O código do surfista

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« Lição 1 Nunca darei minhas costas ao mar Os tubarões­‑do­‑zambeze estão entre os predadores mais perigosos do mundo. Essencialmente criaturas de água salgada, eles são conhecidos por nadar mil quilômetros rio acima em busca de presas. Prosperam em águas rasas e turvas e são particularmente predominantes na minha cidade natal, Durban, onde existe uma alta porcentagem de ataques e fatalidades. Atualmente, extensas redes fixadas a 300 metros da costa protegem os frequentadores das praias de Durban. Mas, em 1957, durante um mês hoje lembrado como “dezem­ bro negro”, sete nadadores foram atacados por tubarões­ ‑do­‑zambeze, e cinco deles morreram. Meu pai, Chony Tomson, foi um dos nadadores mais promissores da África do Sul. Em 1946, aos 22 anos de idade, ele estava treinando para representar a África do Sul nos Jogos do Império Britânico e nos Jogos Olímpicos. Ele amava competir e se orgulhava muito de suas vitórias, mas sempre enxergava a vitória sob uma perspectiva mais ampla. Acreditava que, diante de todos os problemas do mundo naquela época – ele foi artilheiro de cauda voluntário da Força Aérea da África do Sul durante a Segunda Guerra Mundial –, a competição esportiva era uma área na qual as pessoas podiam conviver e interagir umas com as

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outras de maneira honrosa. O esporte era muito importante para ele – uma maneira de construir caráter – e, ganhando ou perdendo, meu pai atribuía valor ao espírito esportivo acima de tudo. Mas ele não conseguiu passar para a triagem das Olimpíadas daquele ano nem de qualquer outro. Em casa, em Durban, nós tínhamos um extenso pedaço de praia delimitado ao sul por um grande promontório chamado Bluff. Logo do outro lado do canal do porto, as praias da cidade de Durban estendiam­‑se na direção norte a partir do Bluff, divididas por quebra­‑mares que produziam ondas enormes. Um dia, quando ele estava nadando em South Beach, apenas se divertindo, pegando ondas de peito com os amigos, um tubarão­ ‑do­‑zambeze o atacou. O impacto foi tão forte que seu corpo inteiro foi levantado para fora da água. Quando caiu de volta, ele não tinha grande parte do seu bíceps direito. Ele me contou mais tarde que nunca havia visto o mar esvaziar tão rápido. Homens se debatiam enquanto subiam pelos pilares do píer, rasgando suas mãos e peitos nas afiadas cracas de mariscos. Com toda a confusão e a grande quantidade de sangue, as pessoas na praia pensaram primeiro que haviam ocorrido múltiplos ataques. Um único nadador conseguiu manter a calma em meio ao caos e puxou meu pai até a areia. Ele foi conduzido às pressas para o Hospital Addington, em frente à praia, e os médicos imediatamente envolveram seu braço com gelo. Por sorte era alta temporada de verão e todos os hotéis de praia estavam abastecidos de gelo para os turistas. O resgate do meu pai se tornou uma lenda local e, muitos anos depois, quando fiquei famoso como surfista, algumas pessoas vinham me perguntar: “Você não é o filho do Chony? Eu ajudei a puxá­‑lo para fora da água.” Tenho certeza de que eram todos bem­‑intencionados, mas, se eu tivesse con-

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tabilizado todas as pessoas que me contaram essa história durante esses anos, a lista de salvadores ficaria do comprimento de uma onda de série em Jeffreys Bay (uma das maiores ondas do mundo, aliás). Ele nunca mais recuperou o movimento do braço direito e não gostava de falar sobre o ataque. Se algum de nós, ainda crianças – meu irmão mais novo Paul ou minha irmã Tracy –, lhe perguntasse sobre o acidente, ele sempre respondia com uma piada. “O tubarão morreu de sangue envenenado”, ele nos contava com uma risada. Ou “eu não sei quem se assustou mais, se eu ou o tubarão”. Minha mãe, mais tarde, me disse que ele teve pesadelos terríveis. Mas, devido ao seu senso de humor, a gente achava que ele não tinha consciência alguma das terríveis cicatrizes que os dentes do tubarão haviam deixado no seu corpo. Eu nunca o considerei incapacitado de maneira alguma, mas seu braço gradualmente atrofiou pela falta de uso, e sua mão direita permaneceu travada, fechada para sempre. Logo após o ataque, ele viajou a São Francisco para fazer uma cirurgia extensiva no braço direito, um processo que incluía também uma série de dolorosos implantes de pele retirada de seu estômago. Quando criança, lembro de lhe perguntar sobre aquelas cicatrizes. Meu pai simplesmente sorria e dizia: “Ack­‑Ack”, imitando o barulho das metralhadoras antiaéreas, uma referência a seu tempo de serviço como artilheiro de cauda durante a guerra. Às vezes, quando eu penso sobre sua resposta, lembro do seu senso de humor. Em outros momentos, imagino o quão profunda e traumática era essa ferida a ponto de fazer um homem preferir voltar aos horrores da guerra em vez de remexer nas memórias de um tempo ainda mais doloroso da sua vida.

