De volta ao Milagre do Cruzeiro

Page 1

23 de Janeiro de 2013

Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua As melhores imagens da sua História

De volta ao Milagre do Cruzeiro

E

stou de volta ao Milagre do Cruzeiro a pedido de alguém que gostaria de conhecer o essencial da história contada na opereta, em episódios tão românticos como realistas. No dia da estreia foi distribuído um livrinho -programa onde constava um resumo dessa história e que agora transcrevo, com um outro acrescento da minha lavra. Diz assim esse resumo: “ Era uma vez uma menina chamada Joaninha que, por ser órfã, foi recolhida e amparada pela sua madrinha, a Srª Morgada. Vivendo no aconchego de tão santo lar, a Joaninha não podia deixar de revelar as excelsas qualidades da sua madrinha, se bem que ela possuísse um coração terno e afável, nunca indiferente à miséria e dor alheias, daí resultando a estima de toda a gente, principalmente os pobres que ela socorria. Certo dia, por motivo de um casual encontro com Fernando - mestreescola – sentiu dentro de si a chama do amor. Alvaro, filho do fidalgo dos Cabris, moço galanteador de quem as raparigas da aldeia fugiam, por se dizer de boca em boca, ser autor de certos males, lembrou-se de dirigir olhares pecaminosos e palavras intencionais à bondosa Joaninha, perseguindo-a durante as suas visitas de devoção ao alto do Cruzeiro.

O maldoso João ferreiro soube disso e estaria pronto a ajudar o fidalgo nos seus torvos intentos. Inesperada tragédia atinge em cheio Fernando e despedaça o coração de Joaninha. É que um tiro, também inesperado, atingiu e matou o fidalgo, ele que momentos antes tinha trocado umas palavras azedas com Fernando. Joaninha, como louca foge de casa e dirige-se ao Cristo do Cruzeiro e implora-lhe a morte como único alívio para a sua dor, para o seu coração desfeito! Tomba inanimada e o bom Deus manda os anjos levantar o seu corpo débil e iluminar-lhe o caminho por onde, novamente, a felicidade viria. Foi milagre! !!! E no fim daquele trágico dia brilhou a luz da verdade! Soaram as “ Avé Marias”. Este último quadro, tal com estas últimas palavras, fazem crer que o autor Rafael Magalhães, era um homem de devoção e de fé. De facto, era de uma religiosidade singular, intimista de todo e entendia que qualquer prece, qualquer diálogo com Deus, devia acontecer com muito respeito e total privacidade. E é crível também que o autor da opereta, ao passar diariamente na rua Pedro Verdial, tenha encontrado ali uma fonte de inspiração, fosse no palavreado

das mulheres do soalheiro, fosse nos janelões gradeados da velha cadeia onde os detidos, desirmanados do mundo e da razão, tinham olhos libertos e afoitos a todo o largo da concha reguense. Já agora, traga-se aqui aos cenários, duas ou três personagens que ficaram para sempre na memória de quem as viu em cena. Pontificava a Teresa Chocalheira, serviçal da Sr.ª Morgada. Parecia o diabo à solta num mundo de milagres, mas não se servia de impropérios descabidos nem usava termos estapafúrdios. O seu fraseado eram só chalaças, sarcasmos e ironias, respostas na ponta da língua de mais a mais com assentimento e aprovação da patroa, a Sr.ª Morgada.

Um Quadro Festivo Um dos quadros que enobrecem a minha sala de estar pintou-o Afonso Soares, artista e historiador reguense que tem busto e memória, ali no simpático jardim do Cruzeiro. Quadro a óleo sobre folha de flandres, mostra-me uma cena campestre, cheia de beleza e colorido. O céu e azul, mal forrado de nuvens algodoadas e, como pano de fundo, na linha do horizonte, lá estão umas casas de campo, casas de lavoira que vão do amarelo ocre até ao branco duma caiação já antiga e meio desbotada. Em volta das casas,

a verdejar, há umas tantas árvores esguias que me parecem choupos. Que sítios seriam estes?... O primeiro plano é todo ele um ervaçal de macieza, cortado por um carreiro de terra batida. E, pelo carreiro, vem caminhando uma rapariga cheiinha de mocidade. Traz uma boa regaçada de erva fresca onde pontilham umas florinhas brancas e parece caminhar com certo desembaraço, a despeito dum ligeiro requebro da cintura. Um pincel mais miudinho, ao que julgo, deu-lhe a finura dos traços e

o quer que seja de luz irradiante. Aquele leve sorriso a flor dos lábios e aquela boca onde se adivinham cantigas de espairecer, sei lá se uns dichotes cortados de gargalhadas, são traços de pincel miudinho. Com uma pele trigueirota de camponesa e já com um corpo esbelto de senhora, parece fixar-me com o olhar. Mas os olhos, apesar de fitos em mim, devem ser olhos movediços, alegres de condição. Quem seria esta cachopa, assim pintada por Afonso Soares? Já lhe pus um nome, que é o melhor modo de eu próprio retocar o qua-

Também o oficial de diligências, figura bem delineada e tão bem desempenhada pelo inconfundível Teixeirinha (lembram-se?). Diante da Teresa Chocalheira e diante das provas que incriminavam o assassino do fidalgo mostrava-se muito confuso, hesitante e inseguro, cheio de embaraços a fazer as suas partes gagas. Novelas, o regedor ou António, o perdido eram dois figurantes que nos diálogos e na postura se revelaram com muita desenvoltura tal como o João ferreiro, a disfarçar as sobras dos seus maus humores. No final da opereta, final da história, surgiam duas figuras de anjos na beatitude milagrosa do cenário e um coro de vozes cantou uma Avé-Maria.

Diga-se, agora, que muita gente tem dito que “ O Milagre do Cruzeiro” devia voltar à cena. Acho que não…Os tempos são outros e se mudou o mundo também mudaram as circunstâncias. Nos tempos que correm, tempos confusos e destemperados, o “milagre” não teria cabimento nem aceitação. Deixe-mo-lo no pó dos arquivos. Enquanto isso, venho eu à boqueira do palco do velho Teatro dos Bombeiros da Régua dar vazão aos cenários do sentimentalismo.

dro. Pus-lhe o nome de Margarida, também uma flor campestre. Se em vez duma regaçada de erva, trouxesse com ela uma bilha de agua fresca, mal poisada na ilharga, - Margarida vai a fonte - cuido que viria caminhando com o mesmo desembaraço e a mesma alegria no rosto trigueiro. Que o digam as arrecadas de oiro, os olhos movediços e a boca sorridente. Margarida veste ao calhar de cada dia e vem descalça com a saia arrepanhada a um dos lados, a deixar ver um tudo nada do saiote vermelho e, por debaixo da blusa, avultam-lhe os pomos dos seios. Se saísse apoucada com estes modos de vestir….

Mas não. Claro que, por esse tempo, Margarida devia ter também as suas vaidades e é crível que, em cada ano, viesse as festas do Socorro, com outros luxos, outro brio no vestir. Estou a vê-la pela rua fora, com suas argolinhas de oiro, um certo espairecimento no rosto e na cinta flexível. E, naturalmente mesmo um verdadeiro arraial dentro do peito.

SEMANÁRIO INDEPENDENTE DEFENSOR DO ALTO DOURO

Manuel Braz de Magalhães Janeiro/13

Manuel Braz de Magalhães

Nota: Publicado no Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro

5


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.