tristeza ficaria se soubesse que muçulmanos e cristãos ensanguentam mais uma vez o Oriente Médio. Quando entreguei o verso para que Ossip pudesse ler, ele exclamou boquiaberto: ---Inacreditável! Parece até que você captou intuitivamente os acontecimentos. Olhou novamente para o verso, franziu a testa e segurando o livro com ambas as mãos fez questão de ler em voz alta, pronunciando lentamente as palavras: ---“Eu te amo meu irmão, quem quer que sejas. Se pratica o culto em tua igreja, ajoelhas-te em teu templo, ou rezas em tua mesquita. Tu e eu somos todos filhos de uma mesma fé porque os diversos caminhos da religião são dedos da mão amorosa de um Ser Supremo, uma mão estendida para todos, oferecendo perfeição de espírito a todos, ansiosa por acolher todos”. Lembro-me também que naquela noite, olhando para o céu todo estrelado, fiz uma pergunta para Ossip sem procurar esconder um ar de revolta que se apoderava de mim naquele instante, pois ainda tinha uma série de dúvidas que não conseguia compreender. Ele logo percebeu a minha expressão de
abatimento, e antes de pronunciar qualquer palavra, se antecipou interrompendo-me com um gesto de mão. ---Vamos...diga-me o que o preocupa tanto? Pronunciou as palavras num tom amoroso, mas também com uma expressão de malícia, como se intuitivamente soubesse a pergunta que iria lhe fazer. Encorajado pela sua disposição, e também curioso em saber o que iria me responder perguntei: ---Sabe de uma coisa, eu acho que este mundo é muito complicado. Não consigo entender como a humanidade pode ser tão lenta em sua evolução. É verdade que não se pode negar os grandes méritos do progresso tecnológico, porém, enquanto o homem viaja através do espaço em direção à Lua, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome; ou então, em nome da pátria, de uma religião ou de uma ideologia, são facilmente sugestionados por líderes fanáticos e ambiciosos. O que você acha? Não é verdade? Não é isso que acontece? Acho que nem preciso lhe dizer o que eu penso sobre mundo. Preciso? ---Não precisa, respondeu Ossip e preparando-se para me revelar certas questões que me intrigavam. ---Querido amigo. Se estivesse na presença de um mestre espiritual ele iria responder-lhe com uma outra pergunta: ---Quem está perguntando?Não existe mundo. O mundo está em sua mente. De fato se fossemos rastear até a fonte da verdade, o mundo deixaria de existir. Todos os mestres batem sempre nesta tecla. Porem não irei voar tão alto. Vamos aterrizar suavemente neste mundo de sonhos, e tentarei te explicar porque o mundo está em constante conflito. Embora todos os grandes mestres tenham sempre ensinado através dos tempos que “O ódio jamais se extingue com o ódio, e sim com amor”, é difícil encontrar quem aplique no dia a dia estes princípios, e dificilmente se encontra um homem que tenha um
elevado e constante princípio moral. Não quero dizer que o homem deva seguir compulsoriamente regras morais e religiosos, isto seria uma ilusão, mas compreender, que amar o próximo como a si mesmo é na verdade a única lei imutável para o equilíbrio da convivência social e progresso espiritual. Mas agora veja bem, apesar deste confuso coexistir, devemos perceber que não há caos e desordem sem fim, como se poderia pensar numa rápida e incompleta análise, mas o contrário, paz e ordem cada vez mais perfeitas. Você poderá ficar até um tanto surpreendido e me dizer: Mas como isso é possível? Sim. É possível porque a vida é uma grande e rigorosa escola quando isso se faz necessário. Se os cristãos e os muçulmanos não possuem ainda inteligência para resolverem seus problemas pelo diálogo, então que seja pela metralhadora, o que se pode fazer? Muitas vezes pagamos um preço demasiadamente alto para se aprender. E tem mais; o próprio Kahlil Gibran, por mais paradoxal que isto possa parecer também disse numa conferência cujo tema era a paz internacional, um discurso que chocou a plateia. Estas foram algumas de suas palavras: ---“Deixem os filhos da Terra lutarem uns contra os outros até que se derrame a última gota de sangue impuro e animal. É preciso pregar a vida e não a paz, pois não existe paz na arte de existir”
Como Ossip sentiu que estava em perfeita sintonia, não interrompeu os seus pensamentos, e continuou com o mesmo entusiasmo. ---Sabe, Roby, isso me faz recordar de uma reportagem que li numa revista, quando perguntaram para o Dalai Lama: “Afinal, por que vocês não lutaram contra os chineses?*” O que o Dalai Lama respondeu foi surpreendente, me deixando extremamente comovido. Ele disse: ---Bem, a guerra é obsoleta, você sabe. É claro que a mente pode justificar a vingança, mas o coração nunca entenderia. Então você estaria dividido em si mesmo, entre o coração e a mente, e a guerra estaria dentro de você tirandolhe a paz. Bastou um simples olhar para que Ossip percebesse minha expressão de surpresa. A seguir abaixando a voz como se quisesse me contar algo confidencial continuou: ---Pode acreditar, mas nossos desafios ou adversidades transformam-se em nossa própria cura. Embora isto nos cause temporariamente um sofrimento, ele é o estimulador que nos desperta e nos faz enxergar que na verdade foi a nossa salvação. Assim da doença, da falência, das guerras ou de qualquer tipo de perda, elas nos levam quase que compulsoriamente na direção de nossa plenitude. A vida tem regras e limites, mas em sua essência é apenas um jogo. Não existem vitórias nem derrotas. Os obstáculos surgem sempre para nos fortalecer. É a sabedoria da natureza segurando com amor nossas mãos e nos levando para casa. Tudo isso parece um tanto confuso, mas lhe garanto que tudo é muito simples. Na verdade, a vida é muito simples, mas nós a complicamos. Vou lhe contar uma história que pode parecer uma charada. Para dizer a verdade não sei se ela realmente aconteceu, mas isso não importa, porque o mais importante é a sua sabedoria. Sem criar muito suspense, Ossip piscou um dos olhos, e percebendo a minha expectativa começou a contar: ---Havia um rei que pintou uma linha negra na parede e perguntou a seus sábios conselheiros se existia alguma possibilidade de reduzir a linha, mas sem tocar nela? Pois bem, os sábios ficaram confusos, e depois de um bom tempo acabaram desistindo. Não conseguiram encontrar a solução. ---Você sabe a solução? Perguntou Ossip, olhando, atentamente para mim e esperando minha resposta. ---Vamos, vamos! Aposto uma caixa de cerveja se você acertar. Permaneci um certo tempo compenetrado na tentativa de
solucionar o enigma, mas acabei também desistindo. Enquanto percebia um leve sorriso a se formar em seu rosto, respondi-lhe quase gaguejando: --- Eu acho que é você... que quer ganhar... a caixa... de cerveja. Ora, se até os sábios do rei não souberam, você acha que eu vou saber? Pera aí, esta aposta é injusta. Você a fez porque sabia que não saberia a resposta. Não é? ---Tudo bem. Vamos deixar a aposta de lado. Mas já que não sabe, vou te revelar o segredo. E sem esconder uma expressão de malícia respondeu: --- É muito simples, basta desenhar outra linha mais longa ao lado da linha do rei. Assim, sem tocar na linha do rei a deixamos menor. Confesso que fiquei boquiaberto. Desta vez o impacto superou a minha capacidade de escondê-la, e acho que minha expressão de espanto deve terlhe dado um certo prazer. Como não tinha pensado nisto antes! Claro. Desenhando outra linha maior, deixamos a outra mais curta. Estava de fato um tanto surpreendido pela engraçada, mas também profunda charada que acabou de revelar, e me dando conta de como muitas vezes não enxergamos o óbvio e complicamos a vida por não termos consciência do nosso grande potencial. Mas logo, sem me dar tempo para refletir, ele continuou a falar com a mesma empolgação de sempre: ---Forças misteriosas nos impulsionam rumo à perfeição, às vezes contra nossa própria vontade. Muitas vezes as respostas estão diante de nossos olhos, mas não conseguimos ver. Complicamos a vida, a intelectualizamos demais e nos perdemos em seu complexo labirinto. Embora a evolução seja quase imperceptível pela curta passagem da existência humana, podemos perceber entretanto, grandes diferenças se compararmos o selvagem homemmacaco com o homem contemporâneo. É de se supor portanto que esta evolução, embora lenta, continue inevitavelmente em razão de suas próprias leis. Ontem o selvagem bebê irracional. Hoje, um rebelde adolescente, mas amanhã o adulto responsável. Depois de uma pequena pausa, alisou o seu cabelo encurralado, como que tentando se lembrar de algo. Subitamente estalou os dedos e bravejou: ---Sim agora me lembro de um texto que gosto muito do famoso físico Dr. Ralf Wyekoff, que soube expor tão bem esta condição. Não me recordo agora em que livro eu o li, mas o que ele disse foi mais ou menos isto:“Qualquer um
