Percursos brumosos: considerações sobre espaços partilhados Giovanna Martins1
Je ne pouvais ni lire ni écrire. J’étais environné d’un Nord brumeux. Maurice Blanchot
Ser contemporâneo é ser cego, porque a distância não permite ver claramente: assim começamos o curso “Perspectivas Críticas sobre a Arte Contemporânea” sabendo que pensar nosso tempo é andar em meio ao indeterminado, experimentar a sensação desconfortável de desamparo, estar num não-lugar entre dois pontos que, certamente, não conduzirão a uma reta segura, mas sim, a um percurso labiríntico. Vemos através de um vidro esfumaçado: a bruma instalada, logo o desejo aumentado de compreender, de tocar e tornar visível, de colocar em cena as luzes imprecisas da razão. Vaticínio: as visões da arte contemporânea se apresentam como mapeamentos imprecisos de um solo resistente à estratificação, oráculos ineficazes de uma narrativa que sempre se reconstrói. Assim, o que se encontra por baixo de discursos deterministas é um desejo de verdades absolutas, uma máquina produtora de universais que manipula os fatos para que se transformem em possível doutrina, uma vontade infinita de ordem. O trabalho e a pesquisa no campo das artes, de alguma maneira contribuem para abalar estes princípios e estas verdades abrigadas pela Arte e pela História. Não se prestam a delimitar territórios, fechar espaços. Para Gilles Lepovetsky o trabalho intelectual, devido ao seu caráter inseparavelmente artesanal e apaixonado (amoureux) traz, em seu interior,
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Mestre em Artes Visuais (EBA- UFMG) e professora assistente do Departamento de Artes Plásticas da EBA – UFMG. 1
uma forma de resistência, pois ele é o encontro de um corpo com outro, uma forma de estabelecer e explorar as vizinhanças, de existir pelo contato ou de estar de frente a alguma coisa. O desejo de produzir uma escrita é, portanto, o de atualizar uma potência, tornar-se ativo, produzir uma relação humana, prolongar singularidades, decidir. Resumindo, fazer o movimento2, criando laços e conexões para tentar se situar, mesmo sabendo transitórios todos os territórios por onde nos movemos. O meu interesse, neste campo, tem sido pensar as manifestações artísticas como zonas de encontro, lugar onde se estabelecem relações de duração: refletir sobre os espaços fluidos que se apresentam na contemporaneidade e que permitem o aparecimento de cenários de comunidade, socialização e partilha, nos quais novas relações de identidade e afeto se constroem (ou buscam se realizar). Ao falar do lugar do artista, do interior do território da arte, minhas visões não intentam organizar, historiar: apenas levantam questões e traçam aproximações, num afã bólide que aspira a nos conduzir a outro lugar. O essencial permanece, no entanto (e para sempre), obscuro e a obscuridade arrasta-nos para uma região onde as regras nos abandonam. Noli me tangere: o auxílio que a arte nos presta talvez consista, justamente, no fato de resistir a nós energicamente, de nos apresentar enigmas em lugar de heróis3. Aqui, proponho uma pequena viagem (com desvios, conexões, recuos e avanços), viagem na qual buscarei refletir sobre possíveis pontos de interseção de duas estéticas: a da participação e a relacional. Tomarei como objeto de impulso dois momentos de dois artistas: de um lado do mundo, Hélio Oiticica, em um Brasil dos anos 60-70; do outro lado Sophie Calle, que se inicia no campo das artes nos anos 80, na França.
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DELEUZE, Gilles. Péricles e Verdi. A filosofia de François Châtelet. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio D’Agua, 1984. 2
Dois momentos distintos separados pela geografia e pelo tempo: será possível encontrar entre suas obras pontos de contato?
II Micro-geografias: mapeando as antípodas
Estabelecer conexões o mais imediatamente possível com o mais próximo ou bem você está ostentando sua careta usufruindo os privilégios da morte ou bem você está se esgueirando entre mausoléus correndo sempre o risco de resvalar na trincheira das covas se eles constroem a parede sua missão é infiltrar-se pelas ranhuras com a instintiva incautela de um réptil que estivesse sempre no novo4.
