Crônicas de educação

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A vida que não está sendo vivida

N

um periódico indiano, o Rural India, escreveu o sr. W. Samiah uma página muito interessante sobre o papel que devem desempenhar nas aldeias os homens de mais perfeita educação. Lamenta o articulista que as cidades absorvam tanto os que vieram do campo, seduzindo­‑os com a monótona tarefa dos escritórios, do sacerdócio profissional, do comércio e dos cargos públicos, e impossibilitando­‑os de vol‑ tar ao seu rincão, a não ser para regularizar alguma conta, ou verificar o esta‑ do de alguma propriedade. Lamenta que a embriaguez do luxo e da ambição tenha efeitos tão egoístas que fixe as criaturas em si mesmas, tornando­‑as eixo dos seus únicos inte‑ resses, e fazendo­‑as esquecer, com injustificada ingratidão, da terra em que nasceram, e dos parentes que em geral por lá ficam, naquele desconforto que elas anteriormente conheceram, mas que, agora, satisfeitas quanto às suas exi‑ gências, não lhes provoca nenhum estímulo de abnegação, no sentido de o procurarem corrigir. Na opinião do sr. W. Samiah, seria imensamente preciosa a atuação des‑ ses campesinos que se educam nas grandes cidades, formando­‑se em cursos superiores, se eles a empregassem beneficiando o ambiente rural. E esse bene‑ fício seria muito fácil de obter, bastando que se limitassem a aplicar os conheci‑ mentos da sua especialidade aos centros incultos e desfavorecidos das aldeias. Assim, debelariam os médicos as moléstias regionais; assim se encarre‑ gariam os engenheiros da solução dos problemas técnicos, de irrigação, canali‑ zação, construções várias; os advogados resolveriam os litígios locais, – e todos estariam concorrendo para a educação do povo e o melhoramento do campo. Trata­‑se, como se vê, de um articulista sonhador, como todos os bons hindus: esses que trazem no sangue aquele “veneno do misticismo”, de que fala Tagore, e que não podem compreender a vida sem ser como uma forma de constante, alegre e desinteressado servir. Terá a sua voz encontrado repercussão entre aqueles dos seus patrícios que, nas cidades, às vezes se desorientam com a vertiginosa e traiçoeira atra‑ ção dos costumes ocidentais? Crônicas de educação 1 • 25


Não o sabemos. É possível que sim, pois a Índia atravessa uma fase de reintegração, depois de ter aprendido o valor de si mesma por um inteligente e esclarecido confronto com outras civilizações. Ela, que sempre foi tão esque‑ cida de si mesma, que nem os seus fastos assegurou, estuda­‑se agora em cada influência exercida, em cada rastro do seu passado, em cada conquista do seu pensamento. Suas recentes conclusões, como as antigas, são que a vida não está sen‑ do vivida com a grandeza que merece. Nós estamos todos sendo asfixiados nesta atmosfera das cidades es‑ petaculosas onde se consome fantasticamente o breve tempo que podemos viver, e onde um ar nefasto devora a luz da nossa inteligência e queima todas as nossas íntimas primaveras. Desde que entramos neste cenário torturante da chamada alta civiliza‑ ção é como se subíssemos à prancha giratória de um circo, dominada por um movimento aceleradíssimo e sem promessa nem esperança de parada. Toda a nossa energia se concentra em vigiar o equilíbrio, para evitar o que nos parece um infalível desastre. O que nos parece um infalível desastre, mas que talvez não o seja. Que somos nós, nesta vertigem inútil? Pode­‑se chamar vida, a isto? A vida não é alguma coisa de sentido mais profundo, alguma coisa mais lenta, mais feita de coisas interiores, que se recolhem aturdidas com este ritmo alucinado que nos leva? Talvez seja, realmente, o campo, o único ambiente onde ainda se possa rea‑ lizar a bela vida, pura, simples, serena, que o mundo morbidamente perturbou. Beberás das fontes claras, Sonharás sonhos mais leves...

