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– Você continua ridículo com essa dentadura de vampiro, Fabinho. Durante a viagem, eu ia brincando com minha dentadura de vampiro. Às vezes, eu colocava a dentadura na boca e ameaçava can‑ tar ópera. Outras vezes, ficava testando mordidas. Isso tudo pra ajudar a passar o tempo. Estava o maior sol. Quarenta e três graus na sombra. O ar‑condicionado do carro do meu pai é bem fraquinho. Mesmo com os vidros totalmente abertos, estava praticamente insuportável. Depois de mais de cinco horas rodando em cima de um as‑ falto cheio de buracos, saímos da estrada que tínhamos pegado na nossa cidade e entramos em uma outra ainda mais malcuidada. E estreita. Nessa segunda estrada, tinha umas árvores legais perto do asfalto, mas eu não sei dizer os nomes. Sou meio fraco em botânica. Rodamos uns duzentos quilômetros e caímos em uma estrada me‑ nor ainda, mais cheia de buracos, com muitas curvas perigosas e ár‑ vores maiores e mais legais. Quanto mais bonita ficava a paisagem, piores as estradas. De vez em quando, dava pra ver umas vacas pas‑ tando perto da rodovia. Elas deviam estar morrendo de calor.
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Meu pai seguia a voz chatinha do aplicativo que ensina os melhores caminhos. Às vezes, ele dava bronca na voz porque ela não previa uma bifurcação ou outra. As batatas fritas, os chocolates, chi‑ cletes e as latas de refrigerante que eu tinha comprado no posto já tinham acabado fazia um século. Eu estava com muita fome. E vontade de fazer xixi. Fiquei quieto. Qualquer reclamação podia ser motivo pro meu pai ligar do celular para a minha mãe, pedir pra ela me espe‑ rar na rodoviária e me colocar no primeiro ônibus de volta para casa. Nessas “trocentas” horas de viagem, tentei várias vezes dizer ao meu pai tudo o que eu sabia sobre lobisomens. Os livros que eu tinha lido eram muito bons. Eu tinha pegado emprestado na estan‑ te do meu pai. Como tinha o nome dele escrito, eles deviam ser da época do colégio. Falavam de um monte de coisas sobre lobisomens e sobre outros personagens do folclore brasileiro. Eu fiquei sabendo, por exemplo, que os lobisomens aparecem praticamente em todos os cantos do planeta. Existem histórias de lobisomem na China, na África, na Europa, nos Estados Unidos e, é óbvio, em todas as regiões do Brasil. É claro que as histórias mudam um pouco de país para país, mas todas falam de homens esquisitos, solitários, que nas noites de lua cheia, por alguma razão misteriosa, deixam de ser homens e se transformam em terríveis seres peludos parecidos com lobos. Eles se equilibram sobre duas patas e saem pela madrugada uivando pra Lua, atacando filhotes de animais, crianças e fazendo a maior bagun‑ ça nos currais, nos varais de roupa e deixando as paredes das casas por onde passam cheias de marcas de unhas. Claro que eu não falei as coisas assim, em um parágrafo só. Fui dizendo aos poucos. Mas o meu pai sempre virava a conversa para o campeonato de futebol, o resultado da luta de MMA ou mais um ataque terrorista em uma capital da Europa. Parecia que o cara não estava nem aí para o que eu estava falando. Eu não estava entendendo
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aquilo muito bem. E, quando eu não entendo uma coisa muito bem, fico mexendo com ela até entender. – Por que você não quer falar sobre o lobisomem, pai? Meu pai coçou a barba e disse, apontando para uma estrada de terra que apareceu: – Essa estrada vai dar naquele acampamento de sem‑terra onde eu fiz aquela reportagem no começo do ano, tá lembrado? Claro que eu me lembrava. A reportagem do meu pai fez com que o dono da fazenda recebesse as quarenta famílias de sem‑terra, conversasse com elas e deixasse os caras ficarem numa parte da fa‑ zenda, desde que trabalhassem a terra e cuidassem dela direito. Foi um dos maiores gols que o meu pai marcou como jornalista. Fiquei superorgulhoso. Mas não era sobre isso que eu queria falar... – Por que você está enrolando, pai? – Eu não estou enrolando. Só não tenho nada pra falar sobre lobisomem. Arrisquei um palpite: – Você não acredita que a cidade está em perigo por causa do lobisomem? – Acredito que a cidade pode estar em perigo, mas não por causa do lobisomem. Não entendi. Disse isso ao meu pai. Ele tentou explicar: – As pessoas devem ter mais medo das criaturas naturais do que das sobrenaturais. A frase do meu pai caiu como um banho de água gelada na minha cabeça. Será que ele estava certo? Ele é jovem, bem informa‑ do. Peguei mais pesado: – Você acha que a gente não vai encontrar nenhum lobiso‑ mem no Vale das Corujas? – Não quero decepcionar você, mas acho que não.