As palavras de Rogério Duarte -, poeta que nomeou de Apocalipopótese a manifestação-encontro de vários artistas no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro -, datam de 1977. Para ele, talvez, as conexões que se faziam e as relações inter-humanas que se estabeleciam nos espaços artísticos, visariam a criar espaços de resistência no interior dos corroídos sistemas sócio-político-culturais de sua época: infiltrar-se pelas ranhuras, explorar as bordas, criar redes, navegar pelos interstícios. Uma tentativa de fundir arte e vida, logo, desconstruir os limites e solapar, assim, o poder. Depois de instalar o regime militar no país, em 1964, o então presidente General Castello Branco iniciou os Inquéritos Policiais Militares: cassações de direitos políticos dos cidadãos e perseguições a artistas, sindicalistas, professores, líderes estudantis, cineastas, músicos, escritores e a todos que se opusessem às novas regras. Para conter as intensas manifestações contrárias, em 13 de dezembro de 1968 foi instaurado o Ato Institucional n. 4
SALOMÃO, Wally. Qual é o parangolé? E outros escritos. R.J.: Rocco, 2003. 3
5, estabelecendo a censura dos meios de comunicação e calando, assim, os direitos individuais. A partir daí, como uma reação às medidas de exceção, a transgressão irá se tornar a palavra de ordem para tentar desarticular estes sistemas opressores brasileiros. Este foi o cenário no qual Hélio Oiticica desenvolveu grande parte dos seus projetos que estabeleciam conexões - as mais próximas possíveis – junto, com e para o outro, utilizando formas e códigos marcadamente cifrados. A arte brasileira desse período criou metáforas próprias, linguagens que só poderiam ser compreendidas por aqueles que partilhavam os mesmos códigos e que, dentro daquele sistema, podiam se infiltrar, provocar aproximações, logo, possíveis trocas. Era a contracultura dos anos 70: cultura que se desenvolvia à margem do sistema, tomando como base as parcerias, as articulações em grupos e as colaborações. A época instigava, quanto menos se podia falar mais se queria dizer: a formação de encontros, mesmo com todas as dificuldades impostas pela censura, acontecia de forma mais fácil que hoje. Eram tempos mais ingênuos se comparados com o presente. E foi através desses encontros que Hélio Oiticica se movimentou, dialogou, experimentou. Navegou com e no outro, numa tentativa de extrapolar as fronteiras impostas por seu tempo. Nesse panorama artístico, no Rio de Janeiro, trabalhavam também nesse sentido Lygia Clark, Ligia Pape, Antonio Manuel, entre outros. Artistas, poetas, músicos e cineastas que buscavam redimensionar espaços, ampliando-os. Foram os geradores da Tropicália e de toda uma espécie de “guerrilha artística”5.
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Cf. MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra. Um Marco Radical na Arte Brasileira. Catálogo de apresentação da exposição em Belo Horizonte. S.P.: Instituto Itaú Cultural, 2001. 4
“Quem não se comunica, se trumbica”, já dizia o animador de tevê Chacrinha que um dia, em seu programa, anunciou: “Com vocês, o costureiro Hélio Oiticica!”. Costureiro que une distâncias, Hélio foi de muitas cartas, de muitos textos, gravações, publicações, de muitas parcerias. Muito samba no pé: maneira de falar com o corpo. Hélio subiu ao morro da Mangueira e escolheu a via da superação do etnocentrismo: “Da adversidade vivemos”: parangolé-mensagem-rodopiante disparando de seu corpo relacional suas possibilidades combinatórias e sinais ressignificantes; dançando uma linguagem cúmplice e criando espaço quando o mundo está a desabar: é preciso vestir a arte, incorporá-la na relação mais estreita possível, pele-pano-existência. Variante, dançante. Em Hélio desaparece o espectador e surge o participador. Desaparece o artista e nasce o propositor. Seres sem hierarquia que irão colocar em jogo o estatuto da arte. Em Ninho da Babilônia, trabalho que colocarei aqui ao lado do de Sophie Calle, Hélio abre o espaço intercorporal da obra: expõe o quarto, o que pode haver nele de íntimo e, com isso, faz vir à tona vários sentidos: entre eles o de lugar que ele oferece aos encontros (e, conseqüentemente, lugar também de ausências), onde, no espaço do real, se demora.
