CRONISTA POR DESTINO E PROFISSÃO
Embora tenha publicado mais de 7 mil crônicas durante os 32 anos em que trabalhou n’O Estado de S. Paulo, o escritor Luís Martins não levava muito a sério o cronista LM. Tanto que, quando publicou sua primeira antologia de crônicas, Futebol da madrugada, no final dos anos 1950, assim introduziu o livro: É a primeira vez que, como cronista, me vejo metido em volume. Confesso que me sinto constrangido como se, numa reu‑ nião em que se exige traje de gala, eu aparecesse de pijama. Um pijama de tecido grosseiro que mais se assemelha a um rude ma‑ cacão – roupa de trabalho cotidiano, trabalho rotineiro...
Sabe‑se lá o que pensaria agora que, sem poder escolher nem mesmo a cor do pijama, é metido em volume ainda mais grosso, com a pretensão de reunir “o melhor” do cronista. Como se não bastasse, um volume organizado por sua filha. E já que o assunto veio à baila, aproveito para convidar o leitor a se sen‑ tir à vontade para descontar desta introdução filial o que achar necessário. Luís Martins considerava escrever crônicas um “ganha‑pão diário”, “ossos do ofício”, “trabalho braçal de literatura”, como dei‑ xou registrado diversas vezes; cronicar, para ele, era um recurso a que vários escritores precisaram recorrer para poder ganhar a vida com a pena, a caneta, o computador ou, no seu caso, primei‑ ro com a esferográfica e depois burilando o texto na máquina de
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escrever. Paradoxalmente, esse olhar não muito lisonjeiro sobre o ofício de cronista não o impediu de ser um entusiasta estudioso do gênero, a ponto de ter deixado um livro praticamente pronto sobre a história da crônica brasileira, além de vários artigos sobre o tema. Certa vez, em resposta a Fernando Góes, que escreveu um artigo censurando o amigo por seu suposto desprezo pela crônica,1 LM assim se explicou, quiçá com falsa modéstia: “A ver‑ dade é bem outra. As crônicas que eu considero sem a mínima importância literária são apenas as minhas próprias; trata‑se de simples atividade jornalística que me proporciona o pão de cada dia, nada mais”.2 E enfatizou, invocando uma tese que lhe era cara, a da “brasilidade” da crônica: A crônica em si – de um Machado de Assis, de um João do Rio, de um Rubem Braga, de um Carlos Drummond de Andra‑ de, entre outros – nunca foi tida por mim como “gênero menor”, muito pelo contrário; acho mesmo que essa especialidade, mais literária do que jornalística, constitui uma das raras invenções verdadeiramente originais da literatura nacional.
A especialidade da crônica era outra tecla em que batia com insistência. Por isso, quando Edla van Steen lhe perguntou, em uma entrevista, o que era preciso para ser cronista, ele não titu‑ beou: “É preciso ter bossa e vocação. Há grandes escritores que jamais seriam bons cronistas”.3 Acho que se pudesse escolher, Luís Martins preferiria ter seu nome justaposto ao de ensaísta ou romancista – o que também foi, diga‑se – do que ao de cronista. Mas como a vida nem sempre nos dá tais liberdades, o nome Luís Martins ficaria muito mais as‑ sociado ao jornalismo e, por extensão, à crônica jornalística. Nesse ponto tendo a concordar com Fernando Góes quando afirma, em outro artigo: E penso que está aí, nas crônicas, o melhor Luís Martins. É verdade que ele se julga romancista e escreveu três romances. 1 GÓES, Fernando. Luís Martins ou o desprezo pela crônica. Última Hora, Rio de Janeiro, 30 out. 1957. 2 MARTINS, Luís. Sobre a crônica – I. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10 abr. 1968. 3 Jornal da Tarde, 17 maio 1980.
