giovanna martins portfólio
1984 - 2021
ingressei no bacharelado em artes plásticas no último ano da autoritária década de setenta. tempos difíceis nos quais, no porão de um edifício modernista, marco das artes e da modernidade de belo horizonte, eu iria viver minha juventude universitária. estar nos neo-românticos e pós-modernos anos oitenta dentro de uma escola nascida nos anos quarenta e que reverenciava os ensinamentos de seu grande mestre, tornando-os, muitas vezes, dogmas, significava trazer o peso de uma tradição da qual, com frequência, queríamos nos desvencilhar: o preceito guignardiano do lápis duro sobre papel nem sempre era desejado por aqueles que buscavam transgredir os modos de fazer, logo, de pensar. os novos anos nos instigavam a buscar outros caminhos, inventar um outro alfabeto ou mudar o já existente. queríamos tornar visível o mundo que recebemos e o que víamos em transformação, o que estava aquém e além dele, passando por suas brechas. se o AI-5 havia nos imposto suas cruezas e sua vigilância, como podíamos burlar as regras e agir num espaço outro? assim, o que buscaram os artistas, naqueles anos sobretudo, foi jogar com os conceitos e com as ideias, utilizando seu espaço discursivo para dizer daquilo que no mundo cotidiano não podia ser dito. havia também a sombra nefasta da aids que nos anos 80 tornou mais evidente a mescla do que até então era feito o mundo: sonho e medo entrelaçados rondando, definindo e redefinindo as ações e os comportamentos. penso que todos as situações conturbadas e violentas que de certa maneira vivemos nos finais da década de 60 e 70 ainda em nossas infâncias (e da qual herdamos inclusive o medo), no começo dos 80, época em que estava me iniciando oficialmente no estudo das artes, desencadearam em nós, então jovens artistas, uma grande necessidade de dar vazão a formas mais diretas de manifestação de afeto e mesmo de alegria. fomos hedonistas, sim. e esse hedonismo foi uma consequência dos anos anteriores e também uma posição política, uma vez que as produções simbólicas dessa época pareciam querer cumprir uma ideia de troca já iniciada nos anos 70, troca não só de noções, mas de contato e proximidade. muitos artistas, desde então, buscaram desenvolver suas produções simbólicas instaurando espaços de aproximação. nos anos 70, as conexões que se faziam e as relações inter-humanas que se estabeleciam nos espaços artísticos visavam a criar espaços de resistência no interior dos corroídos sistemas sócio-político-culturais. as palavras de ordem eram então: infiltrar- se pelas ranhuras, explorar as bordas, criar redes, navegar pelos interstícios. uma tentativa de fundir arte e vida, logo, desconstruir os limites e solapar, assim, o poder. através das experiências artísticas então originadas nesses anos de ferro, os artistas brasileiros do início dos anos 80, passaram não só a inventar outras vias de comunicação (que não as oficiais e tradicionais) como, também, a negar e repensar o permanente e o durável, assim como exaltar as relações afetivas. esses anos trouxeram outras imagens, abriram-se para a exploração de outros médiuns mas, igualmente, neles foram revisitados e revistos os conceitos, o que instaurou uma discursividade plural, através, sobretudo, de uma pintura irreverente, "suja, feia e mal-acabada", vigorosa e desinibida que ganhou grande visibilidade. e os campos de troca, nos quais a coletividade era privilegiada, cresceram. assim como igualmente cresceu o mercado de arte alimentado, principalmente, pelos yuppies.
