Vinha, vinho e vida-Um retrato da Região doDouro dos últimos tempos

Page 1

101

Vinha, vinho e vida Um retrato da Região do Douro dos últimos tempos João Nicolau de Almeida

João Nicolau de Almeida É natural do Porto, com fortes ligações familiares e profissionais quer à região do Douro quer à dos Vinhos Verdes. Diplomou-se em Enologia pela Universidade de Bordeaux. Terminado o curso dedicou-se de imediato à enologia tendo efectuado estudos inovatórios sobre as principais castas durienses, cujos resultados muito contribuíram para a reconversão e modernização da vitivinicultura da Região do Douro. Até à data, sempre ligado à empresa Ramos Pinto, da qual é actualmente Enólogo Director e Administrador Delegado, criou inúmeros vinhos, do Porto e de designação Douro, de qualidade superior, que lhe valeram os mais elevados galardões na imprensa, e em concursos nacionais e internacionais. Ele próprio como enólogo tem recebido as maiores distinções, das quais se salienta a atribuição de Enólogo do Ano a nível Mundial, pela revista Wine & Spirits, em 1998.


102

Sala de provas: “o piano”


nasci no seio de duas famílias estreitamente ligadas a casas exportadoras. Aos 7 anos, decorria o ano de 1956, o meu irmão gémeo e eu tivemos autorização para jantar à mesa com os meus pais e irmãos mais velhos. Todos os dias sem excepção era obrigatório jantar de blazer e gravata. Depois de banho tomado e já de pijama, tínhamos que vestir um casaco e uma gravata com o nó já feito, que nos esganava o pescoço com um elástico sempre muito bem apertado. Estavam assim cumpridos todos os requisitos para sermos aceites à mesa senhorial. Depois de uma refeição cheia das repreensões do costume (tira os cotovelos da mesa, come com a boca fechada, está quieto com as pernas, etc.), tínhamos direito a um cálice de vinho do porto tawny, costume que era um ritual obrigatório lá em casa. Mais tarde, quase diariamente, éramos confrontados à mesa com amostras que o meu pai, Fernando Nicolau de Almeida, trazia da Ferreirinha. O seu grande objectivo era saber o veredicto da nossa mãe. Disfarçadamente, punha as diferentes amostras em cima da mesa, observando pelo canto do olho a reacção dela enquanto todos nós dávamos palpites, a torto e a direito. Outra cena característica destes jantares era o facto de o nosso provador-mestre nunca se apresentar à mesa com uma só garrafa. Havia sempre duas, uma quente, quase em ebulição, e outra fria, com que fazia blends para obter a temperatura ideal. Se fosse jantar fora, a cena repetia-se: levava as suas duas garrafas, não só por causa do problema da temperatura, mas também porque achava que a maior parte dos vinhos que lhe ofereciam eram péssimos. Na realidade, a grande maioria dos vinhos, se não tivesse acidez volátil, tinha uma boa dose de aromas exteriores ao vinho, ligados ao vasilhame, considerados aceitáveis na época. Ao longo do tempo, fomos igualmente apreciando as pinturas humorísticas que o nosso pai fazia sobre o mundo vinícola. Outro contacto com o vinho era feito durante as férias, em que o meu irmão e eu éramos obrigados a ir trabalhar para os armazéns da família, Adolfo Oliveira & Nicolau de Almeida, como castigo por termos tido más notas ou mesmo chumbado nos exames. Às 6 da manhã, o meu irmão e eu apanhávamos o eléctrico n.º 1, cujo cheiro a sardinha e a xaile húmido nos despertava para um novo dia. De seguida, um trolley deixava-nos nas Devezas, perto dos ditos armazéns. O cheiro que reinava lá dentro era magnífico. Uma infinidade de aromas exóticos escapava-se dos balseiros de Porto que o meu pai comprava novos, envelhecia com grande mestria e neles fazia tawnies ultra-exuberantes. Eram vinhos generosos que, segundo a sua definição, tinham de ser bons para si e para os outros, ou seja, tinham que ter uma concentração de sabores e aromas suficiente forte para se poderem balizar com outros menos intensos, conferindo-lhes, assim, qualidade e elegância. Por isso estes vinhos eram cuidadosamente trabalhados para serem vendidos, a granel, às casas exportadoras, a fim de que estas os balizassem para poder fazer as diversas categorias comerciais de Vinho do Porto. Os lotes eram feitos essencialmente com duas medidas: os almudes e as canadas, que eram recipientes de madeira com 25

Um provador na Idade Média Pintura de Fernando Nicolau de Almeida Arquivo pessoal JNA

e 2 litros, respectivamente. Nos armazéns viam-se constantemente trabalhadores com estas vasilhas à cabeça, para se fazer o lote aprovado na sala de provas.

103 vinha, vinho e vida

Entrei muito mais cedo no mundo do Vinho do Porto, do que no mundo do Douro, pois

A PRETO E BRANCO, MEMÓRIAS DO PASSADO


104

O meu pai chegava pouco depois da abertura, ou mesmo antes, para controlar as suas tropas. Vinha sempre de fato e gravata, cabelo com Brylcream e chapéu de feltro. Mal entrava, punha as suas sensibilidades olfactivas alerta, detectando por vezes algum cheiro que não lhe agradava. Aí, o caldo ficava entornado. Pegava então num copo de vinho tawny que nos dava a cheirar, perguntando-nos se aquele cheiro tinha alguma coisa a ver com aquele outro, desagradável, que ele sentia por ali. Lá tínhamos, então, que lavar tudo repetidíssimas vezes, até que a dominante fosse simplesmente cheiro a limpo, cristalino. Ao almoço comíamos, com o resto dos empregados, uma posta de bacalhau assado na brasa, regado com uns copos de vinho. Se não suspeitássemos de que o nosso pai poderia aparecer, dormíamos uma bela sesta debaixo dos balseiros, entre o cheiro húmido da terra e os aromas dos tawnies. Ainda hoje tenho uma forte recordação daqueles vapores dos vinhos velhos, tão raros de se encontrar, hoje em dia. Socialmente, a relação com o sector do Vinho do Porto era igualmente forte, pois os meus pais davam-se muito com a comunidade inglesa. Eram constantes os cocktails e jantares em casa de ingleses ou na Feitoria, sempre bem regados: champagne velho para o aperitivo, Barca Velha para acompanhar a refeição, e o Vintage bebia-se com os queijos sempre à luz de velas, seguido-se o Tawny, que acompanhava os doces. Nós, os mais novos, tínhamos que ir às festas dos amigos ingleses. Muitas delas eram no Oporto Golf Club ou no Oporto Cricket Club, onde só se falava inglês e onde participavamos em todos os seus jogos e desportos: corridas enfiados em sacos de serapilheira ou levando na boca uma colher com uma batata que não se podia deixar cair e, como desporto, o famoso cricket cujas regras nunca consegui perceber. No Natal, a festa na Feitoria inglesa era obrigatória. Não sabíamos falar inglês, mas as conversas eram fluentes. Até hoje, não entendo como é que isso acontecia. Em relação ao Douro, apenas sabia que era um sítio muito longínquo e muito quente. Diziam-me que o vinho nascia da pedra e isso fascinava-me. Mas eis algumas recordações que retive dessa região: Em águas calmas, num barco rabelo, encontra-se o meu pai, de chapéu de feltro, gravata e casaco de linho, a controlar os preparativos do almoço para os seus convidados ingleses, referindo-lhes, ao mesmo tempo, algumas características daquela terra e daquelas gentes. Na ré, o arrais, já com as velas em baixo e os remos no interior do barco, faziam uma pequena fogueira para aquecer os potes em ferro preto, cujos tripés estavam sempre na iminência de virar. Ao lado, numa espécie de chapa, assava o bacalhau, enviando periodicamente uma baforada para os visitantes que, apesar do calor, não tomavam banho. Penso que seria muito complicado tirar toda aquela indumentária: chapéu, casaco, colete, gravata, suspensórios, calças, etc., etc… Refrescavam-se com um Porto branco, aperitivo. Para acompanhar o bacalhau, vinha um tinto, selando-se a refeição com um delicioso Porto. A sorna instalava-se, para alegria do arrais e companheiros, que tiravam os restos do vinho a limpo. Mas eis que era chegada a hora de enfrentar os próximos rápidos. Com emoção, os vapores alcoólicos davam lugar à curiosidade, ao medo, à aventura. «Larga o barco, porra, não está bem! Atira a corda, salta para dentro» – e, lentamente, a barcaça de toneladas de madeira começava a deslizar. Ao avistar as primeiras espumas do estreito, começa a gritaria. «Vira para a direita, mete o remo para dentro, segura a vela!» O barco avança com todo o seu peso no limite do desgoverno, entre as pedras,