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Imagine um homem plenamente consciente dos perigos do oceano – tendo ele mesmo sido atacado por um tubarão que destruiu sua carreira na natação –, e aqui estava ele colocando seu primeiro filho, a quem amava profundamente, diretamente no mar, demonstrando entusiasmo e aproveitando muito tudo aquilo. Depois de deixar São Francisco, ele ficou em recuperação por vários meses nas ilhas havaianas, onde conheceu os lendários irmãos Kahanamoku. Lá estava um homem com uma tremenda carreira de natação à sua frente, agora incapacitado de fazer o que ele mais amava e tendo que lembrar disso toda vez que olhava para o braço, que não conseguia mover, e para a mão, que não conseguia abrir. Ele tinha todo o direito de se amargar perante aquela experiência e dar as costas ao mar. No entanto, uma das minhas primeiras memórias enquanto criança é de meu pai me levando pela mão e me guiando para a água em North Beach. Ele nunca desistiu do seu amor pelo mar e incutiu em mim essa mesma paixão desde pequeno. Na aérea de Durban onde cresci falávamos em uma linguagem de gírias rimadas, influenciada pelos cockneys na Inglaterra que tinham um jeito particular de se expressar. Então, nós não dizíamos money (dinheiro), dizíamos Tom Funny. Sharks (tubarões) eram chamados de Johnnys ou Johnny Darks (daí a referência ao dezembro negro – “Dark December”). Quando alguém desaparecia no oceano, nós dizíamos: “Um Johnny o levou” ou “Foi abatido por um Johnny”. Então uma swim (nadada) era chamada de uma Tiger Tim. Eu dizia ao

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meu pai: “Bora, pai, vamos pra uma Tiger, vamos pra uma Tiger”. Eu tinha seis ou sete anos de idade. Lembro dele segurando minha mão e me levando para a água. Durante o verão, chuvas pesadas causavam a enchente do rio Umgeni, e uma lama vermelha era levada rio abaixo até o mar, escurecendo a água e fazendo com que ficasse muito difícil de enxergar abaixo da superfície. Também no verão um vento noroeste descia do canal de Moçambique, trazendo grandes águas­‑vivas flutuando, que provocavam dolorosas queimaduras. E, é claro, havia sempre os Johnnys à espreita por aí. Imagine um homem plenamente consciente dos perigos do oceano – tendo ele mesmo sido atacado por um tubarão que destruiu sua carreira na natação –, e aqui estava ele colocando seu primeiro filho, a quem amava profundamente, diretamente no mar, demonstrando entusiasmo e aproveitando muito tudo aquilo. Ensinava­‑me a nadar, ensinava­‑me como pegar onda de peito e amava o fato de eu curtir uma carreira na qual passaria quase todos os dias dentro do mar. Seu entusiasmo irradiava para toda a comunidade do surfe, especialmente em Durban. Ele patrocinou uma grande quantidade de jovens, encorajando­ ‑os a continuar surfando, e nos observava o tempo todo com binóculos para ver quem estava surfando bem e poder oferecer conselhos. Ele fez tudo de uma maneira muito especial, tanto que nós queríamos ir bem não só por nós mesmos, mas também por ele. Nunca forçava a barra. Sabia que competição era obviamente muito importante, mas nos fez manter em perspectiva a ideia de ganhar, porque ele queria que a gente se divertisse fazendo aquilo. Assim, a primeira lição sobre o mar eu aprendi com meu pai. Escutei, muitos anos depois, que os beach boys havaianos