eu já pintava desde o início dos anos 80, mas igualmente fazia litografias e fotografava. na pintura, buscava construir imagens de grandes formatos com muita cor, cheias de anotações em suas bordas ou corpo. um trabalho vigoroso e gestual que durou até meados dos anos 90, quando então passou por uma série de transformações. entre os anos 85 e 95, participei de exposições coletivas nas quais fomos nossos próprios curadores, tal como "desenhos e outras intoxicações" (1985, na galeria do iab, bh) e "operações fundamentais: a soma das diferenças" (1989, na grande galeria do palácio das artes, bh), entre inúmeras mais. em uma das coletivas de arte postal das quais participei, como não tínhamos um crítico de arte para nos apresentar (como era o costume daquela época), inventamos um: pedro klausner escreveu o texto de apresentação para o conjunto de postais lançados na abertura da mostra na sala corpo de exposições, bh. participei de coletivas: em são paulo (com curadoria de olívio tavares de araújo), da “arte mineira atual” (com curadoria de márcio sampaio) no teatro guaíra em curitiba, pr e em brasília, df.; e de diversos salões de arte, tendo sida premiada em alguns deles com obras em pintura. participei, ainda, de festivais de inverno da ufmg quando estes duravam um mês, e nos quais produzia intensamente desenhos, objetos e pinturas em oficinas ministradas por diferentes artistas brasileiros. nos final dos anos 90, numa palestra ministrada na escola guignard, perguntei a um ex-integrante de um dos vários ateliers coletivos paulistas daquela época – o casa sete – o que significava para ele pintar nos anos 80. ele me respondeu: - era divertido. particularmente penso que não era só divertido. era também um ato de esperança, de reconquista, de comunicação rápida, sem meias palavras mais. escutávamos sting, cazuza, dançávamos, participávamos e circulávamos pelos inúmeros eventos viabilizados por nossos primeiros “críticos-curadores” do eixo rio-são paulo. mas produzíamos muito e éramos jovens. começávamos, também, a dar os primeiros passos numa prática já iniciada anteriormente: a escrita do artista: um registro não só de processos de trabalho, mas também das reflexões em torno desses processos. portanto, escrevíamos já (lembrando dos inúmeros cadernos de anotações que produzíamos, assim como dos escritos de leonilson e anteriormente os de hélio oiticica), mas uma escrita livre de demandas acadêmicas, onde a voz que se ouvia era sempre vinda do questionamento da própria produção. e nos encontrávamos e partilhávamos os ateliês, então os verdadeiros pólos de trocas de ideias e contatos, com suas muitas festas e celebrações. sim, foram anos dionisíacos nos quais recuperamos a "criança eterna", brincalhona e travessa que impregnava nossos então modos de ser e pensar, fazendo do lúdico um novo paradigma cultural. foi como se aquela vida que acreditávamos ter se tornado um dia um desalento, retornasse com força e vigor para construir uma outra sabedoria. na memória e nos arquivos brasileiros, os anos 80 ficaram gravados e registrados como aquele momento de glória da pintura (mas também de outras técnicas, basta dar uma olhada nos catálogos dos inúmeros salões de arte da época!); de liberação do gesto afetivo; de comemoração e de reconquista do espectador através não só do visual, mas também do contato. mas para outros, todo esse movimento no campo das artes produziu somente mitos, lendas sem consistência, artistas preocupados somente com questões de ordem formais e interessados em se promover no então efervescente mercado de arte.
há quem pense, como li um dia num artigo, que o quê os artistas dos anos 80 faziam bem, era somente se promoverem e desfilarem sobre as coberturas das celebridades. não fizemos só isso. mas isso também aprendemos. e nisso também fomos bons. as lições aprendidas naqueles anos determinaram muitas de minhas escolhas. se meu interesse em passar os conhecimentos adquiridos e instigar novos conhecimentos já apontava sinais desde a minha infância, eles foram reforçados pela minha vivência naquela época dentro da guignard: o desejo de me aliar à algumas linhas de pensamento, preservando-as e ampliando-as ao colocá-las lado a lado com outras para estabelecer um movimento sem fim; o desejo de estar em contato contínuo com uma produção de incertezas mantendo-as em sua diversidade e complexidade, assim como o de nunca interromper as minhas possibilidades de aprendizado. ser artista e igualmente abraçar a docência me possibilitou tudo isso e ainda mais, porque se o primeiro me abre um espaço para efetuar operações e relações com e no mundo, a segunda me proporciona lidar com o outro numa dialética que é sempre desestabilizadora e estimulante, me colocando constantemente num lugar sem fixidez e cheio de surpresas. estar também em sala de aula significa não somente partilhar meus próprios interesses ou meus conhecimentos e experiências adquiridas no campo da produção em arte mas, igualmente, minhas dúvidas, buscando e percorrendo, junto com os interessados, os caminhos desconhecidos que convém a cada um.