vinha, vinho e vida

105

Fernando Nicolau de Almeida atrás e Jaime Olazabal a meio, com clientes no Douro Arquivo pessoal JNA

batendo por baixo, pelos lados, um ruído ensurdecedor; e, como que por milagre, quando abro os olhos, estamos novamente em águas calmas. «Venha daí um copito para aliviar a malta» – dizia o arrais (ouvi dizer que as pipas, cuja capacidade é de 550 litros, eram então de 600 litros para que se pudessem subtrair as aflições do percurso). Havia dois tipos de barcos rabelos: os que levavam mais de 40 pipas eram os “barcos”; e os mais pequenos, que transportavam 20 a 40 pipas, chamavamse “barquinhas” ou “barquinhos”. Outra, das boas recordações que tenho da minha infância, era as idas ao Douro à vindima. Naquela altura (anos 60), apenas nesta época os provadores ficavam no Douro, onde o calor era abrasador, os mosquitos incansáveis, o pó secava a boca e as noites não arrefeciam. Partiam no início da vindima, por estradas de terra batida, e só apareciam 1 ou 2 meses depois, com um cheiro totalmente diferente daquele a que estávamos habituados e cobertos de pó que se entranhava em todas as reentrâncias dos carros, sapatos, bolsos, cabelo, etc., sendo recebidos como verdadeiros heróis. Depois de atravessar a estrada em terra batida, que dava acesso à região através do Alto do Cavalinho, chegávamos à Régua, que parecia perdida no tempo. Não se assistia a qualquer mudança nessa cidade, havia muitos anos. Havia apenas um restaurante, onde os empregados vestiam um smoking, reluzente e ultra-coçado. Era aí que se encontravam os provadores de Gaia


106

Na década de 70 a maioria das casas das aldeias ainda eram construídas em xisto

com os respectivos responsáveis durienses, o que constituía uma cerimónia pitoresca, de V. Exa. para cá, V. Exa. para lá. Depois de algumas conversas nos escritórios da Régua, partíamos então para a visita das quintas: Valado, Quinta do Porto, Eira Velha, Roriz, Bom Retiro (esta a título particular, pois era da família da minha mãe), Ventozelo e outras. Por último, a mítica quinta do Vale do Meão. Saíamos de madrugada e, durante 8 horas, a conversa era sempre a mesma: do Porto até ao Marão, o clima é atlântico, os solos são graníticos e o vinho é verde. Do Marão para lá, o solo é de xisto, o clima é mediterrâneo e os vinhos são maduros. Obrigados a apontar todas as informações num caderno para o efeito, o enjoo era frequente. A meio do caminho, pernoitávamos no único sítio público minimamente decente em todo o Douro, a estalagem de Alijó. Lembro-me de que era uma senhora belga que explorava o estabelecimento. No dia seguinte, pelas 6 horas, ala que se faz tarde, rapazes, temos que chegar depressa ao Meão. Esta quinta era diferente de tudo que já conhecíamos no Douro. Era muito, muito longe, mais quente e mais árida que todas as outras, dando-nos, quando lá chegávamos, uma sensação de conquista. Para lá do Meão, era o infinito!!! O meu irmão e eu ficávamos horas a discutir o que estaria para lá daqueles montes. O fim do mundo?


ções das uvas para poder produzir o Barca Velha, o primeiro vinho de consumo, engarrafado numa estratégia comercial, feito no Douro. Este vinho obteve um enorme sucesso, pois em relação aos vinhos existentes representou um enorme salto qualitativo. Até aí, os vinhos, na sua maior parte, eram rústicos e com muitos defeitos, devido às vasilhas que eram impróprias, a alterações microbiológicas e às fermentações a altas temperaturas, que originavam fermentações secundárias eliminando assim os cheiros próprios dos frutos, queimando os vinhos. Com a fermentação controlada pelo frio (o gelo), o envasilhamento em cascos de carvalho novos e rigorosamente escolhidos, o vinho resultante era, pela primeira vez, um vinho frutado, limpo de cheiros, combinando equilibradamente os aromas de fruto e madeira nova. A madeira era carvalho português e o vinho aí armazenado absorvia uma quantidade considerável de taninos; por isso o meu pai insistia afincadamente que o vinho tinha de ter tempo para amadurecer na garrafa, pelo menos 7 anos, para assim, quando chegasse ao consumidor, se apresentasse mais macio, equilibrado, elegante e sofisticado. Assim a casa Ferreirinha explorou este filão, até que, nos anos 80, quintas como o Infantado, do Cotto e da Pacheca começaram a lançar no país quantidades pequenas de vinho do Douro engarrafado. Eis o Douro que eu conheci enquanto criança e jovem, uma região isolada do resto do país, encantadora por um lado, onde as casas em xisto mal se apercebiam de tal forma estavam integradas na paisagem, mas por outro, devido a esse isolamento, uma região totalmente estagnada, sem estradas minimamente viáveis, sem luz, sem instrução. No final do séc. XIX, apenas alguns curiosos, como Cincinato da Costa, Visconde de Vila Maior, Rebelo Valente, entre outros, tinham estudado cientificamente o Douro, principalmente as suas duas primeiras sub-regiões (Baixo Corgo e Cima Corgo). Sobre o Douro Superior, pouco se sabia. A seguir às duas guerras, estes estudos pararam e a vida agrícola continuava, como se na Idade Média estivéssemos. O interior do país foi votado, definitivamente, ao abandono.