de nós que tenha filhos em crescimento sabe quão inevitável é que aos períodos de infância passiva e dependente siga-se uma afirmação agressiva de juventude. Estamos agora na juventude do intelecto humano, com todos os seus perigos e todas as promessas magníficas para um futuro mais adulto. É esta arrogância imatura do intelecto a principal responsável pela fase materialista e grosseira do pensamento humano da qual há sinais de estarmos emergindo” Suas palavras fluíam velozmente e eu sentia um pouco de dificuldade para entendê-lo. Confesso que nesta altura, eu estava um tanto confuso, mas ao mesmo tempo fascinado com a magia com que Ossip soube tão bem reproduzir o conceito do Dr. Ralf. Ele percebeu a minha dificuldade e deu uma parada para que eu pudesse digerir seus ensinamentos. Assim permaneceu observando-me, e prolongou aquela pausa ainda por mais um tempo. Depois com muita calma declarou: ---Compreendo o seu esforço em entender certas verdades, mas quero que agora preste bem atenção para desembaralhar esta sua confusão. Vou tentar te explicar com outras palavras. Uma das coisas que não podemos esquecer ou confundir é a diferença que existe entre os símbolos e a realidade. Quando dizemos por exemplo, que a humanidade inventou o automóvel, o computador ou conquistou a lua; afinal o que isso significa? Quem é essa humanidade? Eu, você, ele. Quem? Não podemos iludir-nos com palavras. Procure entender. Foguetes, computadores, automóveis, ou conhecimentos são meras ideias em nossas mentes. A verdadeira evolução só pode ocorrer quando houver realmente uma sincera e implacável vontade de transcendermos a nossa consciência adormecida e robotizada em que nos encontramos. Somente quando mergulhamos na imensidão de nós mesmos, pode surgir efetivamente a verdadeira compreensão e iluminação. Somente o indivíduo é real, a humanidade é uma abstração. A humanidade não pode mudar, mas você pode mudar. Sorri ligeiramente, achando muito bem expostas todas aquelas ideias e sem esconder o meu entusiasmo pelas suas profundas reflexões disse-lhe que embora concordasse com sua explicação, ainda não conseguia entender o constante dualismo que o homem enfrenta entre o bem e o mal. O mal representado pelos impulsos das tendências egoicas, e o bem pelo domínio desses impulsos em favor de uma mente pacífica, para um mundo mais justo e equilibrado.
Ossip permaneceu por alguns instantes pensativo. Ele não olhava diretamente para mim, mas eu sabia que nenhuma das minhas palavras lhe escapou. Um silêncio total era entrecortado apenas pelos sons dos grilos e outros insetos da região. Depois deste pequeno intervalo, começou a falar pausadamente: ---Sim. Isto é verdade. É isso mesmo. Você se expressou muito bem, mas se me permite desejo acrescentar algo também muito importante. O homem procurando a felicidade não faz outra coisa se não ir ao encontro de si mesmo. Existe um sentimento de ter perdido algo que ele sempre teve e que é o seu verdadeiro “Ser”. Entretanto o homem acaba confundindo a felicidade com o prazer. E pode crer, existe muita diferença entre os dois. Pensar que a felicidade é algo a ser adquirido ou comprado desencadeia uma luta constante que só termina em desilusão. Buscar a felicidade não em si mesmo, mas no mundo exterior desencadeia uma constante luta moral. A luta da consciência entre o bem e o mal. Em outras palavras, a luta entre o ego e o “Ser”. Esta situação aparentemente paradoxal, cria uma tensão em nosso interior que se acumula com o passar do tempo, e de repente como um vulcão semi-adormecido, entra em erupção para nos conduzir compulsivamente em direção do nosso único destino “A paz e a pureza da nossa verdadeira natureza. Acho que vale mencionar aqui, uma frase magistral do psicólogo Victor Frankl, quando afirmou: “A felicidade não pode ser perseguida. Ela tem que ser consequência. E isso ocorre apenas como efeito colateral involuntário da dedicação pessoal de alguém, a uma causa maior do que ela mesma” Embora tanto o que consideramos o bem como o mal, tenham como objetivo principal a unificação com o “Ser”, isto é ambos desejam a verdadeira felicidade, existe entretanto uma diferencia fundamental; enquanto o homem egoico é dominado pelos seus impulsos imediatistas, o homem, mais identificado com seu “Ser”, possui um intelecto mais fortalecido, e sabe administrar melhor suas emoções. Graças ao desenvolvimento do seu potencial criador, possui a capacidade de fazer uso de todos os seus poderes, e sente intuitivamente os benefícios da bondade e do perdão como consequência do seu equilíbrio e harmonia cósmica. Isto não quer dizer entretanto, que ele tenha sublimado seus sentimentos egoicos em favor de uma crença. Não. A sua bondade decorre espontaneamente com pureza, sem conflito. Reconhece na verdade, que tanto o bem como o mal
fazem parte de uma mesma energia, e que ninguém escolhe o caminho do mal por gostar da maldade, mas cada um se comporta sempre em favor do bem da maneira como a compreende. Como disse o Dr. Bach* de forma tão perpicaz: “O mal nada mais é do que o bem fora do lugar”
Afinal o que é bom e o que é ruim? Os eventos externos nada mais são do que eventos. É a maneira como lidamos com eles que fazem toda a diferença. Não são eles que irão determinar minha felicidade, mas sim a minha consciência sobre eles. Foi também com extraordinária sabedoria que Chuang Tzu* afirmou:
“Flua com tudo o que possa acontecer. Deixe sua mente correr solta, mantenha-se centrado aceitando qualquer coisa que esteja fazendo” Achei incrível toda esta explicação naquele momento, mas foi somente depois de muito tempo, entenderia com mais profundidade essas verdades. Sem nenhuma interrupção deixei Ossip continuar.
---Devemos confiar na vida e nas pessoas, mas procurar estar preparado para o inesperado. Por exemplo, se um construtor encontrar um dos tijolos com defeito será que perderá a fé em todos os tijolos e interromperá a sua construção? Devemos confiar mesmo quando nos defrontamos com a aparente existência do mal. Compreender que o mal é um estado em que os pensamentos estão equivocados pela ilusão dos sentidos. Se formos definir com mais precisão a diferença entre o bem e o mal, podemos dizer; “Sabedoria e Ignorância” ---Espere um pouco Ossip, isto está me deixando cada vez mais confuso. O que está tentando fazer comigo? Como posso aceitar que existe o bem em tudo e em todos? Perguntei um tanto surpreso, interrompendo por momentos suas enigmáticas palavras. Ossip percebeu minha incredulidade e imediatamente respondeu: ---Você fez esta pergunta, porque está sendo ludibriado pelos seus sentidos. Você ainda acredita que as pessoas estão fora de você. Nada é externo. Os outros são apenas reflexos, como um espelho refletindo uma parte conhecida e desconhecida de você mesmo. Só existe o amor. O Amor incondicional. Só isso. O amor que está no âmago do seu coração e que anseia em se manifestar para se unir com a grandiosidade e a eternidade da vida. Este é o nosso verdadeiro propósito. E não faça confusão; você não possui a vida, você é a própria vida. São raras as pessoas que sabem o que é o amor. O amor que prende os outros e que procura controlar as pessoas, não é amor, e sim uma fraqueza, uma dependência. Quanto maior for o seu amor,mais ele se multiplica e se torna incondicional. Impossível darmos o que não temos. Para amar o próximo, temos que estar preenchidos com nosso amor. Como você pode amar uma pessoa se você mesmo não tiver amor em si próprio, e desconhece o seu verdadeiro valor. Só podemos intensificar a nossa felicidade, quando compartilhamos esta riqueza com os nossos semelhantes. Mude a si mesmo, e o mundo mudará. O mundo é sua visão. Esta é a maior contribuição que você pode dar a uma pessoa.