Belo Horizonte, outono de 2016
1984 . 2003 I a pintura
sem título . óleo sobre tela, 100 x 100 cm, 1984
sem título . óleo sobre tela, 85 x 100 cm, 1986
my mess . acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, 1987
sem título. acrílica sobre tela, 160 x 140 cm, 1987
sem título . acrílica sobre tela, 160 x 140 cm, 1988
sem título . acrílica sobre tela, 160 x 140 cm, 1989
sem título . acrílica sobre tela, 160 x 140 cm, 1990
sem título . acrílica sobre tela, 200 x 160 cm, 1990
sem título . aquarela, lápis de cor e grafite sobre papel, 25 x 25 cm, 1994
sem título . óleo sobre tela, 80 x 120 cm, 1996
sem título. acrílica sobre tela, 153 x 74 cm, 1997
bombons (série quase negra) . acrílica e óleo sobre tela, 150 x 120 cm, 1998
la noire, la blanche, la plénitude. acrílica e óleo sobre tela, 300 x 220 cm, 1999
livro 1 (autorretratos residuais) . conjunto formado por 8 telas de 160 de altura e larguras variáveis. acrílica, pastel seco e lápis de cor sobre tela, 2002-2003
2004 . 2013 I a palavra . as relações de afeto . a série “remember love” . a fotografia
da série “desviando a superfície do poema”. fotografia digital, 2008
da série “lugar do silêncio”. experimentações em encáustica fria sobre tela, 40 x 60 cm, 2007
da série “lugar do silêncio”. encáustica fria sobre tela, 22 x 16 cm, 2007
da série “lugar do silêncio”. encáustica fria sobre tela, 30 x 30 cm, 2007
da série “paraíso artificial: um jardim para uso próprio”. óleo sobre tela, 2008 - 2010
da série “remember love ou reflexões acerca do amor”. vídeo, 2006-7 fotografia paulo schmidt . montagem sebastião miguel
da série “remember love ou reflexões acerca do amor”. livro de artista, 2009
da série “remember love ou reflexões acerca do amor”. encáustica, 2009-10
da série “remember love”. pequena poesia para o abandono. ação, livro, 2011 fotografia kiu meireles
da série “remember love ou reflexões acerca do amor”. fotografia digital, 2012
da série “remember love ou reflexões acerca do amor”. fotografia digital, díptico, 2013
2012 – 2021 I a paisagem . os fenômenos . o habitar
paraíso artificial: céus para viagem. pinturas (óleo sobre tela) em valises para viagem, 2012 – 2014 com a participação dos fotógrafos convidados: alessandra filardi jussara addiego cristiano xavier carlan lucas kiu meireles
quatorze céus para uma floresta. fotografia digital, livro, 2012 - 2013
a traição do real. fotografias digitais, 2013
o labirinto do contínuo. 365 fotografias digitais (mostradas em loop e em tiragem de postais), 2012-14
o labirinto do contínuo. guache, aquarela, pastel seco, lápis de cor e grafite sobre papel 300 gr, aproximadamente 55 x 75 cm, 2016 - 2021
o labirinto do contínuo: construir, habitar, cultivar. gravetos colhidos na região de brumadinho, mg, 2019 - 2021
construir, habitar, cultivar. 2021 (em processo) https://issuu.com/giovannamartins/docs/construir__habitar__cultivar
giovanna martins [belo horizonte, mg, 1956]: mestre [2006] e doutora [2019] em artes visuais pela escola de belas artes da universidade federal de minas gerais, e bacharelado em artes plásticas
pela
escola
guignard
[uemg/2001]. é professora adjunta do departamento de artes plásticas da ufmg. atua como artista, docente e
pesquisadora.
sua
produção
imagética e textual tem girado em torno das relações de afeto e do homem
com
a
natureza.
é
coordenadora do diagrama grupo de pesquisa e membro do ut pictura poesis – núcleo de estudos da pintura da escola guignard, uemg.