A minha visão do Douro é, evidentemente, uma visão pessoal, que diz respeito ao mun-

RETORNO AO DOURO ESTUDO DE CASTAS

do em que eu próprio vivi. Em primeiro lugar, tirando a época da vindima, tinha muito pouca gente do sector com quem conversar sobre os problemas que se me apresentavam na região, a não ser o meu tio José Rosas. Havia muito poucos jovens e, muito menos, jovens formados em Enologia. Os acessos eram difíceis e as comunicações péssimas. Pode-se dizer que, quando se ia para o Douro, ficava-se completamente isolado nas quintas. Assim, do que eu posso melhor falar é exactamente do mundo das ditas quintas onde trabalhei e da minha própria experiência. A intensidade de trabalhos em que estava envolvido e a variedade de pesquisas a que me tinha dedicado fizeram com que me envolvesse nesse mundo mais restrito. Quando em 1976 comecei a trabalhar na região, acabado de chegar da Universidade de Bordéus onde a ciência da vitivinicultura estava já no patamar da era moderna, foi um panorama semi-medieval que encontrei. Aqui, em Portugal, não existia o curso de Enologia. Cada

107 vinha, vinho e vida

Finalmente, chegava a camioneta proveniente de Matosinhos, com toneladas de gelo encomendado pelo meu pai que, desta forma, controlava as tumultuosas fermenta-


108

casa exportadora tinha o seu provador que apenas ia ao Douro para fazer o vinho durante a época da vindima e, mal terminada esta, retornava ao Porto. A viticultura estava entregue aos poucos Engenheiros Agrónomos e Regentes Agrícolas dos centros de Estudos Vitivinícolas do Douro, que, na maior parte do tempo, tratavam dos problemas administrativos. Havia porém os carolas que, com o pouco dinheiro que tinham, dedicavam-se de corpo e alma ao estudo da região, preocupando-se com a falta de conhecimento sobre porta-enxertos, castas, podas, maturações, etc. Dentre eles, há que destacar o Eng.º Gastão Taborda, um homem de grande simplicidade, com uma dedicação e curiosidade, sobre as vinhas, fora do vulgar. Quando cheguei, convidou-me para ver e analisar os trabalhos que já tinha feito. Entrei numa cave e vi milhares de dados, gráficos, um verdadeiro tesouro. Sensibilizado com o meu espanto e admiração disse-me: “Eu consegui todos estes dados, agora é preciso trabalhá-los! Quanto ao vinho, vocês é que sabem.” Pela mão de outro explorador e estudioso destes assuntos, José Rosas, fui levado por várias vezes à Quinta de St.ª Bárbara, pertença do Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro (CEVD), onde me inteiravam dos problemas que tinham para estudar as castas. Já havia noções sobre as características de algumas castas, sendo a Touriga Nacional a que mais os entusiasmava. No entanto, essa casta era praticamente inexistente devido à sua fraquíssima produtividade. No Bom Retiro foi plantado um talhão com Touriga Nacional, em 1977, que teve de ser arrancada pois não produzia quase nada. Era uma casta completamente degenerada. No estudo de castas, com o Eng.º Taborda colaboravam José Rosas, John Smith, António Serôdio, John Graham, Bruce Guimaraens entre outros, mas todos se queixavam de que não existiam meios mais apurados e modernos para esse estudo. Os vinhos perdiam as suas definições varietais que eram encobertas por cheiros que não do vinho, devido à falta de higiene e tecnologia. Era difícil fazer uma selecção. Os estudos sobre o vinho e sobre a vinha nunca eram feitos em conjunto, nem pela mesma pessoa. Os Srs. de Gaia é que sabiam se os vinhos eram bons ou não e as pessoas que trabalhavam na vinha é que sabiam sobre ela. Estes dois mundos estavam de costas voltadas. Foi neste ambiente de indefinição que José Rosas me incentivou para aprofundar o estudo das castas e suas propriedades, pois o conhecimento adquirido estava perdido. A maior parte das pessoas dessa geração não falava de castas, mas sim de vinhas. Aquela vinha é boa, mas a outra ao lado é fraca. Na mesma vinha coexistia uma grande variedade de castas, inclusive, tintas e brancas. Plantava-se um pouco com o que se tinha à mão. A casta não tinha grande importância. Exemplo disso é a classificação de Moreira da Fonseca, em que o valor varietal representa apenas 8% em 30% do total dos valores qualitativos da vinha. Podia ser que alguém soubesse alguma coisa sobre o assunto, mas o certo é que, no geral, não se dava valor à casta, achando-se, mesmo, que as vinhas deveriam ser plantadas como o eram tradicionalmente, ou seja, com as castas todas misturadas, desconhecendo-se o real potencial de cada uma. Já no séc. XVI, Rui Fernandes dizia: plantam-se muitas castas para, se num ano não derem umas, darão as outras. Ora, cuidar duma vinha anos seguidos e ter o azar de plantar más variedades, que produziam vinhos medíocres, era um risco muito pesado. Quanto ao porta-enxerto, o utilizado era o Rupestris du Lot (“Montícula”), desde a resolução do problema da filoxera. A poda era a Guyot, simples ou dupla, estando as vinhas, nesta altura, na sua maior parte, já aramadas.


vinha, vinho e vida

109

José António Ramos Pinto Rosas. Um duriense responsável por grandes mudanças no Douro Arquivo pessoal JNA

O vinho vendia-se, mas grande parte a granel e a baixo preço. Funcionava o famoso cartão de benefício que dava, e ainda dá, alguma segurança ao viticultor. Entretanto, e no seguimento de cuidadosos estudos de cartas militares, em que nenhum detalhe era esquecido – curvas de nível, exposição e linhas de água –, em 1972, numa caminhada pelos montes (não havia estradas), José Rosas deu de caras, finalmente, com a Quinta de St.ª Maria (hoje Ervamoira). Ficou de imediato apaixonado pelo local, que tinha uma paisagem verdadeiramente bíblica e, devido ao seu pouco declive, tinha as condições ideais para se poder mecanizar. Além disso, devido ao clima seco, as uvas das vinhas a plantar seriam naturalmente sãs. Com o rio Côa ao lado, estavam assim reunidas as condições para produzir com rentabilidade e qualidade. Estava diante da quinta do futuro, diante da quinta dos seus sonhos. Pelo feitor da quinta, o Sr. José Sobral, conseguiu o contacto dos proprietários e, em 1974, em plena revolução dos cravos, Ervamoira é adquirida pela Casa Ramos Pinto. Escolheu o Douro Superior exactamente por ser uma região que não estava ainda “conspurcada”, como ele dizia, para iniciar uma nova era para o Vinho do Douro. Quando lá me levou em 1976, fiquei deslumbrado, emocionado com o cenário que tinha perante os olhos: uma grande extensão de terra árida


