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Intervenções efêmeras
from Intervenções urbanas efêmeras e seu papel em criar uma cidade mais amigável para a mobilidade ativa
Intervenções efêmeras: por um espaço do devir
Intervenções efêmeras
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Como podemos então propor intervenções que possam fazer com que as cidades finalmente pertençam aos seus moradores, não só para que eles possam se locomover, mas também permanecer, de uma maneira mais financeiramente acessível e sem causar os problemas sociais que são consequência das grandes intervenções cenográficas citadas anteriormente? Além disso, como podemos realizar essas intervenções urbanas efêmeras, que dão título ao trabalho, e como elas podem ajudar não só o poder público a planejar a cidade a curto, mas também a médio e longo prazo, sendo que elas são efêmeras? E como esse tipo de ação pode produzir sentidos e perspectivas de pertencimento ao espaço urbano, para que as pessoas usufruam realmente dos espaços urbanos que elas estão lentamente retomando? O urbanismo tático é uma ferramenta de planejamento urbano que consiste em intervenções urbanas não só temporárias, mas também artísticas, que podem se caracterizar por pinturas extremamente coloridas no asfalto e na instalação de mobiliário urbano temporário, por exemplo. Essa forma de intervir na cidade tem como maior objetivo a promoção e a reapropriação do espaço urbano; destacando possibilidades de mudanças através de intervenções de
baixo custo, permitindo então uma experimentação do espaço criado. Além de ter um forte impacto na paisagem urbana e um imenso potencial de novas perspectivas, em especial, frente à imposição de um modo de mobilidade que nos distancia do cotidiano da rua. O imperativo do automóvel que marca uma paisagem desumana, distante do direito à cidade.
Williansburg Brooklyn Asphalt Plaza Mural, em Nova York, USA // Fonte: SUPERFRESHDESIGN
Esse tipo de intervenção tem ganhado força em meio ao contexto de retomada dos espaços públicos, conforme já foi citado, já que possuem como principal objetivo a readequação e o reordenamento do espaço viário, tirando o espaço que atualmente pertence aos carros e valorizando os espaços públicos, se adequando às necessidades específicas de cada área de intervenção. Em uma rua, por exemplo, a necessidade principal pode ser calçadas mais amplas e acessíveis. Em outra, o ponto crítico pode ser um cruzamento perigoso, onde os pedestres necessitam de mais segurança para realizar a travessia. O que é fundamental para a segurança e até para a sensação de segurança, que varia de indivíduo para indivíduo. Para alguns, a acessibilidade é considerado o maior perigo. Para outros, é a rua escura, onde o perigo pode estar à espreita (literalmente). Lembrando que, uma cidade bem planejada é uma cidade
democrática, o que significa que todos os indivíduos possuem o direito de andar pelas ruas sem medo, independente da hora ou lugar, se encontrar com os amigos na praça, utilizar um transporte de massa digno… Sem sentir ao viver a cidade, está se arriscando por conta de seu gênero, raça e sexualidade.
Além dos problemas habituais de uma cidade desenhada para os carros, surgem também os problemas num contexto de pandemia, onde outros desafios se sobrepõem, num momento de mudança radical da paisagem, onde o isolamento de alguns, fez ressaltar a precariedade e quais vidas estão de fato
em risco nas cidades. Mas isso será debatido mais a frente.