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1.Hélio: Babylonest (Ninho da Babilônia) Nova York, 1973.
[...] dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora. É o começo de uma expressão coletiva. Hélio Oiticica
[...] constituía uma cidade cosmopolita compacta. Kindergarten, play-ground, laboratório, motel, boca, campus universitário contido em uma cápsula ambiental. O NINHO era provido de aparelho de TV e controle remoto zapeando sem parar, jornais, rádio, gravador, fitas cassetes, livros, revistas, telefone (o fone não sub-utilizado como mero meio pragmático mas a conversa-carretilha compulsiva com suas vívidas interjeições parecendo improviso quente de jazz, talking blues e rap), câmara fotográfica, projetor de slides, visor, caixas de slides classificados,
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caixa de lenços de papel, garrafas e copos descartáveis, canudos, pedra de ágata cortada em lâmina, etc. etc..[...]6.
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Sophie Calle nasceu em Paris em 1953. Em sua juventude, deixou a cidade e viajou pelo mundo por sete anos. Quando regressou, na intenção de se readaptar e encontrar novos sentidos para sua existência cotidiana decidiu seguir pessoas, escolhidas ao acaso, para saber como viviam e do quê se ocupavam. Munida de sua máquina fotográfica ela passou a se travestir para não ser reconhecida em suas perseguições. Na Suite Veneziana, Calle, depois de conhecer um homem em uma festa seguiu-o até Veneza, disfarçada com uma peruca loura, fotografando e fazendo anotações durante todo o percurso. Em Les dormeurs convidou quarenta e cinco pessoas (vinte quatro aceitam) para dormir em sua cama. Essas pessoas foram fotografadas durante o sono e interrogadas sobre questões diversas. Estes projetos não eram considerados pela artista como pertencentes à esfera da arte. Eram apenas jogos. Mas os mecanismos propostos por Calle causaram forte impressão num crítico de arte que lhe sugeriu enviar o trabalho para o Salão de Jovens, de 1979, no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. A partir dessa sugestão, ela se sentiu autorizada a inserir estes jogos nos estatutos da arte. Sophie Calle, a partir daí, vem desenvolvendo suas proposições utilizando-se de estratégias que instauram espaços de proximidade: através de uma rede de apelos afetivos a artista nos leva a acreditar que é possível partilhar seus segredos com cumplicidade, pois, à maneira dos romances policiais, ela freqüentemente coloca o observador na posição de 6
SALOMÃO, Wally. Qual é o parangolé? E outros escritos. R.J.: Rocco, 2003. 7
investigador e/ou participador, fazendo assim com que, ele próprio, busque decifrar os limites entre o que é real e o que é por ela inventado. Gothan Handbook é um trabalho que se localiza sobre o signo da nãodisponibilidade, no sentido de se dar a ver num tempo e num lugar determinados: uma vez jogado o jogo, o que resta dele é somente uma documentação que a artista formaliza como uma experiência autobiográfica, uma metonímia do acontecimento. Mas, o trabalho em si, consiste nas relações que ele gera e que irão se disseminar por outras vias.
2. Sophie: Gothan Handbook- New York, modos de usar Nova York, 1994.
Uma das inúmeras maneiras de misturar a ficção à realidade, ou como tentar se tornar personagem de um romance: Uma vez que, em Leviathan, Paul Auster me tomou como sujeito, imaginei inverter os papéis tomando-o como autor dos meus atos. Pedi a ele que criasse um personagem de ficção ao qual 8
eu me esforçaria para tornar-me parecida...Ele me enviou Instruções pessoais para Sophie Calle a fim de melhorar a vida em Nova Iorque (porque ela me pediu...). Respeitei essas instruções.