110

com algum cereal plantado, que nos transportava a tempos míticos, fora deste mundo. O silêncio era imenso, quase que podíamos ouvi-lo, e a paz era total. Segundo ele, o que se estava a fazer no Douro não tinha sentido e, ainda para mais, sendo uma pessoa que tinha conhecimento do que se fazia por esse mundo fora, José Rosas, membro do O.I.V., Director da Associação das Empresas de Vinho do Porto e consultor do Instituto do Vinho do Porto, sabia muito bem o estado lastimoso em que a região do Douro tinha caído. Com conhecimento do que se fazia no Baixo e Cima Corgo, e sabendo que a pouca evolução havida tinha parado no tempo, o que ele procurava era uma região virgem e ideal para uma viticultura moderna, pensada, aproveitando o conhecimento varietal e científico. No início da década de 70, o Douro reduzia-se fundamentalmente ao chamado Douro vinhateiro, também chamado de Alto Douro, e que compreendia as sub-regiões do Baixo e Cima Corgo. No Douro Superior também havia vinha plantada, não nos esqueçamos das Quintas da D. Antónia, mas não era generalizada como o é hoje em dia, talvez devido ao difícil acesso: pelo rio, para lá do Cachão da Valeira, de trágica memória, não se navegava. A amendoeira e a oliveira ocupavam a maior parte dos terrenos hoje dedicados à viticultura. Devido às grandes dificuldades de comunicação com o resto da região, esta parte do Douro estava mais ligada a Coimbra, e mesmo a Lisboa, do que ao Porto, e o facto é que ainda hoje a cultura do Douro Superior nada tem a ver com a das outras duas sub-regiões. Mas voltando à minha chegada à região, José Rosas, ao ver o meu espanto pelo atraso quase medieval existente, comparado com o que tinha visto em França, lançou-me o isco. E agora, o que é que vamos plantar nesta nova quinta? Quais os portaenxertos, castas? Como se resolve o problema da mecanização? O trabalho era imenso e ambicioso, mas extremamente cativante. Não hesitei, dizendo-lhe: “Mãos à obra, vamos lá tentar resolver este imbróglio”. Em Bordéus tinha tido a oportunidade de estagiar no Château de Saint Caprais, propriedade do professor Jean Ribereau Gayon, onde se faziam estudos de microvinificação sobre vários assuntos para os famosos Tratados de Enologia. Os meus colegas, imagine-se, eram os meus professores Yves Glorie e Christian Séguin, entre outros. Era uma oportunidade única trabalhar com estes homens que tinham um conhecimento que me deixava aterrorizado. Incumbiram-me de fazer algumas análises e de ajudar na adega. Ao fim da tarde, o Prof. Jean Ribéreau Gayon vinha buscar os resultados, que passava para os seus famosos Tratados. Para mim, era como se Deus descesse à Terra, o que me fazia passar toda a noite preocupado com a possibilidade de me ter enganado nalguma coisa. Criei muita amizade com toda a gente, inclusive, com um assistente japonês que espiava tudo, desde a corrente eléctrica à espessura do cimento, e fotografava todos os parafusos. Um dia, escondemos-lhe a máquina fotográfica e aí a coisa ficou séria. Por vezes, no Outono, após um maravilhoso almoço num restaurante típico da campagne, partíamos à procura de cogumelos, os cèpes, como se de caça tratasse. À noite, acompanhados do vinho dos anos anteriores, constituíam um final de dia perfeito. Muito devido a esse estágio, senti-me com coragem de aceitar o desafio de Ervamoira proposto por José Rosas. Desde 1967 que a Estação Vitivinícola tinha montado 4 campos de experimentação de castas e porta-enxertos, de onde, como já referi, o Eng.º Taborda tirava milhares de


vinha, vinho e vida

111

Paulo Costa. Estagiário nos estudos das castas Arquivo pessoal JNA

dados que ficavam por trabalhar. Um desses campos ficava exactamente na Quinta do Bom Retiro (os outros dois ficavam um no Pocinho e o outro no Baixo Corgo). Em meados de Setembro, quando a vindima começou na Quinta do Bom Retiro, fiquei excitadíssimo pois tinha chegado finalmente a altura de vinificar o famoso Vinho do Porto. Estava eu em preparativos, quando José Rosas se voltou para mim e disse: “Ó rapaz, isto de vinificação sabemos nós há muito tempo, o que tu vais fazer é ir para o campo procurar as diferentes variedades e estudá-las”. Fiquei, como se pode imaginar, muito decepcionado e algo zangado, também. Eu, que vinha de Bordéus, não podia ir fazer o vinho, tinha ir para as vinhas durante meses, a fim de estudar as diferentes castas. Que chatice! E que calor! E assim foi. Mas como ou por onde começar? Não tinha um laboratório, que era uma coisa desconhecida no Douro. O que de mais parecido havia era uma espécie de cozinha antiga, na Casa do Douro. Tive então que puxar pela imaginação e, não me lembrando bem onde estava, fui ao Pinhão para ver se encontrava alguns materiais para poder lançar mãos ao trabalho. É evidente que não consegui arranjar absolutamente nada. Que grande parvo me senti! Onde estava eu com a cabeça? A realidade, agora, era outra. O Pinhão era, nesta altura, uma espécie de “pueblo” como a gente os conheceu nos filmes de cowboys, em que o centro urbano era constituído por uma estrada ladeada por casas manhosas. Várias tascas e duas ou


112

Equipamento de microvinificação feito no “faz-tudo” em Celorico de Basto Arquivo pessoal JNA

três lojas onde se vendia de tudo. No meio, a estação de caminho de ferro – famosa devido aos seus conhecidos azulejos –, os bombeiros e uma garagem cujo proprietário disputava comigo os poucos charutos que chegavam no comboio, todas as 3.as feiras. Lá comprei umas taças ou malgas e instalei-me na varanda do Bom Retiro com outros utensílios, como coadores tirados da cozinha, e várias folhas de papel almaço roubadas ao feitor da quinta. Percorri as vinhas tentando decifrar as diferentes variedades de uva. Passei dias a descrever as diferentes características de cada uma, com a ajuda de alguns trabalhadores que me mostravam as particularidades das folhas, dos cachos, do lenho, etc… Todo esse material levava-o para a dita varanda e, com a ajuda do fabuloso tratado de viticultura do Prof. Branas, descrevia, o melhor que podia e sabia, o que trazia do campo. Depois, espremia os cachos para as malgas e tentava descrever a cor, intensidade, aroma, gosto, acidez e adstringência dos sumos extraídos. Assim passei os meses de Agosto, Setembro e Outubro, apenas com uma paragem para ir à festa da Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego, com os caseiros. O meu tio José Rosas chegava, ao fim-de-semana, trazendo sempre consigo uma enorme juventude e entusiasmo que o levavam a passear pelas vinhas, de manhã até à noite, esquecendo-se de que havia uma hora para almoçar, o que me punha tonto e com o estômago colado às costas. Ele conhecia as vinhas, pé por pé, e sofria com qualquer estrago ou doença. Tinha uma enorme vontade de passar todo o seu conhecimento a quem pelo assunto se interessasse. Era na verdade um homem do Douro. O registo desse ano ficou-se pelas diferentes análises visuais dos cachos, folhas e sarmentos, a aprendizagem dos diferentes tipos de sabores provenientes das diferentes


