Esta história aconteceu em outros tempos, muito antes dos navios quebra‑gelos e dos aviões. No tempo da magia. Quando os homens podiam se transformar em animais e os animais, em homens.
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uma pequena aldeia em algum lugar ao Norte viviam umas famí
lias inuit. Abrigadas em seus iglus, elas esperavam o fim do inverno. Os tempos eram difíceis. Faltava comida. Encolhidos na neve, os cães de trenó choravam de fome. Quando os caçadores voltavam, não tra ziam quase nada: algumas aves, uma dúzia de lêmingues. O mar então estava vazio. O povo sobrevivia dos caribus caçados no verão e con servados no gelo. Mas o gosto estava ficando ruim e todos sonhavam com carne fresca. Nessa aldeia inuit vivia uma jovem muito bonita chamada Sedna. Tinha o rosto redondo como a lua, duas longas tranças de cabelos negros e os olhos da cor do mar. Seu pai era viúvo, e era ela quem preparava sua comida e costurava suas roupas de caça. O velho, que já havia sido um grande caçador, insistia com a filha única para que se casasse logo. Dizia que já não tinha força suficiente para enfrentar Nanuk, o urso branco, e Amarok, o lobo, aquele que nunca caça sozinho. Ele precisava de um genro. E queria ter netinhos também. Mas Sedna era vaidosa. Achava que os moços da aldeia não serviam para ela. 6
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Quando a primavera chegou, todos abandonaram os iglus, que estavam derretendo, e montaram suas tendas de peles à beira do mar, esperando por Tuktu, o caribu, e seus irmãos. Era uma época feliz, o sol fazia brotar umas frutinhas no chão da tundra e as crianças procura vam ovos nos ninhos. Parentes que moravam em outras aldeias faziam visitas por ocasião da caça ao caribu, e os jovens aproveitavam para tentar encontrar um par. A bela Sedna continuava recusando os pretendentes. Fazia pouco caso deles e de suas prendas. Se recebia um par de lebres, dizia que faltava carne nos ossos. Se ganhava uma pele de raposa, achava que era muito pequena e que o pelo estava estragado. Repetia que só se casaria com o melhor dos caçadores. No final do verão, um desconhecido chegou pelo mar. Era noite de lua cheia e soprava um vento congelante. O homem puxou seu caiaque para fora d’água e pediu abrigo na tenda do pai de Sedna. A moça ficou encantada com suas belas roupas de pele de urso branco. Devia ser um caçador corajoso que não temia Nanuk. O estranho en tregou a Sedna um colar de ossos e ficou elogiando seu rosto de lua e seus olhos da cor do mar. Depois, disse ao pai da jovem que procurava uma esposa. Falou que morava sozinho em uma ilha no meio do mar, onde tinha muita fartura de comida. E que havia juntado muitas peles de qualidade para uma mulher fazer boas roupas. Sua voz era estridente e seus olhos pequenos brilhavam muito. Mas Sedna só enxergava nele as belas roupas, e já imaginava os potes de comida fumegando e as peles macias e quentes. Uma vida boa ao lado de um grande caçador e muitos filhos risonhos. Ela nunca mais passaria fome. 8
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