Como nas velhas églogas. Como no tempo em que se escutava da terra a voz inspiradora, nos momentos de inquietação e de sonho. Quando se olha‑ va para as montanhas e aprendia­‑se a ser forte; quando se viam as estrelas e se sabia o que é estar muito acima...

Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 9 de outubro de 1930

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A adolescência

O

problema da educação da adolescência ocupa lugar de relevo na obra de reforma geral que ora se processa em todas as partes do mundo. Se a infância merece um carinho extremo e superior delicadeza na sua orientação, a adolescência requer igual delicadeza e carinho; e talvez um cri‑ tério mais requintado, qualidades maiores de tolerância, capacidade maior, talvez de compreensão. A alma do adolescente, alma de transição, cheia de inquietudes e incer‑ tezas, procura por todos os lados uma forma definitiva para se fixar. Procura um ideal que a sintetize: um caminho por onde possa pisar com segurança, marchando ao encontro do seu destino. Infelizmente, para com a adolescência não se tem o recato, o pudor, o respeito com que, em geral, se protege a infância, diante da vida. Considera­‑se o adolescente como um meio­‑iniciado nos aspectos mais obscuros ou duvidosos da existência. Diz­‑se: “Ah! Você já é um homem...” E que triste significação se dá a essa palavra tão nobre: homem! Como se fosse sinônima de conhecedor de maldades, de perfídias, de toda a mesquinhez, de todos os vícios e erros que a humanidade ainda arrasta como espuma das suas aventuras violentas, das suas experiências rebeldes. Dever­‑se­‑ia pensar, de preferência, diante daqueles que estão entre a infância e a maturidade: Este ainda não é um homem: está no seu momento de formação. De‑ vemos olhá­‑lo com olhos religiosos; devemos passar perto dele com a precaução dos nossos próprios gestos, temendo que em nós possa bro‑ tar algum exemplo que macule essa alma, pronta para qualquer reflexo. Que pensa esta criatura? Que sonha? Quais são os motivos da sua vaga melancolia? Dos seus arrebatamentos súbitos? Vamos conhecer de perto como funciona esta vida em elaboração, que ritmo a sustenta, que im‑ pulsos a governam.

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E, com essa intenção generosa, contemplar a adolescência, estudá­‑la, relembrá­‑la em nós, quando também estávamos nessa fase inquieta, ruboriza‑ dos só por esta certeza: ir participar, afinal, da grande vida! Oferecer aos adolescentes aquilo que não tivemos, talvez, quem nos oferecesse: uma esperança fecunda capaz de nos deixar ser bons, úteis e puros na medida de que são capazes os homens, quando lhes concedem liberdade e respeito no seu mais elevado sentido.

Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 8 de agosto de 1930

16 • Cecília Meireles


Os políticos e a psicologia

U

m político – referimo­‑nos aos verdadeiros, aos grandes políticos, aos que dedicam sua vida a conduzir os povos pelos melhores caminhos – tem de ser sempre um homem de profunda visão psicológica. No vasto cenário de uma nação, ele representa o mesmo – em grandes proporções – que um professor numa classe. Precisa conhecer as tendências da alma humana, precisa sentir a in‑ quietação da época, precisa ter a força e a habilidade de colocar cada ele‑ mento no seu devido lugar, para que o rendimento de cada atividade se opere com a maior eficiência, e com essa alegria produtiva que é a condição indispensável para que os países, como as escolas, prosperem e sejam uma realidade útil e bela. Claparède falava, há dias, sobre a importância da psicologia nas rela‑ ções internacionais. Nós, nesta rude, mas esperançosa prova por que acabamos de passar, temos, também, uma oportunidade para refletir sobre os resultados que os governos podem obter no estudo da psicologia do seu povo. Há, mesmo, um documento curioso para ser estudado com atenção. É o discurso feito pelo almirante Pinto da Luz à guarnição do São Paulo: O São Paulo está pronto a partir para cooperar na defesa da ordem e da lei, como já o estão fazendo, dedicadamente, os outros navios da esquadra, e eu, exultando com isso, venho desejar a todos que servem a seu bordo as maiores felicidades na comissão que vão desempenhar, para glória e honra da Marinha. Glória e honra da Marinha, sim, porque o cumprimento do dever, que todos nós estamos realizando, sem ódios ou rancores, sem preocupações políticas, neste momento difícil da vida nacional, há de passar à História como exemplo de lealdade aos compromissos assumidos, perante a Bandeira da Pátria, por todos que formam a Marinha de 1930, essa Marinha a cuja testa eu me encontro com orgulho, essa Marinha que é, porque merece ser, o orgulho de todos nós.