bendo do meu interesse por este estudo, o Eng.º Taborda aconselhou-me a estudar as 10 que achava serem as melhores. Eu dava, nessa altura, apoio técnico na Quinta de Murças (em Covelinhas), e lá encontrei essas 10 castas que eram: Touriga Francesa (hoje designada por Touriga Franca), Touriga Nacional, Barroca, Malvasia Preta, Mourisco Tinto, Tinto Cão, Tinta Amarela, Tinta Roriz, Tinta da Barca e Bastardo. Resolvemos, então, instalar um campo experimental com essas variedades na quinta de Ervamoira. Tínhamos, assim, 4 campos experimentais para a nossa pesquisa mais ou menos a 150m de altitude: um em Murças, dois no Bom Retiro com diferentes altitudes (de 300m) e um em Ervamoira. Como pouco se sabia sobre o ciclo vegetativo – tínhamos apenas alguns dados tirados de uns estudos feitos no final do séc. XIX e princípios do séc. XX –, resolvemos, em 1977, começar a estudar o desenvolvimento das videiras, ou seja, os seus diferentes estados fenológicos nos 4 diferentes campos: choro, rebentação, floração, fecundação, pintor e maturação. Para ligar a vinha ao vinho, era então necessário fazer microvinificações, mas para isso tinha de arranjar material para o efeito: cubas pequenas em inox, um mini esmagador, um frigorífico grande e várias pequenas peças de laboratório. Onde encontrar tudo isto? No Porto nada consegui, e muito menos no Douro. Ouvi então falar dum Sr. “faz tudo” que praticava a sua magia em Celorico de Basto. Esta pista foi-me fornecida pelo Eng.º Galhano, da Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, que já há uns anos andava a estudar as castas com uma tecnologia de microvinificação bastante avançada. Depois de uma viagem atribulada, lá consegui encontrar-me com o tal Sr. “faz-tudo”. Em poucas palavras e com a ajuda de alguns desenhos, expliquei-lhe o que pretendia, o que, para minha alegria, não representou grande dificuldade para o homem. Assim, fez-me uma prensa, um mini-esmagador de rolos para as uvas na vindima e uma pequena prensa hidráulica. Para o pré-refrigeramento das uvas, adquiri um frigorífico industrial. Para as fermentações, foram feitas na Progresso umas 30 mini-cubas em inox que desenhei, onde fermentavam 35 kg de uvas esmagadas. Uma vez fermentadas, eram desencubadas para garrafões de vidro com a capacidade de 10 litros cada. Com enorme entusiasmo, o Sr. José Rosas desfez 3 ou 4 quartos num anexo da casa principal e aí me instalei com todo o mini-material, em Setembro de 77. Mas sozinho não podia fazer tudo. Dentro de uma selecção muito precária, escolhi alguns trabalhadores mais novos, capazes de distinguir as diferentes castas, para semanalmente me ajudarem a colher 250 bagos das 10 diferentes castas (durante o período de maturação) nos 4 campos experimentais. Em 1978 dirigi-me ao Instituto Politécnico de Vila Real, IPVR (que ainda não tinha descido ao Douro) para saber se haveria possibilidade de me arranjarem estagiários de Engenharia Agrícola interessados em ajudar-me nas minhas pesquisas. Lá apareceu o Eng.º Carlos Peixoto, amedrontado, que logo no 1.º dia se queria ir embora, não fosse eu chegar quando já se preparava para partir de mala feita, pois achava que estava no fim do mundo, completamente isolado de tudo e de todos. Começámos a conversar e o facto é que foi ficando até hoje, sendo assim o 1.º aluno do IPVR a entrar na viticultura duriense. Mais tarde, incluímos também na equipa outro enólogo de Vila Real, o Paulo Ruão. Para a execução deste projecto, levantávamo-nos de madrugada e partíamos para Ervamoira na carrinha 4L ou na camioneta Nissan para apanhar 10 vezes 250 bagos.

113 vinha, vinho e vida

castas e o reconhecimento de que havia cerca de 80 castas de uvas tintas e brancas. Sa-


114

Começávamos a tarefa em Ervamoira, regressando então ao Bom Retiro para os espremer e fazer as análises segundo o esquema. 8 Anos De Estudo De 10 Variedades Local

Castas

Ervamoira (Douro Superior) Bom Retiro (Cima Corgo) Murça (Cima Corgo)

Tinta Barca Tinta Amarela Tinta Barroca

Touriga Nacional Touriga Francesa Tinta Roriz Tinto Cão

Malvasia Preta Mourico Tinto Bastardo

Desenvolvimento da vinha — Nº de cachos por cepa — Nº de olhos por cepa deixados na poda

Choro - Rebentação - Floração - Alimpa - Pintor - Maturação - Queda da folha

Análise de 250 bagos durante o pintor Peso - Ácido málico - Ácido tártarico - Acidez - pH - Polifenóis totais

A partir de 15 de Agosto análises semanais 250 bagos — Mosto 250 bagos

Acidez Total Peso / Bago Vol. Líquido Vol. Pelicular

Açúcar pH Ácido Málico

— Nas peliculas de 10 bagos

Potássio Intensidade corante Tonalidade

Polifenóis totais Peso Antocianas

Maturação — Produção/videira — Peso/cacho — Produção/hectare

— Análise do mosto 250 bagos — Análise das películas de 100 bagos — Análise de 30 cangos

Dimensão Peso Polifenóis totais Potássio

— Análise de 250 grainhas

Polifenóis totais Potássio

Microvinificação VINHO DO PORTO (35 Kgs)

MICROVINIFICAÇÃO

VINHO DO DOURO (35 Kgs)

No dia seguinte, era a vez de Murças e depois Bom Retiro, nos dois campos existentes. Foi um trabalho louco, durante anos, que começava às 6 da manhã e não tinha hora para acabar, tal era o entusiasmo. Entretanto, foi para Vila Real, como professor do Instituto Politécnico, um amigo meu do Porto, o Nuno Magalhães que se dedicou à viticultura do Douro e nos veio visitar na nossa mini-adega, achando o trabalho bastante interessante, o que nos motivou muito. Como em Bordéus estudei e aprendi a fazer vinho de mesa, sugeri ao meu Tio fazer 2 tipos de microvinificação, uma para vinho do porto, outra para o de mesa. Concordou comigo e assim se fez: 2 micros para o Vinho do Douro e 2 para Vinho do Porto. Houve algumas reservas em relação ao nosso trabalho, mas o certo é que a curiosidade foi prevalecendo, o que levava vários interessados a visitar-nos para se inteirarem do que andávamos a fazer.


