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Novos direcionamentos do Urbanismo
from Intervenções urbanas efêmeras e seu papel em criar uma cidade mais amigável para a mobilidade ativa
Atualidade
Novos direcionamentos do Urbanismo
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Para propor intervenções e melhorias nas cidades, precisamos também compreender como elas se comportam atualmente, entendendo não só sua formação e as reais necessidades da população, mas também entender os acontecimentos que levaram o planejamento urbano começar a adotar medidas que podem ser vistas como uma tentativa de retomada do espaço urbano pelas pessoas que habitam as cidades. Seguindo uma tendência sustentável, com o objetivo de preservar o planeta que nos resta, podemos ver o poder público de inúmeras cidades ao redor do planeta aumentar o investimento em intervenções com o objetivo de valorizar não só o transporte público de massa, mas também incentivando também a mobilidade ativa, criando novos modais de massa, melhorando o
transporte público, crescendo malhas cicloviárias e criando cidades mais confortáveis não só de se andar, mas de estar.
Porém, além dessa tendência de verde e sustentável (ou de ao menos
tentar ser ambas as coisas), tendo em mente não só a perspectiva da sustentabilidade, mas também adotando parâmetros de qualificação ambiental8
8 Parâmetros construtivos que tenham como principal foco a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente, como é o caso da Taxa de Permeabilidade, que define uma porcentagem mínima do terreno que deve permanecer permeável, para colaborar com a drenagem de águas pluviais nas cidades.
em suas legislações, incorporando infraestruturas verdes9 em seus projetos; o urbanismo contemporâneo possui uma tendência não tão boa: a de propor intervenções urbanas cenográficas, alterando a paisagem urbana a ponto de transmitir a sensação de que o indivíduo está em um local completamente fora da sua realidade diária, quase como se essa identidade de cidade brasileira se perdesse no meio do caminho para que o indivíduo se sinta em outro lugar, algum fora da sua realidade diária. Quase como a materialização do ditado popular "obra para inglês ver".10 Vale ressaltar que esse lado cenográfico das grandes intervenções do urbanismo contemporâneo não é algo atual, mas sim uma herança que data desde antes do processo de urbanização do Brasil.Desde o começo do Século XX, nós podemos ver uma reprodução de uma imagem de cidade aos moldes de cidades em países hegemônicos, “de primeiro mundo”. É o caso do Rio de Janeiro de Pereira Passos, apelidado de Haussmann11 Tropical (BENCHIMOL, 1992). O então prefeito foi responsável por um período de transformações urbanas que tinham como principal objetivo, tornar o Rio de Janeiro uma Paris Tropical, com características mais modernas e tentando fugir da imagem de um país escravocrata e atrasado. Inspirado pela Reforma de Haussmann em Paris e incentivado pelo Presidente Rodrigues Alves, o prefeito do “bota abaixo” promoveu diversas desapropriações, principalmente de edificações de cortiço, e construiu praças e estruturas de saneamento básico, mudou o traçado urbano da cidade, abrindo vias e ampliando ruas. Entre as
9 A infraestrutura verde estabelece uma conexão entre a cidade e elementos naturais, utilizando como ferramentas a arborização viária, distribuição equilibrada de áreas verdes, controle da impermeabilização do solo e drenagem de águas pluviais, criando uma rede sustentável. 10 A expressão coloquial “para inglês ver” é comumente utilizada na língua portuguesa no sentido de algo que é aparente, mas não é válido ou real. 11 Barão de Haussmann, francês responsável pela Reforma Urbana de Paris, um programa de obras públicas de modernização da capital francesa entre 1852 e 1870.
principais "heranças'' da Gestão Passos, temos o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, a Biblioteca Nacional e a Avenida Rio Branco.