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Imagina que é sociólogo e historiador, e deu‑nos O patriarca e o bacharel. Mas o que ele é, na verdade, é cronista. Esse é seu gêne‑ ro maior. Cronista e poeta, que nas suas crônicas o poeta reponta a todo instante, o lírico está sempre presente.4
Opinião parecida tinha Sérgio Milliet, para quem, entretanto, era o poeta que continha o cronista: “Falei da poesia e vou insistir nesse aspecto da sua produção”, declarou em um artigo em que se dirigia diretamente a LM, “porque são raros os que sabem que você é principalmente poeta, muito embora teime em se conside‑ rar bissexto”.5 Mas voltemos ao começo de tudo, o que geralmente se dá no nascimento. O de Luís Martins foi no Rio de Janeiro, cidade onde iniciou sua carreira literária e jornalística e esbanjou a juventude na misteriosa Lapa dos anos 1930‑1940, sobre a qual escreveu um romance e um livro de memórias. O primeiro lhe rendeu uma per‑ seguição pelo Estado Novo e o fez fugir para São Paulo; o segun‑ do, anos mais tarde e já morador paulistano assumido, um prêmio Jabuti. Carlos Drummond de Andrade declarou certa vez que Luís Martins era “um dos cariocas mais genuínos”,6 talvez com base na velha amizade iniciada no Rio de Janeiro e nos dois livros sobre a boêmia lapiana. Devia ter razão, aquela mais profunda que sem‑ pre tinha. Mas ouso contrapor que o LM que produzia crônicas diárias para O Estado de S. Paulo e com quem Drummond pouco conviveu, devido à distância, tornou‑se com o passar do tempo, pelo menos nos hábitos e nas preocupações cotidianas, um quase ‑paulista ou, como ele próprio se definia, “um carioca aposentado e paulista em exercício”. Penso cá comigo que há vários motivos para que o nome de Luís Martins esteja (ou deveria estar) fortemente associado à história da crônica paulistana. E isso, sem prejuízo de sua ligação visceral com o Rio de Janeiro. Cito alguns argumentos em que baseio minha tese:
4 GÓES, Fernando. Cinquentenário de um cronista. Última Hora, Rio de Janeiro, 22 jun. 1956. 5 MILLIET, Sérgio. Luís Martins. Para Todos, Rio de Janeiro, 1957. 6 ANDRADE, Carlos Drummond de. A vez de Luís Martins. A Tribuna, Rio de Janeiro, 8 mar. 1957.
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1o) a longevidade: Luís Martins escreveu crônicas para o emi‑ nentemente paulistano O Estado de S. Paulo por mais de trinta anos, tendo sido o cronista oficial do jornal de 1951 a 1980. 2o) a temática: como morador de São Paulo (e um dos des‑ bravadores do outrora idílico bairro do Sumaré), nada mais na‑ tural que grande parte de suas crônicas envolvesse questões re‑ lativas à cidade: urbanísticas, artísticas, políticas e corriqueiras que faziam – e ainda fazem – parte da vida dos paulistanos, como falta de luz, inundações, engarrafamentos, ruas mal asfal‑ tadas etc. A quantidade de crônicas sobre a cidade é tamanha que uma boa compilação poderia revelar detalhes interessantes sobre a história de São Paulo na década de 1950 até o início dos anos 1980 – sugestão que deixo aqui registrada para a coragem de outro antologista. 3o) a quantidade: como tinha que entregar ao O Estado de S. Paulo uma crônica por dia (exceto nos fins de semana e nas férias anuais), LM deve ter produzido, só para o Estadão, uma média de 220 crônicas por ano, totalizando cerca de 7 mil crôni‑ cas durante os 32 anos em que assinou sua coluna. É um cálculo conservador, pois houve tempo em que publicava duas crônicas diárias: uma para a seção “Sociedade” e outra para “Coisas da Cidade”. A dupla autoria era tão bem disfarçada que fez uma lei‑ tora indignar‑se ao saber que ambas as sessões eram da lavra do mesmo autor: “Mas então esse sujeito tem dupla personalidade!”, exclamou ela, segundo relato de Alcântara Silveira.7 Mais tarde, as duas seções juntaram‑se em uma só, sob o título “Primeira Co‑ luna”. A partir de 1967, por dificuldades de “ordem técnica” para sair todo dia na primeira coluna do jornal, a “Primeira Coluna” passou a se chamar simplesmente “Crônica”. Ao menos essa foi a explicação que LM deu aos leitores em uma crônica de janeiro daquele ano, intitulada “Tabuleta nova”. A analogia que faz entre a nova localização da coluna e de uma quitanda tem lá sua gra‑ ça, mas é possível que houvesse outro motivo: talvez o cronista entregasse o texto sempre na última hora, para desespero dos diagramadores da era pré‑computador, que tinham necessaria‑ mente que encaixá‑lo na primeira coluna para, só então, resolver 7 MARTINS, Luís. A primeira pessoa do singular. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10 abr. 1969.