Pensei que tivesse terminado as suas explicações, mas de modo enérgico ele não me deu trégua, e suas próximas palavras foram ainda mais surpreendentes e rigorosas: ---Procure remover estes bloqueios que impedem o seu crescimento. Desfaça-se deste medo e desta tristeza que carrega dentro de si. Você ainda está preso naquilo que acredita ser você. Senti imediatamente e sem nenhuma dúvida a verdade de suas contundentes afirmações. Quando olhei para Ossip seus olhos brilhavam irradiando uma intensa energia. Quanto a mim, estava completamente desconcertado. Embora ele tivesse sido brilhante e sincero em sua explicação, eu continuava ainda atordoado quando procurava coordenar todos os seus ensinamentos. Havia como um redemoinho de pensamentos em minha mente. As suas fulminantes palavras, me fez sentir um misto de revolta, e ansiedade. Ele conseguiu devastar os meus conceitos que eu ainda me apegava. No entanto consegui resistir, embora sentisse como se não tivesse mais chão por debaixo dos meus pés. Sempre a compreensão de ideias de ordem mais elevada, não deixam de ser uma espécie de cirurgia um tanto dolorosa que temos que passar para poder abrir mão das nossas falsas convicções. Ele percebeu as minhas dificuldades, olhou-me com extrema ternura, e permaneceu em silêncio por algum tempo, talvez para que eu pudesse entender as suas palavras, e superar a minha resistência. Esta interrupção não criou nenhum constrangimento entre nós, pelo contrário, conferiu maior significado sobre o tema abordado. Embora tenha sentido alguns lampejos de compreensão, ainda tinha muitas incertezas. Com meu rosto ainda expressando certa indignação, contestei alguns conceitos que mal conseguia entender. Ossip permaneceu pensativo por alguns momentos enquanto procurava as palavras mais adequadas para tentar eliminar As minhas dúvidas, e ao mesmo tempo me proporcionar mais tempo
para que pudesse considerar todas as implicaçþes de nossa longa e profunda conversa. A seguir continuou:
---Veja bem. Eu vou tentar te explicar isto tudo de outra forma. O homem é um guerreiro em constante luta e conflito, pois os seus instintos clamam por satisfações. Como já sabemos, o ego quer prevalecer e continuar com seu domínio, pois para o ego a iluminação representa sua própria morte. Mas depois de um período de amadurecimento, o que exige uma constante vigilância sobre nossos pensamentos, palavras e ações, aos poucos as estruturas do mundo material, começam a se afrouxar e com isso, pequenos raios de luz começam a iluminar a nossa consciência. Nossos instintos e emoções se tornam mais controláveis, até que por fim se enfraquecem e quase desaparecem. Neste estágio, o nosso comportamento se torna então suave, meigo e sereno pois sentimos que todos possuem esta luz brilhando intensamente no interior de cada um, e que a magia da vida está em tudo. Com esta visão, o homem se torna um observador desapegado e sente de forma intensa que este amor deve ser compartilhado para se tornar o verdadeiro propósito da existência. Somente compartilhando o amor podemos nos conectar com a plenitude que tanto desejamos, e que já se encontra em nosso interior. O homem continua naturalmente com seus instintos, mas o seu amor universal se torna cada vez mais dominante, e sente em seu coração, que somos todos um. Estas últimas palavras que Ossip pronunciou, tiveram um impacto muito grande sobre mim. “Se somos todos um” então todo o bem que faço para alguém se reflete em mim, e se faço o mal com certeza sentirei também as suas consequências. Assim neste sentido fica mais do evidente que é muito mais vantajoso praticar o bem do que o mal. Será que é isso que você quis me explicar ? Lancei um olhar para Ossip esperando a sua aprovação. ---Certamente respondeu Ossip. Você irá colher o que semeou. Quando pensa e age com a mente certa, você está se aproximando cada vez mais em direção da fonte “Deus”. Em outras palavras podemos dizer que está mais próximo de sua verdadeira natureza. Assim que Ossip terminou de pronunciar as últimas palavras, ocorreu algo deveras estupendo, que não poderia deixar de mencionar. Fomos subitamente surpreendidos por um intenso e veloz brilho no céu, interrompendo nossos pensamentos. Seria uma estrela cadente? ou talvez uma nave extraterrestre? Ficamos extasiados por essa súbita e inesperada aparição. Não trocamos uma palavra sequer. Fez-se um profundo silêncio, e nenhum
ruído se fez ouvir naquele ambiente. Estávamos simplesmente impressionados pelo magnífico e fascinante espetáculo que nos deixou mudos de emoção. Como é estranho, pensei comigo mesmo. Às vezes surgem determinados momentos em que sentimos emoções tão fortes que temos a sensação de um súbito despertar. É como se de repente a nossa consciência se ampliasse, e vivenciamos por alguns segundos uma espécie de integração cósmica. Somos invadidos por uma grandiosa força interior, e sentimos que fazemos parte de um poder muito maior do que imaginamos. Tudo isso me causou uma indescritível euforia, mas também uma sensação de vertigem, talvez pela intensa emoção que se apoderou de mim. Neste estado, percebi com maior lucidez que todas as minhas aspirações e desejos que nutria até então se desvaneceram e instantaneamente me dei conta das miragens e fantasias que vinha perseguindo cegamente. Após algum tempo ainda contemplando o céu todo estrelado, senti uma paz e uma profunda gratidão. Quando olhei para Ossip vi que também estava emocionado. Esboçou um suave sorriso, e como que adivinhando todos os meus pensamentos, percebi que estava feliz pelo meu estado de encantamento. Com certeza jamais esquecerei a transformação que ele me causou, nos dias em que compartilhou comigo toda a sua imensa bagagem de experiências e conhecimentos, que com toda certeza foram de imensa importância nos dias posteriores de sua partida, pois uma nova experiência me aguardava como descrevi no primeiro capítulo. Lembro-me ainda, pouco antes de se despedir de mim, fez questão de recitar um ensinamento de Buda, que procurei anotar rapidamente para não esquecer. Como um mantra*, ele ocupa até hoje cada instante da minha vida pela sua inquestionável verdade. Para mim representou a síntese de todo o nosso encontro, uma espécie de coroamento final de sua sábia e importante presença.
“Procure ser um guerreiro, disse ele lentamente. Mas um verdadeiro guerreiro da alma e nunca esqueça que ainda que um homem vença mil vezes um milhar de outros homens
em batalha, aquele que vence a si próprio é o maior dos guerreiros”
*Kahil Gibran – Poeta e escritor libanês. *Quando a China invadiu o Tibete. *Chuang Tzu – Mestre Chinês que viveu entre 371 a 301 A. *Bach – Pesquisador e criador dos florais de Bach *Mantra – Palavras sagradas, com o poder de transformar a pessoa que o repete.
A verdade O êxito não pode ser avaliado apenas pela quantidade de dinheiro e bens materiais que você possua. O significado do êxito é muito mais profundo. Só pode ser determinado pela medida em que sua paz interior e seu controle mental o tornam capaz de ter felicidade em qualquer circunstância. Este é o verdadeiro êxito. Paramahansa Yogananda
H
oje de manhã acordei bem cedo. O dia estava lindo. Logo comecei a
correr pela praia sentindo em meu corpo o ar fresco e puro das montanhas. Gostava muito das brisas que vinham do mar porque eram suaves e balançavam docemente as árvores e as redes dos pescadores estendidas na areia. Depois de um bom café, quando o sol já começava a esquentar o grande oceano, mergulhava inebriado em suas águas cálidas. Depois deitava ainda molhado na areia, enquanto os pingos d’água desapareciam aos poucos pelo calor do sol. O que mais me encantava eram as mais diversas cores da natureza. O azul profundo do céu, o brilho prateado do lago, o verde musgo das montanhas. Este conjunto harmonioso de tons, provocavam em mim sentimentos de libertação e de profunda serenidade. Na solitude, quando a mente submerge em águas profundas e desconhecidas, podemos descobrir conchas que preservam pérolas de inestimável valor. Enquanto os pescadores penetravam na imensidão do mar em busca do peixe, eu mergulhava na imensidão do meu próprio “Ser.” Onde podemos encontrar a verdade? Ela só pode estar num único lugar; em nosso próprio interior. Quando a mente se tranquiliza dos desejos e das dúvidas, lentamente as imagens diminuem de rotação e se transformam em simples fotogramas. Sentimos então a Verdade, não mais através da visão, mas através da intuição. O que quer dizer sentir a verdade? Seria algo a ser conquistado por meio de algum tipo de trabalho, de algum sacrifício? Muitas e muitas vezes tentei em vão encontrar as respostas. Não. Não há método algum porque qualquer método seria apenas uma auto-sugestão. Um método seria algo estático, velho, não vivo. A verdade é sentir a vida, sua beleza e sua grandeza como algo novo, único. É necessário uma mente pura, inocente, não contaminada pelo passado ou futuro, livre de dogmas, crenças e ideologias. Manter os mesmos olhos cansados pela rotina, desfoca totalmente as reais imagens, e caímos na tristeza e no desânimo. Isto muitas vezes é difícil reverter, porque temos medo de olhar para a verdade e viver em liberdade. Necessitamos de suportes, religiões que nos consolem, regimes políticos que nos digam o que fazer e o que não fazer, temos medo de olhar para a verdade e andar com nossos próprios pés e obter uma visão, não de segunda mão, porém, conquistada através de nossos próprios esforços.