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Me bateu um tipo de tristeza. E me senti bem infantil. Será que era criancice acreditar em lobisomem e em outros bichos estranhos? – Você não acredita em lobisomem, pai? – Sinceramente? Depois do sinceramente, nem precisava continuar, mas ele continuou: – Eu acredito que tem um bicho dentro da gente. Mas esse bi‑ cho não é peludo, nem tem garras afiadas e muito menos espera as noites de lua cheia para atacar. Opa! O assunto estava ficando interessante. – E como é esse bicho, pai? – Pra cada um é diferente. – Legal. – Nem sempre é legal. – Como assim? – Muitas vezes esse bicho é cruel e abusa da bondade das pes‑ soas que eles consideram mais fracas. Acho que tinha conseguido entender o que o meu pai tinha dito, quer dizer, mais ou menos. – Ô, pai, então me diz uma coisa... – Digo. – O que é que você está indo fazer, na véspera da lua cheia, numa cidade onde está aparecendo um lobisomem? Meu pai ficou um pouco mais sério. – Garantir o meu emprego, Fabinho. Eu não me lembrava de ter visto o meu pai falar daquele jeito antes. Meio triste, meio preocupado. Fiquei na dúvida: “E agora? Pergunto ou não pergunto? Per‑ gunto. Quer dizer, falo”. E disse: – Não entendi.
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– Vai ter um corte no jornal. Eles vão mandar quase metade dos funcionários embora. Se eu não voltar com uma reportagem in‑ teressante, eu posso estar entre os jornalistas que vão pra rua. Levei um susto. Os pais de vários caras e garotas da minha classe tinham perdido o emprego fazia pouco tempo. E, pelo que eles falavam, estava difícil conseguir emprego de novo. Tentei disfarçar e ao mesmo tempo dar uma força pro meu pai. – Que nada, pai. Você é muito bom como jornalista. – Os outros também são. – Então, por que vão mandar vocês, quer dizer, eles embora? Meu pai achou graça na minha defesa e respondeu: – O mundo está mudando. Cada vez se precisa de menos gen‑ te pra fazer as mesmas coisas que muita gente fazia antigamente. Mas ainda não é certo que eu vá embora. Se acontecer, eu posso fazer reportagens pra outros jornais e revistas. Nós não vamos ficar sem dinheiro, tá? É claro que com essa última frase o meu pai estava querendo me deixar tranquilo. Essas frases para deixar as pessoas tranquilas quase sempre têm efeito contrário. Se bem que era verdade. Sempre tem um monte de gente ligando pra casa do meu pai, oferecendo tra‑ balho pra ele. – Eu tenho certeza de que nós vamos voltar pra casa com uma super‑reportagem. Os caras vão até dar aumento de salário pra você... – Vamos ver... Xiii, droga! – O que foi? – Já tinha de ter aparecido uma placa indicando a entrada para o Vale das Corujas. Será que nós deixamos passar? Pouco provável. Mesmo conversando, nós estávamos prestan‑ do a maior atenção ao caminho. Guardei a dentadura no bolso da bermuda e disse:
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– A gente não teria comido essa bola, pai. – Acho que comemos, sim. Aí nós ouvimos um estrondo. Cinematográfico. Um trovão. Senti duas coisas ao mesmo tempo. Um alívio, por causa do calor. E um arrepio, não sei por quê. Meu pai disse: – Tomara que apareça um posto pra gente poder perguntar. Tomara mesmo. A minha vontade de fazer xixi estava maior a cada segundo. Eu já estava usando aquela técnica de ficar com as pernas quase cruzadas, pra tentar segurar mais um pouco. Meu pai percebeu. – Quer que eu pare pra você fazer xixi? Banquei o durão. – Dá pra aguentar chegar ao posto. De repente, começou a entrar um vento muito bom dentro do carro. Olhei para a estrada. As folhas das árvores estavam se mexen‑ do muito. Olhei para o céu. Um monte de nuvens escuras se formava um pouco a nossa frente. Olhei para o meu pai. Ele estava ficando com a maior cara de preocupado. – O que foi, pai? – Nada. Deixei quieto. Até porque o meu pai mudou de cara. É que apareceu um posto um pouco à frente. Chegando mais perto, deu pra perceber que não era bem um posto, como esses grandes que vemos nas estradas. Tinha bomba de gasolina – uma bomba bem velha, por sinal – e uma espécie de bar e minimercado ao mesmo tempo. Não era só a bomba de gasolina que era velha. A construção, a escada na frente e a placa que dizia Mercado do Sossego também eram bem deto‑ nadas. Parecia deserto. Meu pai parou em frente à escada um pouco confuso, conferindo se o lugar era seguro ou não. Uma mulher saiu de dentro do mercado. Tinha o visual de uma índia velha. Peque‑ na. De olhos grandes. Queimada de sol. Com a pele cheia de rugas.