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O São Paulo parte e a Nação, pelos seus poderes legitimamente consti‑ tuídos, lhe diz, por meu intermédio: “Boa viagem e feliz êxito na pa‑ triótica comissão que te está confiada; segue com a certeza de que nós aqui cumpriremos também o nosso dever, aconteça o que acontecer”. A ordem e a lei não podem desaparecer do Brasil sem o deixarem aniqui‑ lado para todo o sempre. Na defesa dessa ordem e dessa lei, é que está a Marinha, por todos os seus elementos, firmes, coesos, em torno da Bandeira Nacional, da Bandeira em que, a cada instante, lemos “Ordem e Progresso”; ordem que precisamos restabelecer para que o Brasil possa enveredar de novo pelo caminho do progresso que o há de levar aos seus grandes destinos, no conjunto das nações. Viva o Brasil! Viva a Marinha!

Não sabemos que ordens levava o São Paulo. Mas, segundo o discurso, tratava­‑se de “cumprir o dever”, cumprimento do dever, esse, que significava “o compromisso assumido perante a Bandeira da Pátria” etc. Perdoando a essa alocução toda a fileira de lugares­‑comuns que ela é, de princípio a fim, gostaríamos de lembrar que a Bandeira da Pátria nem sem‑ pre é “o poder constituído”, essa famosa entidade que serviu para estandarte de todos os crimes do regime deposto. O poder constituído só é, realmente, a expressão de uma pátria, de uma bandeira, quando representa a vontade do povo. Porque as leis só são leis quando correspondem, também, à sua vonta‑ de. De 1889 para cá é preciso que se compreenda assim, porque se estabeleceu que o Brasil passava a ser uma democracia... Mas, o grave erro psicológico está no tom desse discurso todo que mais parece de saudação festiva, que de incitamento guerreiro contra brasileiros, numa hostilidade intrafronteiras. Desejar, aos nossos bravos marujos, as “maiores felicidades”, num caso desse, e dizer – um ministro! – que está exultando com a sua partida é uma revelação de loucura momentânea, só explicável por um súbito abalo geral, proveniente de um formidável choque... Em toda essa literatura sem eloquência nem elevação nem uma só pa‑ lavra que significasse a tristeza de pôr irmãos contra irmãos, lamentando a contingência, que a tal, por acaso, obrigasse... Uma frieza, uma secura de coração, uma limitação de vistas que à pró‑ pria guarnição do São Paulo, certamente, não passou despercebida. O engodo daquele “para honra e glória da Marinha” teria sido, talvez, a principal ou única tentativa de sugestionar os ouvintes, perspicácia vulgar dos que estão habituados a conduzir criaturas pela fraqueza da vaidade... 14 • Cecília Meireles


Mas, a nossa Marinha sabe bem o que é honra e o que é glória! Tanto o sabe que, na manhã de 24, se colocou ao lado do Exército, na obra que é, justamente, a dignificação da bandeira, a defesa da pátria, a substituição do Brasil de leis iníquas por um Brasil, íntegro e são, que seja a síntese da vontade do povo, aviventada pela aspiração e o trabalho de cada um. Esse gesto vale por uma confirmação do formidável erro psicológico de um ministro, como a Revolução, em conjunto, é um protesto contra a falta de psicologia do governo todo.

Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 4 de novembro de 1930

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