Citando novamente as palavras do iluminado Chuang Tzu, talvez um dos homens mais sábios que viveu entre nós afirmou: “Você nasceu; que esforço fez pra nascer? Você cresceu; que esforço faz para crescer? Tudo se move por conta própria. Porque então se preocupar? Deixe a vida fluir por si mesmo e você estará indo junto. Não lute nem tente ir contra a corrente, nem mesmo tente nadar, simplesmente flutue com a corrente e deixe que ela o leve para aonde quiser levar.” Seja uma nuvem movendo-se no céu, sem nenhuma direção, indo para lugar nenhum, simplesmente flutuando. Este flutuar é o supremo desabrochar” Quando nesta vida de falsos valores nos preocupamos demasiadamente em ser famosos, ricos e belos, quando nos preocupamos mais em aparentar do que ser, é porque sentimos um vazio interior. Tais fatores impedem de sentirmos a Verdade como ela é. Para que possamos realmente acessá-la devemos saber morrer para o passado, e viver o eterno presente. Julgar a vida através do filtro do passado, constitui justamente o maior bloqueio que nos impede de sentirmos o novo, o desconhecido. Muitas vezes experimentamos o sabor amargo das desilusões e sofremos por causa disso, mas a vida está longe de ser uma provação; ela é uma grande e fascinante experiência! Enganamo-nos quase sempre, quando desejamos apenas situações agradáveis. A perda da riqueza, da saúde ou de amigos, muitas vezes, como tão bem definiu Paul Brunton: “São mestres competentes disfarçados. Sempre que isto acontecer, será um erro chamar-lhes os males da vida; pois são mais corretamente as oportunidades da vida” Se ainda não encontramos a felicidade é porque provavelmente, estávamos seguindo caminhos equivocados. Por isso devemos fazer uma pausa para meditar, e descobrir em nós mesmos os desvios que vinham nos afastando do nosso verdadeiro destino. Somente quando o homem se tornar mestre de si mesmo, não serão mais as circunstâncias externas que irão determinar sua felicidade ou tristeza. Seja qual for a situação em que ele estiver, jamais perderá a sua verdadeira natureza: O “Ser” eterno e ilimitado que ele sempre foi e sempre
será. Conhecer o “Ser” nos liberta de todo sofrimento e nos permite alcançar a mais alta bem-aventurança.
A tempestade O universo é o sonho da consciência infinita, e neste sonho nascem a noção de ego e a fantasia de que existem outros. Mas todos esses outros não passam de objetos oníricos. Na hierarquia entrelaçada da criação, tudo é inseparavelmente uma coisa só. Deepak Chopra
V
entos vindos do norte sacudiam agressivamente toda a minha frágil e
provisória morada. Não havia como estar calmo e relaxar, pois a cada momento os ventos se tornavam mais violentos, e uma chuva persistia nervosamente neste anoitecer, que parecia não ter fim. As águas escorriam velozmente pelos canos que sustentavam a lona da minha improvisada barraca. Gotejava em alguns cantos, formando pequenas poças no encerado que servia de base, e o vento sem cessar, balançava continuamente toda esta armação de panos e canos. Às vezes diminuía sua potência para voltar logo em seguida com muito mais força. Sua fúria se tornava então muito mais arrasadora, a ponto de ter que segurar firmemente sua estrutura para ela não voar. O grande oceano também participava desta majestosa orquestra natural. Imensas ondas emitiam furiosos estrondos sobre os recifes. Pequenas formigas carregadas de folhas de abricó subiam e desciam infatigáveis pelas colunas da barraca. Chovia sem parar... Como que para intensificar ainda mais este assustador ambiente, os mais abstratos desenhos se formavam sobre a lona, projetados pelas chamas do meu lampião de gás, que tive que acender tamanha era a escuridão. Resolvi então ler um pouco para me distrair. Tinha trazido alguns livros comigo e assim me estendi no colchão, ajeitei os travesseiros da forma mais cômoda, aumentei um pouco mais a chama do meu lampião, e abri na página 61 do livro “o Duplo” de Dostoievski. Esta novela escrita em 1846, era sobre o desdobramento da personalidade de um modesto empregado. Foi a sua segunda obra e retrata a experiência até então inédita, de aplicar as novas concepções da psicologia patológica que se desenvolviam na Europa na ficção literária. Quantas noites não dormidas, olhos fixos nas páginas de um livro vivendo intensamente o drama de seus personagens! Lembro-me quando na adolescência, me recolhia em meu quarto e entregava-me comovido, não somente pela história propriamente dita, mas fascinado em perceber a habilidade com que o autor se apoderava de mim através das palavras, transportando-me para um mundo de dúvidas, de incertezas e obrigando-me muitas vezes, como num efeito hipnótico, a uma urgente introspecção e reavaliação dos meus
pensamentos e sentimentos. Entre os grandes escritores que tive oportunidade de ler, o que mais me impressionou foi Dostoievski. Melhor do que ninguém soube explorar com profundidade a alma e trazer à tona de forma magistral, não só todos os seus sentimentos de angústia e sofrimento, mas também a sua redenção. Aos poucos, à medida que ia lendo e penetrando no fantástico universo desse extraordinário escritor, não saberia dizer exatamente em que momento, mas me veio a ideia de escrever algo. Sim, por que não? pensei comigo mesmo. O temporal pelo jeito irá continuar por mais algum tempo. Por que não aproveitar e tentar transmitir algumas ideias no papel? Não custava tentar. Levantei-me rapidamente, abri minha maleta, tirei algumas folhas, uma caneta e comecei a pensar... e a rabiscar... Eu sabia que não seria uma tarefa fácil. Para escrever algo de bom era preciso além de uma boa história, muita criatividade, e sobretudo, muita habilidade para criar um ritmo harmonioso e sugestivo. A mente deve fluir livremente e conseguir com muita destreza colocar no papel os pensamentos ainda quentes, antes que se percam na memória. Como a matéria prima são as palavras, elas devem ser muito bem escolhidas e coordenadas, para poderem expressar com maior fidelidade os sentimentos e emoções de seus personagens, como também a descrição dos ambientes em que a história se desenrola. A minha vontade era escrever uma história que fosse bastante humana, sentimental e comovente. Eu queria uma história que provocasse risos, reflexões, e ao mesmo tempo, emoções e lágrimas. Uma história que atingisse a essência da natureza do “ser”. Algo que lhe tocasse a alma, que o fizesse pensar, se emocionar, se alegrar, que tivesse mistério e que fosse escrito com beleza e simplicidade. Eu sabia que seria um desafio e tanto. É verdade que tinha escrito alguns artigos e reportagens para algumas revistas até então, mas este seria meu primeiro trabalho literário mais consistente. Eu sabia também que embora todo escritor sente um profundo contentamento pela sua obra, ele passa ao mesmo tempo por uma estranha inquietação. Isto acontece porque não sabe em que momento pode honestamente afirmar: Bem, agora está bom, nada mais pode ser acrescentado ou retirado. O fim de um trabalho é extremamente penoso, pois surge a cada instante novas ideias, novas experiências. Existe sempre alguma coisa de imprevisível que não se pode determinar, ou como disse admiravelmente C.Jung:
“Escrever um livro é sempre um confronto com o destino”. Enquanto viajava pelo mundo dos pensamentos e da imaginação, lentamente, depois de algumas horas, a chuva foi se transformando em espaçosos pingos e o vento em suave brisa. Terminara o temporal. Deixei por um momento os rabiscos espalhados pelo colchão, para olhar o cenário e reforçar algumas estacas soltas pelo vento. O mar ao longe só era perceptível pelo som estrondoso de suas ondas. No céu, nuvens negras se deslocavam rapidamente fazendo surgir por breves instantes os últimos raios do sol, que suave e amorosamente acariciava o mar, e as montanhas. Era o anoitecer de um dia chuvoso, e um tanto turbulento. Foi olhando atentamente para esse deslumbrante cenário que senti a beleza e a magia da natureza depois de um temporal. O cheiro do ar e da terra, as gotas d’água escorrendo suavemente pelas folhas e o som das ondas agora mais suaves se desmanchando na praia. Mas de repente, tal qual um exótico personagem dostoievskiano, um rosto como que saindo das sombras, semi-iluminado pela tênue luz do meu farolete surgiu sabe Deus de onde! Era um rosto expressivo de uma mulher aflita. Apesar da pouca luminosidade, deu para notar seus cabelos cinzentos, e um olhar que transmitia tristeza e desespero. Ao me aproximar mais vi lágrimas que rolavam molhando todo seu semblante. A visão desta melancólica imagem me causou uma espécie de bloqueio mental. Estaria por acaso tendo sonhos, vendo um fantasma ou seria talvez uma ilusão causada pela tempestade? Estas dúvidas persistiram em minha mente, mas foi apenas por alguns segundos, até o momento em que a misteriosa figura foi se aproximando de mim lentamente e com uma voz grave e chorosa, olhou diretamente em meus olhos e pronunciou as palavras que ainda ecoam até hoje em meu ser. ---Por favor, meu senhor! Ajude-me, pelo amor de Deus. Minha filha está muito doente. Não sei o que ela tem. O senhor é o único que possui um carro. Por favor, você pode levá-la a um médico na cidade? Embora estivesse ainda estonteado e sem poder coordenar corretamente as ideias, cedi imediatamente aos apelos dessa mãe atormentada pela sua triste situação. Afinal, tratava-se de uma vida humana em perigo. Percorremos