Ainda que a palavra efêmera signifique apenas “o que é passageiro, temporário, transitório”, é uma palavra que possui uma conotação pejorativa na língua portuguesa. Algo efêmero é algo visto como “banal” e sem real importância em um contexto geral e sem resultado definitivo. Porém, intervenções efêmeras realizadas com o urbanismo tático podem ser usadas para criar projetos mais acessíveis, avaliando investimentos, estimulando a
mobilidade urbana e criando espaços mais seguros. Avaliação esta que, por seu caráter temporário e facilmente reversível, pode ter a real avaliação da população, evitando então gastos significativos caso o projeto não seja útil para quem realmente importa: as pessoas. Outro fator que torna as intervenções temporárias algo extremamente valioso para a população é que, além da aprovação, pode ocorrer uma real apropriação do projeto. Por ser facilmente modificável, o projeto se torna imprevisível. Em um contexto geral, intervenções urbanas já são imprevisíveis
por si só, ainda que sejam projetadas para estabelecer uma determinada ordem fixa, quase como algo congelado no tempo e enquadrado em uma perspectiva de ordem petrificada. Porém, cada indivíduo é uma variável para o projeto, podendo ocupar ou se apropriar de um espaço de um jeito que não foi pensado pelo autor do projeto. As intervenções urbanas temporárias se tornam ainda mais imprevisíveis se considerarmos que as possibilidades de apropriação do espaço são quase que infinitamente maiores se considerarmos que qualquer um pode realizar uma intervenção temporária, estando munido apenas de um balde de tinta e um pincel. São diversas variáveis atuando em um mesmo ponto, moldando-a e transformando-a, mostrando que a cidade funciona quase como se fosse um organismo vivo. Se levarmos em conta essa possibilidade de realizar uma intervenção urbana, seja ela de grande porte ou não, apenas com materiais artísticos ao invés de uma grande obra milionária, nos prova que não é porque uma intervenção é temporária que ela não vá trazer benefícios a médio e longo prazo em forma de um resultado real para a população que ali vive. Até porque não é
porque algo é temporário que ele deve ser esquecido.
Seja na forma de uma nova praça, de um parklet ou até mesmo um alargamento de calçada com o objetivo de mudar o perfil de uma rua, propondo um novo ordenamento viário… Essas intervenções artísticas temporárias trazem a tona o próprio conceito de temporalidade, pois podem facilmente se tornar algo permanente. Cidades de todos os portes ao redor do mundo, inclusive no Brasil, estão investindo em intervenções de urbanismo tático para estimular novos projetos urbanos, com o objetivo de melhorar a segurança viária e ajudar a criar espaços de permanência públicos e de qualidade, promovendo a reapropriação do espaço urbano.
Antes e depois da Zümrütevler Square, em Istambul, Turquia // Fonte: SUPERPOOL
É nesse contexto de incentivar novos projetos que surge o protagonismo urbanismo tático, com a finalidade de dar novos sentidos para os lugares a partir de mudanças que são rápidas, reversíveis e de baixo custo, criando assim cidades mais amigáveis aos moradores e motivando as pessoas a repensarem seus hábitos de vida a partir dos diferentes encontros e trocas que esses novos espaços públicos possibilitam. E se a intervenção não funcionar como o esperado? Pega-se outro balde de tinta e começamos do zero. Nada nesse contexto é definitivo, já que seu principal uso consiste em uma intervenção temporária, sendo utilizada em uma fase preliminar de um projeto definitivo, com o objetivo de avaliar e coletar dados, para então possibilitar e fundamentar o desenvolvimento de um projeto definitivo. O método de intervenção traz diversos benefícios para as cidades e a população que nela reside, como, por exemplo:
1. Estimular a elaboração de novos projetos; chamar a atenção para situações sociais e políticas do desenho urbano, permitindo com que as pessoas experimentem uma rua diferente;
2. Aumentar a participação social da população, já que esse tipo de projetos possibilita que os indivíduos possam expressar suas visões e preferências a partir da prática;
3. Entender e aprofundar o entendimento das necessidades locais, em diversas escalas urbanas;
4. Possibilitar a coleta dados a partir de uma experiência real de uso das ruas e espaços públicos; 5. Despertar o sentimento de vizinhança e pertencimento à cidade, já que faz com que as pessoas trabalhem juntas, fortalecendo assim os laços entre vizinhos, organizações, comércio local e poder público; 6. Permitir que o poder público teste elementos de um projeto antes de realmente investir financeiramente em intervenções permanentes, levando melhor qualidade de vida para áreas urbanas que normalmente não recebem atenção do Estado e seguem sendo cada vez mais sucateadas.