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de Waikiki tinham um ditado parecido. Quando eles inauguraram a estátua de bronze do grande nadador e surfista Duke Kahanamoku, em Waikiki, 1990, eles a posicionaram de frente para a avenida Kalakaua para que os turistas pudessem ter a oportunidade de uma boa foto, com a linda praia de Kuhio ao fundo. Os beach boys riram e balançaram a cabeça, dizendo: “Duke nunca teria dado suas costas ao mar”. Obviamente, de um ponto de vista prático, a lição é particularmente importante no Havaí, já que não há nenhuma barreira continental para desacelerar a ondulação, e as ondas podem quebrar subitamente e com uma tremenda força. Aqueles que viram as costas para o mar estão arriscando uma abrupta e dolorosa apresentação à bancada de coral. Para os beach boys de Waikiki, dar as cos­ tas ao mar não é somente uma estupidez, mas também demonstra um desrespeito ao seu poder. Meu pai, muito provavelmente, pegou esse ditado dos beach boys enquanto se recuperava no Havaí. Na maior parte da sua vida ele havia sido um beach boy também. Uma amiga dos Estados Unidos me perguntou uma vez: “Por que funcionou na África do Sul? Por que houve ali uma mudança tão pacífica para a democracia?” Eu lhe disse que foi por causa de Nelson Mandela. Depois de 27 anos na prisão, ele saiu sem nenhuma amargura e com um espírito de reconciliação. Eu cresci com um pai que também não carregava nenhuma amargura perante a experiência que destruiu o que ele amava. É muito raro uma pessoa, em qualquer nível da sociedade, que não olhe para trás, não lute contra o passado e que consiga seguir adiante de forma positiva para si mesmo e para os outros. Minha família sempre se manteve fora da política. Lembro perfeitamente o aviso do meu pai antes de eu ir embora

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para a universidade, em 1974: “Shaun, não se envolva com política. Eu não quero vê­‑lo atrás das grades.” Da mesma forma que entendia os perigos do mar, ele conhecia perigos similares existentes durante o apartheid. Ser jogado na cadeia por falar o que pensa era absolutamente possível na África do Sul. Raramente escutávamos sobre Nelson Mandela na minha infância, por exemplo, isso porque poucos no governo falaram dele alguma vez. Um Johnny o levou, por assim dizer, e enquanto seu empenho era notícia fora do país, dentro da África do Sul, onde cresci, ele continuava tendo a imagem obscura de um homem que foi preso pelo que, à época, se considerava terrorismo. É difícil de expressar a sacudida na sua mente quando você tem crenças fundamentais totalmente contrariadas. Ainda moleque, eu acreditava que Mandela fosse um inimigo do Estado. Então, mais tarde, descobri que tudo que eu sabia sobre ele – seus objetivos, suas ações e seus ideais – havia sido criado como propaganda pelo governo sul­‑africano. Percebi que eu não tinha conhecimento genuíno algum sobre o homem ou sua missão na África do Sul. Foi uma experiência que me deixou desorientado, mais uma vítima de um sistema político que se baseia na segregação de seus cidadãos. Meu pai e eu tínhamos uma relação especial e muito rara. Eu seguia seus conselhos na universidade e continuei seguindo depois. Quando me tornei campeão mundial em 1977 e ganhei bastante reconhecimento na África do Sul, poderia ter usado essa fama para forçar uma mudança política. Mas nunca o fiz. Eu relutava em ir contra meu pai, minha família e meus amigos – todas as pessoas que me deram apoio durante toda minha carreira. Eles eram a África do Sul da qual eu era tão orgulhoso e queria representar, não a política do apartheid, que eu pessoalmente abominava.