rapidamente a distância a pé pela praia até chegarmos em sua casa. As ondas do mar agora beijavam suavemente a areia branca. Pedaços de madeira e outros objetos indefinidos trazidos pelas águas exalavam um cheiro característico. No caminho, a triste mulher me agradeceu e me abençoou repetidas vezes, dizendo que era viúva e que Marina era sua única filha. Deve ter dito outras coisas durante aquele trajeto, mas não consigo recordar detalhadamente suas palavras, entretanto todas elas, eram pequenos e rápidos fragmentos de sua vida e de sua melancólica condição. Bem, mas afinal, pensei comigo mesmo, quem sabe talvez ela estivesse exagerando as coisas, quem sabe a menina não estivesse assim tão mal! Dizia isso intimamente talvez para me confortar. Muitas vezes uma mãe, pelo amor que tem aos filhos, dramatiza inconscientemente a situação. Como imagens fixas na memória, lembro-me nitidamente dos seus pés descalços se deslocando rapidamente pela areia, formando marcas profundas, e sua respiração ofegante durante todo o longo percurso. A sua moradia era uma simples casa feita de barro e madeira. O mobiliário antigo judiado pelo tempo, estava espalhado pelos quartos, iluminados apenas por um lampião e bruxuleantes velas. Senti em mim um abatimento pelo clima de infinita tristeza que envolvia este pobre ambiente. Num pequeno quarto uma moça de talvez uns quinze anos estendida no leito revelava claramente uma chocante palidez. Os traços de seu rosto apesar de sua fraqueza, demonstravam uma exótica beleza. Olhos oblíquos de cor verde, uma pele escura ligeiramente dourada, cabelos negros caídos na testa formando um rosto meigo, porém triste e descolorido devido à sua estranha enfermidade. Havia em seu olhar um clima de conformismo e resignação, como se nada mais fosse possível fazer. Naturalmente tudo isso não passou de rápidos pensamentos em minha mente.
Imediatamente, sem perder tempo, fui buscar meu carro. Ajeitamos a menina no banco traseiro e parti rapidamente em direção à cidade, depois de confortar a pobre mãe e outras pessoas que estavam presentes na casa e que soube mais tarde, serem familiares e amigos. Lembro-me de um deles, realmente um indivíduo bastante estranho, alto e magro e que chamou bastante minha atenção. Todos o chamavam de “Agora Mesmo”. Não sei a razão deste estranho nome, mas ele ficava parado num canto do quarto, os olhos fixos na chama de uma vela, e de vez em quando gesticulava as mãos em movimentos incompreensíveis. Talvez estivesse rezando ou executando algum ritual de cura. Quem sabe? A cidade distava trinta quilômetros da região, ligada por uma simples estrada de terra. Não era uma grande cidade. A sua população não ultrapassava mais do que quatro ou cinco mil habitantes. Simples pescadores, pequenos comerciantes, mas a maior parte eram homens de negócios e turistas que vindos das grandes capitais, habitam temporariamente esta pequena povoação devido a beleza de suas praias. Durante o dia este percurso podia ser feito em menos de quarenta minutos se a estrada estivesse em boas condições, mas à noite e depois daquele temporal! Só Deus sabe! Foi bem mais tarde que me dei conta de um fato bastante estranho talvez porque tudo tenha ocorrido rápido demais, não me dando tempo de compreender os motivos pelos quais a mãe não tenha nos acompanhado. Comecei a ponderar, tentando encontrar uma explicação sensata: Talvez ela estivesse fatigada ou então por demais traumatizada pela situação. Bem, afinal, por que razão deveria estar junto, se eu poderia tranquilamente resolver o problema? Ela só iria atrapalhar! Para dizer a verdade isso pouco importava no momento. Deixei de pensar sobre todas essas ideias e procurei me concentrar no volante. Afinal de contas a minha intenção principal era chegar o mais rápido possível, e encontrar o pronto socorro mais próximo da cidade. A situação era bastante difícil; Digo isto porque na medida em que percorria a lamacenta estrada, comecei a sentir o peso da enorme responsabilidade. Indiretamente a vida desta pobre mocinha dependia da minha iniciativa, da minha capacidade e inteligência. Mas em certos momentos, pensava comigo mesmo: “Afinal, quem sou eu para decidir sobre a vida e a morte? Que poder tenho eu para alterar o destino das coisas? Não. Somente Marina é que possui as forças para combater o mal. Eu sou apenas um simples instrumento cumprindo com seu dever”.
O caminho era estreito, escuro e quase todo esburacado. Em certos trechos uma chuva fina e constante prejudicava ainda mais a tortuosa estrada, se é que se poderia ainda chamá-la por este nome, pois era toda de terra e revestida por pedregulhos. Tinha então que diminuir bruscamente a marcha, principalmente quando pequenas e frágeis pontes de madeira surgiam pelo caminho, devido a inúmeros córregos que vinham das montanhas. Qual um ser vivo, estridentes sons vinham dos limpadores do pára-brisa que oscilavam mecanicamente de um lado para o outro. Embora estivesse realmente cansado e fizesse um grande esforço visual para não adormecer, procurei conversar um pouco com a moça, talvez mais para quebrar o longo silêncio que predominava. ---Você está bem? perguntei. A minha voz ressoou estranhamente pelo carro. Depois de algum tempo, como se ela estivesse tentando tomar consciência daquelas repentinas palavras, respondeu um tanto assustada: ---Eu... Sim, tou. ---Você não está sentindo alguma dor? ---Não... Só tonturas. ---Faz tempo que você está sentindo isso? ---Não... Ontem comecei a sentir dores de cabeça, enjôos e fiquei
doente.
---Você por acaso não comeu alguma coisa que te fez mal? ---Não sei... Não me lembro... O nosso diálogo seguia mais ou menos nesse mesmo tom, até que finalmente, depois de intermináveis quilômetros ainda invadido por um turbilhão de pensamentos, pequenas luzes surgiram ao longe. Foi então que me dei conta que deviam faltar aproximadamente uns cinco quilômetros não mais, para chegarmos à cidade. Mas de repente, numa pequena curva, apenas a poucos metros de distância ocupando quase toda a estrada, vejo um enorme tronco caído certamente em consequência do temporal. Os meus reflexos foram rápidos e automáticos, mas não o suficiente para evitar o choque. O carro inteiro
chacoalhou de todos os lados, e pequenos objetos caíram e rolaram por entre os bancos. Um estado de semi-consciência se apoderou de mim, e imagens giravam e se misturavam com outras em minha mente sem muito sentido. Encostei a cabeça no volante e assim fiquei por um tempo que realmente não saberia precisar. Foi tudo tão rápido e inesperado que só aos poucos fui me dando conta da difícil situação que me encontrava. Mas, como se nada tivesse acontecido, Marina continuava dormindo. Ainda bem que nada lhe aconteceu pensei, enquanto tentava me recuperar do inesperado impacto. A seguir quando o susto diminuiu e meu coração voltou ao seu ritmo normal , acabei por aceitar a contra gosto o inevitável. Abri a porta do carro e caminhei em direção ao obstáculo. O tronco era relativamente grande, devia medir cerca de uns dois metros de diâmetro por três de comprimento. Quando pousei nele minhas mãos, não para empurrá-lo, pois sabia que isso seria impossível, mas apenas para avaliar-lhe o peso, me dei conta que ia precisar de ajuda. Foi então que me lembrei de uma corda que trago sempre comigo no porta- malas. Com ela poderia amarrar o tronco, e depois deslocá-lo do caminho com o carro em marcha-ré. Respirei fundo e fui rapidamente abrir o capô. Encontrei uma pequena lona, o estepe, alguns jornais velhos, uma chave de fenda, mas nada de corda. Provavelmente devo tê-la deixado no acampamento. Não, não é possível gritei alto, sempre trago essa corda comigo, e justo hoje ela não está. Bem, não havia outro jeito. Comecei então a pensar falando em voz alta. Vamos ver... ainda deve haver uma solução. Nada é impossível se eu me concentrar um pouco. Sim, deve haver alguma coisa que... Mas é isso mesmo! Por que não pensei nisso antes!” Entrei imediatamente no carro, engatei uma primeira e lentamente avancei até encostar o pára-choque totalmente no tronco. Depois, soltando aos poucos a embreagem, fui acelerando cada vez mais. Sim! Agora vai dar certo. Mas o que! As rodas só
giravam em falso afundando o carro cada vez mais na terra, e o pĂĄra-choque coitado, ficou meio torto e coberto de lama. Realmente nĂŁo havia jeito.