Além disso, a enorme diferença entre o custo provisório e o custo definitivo é algo extremamente interessante para o poder público, pois esse tipo de intervenção “teste” só se impossibilita nos casos de intervenções cujos projetos envolvam desapropriações. Porém, nos casos aplicáveis, intervenções realizadas com o urbanismo tático (intervenções que são quase cenográficas, mas no bom sentido) podem ser usadas para criar intervenções mais financeiramente acessíveis para o poder público, avaliando investimentos, estimulando a mobilidade urbana e criando espaços mais seguros para o transporte ativo (pedestres e ciclistas). Avaliação esta que, por seu caráter efêmero e facilmente reversível, pode ter a real avaliação da população. Evitando então o gasto de milhões de reais em espaços de permanência ou em medidas de ordenamento viário se o projeto não for realmente útil para quem realmente importa: as pessoas que vivem na cidade.
Mas o urbanismo tático vai além do seu caráter temporário e de teste, podendo também ser utilizado como intervenção urbana permanente por parte da população, graças ao seu baixo custo e possibilidade da participação popular na elaboração do projeto. Essa possibilidade faz com que a técnica seja popularmente conhecida como urbanismo colaborativo ou até mesmo “urbanismo faça-você-mesmo”, trazendo benefícios que, em simultâneo, atendem as cidades e as pessoas. E assim como os objetos que sofrem essas intervenções temporárias, os agentes que lideram uma intervenção de urbanismo tático também podem variar. Os projetos podem partir não só de um teste do poder público, mas também de organizações formadas pela sociedade civil, da iniciativa privada ou até mesmo da própria população que reside em uma área urbanisticamente problemática. Independentemente de quem esteja coordenando a ação, o processo de uma intervenção de urbanismo tático deve dialogar com a comunidade afetada pela mudança, já que um de seus principais objetivos é fazer com que os moradores da área que recebe o projeto sintam-se pertencentes àquele lugar. Consideremos uma intervenção temporária, em uma área comercial, que tenha partido do próprio poder público. Essa intervenção trará as pessoas para as ruas e, consequentemente, trará as pessoas para os comércios ali presentes. Essa intervenção, além de propor ordenamento viário e contribuir para o planejamento urbano, contribui também para o comércio local. Não seria então valioso para o comércio, tornar a gestão e manutenção da obra uma parceria público privada que realmente vai beneficiar os moradores da cidade? Essa parceria entre o público e o privado para a manutenção e gestão das intervenções ganha ainda um outro contexto se considerarmos os locais onde elas estão inseridas. Atualmente, vemos nossas calçadas apenas como local de
passagem, com o meio fio18 completamente escondido por carros estacionados. Porém, se considerarmos a cidade como local de encontro (como já estamos considerando), temos as calçadas como palco principal desse encontro. As intervenções temporárias aparecem nesse contexto justamente para criar esses espaços para as pessoas. Uma vaga se transforma local de um local de parada para um food truck, ou em um local um pouco mais fixo para o famoso “carrinho de churros”, as duas vagas do lado se transformam em um parklet, com bancos e mesinhas para que os clientes possam comer… Temos então um espaço de convivência onde antes era uma área morta, com um carro estacionado.
Conforme já foi levantado, existem diversos usos para essas “novas áreas” que surgem com o desaparecimento de algumas vagas de estacionamento. Elas podem vir a ser uma calçada mais larga, uma ciclofaixa, uma faixa exclusiva de ônibus. É com essa divisão do espaço público em mente que a Associação Nacional de Agentes de Transporte Urbano dos Estados Unidos (NACTO) publicou um estudo mostrando como uma boa gestão do meio-fio pode contribuir para a mobilidade urbana, sendo algumas de suas principais funcionalidades:
1. Faixas para bicicletas e ônibus, incluindo pontos de ônibus; 2. Áreas de entrega e de carga e descarga, que ganham relevância com o aumento do número de compras online; 3. Zonas de embarque e desembarque de táxis e carros de aplicativos de transporte; 4. Estações de meios de micromobilidade compartilhados; 5. Espaços para food trucks e vendedores de rua;