Se quisermos voltar um pouquinho mais no tempo, vemos que essa tendência cenográfica da formação das cidades não se dá apenas em intervenções urbanas propriamente ditas. Se voltarmos ao Século XIX, pouco antes da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, nós tínhamos um país sem pombos (!!!). É algo meio surreal de se pensar, já que as aves existem em todos os centros urbanos do país, sendo parte inerente da paisagem urbana que conhecemos atualmente. Porém, o pombo não é um pássaro nativo das Américas. De acordo com o biólogo Mauro Villas Boas, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), os pombos são originários da Ásia Ocidental e foram trazidos para o Brasil no início do século XIX, por ordem de Dom João VI, com o objetivo de enfeitar as cidades, tendo como inspiração a presença destas aves em cidades européias, como Veneza e Paris. Normalmente, junto destas grandes intervenções cenográficas que causam uma mudança abrupta na paisagem urbana, vem também a gentrificação da região, como já foi visto anteriormente; encarecendo a área que sofreu intervenção e expulsando a população pobre que ali vivia e tornando a área sócio-espacialmente segregada. Isso faz com que a área se torne mais do que apenas um problema do planejamento e paisagem urbana, mas se torne também um problema social. Peguemos como exemplo o Projeto Porto Maravilha, na região central do Rio de Janeiro para ilustrar essa questão. O projeto, que teve como inspiração os modelos de boulevards europeus, é fruto de uma Operação Urbana Consorciada (OUC) que tem como principal objetivo a revitalização urbana da Região Portuária do município, criada pela Lei Municipal 101/2009, que modifica o Plano Diretor Municipal com o objetivo de “promover a reestruturação urbana da Área de Especial Interesse Turístico (AEIU)”, por meio da ampliação, articulação e
requalificação dos espaços livres de uso público da região do Porto, visando à melhoria da qualidade de vida de seus atuais e futuros moradores, e à sustentabilidade ambiental e socioeconômica da região.”. Operações Urbanas Consorciadas, popularmente chamadas de OUCs, são intervenções pontuais realizadas pelo Poder Público Municipal em parceria com a iniciativa privada, com o objetivo de resolver problemas pontuais que dificilmente seriam solucionados pelo Plano Diretor Estratégico do Município, de modo a criar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. A OUC do Porto
Maravilha possui um prazo de 30 anos para sua conclusão e custo
total estimado em
R$8.000.000.000,00
(oito bilhões de reais).
O projeto consiste na revitalização da AEIU da Região do Porto do Rio, que possui 5.000.000 m² (cinco milhões de metros quadrados) da Região Portuária do Rio de Janeiro, limitados entre as Avenidas Presidente Vargas, Rodrigues Alves, Rio Branco e Francisco Bicalho. A área engloba parte dos bairros do Caju, Gamboa, Saúde, Santo Cristo e parte do Centro, todos na Zona Central da cidade.
Embora seja considerada pelo poder público municipal como a vitrine da cidade empreendedora, a zona portuária é um exemplo de projeto urbano contemporâneo que tornou a área sócio-espacialmente segregada e, no momento, segue em uma tentativa de gentrificação da área, tentando curar o
AEIU do Porto
Autoria pessoal
Rio (MAR) e do Amanhã, projetado pelo arquiteto espanhol (e internacionalmente famoso) Santiago Calatrava, a Via Binário do Porto, os túneis Rio 450 e Marcello Alencar, a Nova Orla Conde e o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), que atualmente conta com três linhas de operação13 . Além disso, a intervenção entregou 70 km de vias reurbanizadas, 650.000 m² de calçadas refeitas, 700 km de redes de infraestrutura urbana reconstruídas (água, esgoto, drenagem), 17 km de novas ciclovias e plantou 15.000 árvores no perímetro da Operação Urbana Consorciada. Outros serviços mencionados pela própria Prefeitura no site do ‘Porto Maravilha do Rio de Janeiro envolvem’ a conservação e manutenção do sistema viário e de áreas verdes e praças, manutenção e reparo de iluminação pública e calçadas, execução de serviços de limpeza urbana, coleta seletiva de lixo, manutenção da rede de drenagem e de galerias universais, da sinalização de trânsito e de pontos e monumentos turísticos, históricos e geográficos, instalação e conservação de bicicletários e atendimento ao cidadão. Outro ponto levantado na mesma página é a legislação urbanística e ambiental da área, que estipula a promoção de um ambiente urbano saudável e sustentável.Além das intervenções propriamente ditas, a proposta do Porto envolve também compromissos sociais com a população do Rio de Janeiro, partindo do pressuposto de que os atuais moradores deveriam permanecer na Região Portuária. No texto da OUC, está descrito que “Pelo menos 3% dos recursos da venda dos Cepacs14 são obrigatoriamente investidos na valorização do
São Cristóvão, Santo Cristo, Gamboa e Saúde, com circulação pelo elevado estimada em quarenta mil veículos por dia. O Elevado foi implodido em 2014 e as vigas de aço corten que consistiam na principal estrutura da via e pesavam 110 toneladas desapareceram. 13 O VLT do Rio possui as linhas azul (1), com pontos finais nas estações Praia Formosa e Aeroporto Santos Dumont; verde (2), com pontos finais nas estações Praia Formosa e Praça XV; e amarela (3), com pontos finais nas estações Central do Brasil e Aeroporto Santos Dumont. 14 Certificados do Potencial Adicional de Construção, títulos usados para financiar Operações Urbanas Consorciadas que recuperam áreas degradadas nas cidades.