Que estranha situação pensei comigo mesmo. Eu aqui em plena noite, depois de um temporal, e sem conseguir encontrar uma solução. Parecia que tudo estava contra mim. Não sabia mais o que fazer. Se ao menos alguém estivesse aqui comigo talvez teríamos forças para tirar esse tronco e quem sabe... Mas que adiantava pensar agora sobre isso? Não. Não existia coisa alguma que se pudesse fazer para reverter a situação. A única coisa sensata era ter paciência, e torcer para aparecer um carro que poderia nos ajudar para poder continuar o percurso que faltava. O silêncio que se seguiu depois foi de longa duração. Nas margens, grandes árvores projetavam suas sombras de forma assustadora. Incessantes zumbidos de insetos continuavam em coro sem parar. Fazia agora um pouco de frio. A lua pálida, entrava e saía por entre as nuvens. Sentia o corpo vergado de dor. Devo ter batido em algum canto do carro, pois sentia um puxão agudo quando tocava o ombro. Os faróis do carro clareavam o suficiente para ver as montanhas. Então resolvi dar alguns passos em direção a margem esquerda e descobri uma passagem rasa e estreita. Fui abrindo caminho, mas nada havia a não ser um mato cerrado que foi se estreitando, até levar um bom susto pela presença de uma coruja que bateu asas assim que pressentiu minha aproximação. Ergui os olhos para acompanhar o seu voo, mas desapareceu rapidamente na escuridão daquela mata. Permaneci por um bom tempo parado e pensativo. De vez em quando dava alguns passos, mas sem direção definida. Não saberia dizer os pensamentos que vinham naqueles momentos. Eram muitos. Surgiam todos eles quase que ao mesmo tempo. Mesclavam-se uns com os outros como imagens de um filme em fusão e se tornavam indefinidos, confusos, incompreensivos. Eram explosões sem nenhuma ordem de espaço-tempo. As mais fantásticas imagens surgiam e se projetavam em minha mente. Eu me lembro que procurava me acalmar dizendo a mim mesmo: ---Calma... Calma. Tudo dará certo. Mas logo depois era novamente invadido por turbilhões de pensamentos sem fim. Eram imagens da infância, cenas da adolescência, situações absurdas, personagens bizarros. Tudo sem nenhuma lógica, sem nenhum sentido. Foi aí que me dei conta de como a mente pode ser um excelente mestre, ou uma terrível e implacável inimiga. Se desejamos ter uma mente pacífica, precisamos ter pensamentos pacíficos, e isto era muito difícil de se conseguir naquela situação. Como gostaria naquele momento poder afastar um pouco os véus que encobrem os mistérios da vida, e compreender os desígnios do destino.
Lembro-me que em certos momentos parecia ouvir algum barulho de motor, como que vindo de longe. Meu coração então batia mais forte, corria de um lado para o outro, mas depois de certa expectativa tudo não passava de um prolongado pé de vento a sacudir as folhas das árvores. Resolvi então entrar novamente no carro para descansar um pouco, mas quando olhei para Marina, encontrei-a caída no vão do banco. Deve ter escorregado, pois o carro estava um pouco inclinado. Imediatamente a levantei com certo esforço e a pus novamente deitada por sobre o banco. Mas, oh! Estaria dormindo assim tão profundamente, a ponto de não se mexer! Sacudi delicadamente aquele pequeno corpo, mas este se mantinha estático. Talvez a queda tivesse provocado um simples desmaio, pensei. Levantei um pouco sua cabeça, apertei suas pequenas mãos. Mas nenhuma reação. ---Marina! Marina, você me ouve. Fale! Mas não. Oh, meu Deus! Quando tentei ouvir sua respiração, seu coração não batia mais. O corpo da pobre menina não foi capaz de suportar o mal. Senti um suor gelado inundar-me o rosto. Tentei abrir a boca, tentei mover os braços, mas me sentia como que petrificado. Queria respirar, mas não conseguia. Um longo e aterrador silêncio seguiu-se sem que eu pudesse acreditar. Esta quietude foi como um punhal que penetrou fundo em meu peito. Que destino cruel! Por que meu Deus? Por que tirar a vida desta inocente criatura a apenas três ou quatro quilômetros de sua salvação? Agora só me restava voltar. Mas na verdade o que mais desejava naquele momento, era acordar deste terrível pesadelo. Mas como poderia voltar? O que poderia dizer à pobre mãe que espera ansiosa a volta de sua filha? ---Infelizmente fiz todo o possível minha senhora, mas sua filha morreu no caminho. Enterre-a, esqueça-a. A vida é assim; uns morrem mais cedo, outros mais tarde. São as leis as vezes incompreensíveis do destino. Mas não chore minha senhora, sua filha ainda continua viva, embora em outra dimensão. Quem sabe esteja junto com os anjos do Senhor. Oh! Não. Não poderia lhe dizer estas palavras. Qual seria sua reação? Oh! Meu Deus, por que foi acontecer tamanha fatalidade? Como explicar essa armadilha do destino que nos obriga a nos interrogar sobre os desígnios da vida e nos coloca face a face com a morte? Como explicar esta estranha contradição
da natureza em criar o homem dotando-o de um imenso anseio pela perfeição e imortalidade, quando inesperadamente, a própria natureza destrói os planos que ela mesma estruturou. É como se após a criação de sua obra máxima, tivesse se arrependido, não oferecendo mais ao homem senão apenas alguns vislumbres de consciência, para em seguida a qualquer momento e sem nenhuma permissão lhe tirasse a vida, como se ela jamais tivesse existido. Mas se assim fosse, por que a natureza com sua enorme sabedoria teria dado ao homem parte de seu poder? Por que teria lhe dado o desejo de perguntar e de entender? Como compreender esta ambiguidade entre ser efetivamente um animal consciente do terror de sua própria morte, e ao mesmo tempo um anjo pela transcendência de sua própria mente? Enquanto procurava na associação de meus pensamentos uma solução, uma explicação sobre os terríveis acontecimentos, dificilmente conseguia manter um encadeamento lógico e racional sobre minhas ideias. Existiam é verdade momentos de intensa e real clareza e entendimento, mas isso durava não mais do que frações de segundos. Predominava durante grande parte do tempo, um sentimento de inconsolável tristeza. A angustia e a impotência formaram um só nó em minha garganta. Tentei com muito esforço me recuperar para administrar as emoções que estava enfrentando. Eu não sabia como era possível entender que uma pessoa que conheci por um breve tempo pôde inflamar minha alma e me causar tamanha aflição? Forças invisíveis me dominavam e atormentavam minha consciência. Desnorteado pela situação sentia a ausência de serenidade e de paz. Mas de repente sem saber como, surgiu em minha mente uma inesperada voz, que aos poucos foi se tornando mais audível. Como uma espécie de eco, os sons se transformaram em sublimes palavras, e escuto extasiado uma estranha voz.