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Cabelos brancos e compridos formando uma trança. Descalça. Com um vestido claro, desbotado e bem comprido. E com um cigarro de palha no canto da boca. Ela abriu um sorriso mais misterioso do que simpático e disse, bem devagar, com um sotaque do interior e com o erre de um jeito meio enrolado: – Entra, moço. – Meu filho quer ir ao banheiro. – Deixa ele ir. Então a mulher apontou duas portas do lado de fora do mini‑ mercado. Consultei o meu pai com um olhar. Ele disse bem baixinho: – Quer que eu vá junto? – Não precisa. – Deixa a porta aberta. – Tô ligado. Saí bem rápido do carro, entrei no banheiro (que estava mais detonado do que as casas de um vilarejo bombardeado) e fui pro lado das privadas de fazer xixi em pé. Ouvi outro trovão. Mudei de ideia. Tinha um cara lá. Tenho um pouco de vergonha de fazer xixi na frente de outro adulto que não seja o meu pai. Fui até a privada de sentar. Não tinha tampa. Tudo bem. Eu só ia fazer xixi mesmo. E fiz. Litros. Aliviado, fui pra pia lavar as mãos. Só aí me lembrei do cara que estava no banheiro. Quer dizer, não foi que me lembrei. Ele es‑ tava parado na minha frente, me olhando. Um cara alto. Magro. Um pouco mais velho do que o meu pai. Com cara de sono. Com os pelos das orelhas e do nariz mal cortados. Vestindo um terno escuro bem velho. Calçando sapatos velhos sem cadarço. Senti um arrepio estra‑ nho. Fiquei meio zonzo. Meu coração bateu mais forte. Minhas per‑ nas ficaram bambas. Tudo isso ao mesmo tempo. E por pouco tempo. Em menos de um segundo, eu já estava voltando ao normal. – Hã?
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Fui eu quem perguntou. É porque o cara falou alguma coisa que eu não entendi. Ele repetiu: – A pia fica lá fora. O cara tinha o mesmo jeito manso de falar da mulher que pa‑ recia uma índia. – Ah... Obrigado. Saí do banheiro. A pia ficava perto de onde meu pai e a mulher estavam. Da pia, dava pra eu ouvir a conversa. – ... Sei não, moço, mas acho que... A mulher parou de falar de repente. Olhei rápido pra ela. Rápido o suficiente pra perceber que ela parou de falar porque viu o homem sair do banheiro. Por um segundo, ela fez cara de quem temia alguma coisa. Só por um segundo. Olhei rápido para o homem. Reparei que ele tinha a pele amarelada. Muito amarelada. A mulher disfarçou. Mas não continuou a falar. Quem falou foi o homem amarelado. – ’ Tarde, Dona Sinhana. Mais um trovão. O céu escureceu um pouco mais. Conferi as horas no celular. Sete e meia. Horário de verão. Olhei para o céu. Um bando de aves negras voava em círculo em cima das nossas cabeças. Urubus. A mulher disse: – ’ Tarde, Seu Zé. Meu pai olhou pro Seu Zé. E eu, enxugando as mãos na ber‑ muda, cheguei perto deles. Fora do banheiro deu pra ver melhor a cara do Seu Zé. Era amarelada e muito estranha. Misturava várias expressões. Orgulho. Tristeza. Arrogância. Curiosidade. Preguiça. E mistério. Muito mistério. O Seu Zé entrou na conversa: – Os moços se perderam? Meu pai não percebeu a cara de espanto da Dona Sinhana. Com a maior naturalidade, ele respondeu:
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– Nós vamos pro Vale das Corujas. Acho que a placa da es‑ trada caiu. Com jeito de quem sabe mais do que os outros, Seu Zé disse: – Fizeram ela cair. – Nós estamos perto ou longe da cidade? Seu Zé pensou um pouco, coçou em volta da barriga, cuspiu no mato e disse, ao mesmo tempo que eu ouvi uns sapos coaxarem: – Olha, mais ou menos, viu. – O senhor sabe como eu faço pra chegar lá? – Eu moro lá, moço. Um pouco antes da cidade. Bem nessa hora, dei uma espiada em Dona Sinhana e vi que ela arregalou os olhos, abriu os cantos da boca e cruzou os braços, como quem se protege. Meu pai se animou: – O senhor está a pé? – Estou sempre com meus dois pés, sim, senhor. – Então, o senhor aceita uma carona? Seu Zé apertou os olhos, desafiador demais pro meu gosto. – O moço tem certeza de que tá me convidando pra entrar no seu carro? Senti outro arrepio. A Dona Sinhana se apertou um pouco mais dentro do próprio abraço. O meu pai, sem perceber nada e com a maior naturalidade, confirmou: – Eu estou lhe oferecendo carona. Como se tivesse tido um tipo muito estranho de vitória, o Seu Zé disse: – Então eu aceito, moço. Só espera eu pegar uma coisa lá den‑ tro com a Dona Sinhana. O Seu Zé e a Dona Sinhana entraram no minimercado. Resolvi arrumar as minhas coisas no banco de trás pro Seu Zé se sentar. Pen‑ sei em falar pro meu pai. Não tive coragem. Mas tinha certeza. Nós íamos dar carona pra um lobisomem.
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