ção anual do American Journal of Enology and Viticulture, que acabou por ser publicado nessa revista. Assim tive a oportunidade de conhecer essa universidade que, no campo da Enologia, estava a léguas de distância, para melhor, do conhecimento que nós, portugueses, tínhamos sobre o assunto. Foi-me proposto um mestrado que, com muita pena, recusei, pois já tinha muito pouco tempo para as nossas pesquisas. Contudo, pude conhecer o Novo Mundo e compará-lo com o nosso, tentando aproveitar o melhor de cada um. Uma das coisas que mais me fascinaram foi os computadores. Cá em Portugal, nessa altura, os computadores eram umas máquinas enormes, muito complexas e com as quais só os muito entendidos sabiam trabalhar, sobretudo no controle da contabilidade. Ali, tinha à minha frente a primeira versão do Apple Macintosh. Em 5 minutos, fazia o cálculo da significância dos meus resultados. Como tinha levado todos os meus dados, aquilo era manteiga. Ao princípio, ainda um pouco desconfiado, fazia na máquina de calcular os cálculos estatísticos, para confirmar os resultados que o computador me dava. Classificação das castas Castas tintas

Castas brancas

Muito Boas Bastardo Donzelinho tinto Mourisco Touriga Francesa Tinta Roriz Tinta Francisca Tinto Cão Touriga Nacional

Donzelinho branco Esgana-Cão Folgosão Gouveio ou Verdelho Malvasia Fina Rabigato Viosinho

Boas Cornifesto Malvasia Rei Mourisco de Semente Periquita Rufete Samarrinho Sousão Tinta Amarela Tinta da Barca Tinta Barroca Tinta Carvalha Touriga Brasileira

Arinto Boal Cercial Códega Malvasia Corada Moscatel Galego

Regulares Alverelhão Avesso Casculho Castelã Coucieira Moreto Tinta Bairrada Tinto Martins

Branco sem Nome Fernão Pires Malvasia Parda Pedernã Praça Touriga Branca

115 vinha, vinho e vida

Em 1980 fui convidado pelo Professor Roger Boulton, da Universidade de Davis, Califórnia, para apresentar o nosso trabalho sobre as castas “Port Wine Cultivars” na conven-


Entusiasmado com todos os resultados que já tínhamos, e preocupado com o atra-

116

so da região, José Rosas achou por bem que apresentássemos uma comunicação sobre esse estudo no Instituto Politécnico de Vila Real, aquando do Simpósio de Vitivinicultura organizado em 1981. Nessa altura, já havia um aconselhamento das castas a plantar, mas que devia ser actualizado, segundo o nosso parecer. Na nossa comunicação, aconselhávamos então a plantação de 5 castas de uvas, tanto para Vinho do Porto como para vinho de mesa, que eram: Touriga Nacional, Touriga Francesa (Touriga Franca), Tinto Cão, Tinta Roriz (Aragonez) e Tinta Barroca, explicando quais as suas virtudes e defeitos; e, para o vinho branco, as castas Viozinho, Rabigato e Arinto.

CASTAS SELECCIONADAS 1976 – 1981 (média de 5 anos)

Touriga Nacional

Kg/pé

Grau Baumé

Nota de prova

0,8

13,3

17

Tinto Cão

1,6

12,8

13,5

Tinta Barroca

2,4

14

15,5

Tinta Roriz

2,3

13,2

14,5

Touriga Francesa

1,9

12

13

Aqui instalou-se uma polémica: tradição versus modernidade, ou seja plantar ao “calhas”, misturando tudo, ou adaptar-se às novas tecnologias. Também nessa altura apresentámos os nossos estudos sobre os porta-enxertos, referindo que, para nós, o utilizado tradicionalmente, o Rupestris du Lot, estava ultrapassado, parecendo-nos melhor e aconselhando o 196-17C e o R110, pois adaptavam-se melhor aos solos pedregosos, ácidos, argilosos e com stress hídrico, pondo em segundo plano o R99, o 1103P e o SO4 em voga nessa altura.

PORTA-ENXERTOS Grau de Adaptação Decrescente Baixo-Corgo

Cima-Corgo

Douro Superior

196-17

196-17

R-110

R-99

R-99

196-17

1103

1103

SO4

R-110

420-A

1103

140-RU

Rup. Lot

R-99

Rup. Lot

SO4

44-53

SO4

420-A

420-A

Rup. Lot


O nosso intuito era contribuir para o desenvolvimento da região. Tinham-se perdido os conhecimentos da viticultura do passado. Quem quisesse aproveitar, que o fizesse. Estas eram as castas que tínhamos estudado, frisando, no entanto, que seria importante e conveniente estudar outras, visto o potencial varietal ser tão rico e único. Passados 3 anos, por grande mérito do Professor Valente de Oliveira, o Banco Mundial resolveu financiar a plantação de 2.500 hectares de vinha no Douro, através do P. D. R. I. T. M. (Plano de Desenvolvimento Regional Integrado de Trás os Montes) e, como não havia outro estudo, foram as 5 castas seleccionadas por nós as escolhidas para se plantar. Em 1982, quando enchemos 5 tonéis com as 5 castas escolhidas separadamente, o Sr. José Rosas mandou comprar foguetes e, pelas 10 horas, lançou emocionado 5 petardos que ecoaram no vale do rio Torto, como que dizendo: aqui e agora virou-se uma página na história da Viticultura duriense e do vinho do Douro. Não demorou muito que nos aparecessem vários caçadores furiosos, pois tínhamos, com o barulho, espantado a caça que eles, desde a madrugada, tão penosamente tinham encurralado. Para os compensar, demos-lhes a provar as ditas 5 variedades. Com estas castas vinificadas separadamente, fizemos um blend para criar um vintage que se pudesse beber enquanto novo, apreciando assim o volume de fruta, mas que, ao mesmo tempo, envelhecesse bem. Na opinião de alguns jornalistas influentes, os vintages tinham de ser, logo à nascença, adstringentes, mesmo algo herbáceos, porque de outra maneira não poderiam envelhecer. Só que, havendo a possibilidade de manusear as castas separadamente, é possível tornar os vinhos mais macios na proporção desejada, extraindo os taninos mais estáveis que se encontram nas películas, e não tanto aqueles que se encontram no engaço, muito mais agressivos e adstringentes, mas menos estáveis. O facto é que esse vintage de 82, passados 28 anos, ainda está cheio de cor e frutos vermelhos, e está para durar. Actualmente, os vintages têm mesmo de ser feitos assim, ou seja, com o objectivo de se poderem beber relativamente novos, pois o comprador já não os guarda para vender 20 anos depois. Se lhe dissermos que tal vinho vai ser muito bom daí a 20 anos, ele logo nos diz para, então, passarmos por lá nessa altura. Foi nesta geração que se intensificou a ligação da vinha com o vinho. Foi também nos finais dos anos 70, que começámos a plantar separadamente as vinhas destinadas ao Vinho do Porto e as destinadas ao vinho do Douro. Escolheram-se diferentes altitudes, exposições, sub-regiões, estudando em cada caso as especificidades de cada local, o solo e microclima onde melhor se adaptariam as diferentes castas para esses dois tipos de vinho. É que, conforme o local de plantação e conforme a casta, se podem obter vinhos mais ou menos maduros, mais ou menos aromáticos, encorpados, frutados, ácidos, adstringentes, etc. Para além destes estudos, tentámos também fazer uma selecção massal, sendo esta orientada pelo Prof. Antero Martins, do Instituto Superior de Agronomia, ISA, e o Prof. Nuno Magalhães, que andavam a estudar como é que se deveria fazer a selecção clonal das castas