“O sábio que permanece sereno e imperturbável no meio do prazer e do sofrimento, somente esse atinge a imortalidade. Compreende sem mistérios que a morte é a porta estreita que conduz para uma vida mais ampla” Reconheci imediatamente as palavras de Krishna* Era um trecho do Bhagavad Gita*. Mas como isto podia acontecer? No fundo sabia que a morte não era o fim de tudo, porém saber intelectualmente não consegue anular ou
diminuir totalmente o poder das emoções. Acabamos envolvidos, e sentimos a dor que entristece nossa alma. Olhei ternamente para Marina que tão jovem já abandonara esta vida. Abracei-a afetuosamente como se ela tivesse sido uma grande amiga, uma irmã ou uma filha. O que poderia ter sido? Quem sabe? Mas, oh! Impossível! Um milagre? Seria ilusão dos meus ouvidos? Seria uma ressurreição? Simplesmente não podia acreditar. Ainda tendo seu corpo abraçado ao meu, senti o palpitar da vida. Seu coração batia lentamente. Será que de uma forma misteriosa as palavras de Krishna, foram como uma espécie de premonição para consolar o meu coração entristecido? Eu sabia que muitas vezes de uma maneira inexplicável, certas enfermidades ocasionam uma espécie de suspensão temporária do fantástico mecanismo físico. Teria sido este mais um caso de natureza bastante singular? Onde se encontra então a fronteira entre a vida e a morte? Neste momento, ainda sinto e revivo com extrema emoção, o contentamento, o júbilo que páginas e mais páginas jamais conseguiriam relatar. Tento encontrar... Procuro nas profundezas da minha mente, mas não surgem as palavras que possam expressar com toda a fidelidade e realismo, os dramáticos momentos que senti naqueles minutos de súbita metamorfose. Contudo, as palavras é tudo que tenho para tentar transmitir as intensas emoções vividas. Quando mais tarde um caminhão ao longe apareceu, ainda me lembro da cara de espanto que o motorista fez quando corri em sua direção gritando e gesticulando. Era um sujeito simpático, corpulento, grandes bochechas vermelhas e não sei realmente o que ele deve ter pensado de mim nos primeiros momentos; um maluco na certa. Quando chegamos finalmente na cidade, Marina foi socorrida pelos médicos do pronto-socorro. Era uma grave intoxicação. No entanto não souberam explicar o que teria causado essa estranha paralisação da vida.
Será que tudo não passou de mera impressão? Quem sabe... Muitas vezes a mente se torna tão fértil, criativa e fantasiosa, que dificilmente conseguimos demarcar com precisão as fronteiras que separam o mundo que acreditamos sólido e concreto do mundo mental. O que é real e o que é irreal? Temos que transcender os nossos limites e não nos iludirmos com as falsas aparências. Como disse um grande mestre: “Embora o sol não seja visto a noite, ele não desaparece. Ele continua a brilhar com certeza em algum outro lugar” Nessa mesma noite acabei dormindo numa pequena pensão, não muito longe do pronto-socorro. Era uma daquelas bem tradicionais que encontramos sempre nos pequenos e antigos povoados. No quarto, apenas uma simples cama, um velho armário e um quadro desbotado na parede. Foi uma noite agitada permeada de muitos sonhos. Não me recordo de nenhum deles, mas eram com certeza projeções exatas das experiências traumáticas pelas quais passei, causando-me profunda comoção. No dia seguinte despertei num sobressalto. As pálpebras ainda me pesavam. Olhei ao redor um tanto atordoado. Uma pequena fresta de luz invadiu o quarto, destacando algumas manchas de umidade numa parede. Tudo me parecia estranho. Mas aos poucos, fui recobrando gradativamente a consciência. Marina! Gritei dentro de mim. Imediatamente fui ao seu encontro. Ela já estava bem melhor. Naquela mesma manhã, levei-a de volta sã e salva aos braços de sua mãe.
*Krishna - Mestre espiritual, descrito no livro “Bhagavad Gita. *Bhagavad Gita – Parte do grande épico, o Mahabarata, cujas origens remontam ao tempo dos Devas. Cerca de 5.000 anos A.C.
O eterno presente Não tente curar seus irmãos, nem o mundo a sua volta, antes de aprender a encher seu próprio coração de amor. Tenha compaixão por si mesmo. Dê passos pequenos. Comece curando seus próprios pensamentos e sentimentos. Se você não está feliz agora, pare de tentar encontrar a felicidade no futuro. É no presente que está a felicidade. Paul Ferrini
M
uitas vezes, sem que possamos determinar em que momento,
surgem situações imprevisíveis que nos fazem crescer. Crescemos porque somos forçados a mergulhar em nós mesmos e descobrir assim a nossa verdade. Quando muitas vezes penso até que ponto o homem pode contribuir
para a felicidade do mundo, sempre me convenço de que a felicidade humana só pode ser possível no momento em que há uma transformação em cada um de nós. Quando filósofos como Arthur Osborne, Mouni Sadhu e Paul Brunton estiveram aos pés de Ramana Maharishi, um dos grandes mestres iluminados da Índia, ouviram de viva voz esses sábios ensinamentos: “Ajudando-vos a vós mesmos, vós ajudai o mundo. Vós estais no mundo. Vós sois o mundo. Vós não sois diferentes do mundo, tanto como o mundo não é diferente de vós. Quando meditardes sobre essa questão: quem sou eu? , e começardes a compreender que nem o corpo, nem os pensamentos, nem os desejos são o verdadeiro eu, essa atitude por si só fará surgir a resposta das profundezas do vosso ser. Vosso espírito reencontrará a calma e uma onda de felicidade se espalhará em vós, pois o eu verdadeiro e a felicidade são termos idênticos” Analisando o transcurso da história, penso que ficou mais do que demonstrado que não é a revolução sociopolítica, econômica, religiosa, tecnológica que satisfez as aspirações da humanidade, mas somente a revolução interior, vinda da luz da consciência do “Ser”. E no momento em que se manifesta, ela nos oferece um eterno presente. O presente para dissipar uma escuridão, por mais antiga que tenha sido. Agora talvez podemos entender melhor a verdadeira missão dos autênticos sábios, que não foi como se supõe ter sido para acrescentar mais conhecimentos, mas sim em insistir para que os homens percebessem “o “Ser” que está sempre presente em nós. Eles nos dão a própria experiência da verdade suprema por meio de suas sábias palavras e ações corretas. Com esta consciência não existe nenhuma necessidade de nos tornarmos algo diferente. Temos que nos tornar apenas aquilo que verdadeiramente já somos. E o que somos, senão o amor. O amor incondicional que nada pede. Ele é a única verdade que não se altera. Estabelecer-se onde nada se altera é o segredo para sentir a nossa bem-aventurança. Porque debaixo do “iceberg” dos nossos pensamentos se oculta a nossa essência. E então nos apaixonamos por este eterno e puro amor que nos envolve. Este amor é a verdadeira religião, é a reli-gação com o nosso “Ser”. Existe em nós um desejo constante para encontrar um sentido de vida, seja no trabalho, nos relacionamentos, no dinheiro, na fama. Estamos sempre
desejando alguma coisa, sempre na expectativa de uma transformação. No entanto, sempre constatamos que alcançado este ou aquele ideal, surge novamente o vazio, e uma maior insatisfação. Vivemos perdidos como num sonho, que desfoca a nossa visão e adormece a nossa alma. Tal qual um saco furado, quanto mais o homem possuir, maior será a sua ilusão e mais distante estará de sua verdadeira meta. É a pobreza espiritual e não a material a responsável pelo sofrimento humano. Até mesmo quando tentamos alcançar o estado de perfeição, percorremos um caminho totalmente falso, que nos conduz a mais condicionamentos, a mais divisões, a mais frustrações. Acreditar que a felicidade pode ser atingida gradativamente por meio de esforços intelectuais torna o homem apenas um erudito, mas jamais um sábio. Entender intelectualmente apenas, é estar sempre no terreno do verbalismo e não é esta a verdade que o sábio tem por objetivo. O grande mestre Tokusan, ao alcançar a iluminação, sentiu tanto a inutilidade do pensamento conceptual que declarou: “Todo o nosso conhecimento de abstração filosófica não tem mais importância do que um fio de cabelo na imensidão do céu” Encontramos também no zen-budismo um antigo diálogo que expressa admiravelmente essa verdade: “ Todas essas montanhas, todos esses rios, a própria terra de onde vêm ---e de onde vem a tua pergunta? respondeu o mestre. Vamos, encontrar também um verso do mestre Kabir* que conseguiu expressar uma das verdades mais profundas que raramente são formuladas em palavras.