A regra do jogo: Sorria quando a situação não o impõe. Sorria quando você está com raiva, quando se sente infeliz [...] e veja que efeito faz. Sorria a desconhecidos na rua. Nova Iorque pode ser perigosa, você deve, então, ser prudente. Se preferir, sorria somente para as mulheres (os homens são brutos, é preciso não lhes dar idéias falsas). [...] Pessoas te falarão depois de lhes haver sorrido... Entre eles, alguns te falarão porque se sentem incomodados, ameaçados ou insultados pelo signo de simpatia que você lhes dirigiu... aborde o assunto do tempo ... Falar do tempo com um desconhecido é estender-lhe a mão e desarmá-lo. É um signo de boa vontade, um testemunho de humanidade partilhado com a pessoa com quem você fala. [...] Faça provisões de pão e queijo. Cada vez que sair de casa, prepare três ou quatro sanduíches e coloque dentro do bolso. Cada vez que ver alguém que tem fome, dê-lhe um sanduíche. Faça também provisão de cigarros... os cigarros dão grande conforto àqueles que fumam. Não se contente de dar um ou dois. Dê maços. Adote um lugar público. Paul Auster
Escolhi a cabine telefônica situada no cruzamento das ruas Greenwich e Harrison. É uma cabine dupla. Apropriei-me da do lado direito. Para embelezá-la comprei Glass Plus para limpar os vidros, Brasso para fazer brilhar os metais, um aerosol de tinta verde, seis blocos para notas, seis crayons, um espelho, um tubo de cola, duas correntes em torno de 4 metros, dois cadeados, um buquê de rosas vermelhas, sete cartões postais, um cinzeiro, duas cadeiras desmontáveis e um exemplar do último número do Glamour Magazine. Na noite de terça-feira, 20 de setembro de 1994, tomo posse da cabine telefônica.
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III O espaço de partilha como uma política
Mas por que duas? Por que duas palavras para dizer a mesma coisa? É que aquele que a diz, é sempre o outro. Nietzsche
Hélio e Sophie Calle construíram cenários: dois abrigos dentro de Nova York que indicam um território, que procuram recriar lugares para se viver. Propõem novas maneiras de habitar esses lugares, daí novas maneiras de utilizar. O Ninho de Hélio pede que nele se adentre, repouse, leia, veja, procure, caminhe, que sinta a presença do outro. Convida à pausa, à permanência e a interrupção do cotidiano. É um espaço de reconciliação com o público, sensual, harmônico, que desloca a memória emocional de um quarto de dormir e materializa-se também como ato estético: cores, tecidos, objetos, todo o espaço cuidadosamente arquitetado. A cabine de Sophie é uma operação sobre um lugar dentro da cidade, uma demarcação que, ao gerar narrativas, concede a este lugar visibilidade. Este espaço público, ao passar por suas mãos, se transforma em um espaço de partilha do íntimo: são suas as flores, os papéis de anotação, as palavras de boas-vindas; os cigarros, o lanche, as cadeiras que se oferecem. Ela está ali, todos os dias, sorrindo, conversando, acolhendo: a presença da artista estabelece laços de afeição. Mas, não criaria toda obra de arte esse espaço afetivo? Não residiria aí o sentido original do simbólico?
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Na raiz da palavra partilha está particulae: pequena parte ou quinhão que é dividido. O ato simbólico é, nesse caso, campo de reencontro, aquele que aproxima dois lados que antes se encontravam dispersos. Produz movimento. Instaura relações humanas numa matéria que produz diretamente afetos: e isto é uma política, uma atividade racional do homem que garante nossa vizinhança e a multidão de singularidades. Nos lembra que a razão não tem como função representar, mas sim atualizar a potência, quer dizer, instaurar relações humanas numa matéria7. Segundo Marx, a humanidade não tem nenhuma essência particular, sua essência residiria nas relações que se estabelecem entre todas as pessoas que a constituem, que produzem a realidade a partir dos vínculos que criam entre si. Os vínculos afetivos são os que se infiltram silenciosamente pelos interstícios sendo, assim, capazes de colocar em jogo sistemas sociais. Criam lugares que funcionam de forma diversa de outros lugares sociais, podendo lentamente contaminá-los e transformálos. Ocupar espaço, amigo, eu digo: brechas: é por elas. Palavras de Torquato Neto nos anos 70. Esse pode ser um pensamento romântico e utópico, mas a arte contemporânea vem operando deste modo: através de experiências artísticas, originadas na arte conceitual dos anos 60, muitos artistas vêm tentando despertar e imprimir no outro o sentido de comunidade, de comunhão, indo na contramão dos modelos sociais impostos que limitam, cada dia mais, as relações de vizinhança e contato. Ao partilhar, propositor e participador rompem, por algum tempo, as barreiras da solidão e das distâncias individuais. O Ninho de Hélio e Gothan Handbook de Sophie Calle criam um bloco de sensações partilhadas, que perpassam, de algum modo, aqueles que interagem com ela: é