18 Borda de um passeio desnivelado, a calçada, em relação à via, as faixas de rolamento.
6. Espaços de convívio urbano, como parklets e as academias de rua;
7. Estacionamento para veículos particulares.
Uma melhor gestão do meio-fio é fundamental para a política urbana e a mobilidade das cidades, já que, atualmente, grande parte do meio-fio é dedicado aos motoristas que estacionam em vagas públicas. Essas diversas possibilidades de uso para o meio fio implicam em diversos atores interessados, sendo o principal deles o pedestre e o cidadão em seus diversos modais de transporte, como bicicletas, ônibus, patinetes, motos, carros...
Fonte: NACTO; Tradução pessoal
Existem também os agentes do setor privado, como comerciantes, bancas de jornal, empresas de entregas e de transportes... Mudanças no uso do meio fio possuem um grande impacto na vida das pessoas, de empresas e de organizações, fazendo com que a ampla participação da população seja fundamental para esse processo. Existe também, a possibilidade da utilização do urbanismo tático como a possibilidade de um devir, algo que pode vir a ser. Essa oportunidade de pessoas poderem intervir nas cidades, abre um novo leque de possibilidades para o planejamento urbano, seja com intervenções pontuais organizadas e
apoiadas pelo poder público, como os casos recorrentes já citados da Rua do Lavradio (Rio de Janeiro) e da Avenida Paulista (São Paulo), ou até mesmo em
datas específicas, como o Dia Mundial Sem Carro, onde grandes cidades fecham ruas inteiras e incentivam os moradores a ocuparem as ruas.
Avenida Paulista no domingo // Fonte: Veja SP
Essa intervenção pontual pode também ser completamente espontânea, vinda da própria população, como aconteceu durante o fechamento da Avenida Brasil, uma das principais e mais caóticas vias do Rio de Janeiro, durante as obras do BRT TransBrasil. Após o comunicado da Prefeitura de que um trecho da Avenida Brasil seria interditado para a instalação de um viaduto, a população do
Complexo da Maré19 ocupou as 16 faixas de rolamento do trecho, criando uma grande rua de lazer temporária.
Avenida Brasil em dias normais, com o sentido Centro engarrafado // Fonte: G1
Com base em notícias assim, podemos ver que a criação de espaços de lazer e convivência são uma real demanda da população das cidades. Mas para que essa retomada dos espaços públicos nas cidades possa realmente acontecer, as pessoas precisam retomar o que é seu de direito e voltar a utilizar suas ruas estando fora de seus carros. Diversas cidades ao redor do mundo já estão trilhando esse caminho de maneira gradual, não só fazendo bons projetos com programas de necessidades que seguem à risca uma lista que poderia ser batizada de “coisas interessantes para adicionarmos em nossos projetos”, mas também com essas intervenções feitas pelas pessoas e para as pessoas, criando uma cidade viva e segura para todos.
19 Conhecido também como Maré, é um complexo formado por 16 favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro, localizado às margens da Baía de Guanabara e ocupando uma área de aproximadamente 800.000 m² .
Fortaleza, Ceará // Fonte: Unifor
Ao redor do mundo, intervenções urbanas efêmeras, sejam elas elaboradas pelo poder público ou pela própria população, vêm ganhando destaque, não só com o objetivo de tornar a cidade mais segura para se transitar, mas também mais segura e agradável de estar. Medidas que a princípio podem parecer banais, como reformar um canteiro de flores, criar mobiliário adequado, propor formas de brincar… Propostas de urbanismo colaborativo podem ir desde uma calçada maior até uma horta comunitária. Se a proposta faz com que a cidade seja um lugar mais agradável para todos, ela é válida.