117 vinha, vinho e vida

Foi também apresentado um estudo de desenvolvimento da plantação de vinha ao alto, para uma melhor mecanização e maior densidade de plantação.


118


119


120

A vindima vista por Fernando Nicolau de Almeida Arquivo pessoal JNA

do Douro. Nós, a seu pedido, indicámos quais as castas com mais necessidade de serem sujeitas a uma selecção clonal, sendo a Touriga Nacional, sem dúvida, uma delas. Sabendo nós do valor organoléptico dessa casta, plantámos algumas vinhas, mas os clones estavam tão degenerados que a produção era ínfima e tivemos que arrancá-la mais tarde. Assim, desde 77, começámos a pintar com diferentes cores as videiras das 5 castas, em função da classificação. Foi um trabalho gigantesco que muito nos ajudou em futuras plantações. Entretanto, o Professor Antero mudou de ideias em relação ao método de selecção, criando campos experimentais, com delineamento estatístico para poderem ser feitos cálculos fundamentais. Em 1987, aquando da visita dos Masters of Wine ingleses ao Douro, a Associação de Exportadores de Vinho do Porto, AEVP, pediu-nos para apresentar uma síntese dos estudos de castas, tendo escrito José Rosas como introdução: “Em 1967, quando o Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas nos pediu a nossa cooperação e participação no painel de provadores para classificar as diferentes castas do Douro, sentimos a urgente necessidade de efectuar um trabalho com o objectivo de classificar as melhores castas utilizadas na região. O programa efectuado pelo Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas, CNEV, durou até 1973. Os métodos de vinificação, nesta altura, ainda eram muito precários. Os novos métodos de vinificação ainda não tinham aparecido, mas, mesmo assim, conseguiu-se seleccionar 10 castas dentre 19 classificadas oficialmente como “muito boas” e “boas”.

Página anterior Vinha ao alto. Maior densidade de plantação e maior grau de mecanização. Quinta do Cidrô, São João da Pesqueira

Com a cooperação de João Nicolau de Almeida, que estudou na Universidade de Bordeaux, começámos em 1976 a realizar microvinificações de vinhos do Porto e de mesa, com uvas de cada uma das 10 castas, de vinhas com locais e exposições diferentes.


áreas de vinha em talhões monovarietais, como foi o caso da nossa Quinta da Ervamoira”.

Nos anos 70, durante a vindima, a adega da Quinta do Bom Retiro era controlada pelo capataz, o

A HORA DE DIONÍSIO. VINDIMAS

Sr. Fernando Soares, que era, ao mesmo tempo, o responsável pela sala de provas em Vila Nova de Gaia e quem controlava a aguardentação dos mostos e a fermentação. Todos os provadores de Gaia traziam os seus assistentes da sala de provas, visto que no Douro não havia quem ousasse pronunciar-se sobre o Vinho do Porto. Isso era trabalho de Gaia. Os vinhos que não serviam para Vinho do Porto juntavam-se numa cuba e depois vendiam-se a granel para destilação. Para trabalhar nas vindimas vinham dezenas de pessoas, as chamadas rogas, no nosso caso, sobretudo da zona de Rezende, de onde era a cozinheira, a pessoa mais importante no esquema da quinta. Os vindimadores ainda vinham descalços, calças pretas, camisa branca (mais cinzenta que branca), colete e chapéu. Vinham famílias inteiras, desde os avós aos netos, como descreveu tão bem Miguel Torga no seu livro “A Vindima”. As uvas eram transportadas, na maior parte dos casos, em cestos de vime que chegavam a pesar 80 quilos, e eram despejadas inteirinhas nos lagares. Pouco a pouco, foram introduzidos esmagadores de rolos accionados pela força humana. Na década de 70, as Casas Exportadoras começaram a usar esmagadores centrífugos de ferro, accionados a energia eléctrica, que existia apenas nos grandes centros de vinificação. Seguidamente, através de bombas de pistões, esta pasta de uvas violentamente esmagada era conduzida para cubas de cimento chamadas “autovinificadores”, um sistema de maceração accionado pela pressão de gás carbónico. Havia uma válvula que separava a cuba e um tanque por cima desta. Quando a pressão era muita no interior da cuba, a válvula abria e um barulho assustador e típico fazia subir para o tanque de cima o mosto vermelho e intenso. Aqui, as uvas fermentavam, sendo depois feita a desencuba, altura em que se adicionava a aguardente a 77º para parar a fermentação. A aguardente era monopólio do Estado, não havendo, portanto, possibilidade de escolha; em geral, era de fraca qualidade. Em 1973 ela era de tal maneira má, que acabou por se perceber que a sua origem não era vínica, mas sim sintética, o que veio a causar uma série de problemas ao sector, que duraram vários anos a resolver. Só em 1991 é que, por influência da CEE, a compra da aguardente foi liberalizada, sendo-nos assim possível escolher a de melhor qualidade e melhor preço. O vinho, já Porto, era então armazenado, na maioria dos casos, em cubas de betão muito grandes que se encontravam no exterior. Devido à sua forma sensual, chamaram-lhes “Lollobrígidas”. Mas antes do aparecimento dos esmagadores, como disse, as uvas iam para os lagares sem serem esmagadas nem desengaçadas, procedendo-se ao chamado “corte”. Essa era uma operação bastante árdua, pois os pisadores, abraçados uns aos outros, tinham que espremer as uvas com os pés, chegando a demorar 4 horas até conseguir tocar no fundo do lagar. Formavam uma linha e pisavam as uvas movendo-se coordenados pela

Carregando 80 kgs de uvas, de pé descalço Arquivo pessoal JNA

voz militar de um “marcador”, um... dois... um... dois... Era um som muito específico, que deixou de se ouvir com a chegada das máquinas.