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o resto da página. É possível que a localização mais flexível da quitanda do seu Martins tenha sido negociada para acalmar a vizinhança. É possível. Durante algum tempo, por outro lado, mediante um acordo entre LM e Sérgio Milliet, devidamente abençoado pela direção do jornal, a “Primeira Coluna” foi substituída às quartas‑feiras pela se‑ ção “De hoje, de sempre”, assinada por Milliet. Como o tamanho e o tipo de letra utilizados na impressão do que LM chamava de suas croniquetas ou “tripas diárias” era o mesmo usado nas tripas sema‑ nais de Sérgio, o acordo rendeu muitas confusões e risadas para os dois, quando um recebia elogios ou críticas pela crônica do outro. 4o) o pioneirismo: Luís Martins foi o primeiro jornalista do Estadão a assinar por extenso suas crônicas. Aconteceu quase por acaso. O jornal o contratou no final dos anos 1940 para escrever uma coluna diária de crítica de rádio, mídia então soberana no país. Mas como Luís pouco entendia de rádio e não era um ou‑ vinte muito assíduo, acabava apelando muitas vezes para o que chamava de “conversa fiada” – ou seja, crônica pura e simples. Insatisfeito com o resultado do próprio trabalho, em um dado mo‑ mento propôs a Júlio de Mesquita Filho, proprietário e diretor do jornal, que escrevesse sobre temas diversos. O Dr. Júlio convidou‑o então a fazer a abertura da seção “Sociedade”. Luís aceitou, sob a condição de que não fosse uma “coluna mundana” e ali adotou uma sigla, como era o costume na época: LM. Seu antecessor na coluna, Guilherme de Almeida, por exemplo, assinava‑se Guy; Vi‑ valdo Coracy era V.Cy. Outros adotavam pseudônimos: Henrique Pongetti era “Jack” em O Globo; Menotti del Picchia era o “Hélios” do Diário da Noite. Passado um tempo, o Dr. Júlio pediu‑lhe que assumisse uma outra coluna diária na seção “Coisas da Cidade”. Para contar, passo a palavra ao próprio cronista: Na realidade, tratava‑se de uma simples crônica, de dimen‑ sões quase idênticas à que eu escrevia para “Sociedade”. Como nesta assinava‑me LM, sugeri a adoção de um pseudônimo, trans‑ ferindo a sigla para a nova coluna. Mas o Dr. Júlio recusou energe‑ ticamente a sugestão. “Não senhor. Os leitores já estão habituados com o LM. As ‘Coisas da Cidade’ o senhor assina Luís Martins, se quiser.” E assim, passei a fazer duas crônicas diárias, uma como LM, outra como Luís Martins. E ganhando pelas duas. Fui, em
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O Estado de S. Paulo, o primeiro cronista a ter o nome por exten‑ so, sob um título de seção fixa.8
Para finalizar esta introdução, que já vai longe, uma nota sobre a seleção e organização da coletânea. As crônicas aqui reu‑ nidas encontram ‑se conservadas, catalogadas e organizadas no papel‑jornal original, juntamente com cerca de 10 mil, no Centro de Estudos Luís Martins do MAM‑SP, à disposição dos interessados – exceção feita às que figuraram em coletâneas prévias do autor (Futebol da madrugada, 1957; Noturno do Sumaré, 1961; Ciranda dos ventos, 1981), cujos originais se perderam. Os originais podem ser acessados também no acervo digital do jornal O Estado de S. Paulo. Além da qualidade da crônica (quesito para o qual con‑ correm vários parâmetros, como se sabe, nenhum mais determi‑ nante que o prazer sem nenhum parâmetro de quem lê), procurei apresentar as mais demonstrativas do estilo do cronista – humor, ironia, lirismo, concisão, tom confidencial – bem como seus temas recorrentes. Daí a organização por temas e, por último, como uma espécie de epílogo, algumas crônicas sobre o gênero crônica. Mas, como escolher é também perder alguma coisa, acabei por deixar de fora crônicas sobre outros temas frequentes do cronista, como, por exemplo, “artes plásticas”, já reunidas em livro específico.9 Valem ainda pequenas observações sobre as crônicas que aqui figuram: “Dolorosa interrogação” e “O sítio” foram conce‑ bidas em um momento político delicado, pré‑golpe militar; “O estranho insulto” e “Virgindade” aludem à Censura então vigente. A última crônica de LM, “O homem invisível”, foi publicada dois dias após a morte do cronista, em 17 de abril de 1981. Difícil não notar que nela LM fala de si mesmo como um “revenant”, ou “alma do outro mundo”, suas derradeiras palavras escritas. Quem acredita em pressentimento pode até supor que, com essa espécie de anedota premonitória, despediu‑se dos leitores. No mais, se é verdade que toda crítica é uma autobiografia, como afirmou Oscar Wilde, pode‑se dizer que toda crônica o é de maneira ainda mais explícita, principalmente quando lida postumamente, ao lado de outras do mesmo autor. 8 MARTINS, Luís. Um bom sujeito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 9 MARTINS, Ana Luisa; SILVA, José Armando Pereira da. Luís Martins: um cronista de arte em São Paulo nos anos 1940. São Paulo: MAM‑SP, 2009.
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Sobre a qualidade do texto do cronista, último e talvez mais importante argumento para gravar o nome de Luís Martins na história da crônica paulistana, paulista e quiçá brasileira, deixo a critério do leitor. E, com isso, convido‑o a virar a página e passar ao que interessa: as croniquetas do LM.
Ana Luisa Martins
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