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DELEUZE, Gilles. Péricles e Verdi. A filosofia de François Châtelet. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999. pg.53. 11
assim que a obra se conserva, ao se disseminar através dos afetos, ao estabelecer uma duração no outro. Transitando entre os dois espaços complementares – o da realidade e o da ficção -, esses artistas criam um cenário: reinventam espaços alterando-os, deslocando-os, articulando-os. Tomam a vida como fundo, como potência capaz de dissolver as formas estabelecidas, criando uma zona de indeterminação tal, que não se sabe mais onde começa o real onde termina a obra. Buscam, assim, para dentro desse campo instalado o participador, agora transformado em ator: ser ativo, atuante, locatário de lugares transitórios que introduz aí seus dados, suas maneiras de uso: se a contemplação passiva do mundo sujeita as produções do homem ao espetáculo comunitário, é o uso que se faz dele que permite a criação de novos relatos8. A arte se infiltra agora na vida produzindo mecanismos muito próximos à realidade em lugar de representá-la, potencializando-a então. E isto constitui uma estética da partilha: uma estética de relações, de convívio e interação social, pois a grande incidência desses comportamentos na contemporaneidade passa a constituir uma maneira pela qual as artes podem ser percebidas e pensadas como arte e como forma de inscrição no seio da coletividade9. Esses cenários produzem modos de socialização, são zonas de encontro que se formam ao manipular as formas desagregadas do cenário coletivo, produzindo espaços narrativos singulares no qual o “colocar em cena” constitui a obra10. Participando ou relacionando,
percorremos
universos
em
constante
movimento:
essas
práticas
comportamentais organizam micro-comunidades temporárias e efêmeras a partir de
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cf. BOURRIAUD, Nicolas. Post producción. La cultura como escenario : modos en que el artereprograma el mundo contemporáneo. Bs.As.: Adriana Hidalgo Editora, 2003. Pg. 55. 9 Cf. RANCIÈRE, Jacques. Le partage du sensible. Paris : La Fabrique-éditions, 2000. 10 BOURRIAUD, Nicolas. idem. Pg.55. 12
estruturas advindas do cotidiano. Indicam e assinalam, assim, o real, fundindo o assinalante e o assinalado. Para Nicolas Bourriaud, o convívio da produção ou as relações entre pessoas era, para os artistas dos anos sessenta e setenta, um objetivo e ora é um ponto de partida: mas seria esse um dos poucos pontos mutantes da estética da participação para a estética relacional? Vejamos. Porém, antes, é preciso questionar alguns aspectos dessa transição: um deles é que, para se pensar como se estabelecem essas relações, é preciso considerar que falamos de dois artistas de dois países com suas realidades bastante diversas. O que, naqueles anos, seria participação para Hélio Oiticica, no Brasil (mesmo que Babylonest tivesse sido realizado em N.Y.), não é o mesmo que Gothan Handbook, de Sophie Calle, pretende hoje. Naqueles anos, na América Latina, as relações sociais se estabeleciam com mais facilidade e de maneira mais simples. A violência do final dos anos 60, neste continente, era exercida, sobretudo, pelas vias autoritárias do poder. Não tinha a mesma origem de hoje e não impedia o contato, o trânsito e a troca entre as diferentes classes sociais, à diferença de hoje em que, essas diferenças, geraram e instituíram territórios muito delimitados, separando ricos e pobres, dificultando as relações e trocas entre classes, reforçando, mais do que nunca, a arte como território de exclusão. Seria instigante fazer um estudo mais aprofundado de como se processam os encontros sociais no Brasil e em outras partes do mundo. As relações sociais, para um brasileiro, hoje, não parecem ser, ainda, algo fora do seu alcance. Ao contrário, é possível supor essa urgência nas culturas ocidentais do norte. Parece que, para nós, essas relações são extensões de uma cultura que ainda está em construção. De acordo com Nicolas 13
Bourriaud, hoje seria preciso criar lugares para que isto se realize, e um desses espaços de proximidade seria, no seu contexto, o das experiências artísticas.