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Eu tinha sentimentos conflitantes sobre a situação. Estes, no entanto, não vieram a público até 1985, quando fiz um discurso na cerimônia anual de premiação de final de ano. O circuito mundial daquele ano havia terminado em Bells Beach, em Vitória, na Austrália, e a cerimônia foi feita em uma cidade próxima, Torquay. Foi uma grande festa para os australianos, já que seu filho nativo, Tom Carroll, ganhou o título. Eu fiquei em segundo, bem perto. Aliás, eu estava liderando na classificação quando fomos para a última parte do circuito na Austrália, e acabei perdendo por uma pequena diferença. Tom não somente havia ganho o campeonato mundial pela segunda vez seguida, como também o fez sendo patrocinado pela minha marca de roupas, Instinct, que eu havia lançado muitos anos atrás. Pouco antes do início da cerimônia de premiação, Tom repentinamente anunciou que iria boicotar todas as competições de surfe na África do Sul no próximo ano, mesmo ele tendo conquistado o título mundial competindo nos campeonatos da África do Sul. Fiquei surpreso e profundamente ofendido. Soube da declaração por outra pessoa em vez de diretamente por Tom. Nós o patrocinávamos antes de ele ganhar seu primeiro campeonato como profissional, e ele conquistou dois títulos mundiais surfando para a Instinct. Subi ao pódio e aceitei meu prêmio de vice­‑campeão, sabendo que Tom iria falar depois de mim. Estava com todos essas emoções e pensamentos passando pela minha cabeça. Eu tinha acabado de perder o campeonato mundial na última etapa da temporada; então, na esfera pessoal, eu estava devastado. Foi a derrota mais difícil da minha carreira. Na esfera profissional, estava igualmente devastado: Tom nos deixara como patrocinador, havíamos perdido nosso surfista número um, o bicampeão mundial. Foi uma grande frustração para toda a empresa.

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E o que aconteceria com o circuito mundial no ano seguinte? Eu estive lá em sua fundação, em 1976, e gastei todos os anos desde então trabalhando para construir e reforçar o que viria a ser conhecida como a Associação dos Surfistas Profissionais, hoje WSL (World Surf League), o corpo que dirige o circuito mundial. Era uma organização frágil naquela época: um país ou uma empresa podia patrocinar um evento num ano, e depois abandoná­‑lo no próximo. A cada ano lutávamos para obter um patrocinador geral que desse suporte aos aspectos administrativos de colocar em funcionamento um circuito mundial, garantindo que os atletas fizessem dinheiro suficiente para viajar e competir. A África do Sul era uma das bases principais do circuito desde seu começo, hospedando o campeonato chamado Gunston 500, o qual eu havia vencido seis vezes. Boicotar eventos na África do Sul seria um tapa na cara de um patrocinador que apoiava o circuito há um bom tempo, e também à memória do meu pai (que havia falecido em 1981), que ajudou na fundação do evento.

Aprendi com meu pai que o esporte podia aproximar as pessoas, que um encontro como o das Olimpíadas poderia e deveria se elevar acima da política individual dos países. Eu decididamente acredito nisso hoje. Tinha todas essas coisas com que lidar, quando olhei para o grupo de surfistas à minha frente, com os quais havia viajado junto, competido contra, convivido e até patrocinado, como no caso do Tom Carroll, e não sabia o que dizer. A quantidade normal de repórteres e câmeras havia dobrado

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com a notoriedade de Tom como campeão mundial. Sua declaração sobre o boicote havia atraído a atenção do primeiro­ ‑ministro da Austrália, Robert Hawke, que apoiou sua decisão. Da minha parte, não entrava em questão a possibilidade de vingança política da África do Sul, já que havia me tornado cidadão americano no ano anterior, em 1984. Mas boi­ cotar eventos na África do Sul era contra tudo que eu acreditava ser uma competição esportiva: uma maneira de trazer as pessoas mais perto umas das outras, e não de separá­‑las. O governo da África do Sul usou o apartheid como um instrumento cruel de separação, não somente entre brancos e não brancos (negros, indianos e outros), mas também entre grupos étnicos negros e classes sociais. Surfistas estavam utilizando a tática do inimigo e usando o surfe como uma arma política. Eu disse aos surfistas e à mídia aquela noite que eu pensava que estavam todos se curvando à pressão política. O circuito mundial precisava deles na África do Sul, e a África do Sul, de todos. Meu ex­‑país havia se tornado geográfica e socialmente isolado do mundo. Esse era um país, eu os lembrei, que não tinha televisão até 1976 – uma hora em inglês, outra em afrikaans –, e mesmo assim era usada para reforçar o controle do governo e a sua política de segregação. Eu não achava que se isolar ainda mais seria a resposta. Aprendi com meu pai que o esporte podia aproximar as pessoas, que um encontro como o das Olimpíadas poderia e deveria se elevar acima da política individual dos países. Eu decididamente acredito nisso hoje. E, no entanto, sei que Tom Carroll tomou sua posição baseado nos seus próprios princípios e num desejo de ajudar a remediar a grande injustiça e a crueldade do apartheid.

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