Patrimônio Material e Imaterial da área e em programas de desenvolvimento social para moradores e trabalhadores da região. O texto cita também a criação de habitações de interesse social, criação de creches, Unidades de Pronto Atendimento e escolas que atendam a densidade populacional prevista (aumento da população de 32 mil para 100 mil habitantes em 10 anos), integração entre os diversos modais de transporte público, facilitando a acessibilidade e a comunicação com outras áreas, recuperação da qualidade ambiental da área, geração de empregos diretos e permanentes na região, regularização e formalização das atividades econômicas, formação profissional, criação dos Programas Porto Maravilha Cultural e Porto Maravilha Cidadão e apoio a iniciativas de desenvolvimento comunitário. Porém, em meio às propostas da Operação Urbana Consorciada, ao embelezamento dessas áreas degradadas e da entrega de serviços básicos à administração privada, o plano que antes previa habitações de interesse social, acabou apenas por causar a expulsão e criminalização de antigos moradores da região, que antes da implantação do projeto consistia em uma população de baixa renda.
Fonte: Fórum Comunitário do Porto Fonte: Rio on watchProtestos contra as obras do Porto Maravilha // Fonte: Fórum Comunitário do Porto; Rio on watch.
Já o teleférico de acesso ao Morro da Providência, lançado como algo inovador para a mobilidade urbana da população que ali reside, por conta da sua integração na Estação da Central do Brasil, a mais importante do Rio de Janeiro, atuando como ponto de integração de modais de massa como trens, ônibus, metrô e VLT, que seria extremamente benéfico para a população da comunidade local, funcionou por apenas por dois anos. Em meio a toda essa venda do espaço público para melhorias “para inglês ver”, expressão que se torna literal no caso do Porto, já que as obras foram realizadas para que a cidade pudesse receber os Jogos Olímpicos de 2016, a área foi extremamente modificada nos últimos anos, mas não para melhor, pois diversos foram os problemas sociais causados pelas intervenções. As obras para o megaevento geraram uma onda de protestos por toda a cidade, por conta das remoções. Um dos casos mais emblemáticos de protestos gerados por conta das obras dos Jogos Olímpicos de 2016 foi o da Vila Autódromo, na Zona Oeste da cidade (aproximadamente a 25 kms de distância, em linha reta, da área do Porto Maravilha), que teve 97% da população original removida da área em que a comunidade que começou como uma colônia de pescadores e que resistia desde 1967, para dar espaço ao Parque Olímpico, ao Centro de Mídia e reformas de mobilidade urbana, como a criação da estação Parque Olímpico do BRT (do inglês Bus Rapid Tansit, consiste em um ônibus articulado que circula apenas em via segregada). A parceria público-privada que constitui uma Operação Urbana Consorciada não parou na capital do Rio de Janeiro. Do outro lado da Baía de Guanabara, a Área Central de Niterói também recebeu uma OUC, que de acordo com a lei que a institui, tem como principal objetivo a reestruturação urbana da região central de Niterói, por meio da ampliação, articulação e requalificação dos espaços livres de uso público, visando à melhoria da qualidade de vida de seus
atuais e futuros moradores, e à sustentabilidade ambiental e socioeconômica da
região, sendo suas principais diretrizes:
1. Priorização do transporte coletivo sobre o individual; 2. Valorização da paisagem e do ambiente urbanos; 3. Valorização do patrimônio cultural material e imaterial; 4. Estímulo ao uso misto e adequado atendimento econômico e social da população diretamente afetada; 5. Destinação de imóveis para habitação de interesse social; 6. Transparência do processo decisório e de controle da OUC da Área Central.
Proposta da OUC para o Caminho Niemeyer // Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo e Mobilidade
Intervenções urbanas nesses moldes comprovadamente reduzem o número de automóveis na rua, consequentemente reduzindo o tempo de trajeto. Porém, essas intervenções urbanas envolvem obras extremamente custosas e atendem de maneira benéfica apenas uma pequena parte da população. Como podemos então propor intervenções que possam devolver a
cidade aos seus moradores, não só para que eles possam se locomover, mas também permanecer, habitar e viver a cidade de uma maneira que não seja socialmente problemática quanto a essas grandes intervenções cenográficas?