Participar e relacionar-se. É preciso tentar mais uma aproximação entre essas palavras, ver sem deixar que suas partes iluminadas ofusquem e, ao mesmo tempo, perceber o que revelam suas partes obscuras: talvez, as duas designações falem de estratégias e conceitos bastante semelhantes e, às vezes, complementares. Essas práticas artísticas, iniciadas nos anos 60, mudam seus modos de articulação e inserção no seu tempo, porém conservam entre si, analogias nos modos de jogar e de se apresentar. A estética da participação é também relacional: se a relação não se dá entre o corpo do propositor e o do participador, ela se funda dentro do corpo da obra. Porém, algumas coisas mudaram - porque mudaram os tempos: a velocidade curto-circuitante dos novos sistemas de comunicação -, seguindo os conceitos de Rosalind Krauss -, trouxe modificações à nossa noção de proximidade: o que antes poderia ser chamado participação e ser suficiente, hoje já não o é mais. A palavra relacional entra em cena para se referir a uma nova noção do espaço de convivência e sociabilidade: a do entre, a do quase imperceptível in-between. Assim, uma outra manobra lingüística cria, também, uma desorientação do público diante das operações simbólicas. Há outra mudança que é de ordem ética: as novas práticas artísticas, a partir dos anos 60, geraram uma nova maneira de o participador lidar e explorar o espaço da obra. Um anúncio de uma revista brasileira de 1964 dizia: Verifique se você sabe reagir a essa “inflação” súbita de sociabilidade11. Se essas práticas causavam incômodo e inquietação no ainda observador (o que devo fazer diante disto?) por fazerem um apelo à proximidade
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(e darem a ele somente uma informação elementar que deveria ser por ele, então, lapidada), elas hoje permeiam o espaço do real, confundindo-se com ele. O participador, agora, já não se intimida diante de uma obra e aceita ou não o jogo proposto: assim, o uso que ele faz destes cenários efetiva essas operações.
Para Roland Barthes, se fosse possível imaginar uma estética do prazer, esta seria a que, ao propor através de seus elementos constituintes uma maior proximidade entre autor e leitor, se faria de tal forma intensa e presente que se poderia mesmo sentir o focinho humano: para isto, estes elementos deveriam se apresentar de maneira fresca, flexível, lubrificada, finamente granulosa e vibrante como o focinho de um animal, para que consiga deportar o significado para muito longe e jogar, por assim dizer, o corpo anônimo do artista para muito próximo do corpo do leitor: isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui12. Neste ensaio, inúmeras vezes digitei a palavra ralacional no lugar de relacional. Percebi que, mais do que erro, isto talvez indicasse uma errância, pois ralar, friccionar e relacionar, hoje são conceitos que se aproximam: ferem levemente algo ou alguém por atrito. Quiçá seja nesse espaço estreito do qual nos fala Barthes, onde a resistência está no movimento do atrito e do pequeno espaço que aproxima os corpos, que a arte, hoje, tente incessantemente inventar os seus jogos.
Outubro/Novembro de 2004
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cf. Revista O Cruzeiro. R.J.: Empresa Gráfica ”O Cruzeiro” S.A. n.29. 25/04/ 1964. pg.123. 15
Bibliografia:
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001.
BLANCHOT, Maurice. La folie du jour. Éditions Fata Morgana, 1973.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio D’Agua, 1984.
BOURRIAUD, Nicolas. Esthétique relationnelle. Les presses du réel, 2001.
BOURRIAUD, Nicolas. Post producción. Bs.As.: Adriana Hidalgo Editora, 2003.
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DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Péricles e Verdi. A filosofia de François Châtelet. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999.
Instituto Itaú Cultural. Enciclopédia de Artes Visuais do Projeto Hélio Oiticica. www.itaucultural.org.br
LEPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004.
Revista O Cruzeiro. Publicação de 25 de abril de 1964.
SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticica. Qual é o parangolé? e outros escritos. R.J.: Ed. Rocco, 2003.
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BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. pg. 78 16