“A gota de orvalho desapareceu no oceano. É possível agora encontrála novamente? Não, a gota de orvalho não caiu no oceano, mas foi o oceano que caiu na gota de orvalho” Reflita profundamente nesta afirmação aparentemente paradoxal e tente perceber o seu imenso significado. Assim quem se der ao trabalho de pesquisar pacientemente as surpreendentes revelações feitas no mundo sobre as últimas pesquisas na psicologia transpessoal, na EQM (experiência de quase morte) e hoje na física quântica, chegará à conclusão pela evidência dos fatos de que não existe contradição entre a ciência e a espiritualidade. Negar todas estas pesquisas é adotar uma atitude anti-científica. No entanto, embora a certeza da vida-pós-morte nos proporcione um equilíbrio interior e um sentido mais profundo sobre a existência, isso não chega a ser fundamental. Se não despertarmos, e ver em nós mesmos as nossas virtudes e nossas sombras, que valor pode ter esta imortalidade? Apenas para continuarmos do jeito que somos? Robotizados do jeito que estamos com nossos vícios e fraquezas! Sentir a nossa plenitude não é deixar o corpo físico, mas em não se identificar com o irreal. Agora podemos compreender porque os mestres do passado como Buda, ou do presente como Gurdjieff, ou Sri Ramana, nada mencionaram acerca da imortalidade ou sobre Deus. Eles não ofereciam nada a que possamos nos agarrar. Deixaram apenas o puro vazio. Isto me faz lembrar de um dos satsang com Maha Krishna Swami, que foi um dos dicípulos do mestre hindu Sri Ramana, quando um dos integrantes do grupo perguntou-lhe: ---Mestre, a alma é ou não imortal? Nós realmente reencarnamos, ou essa ideia é falsa? Existe o céu e o inferno? Como posso encontrar Deus? Assim que acabou esta enxurrada de perguntas, fiquei surpreendido com a simples resposta do mestre que lhe respondeu: ---“Seu café está esfriando.” Hoje reconheço que foi uma resposta zen. Uma maneira de trazê-lo para o aqui-agora. O café da manhã era muito mais importante do que aquelas perguntas intelectuais, que seriam apenas mais um acúmulo de informações. Isto pode dar a falsa noção de que os mestres não acreditavam em Deus, o que é um conceito totalmente equivocado. Mas quando entendemos que estar conectado com o nosso “Ser” é na verdade uma conexão com Deus, entendendo que Deus e o “Ser” são sinônimos, então nos damos conta de que Deus não está fora de nós escondido em algum lugar secreto do universo, mas
que se encontra o tempo todo dentro de nós, em cada célula, em cada átomo, em cada pensamento. É como uma semente submersa na terra. Ela não é vista, e no entanto embora tão diminuta, contém em sua essência toda a árvore com suas folhas e frutos. Assim todos os autênticos mestres iluminados, evitam discutir sobre esse ponto, pois seria um desperdício de tempo tentar entender certos mistérios, quando não alcançamos ainda um estado de consciência mais elevado. Seriam meras fantasias e abstrações mentais. Existem é verdade mistérios que não conseguimos entender, mas há mistérios que nem sequer sabemos que existem. Por estas razões discutir sobre eles nenhum benefício traria ao homem. Creio que o mais importante é vivermos esta vida em toda sua plenitude e intensidade, pois é ela que irá determinar o nosso futuro. Embora as provas cada vez em maior quantidade sobre a imortalidade sejam imensas e indiscutíveis, estas perspectivas representam, na verdade uma dimensão que dentro das nossas limitadas condições de consciência não temos ainda o poder de compreender em toda a sua grandeza. Seria como se alguém, em vez de viver a vida em seu momento presente, passasse os dias sonhando com uma outra realidade do qual apenas ouviu falar, onde tudo seria maravilhoso e extraordinário. Devemos nos dar conta desta atitude imaginativa, e não esquecer que a vida que mais importa é a vida do “aquiagora”. Existe um ensinamento de Buda, que vale a pena relatar, porque ficou gravado em mim pela sua profunda verdade. O texto nos revela com muita simplicidade como cada um de nós é criador do seu próprio destino. “Se você quer conhecer a sua vida anterior, olhe o que você é agora, porque o que você é agora é o resultado de todo o seu passado. Se você quiser conhecer sua vida futura, olhe o que você é agora e trabalhe sobre o momento presente, porque o momento presente será a causa do que você será no futuro” O passado é somente um registro em nossa memória; e o futuro, apenas a projeção dos nossos sonhos. No entanto em certos momentos, como um lampejo de nostalgia sentimos uma tristeza impossível de definir, e que oprime nosso coração de intensa e inexplicável saudade. Talvez uma lembrança envolta em brumas, de
um tempo em que nos sentíamos unificados na fonte inesgotável do puro amor.
*Satsang- palavra em sanskrito, que significa “Encontro com a verdade”. Consiste em estar na presença de uma alma iluminada para receber seus ensinamentos. *Kabir- poeta indiano do séculoXV.
Interiores Encontre seu santuário interior e me reconheça, porque EU SOU a sua âncora. EU SOU o seu santuário. Deixe que minha paz e o meu amor o preencham e o envolvam. Eu o levarei para águas calmas e o livrarei de todas as pressões quando você tiver fé e confiar totalmente em mim. Eileen Caddy
F
inalmente, depois de uma noite tenebrosa mas profundamente
marcante, teve fim o temporal. As nuvens desapareceram, e agora deitado na rede ao lado da barraca contemplo o céu quase que totalmente tingido por um tom rosa-violeta em toda a extensão do horizonte. Observo encantado o sol emergindo lentamente e espalhando com suavidade seus raios sobre as águas. O mar adquire então uma tonalidade dourado-alaranjado, dando a impressão de ouro em estado líquido. Permaneço por um bom tempo deslumbrado pelo magnífico espetáculo. Não muito longe, nuvens brancas surgem espalhando na tela do céu imagens surrealistas. Era a noite se despedindo dando lugar a um novo dia que começava a nascer. Sinto em meu rosto o vento suave e quente do verão, e com ela o silêncio que me conecta com meu Ser. Fico imóvel, sem nada pensar, absorvendo a serenidade do momento e sentindo um bem estar extasiante. Mas de repente sons característicos me desviam o olhar, e vejo um bando de gaivotas voando sobre o mar, como me desejando um bom dia. Um cão malhado de olhos brilhantes que pareciam bolas de gude olha para mim obstinadamente. É meu último dia no acampamento, e portanto, não disponho mais nada de bom para oferecer ao meu simpático e inesperado visitante. Envolvido pela beleza deste encantador cenário, sinto em meu interior uma alegria impossível de descrever. Uma brisa fresca veio acariciar docemente meu rosto e não sei como, mas alguma coisa de apaixonante fez pulsar meu coração. Fico ali imóvel e fascinado, não apenas pelo sublime encanto daquele amanhecer, mas sobretudo por todas as experiências e transformações pelas quais passei nesse mágico e inesquecível recanto. Refletindo em tudo o que ocorreu, o mundo externo aparentemente parecia não ter mudado, mas eu interiormente nunca mais poderia sentir o mundo da mesma forma. Caminho lentamente sobre a areia branca, e me dirijo em direção à barraca que bravamente resistiu à tempestade. Fico impressionado com a quantidade de páginas que escrevi durante toda a noite, sem perceber o tempo que passou. No entanto, não sinto sono nem cansaço; ao contrário, sinto-me feliz em ter colocado no papel todas as minhas ideias, reflexões e sentimentos. Tinha acabado de realizar um sonho; escrever uma história.
Espreguiço todo meu corpo um tanto dolorido, e de repente, sem me dar conta, sinto meus pés correndo pela praia, feito criança endiabrada em direção ao mar. Mergulho em suas águas que me revigoram, e sinto em meu corpo um doce relaxamento. Permaneço assim sem me dar conta da passagem do tempo. Agora não sou mais eu. Sinto que sou o oceano, e a gota d´água que sonhava ser eu, desaparece lentamente, diluindo todas as minhas ilusões.
ROBERTO SAUL Publicitário há mais de 40 anos é também cineasta, artista plástico, pesquisador em psicologia e escritor. Francês de nacionalidade, mas nascido no Egito, ele nos brinda com mais uma obra de excepcional beleza. Interiores é um marco para quem Realmente quer transformar sua vida. Inspirado em fatos reais que ele vivenciou em contato com a natureza, Roberto Saul, nos revela de forma poética e pessoal as mais profundas questões da alma. Um livro que expõem de forma simples, a verdadeira essência da espiritualidade. Escrito de forma apaixonante, o autor nos instiga a reflexão e nos encoraja a fazer a mais importante viagem de nossa vida. Uma viagem em nosso interior, para nos conectarmos com o eterno presente.
Contato com o autor robbysaul@gmail.com