121 vinha, vinho e vida

Como resultado deste longo e profundo trabalho, seleccionámos 5 castas para os dois tipos de vinho. Foi nesta base que a Empresa Ramos Pinto foi das primeiras a plantar de raiz, na região do Douro, extensas


122

As famosas cubas “Lollobrigidas”

Durante o dia, havia 2 ou 3 pessoas em cada lagar que não deixavam a manta ficar em contacto com o ar durante muito tempo, imergindo-a. Por vezes, havia alguém suspeito que pisava sempre no mesmo sítio. Era o homem de confiança que pisava o saco de baga de sabugueiro escondido no fundo do lagar para dar mais cor ao vinho. Se não houvesse pessoal para ir para o lagar, então deitava-se a manta abaixo, com a ajuda de uns paus que tinham na ponta umas saliências em madeira e que se chamavam “macacos”, por os homens andarem com eles para cima e para baixo, para mexer o vinho. À noite, entravam nos lagares as famílias que estavam instaladas nos dormitórios chamados “cardenhos”, para fazer “ a meia noite”. Nos lagares tinha de haver 2 pessoas por pipa (750 kg). Durante 2 horas, fazia-se o corte de que já falei e, depois de duas horas, cantava-se a “cantiga da liberdade”. Começavam então as danças e os jogos, sempre acompanhados por um tocador, normalmente de acordeão, que tocava a música em função daquilo que queria que se fizesse no mosto. E lá começavam os namoricos, mais uma vez tão bem descritos por Torga. Nos anos quentes, a acidez do mosto era normalmente corrigida com ácido tartárico (200 gr/pipa) antes deste começar a fermentar. Nestes anos, os mostos, sem controlo de temperatura, pareciam vulcões activos e todos diziam que o vinho ia ter “manite”, um ataque de bactérias aos ácidos tartárico e málico e aos açúcares, embora ninguém soubesse o que isso era. Lembro-me quando em Gaia se começou a falar na manite e que esta era causada por bactérias, “os bastonetes”, só visíveis ao microscópio. Toda a gente brincava com isso, dizendo que o vinho tinha bastonetes, elefantes e outros animais invisíveis. No meu laboratório de Gaia tinha um


os ditos bastonetes. É claro que me deu cabo da vista, ao cabo de alguns anos. O facto é que os vinhos se estragavam com estas fermentações a temperaturas altíssimas, e lá iam milhões de litros para destilar. Nessa altura, grande parte dos vinhos era feita nos lagares dos lavradores, aos quais se compravam as uvas. Era, portanto, necessário visitá-los antes da vindima, para ver o estado dos tonéis que iam receber o vinho da próxima novidade. Éramos recebidos pelos proprietários com grande alegria e, fosse a que horas fosse, era posta uma mesa como se de um casamento se tratasse. Era vinho, chouriços, pão, queijos, bolos, amêndoas, azeitonas, que não se podia, de maneira nenhuma, recusar: «Ora então, Sr. Almeidinha, tem de provar da nossa pinga». Descíamos à cave, e lá tirava da pipa o vinho tratado que já o seu avô fazia e, segundo ele, não havia melhor nas redondezas. Copo puxa copo, conversa puxa conversa, e o dia tinha de acabar por ali, pois o álcool ingerido impedia a próxima visita. Nesta visita davam-se os conselhos necessários para a limpeza dos tonéis e tratamento das uvas da próxima vindima. Desde o mês de Março, altura em que o vinho começava a ir para Gaia, que esses tonéis se encontravam fechados e bem vedados com massa consistente e jornal. Durante este tempo, ficavam cheios com 20 litros de vinho e aguardente, para que ficassem esterilizados. Para cheirar os tonéis, a técnica era dar duas boas pancadas na parte superior da portinhola com uma maçaneta, tirando-a de seguida para fora. Vinha então o “provador” que batia com a mão, com força, no tonel e metia a cabeça dentro para o poder cheirar. Normalmente, o vinho e aguardente deixados não só conservam o estado físico do tonel, como imprimem na madeira um aroma de limpeza cristalina. Uma vez, estando eu com a cabeça dentro dum tonel para o cheirar, veio um cão que me mordeu a perna, o que me fez dar com a cabeça na portinhola e, sem perceber muito bem o que se passava, fiquei estatelado lá dentro. «Deixe lá, ó Sr. Almeidinha, o cão não faz mal!!!» Se, por acaso, o tonel não cheirasse bem, teria de ser lavado e, se tal não resultasse 100%, teria de ser raspado e tratado com cal viva. Era também na altura destas visitas aos lavradores que se decidia a data das vindimas. Nas festas de Baco Arquivo pessoal JNA

No final dos anos 70, os exportadores e alguns produtores começaram a ter os seus próprios centros de vinificação. Progressivamente, os lavradores passaram a entregar-lhes

123 vinha, vinho e vida

microscópio lindíssimo que fui buscar ao museu e tinha apenas um óculo para observar


124

À esquerda Quando não se pisava, emergia-se a manta com os “macacos”

as suas uvas, em vez de as vinificarem nos seus lagares. As uvas eram transportadas em

À direita No final a dança...

vavam entre 750 a 1.200 quilos de uvas. Quem as fabricava eram as empresas Hipólito e F. A.

Arquivo pessoal JNA

S. O inox não existia. Como o acesso a muitas vinhas não era possível aos camiões, as uvas

camiões carregados de dornas de ferro pintadas por dentro com tinta “antimosto” e que le-

eram colhidas e postas em sacos de serapilheira, primeiro, e depois de plástico, que os burros e machos carregavam, encosta acima, até à estrada. Se a camioneta passasse nesse dia para recolher as uvas, muito bem. Se não, elas ficavam ali, ao sol, a fermentar. Quando chegavam as camionetas de recolha, enchiam-se então as dornas com as uvas que eram pisadas por um “especialista”, para caberem mais. É preciso ver que elas eram pagas pelo peso e também pelo grau, e não pela sua qualidade. Por isso, havia alguns que punham um pouco de açúcar no fundo das dornas, para subir o grau. Era só um bocadinho!... Quando chovia, todo este esquema se complicava, havendo sempre algum aflito que ficava a meio da encosta e era preciso socorrer. Além disso, em alguns anos, com a chuva, o podre instalava-se. As uvas, tão cuidadas durante um ano, ficavam feitas em papa. Claro que não era sempre assim, mas, quando tal acontecia, conseguia-se muitas vezes bons vinhos, o que demonstra a qualidade daquelas uvas, sendo sempre os melhores aqueles que eram feitos em lagar. Durante a vindima, apesar do enorme esforço e trabalho requeridos, a alegria e a excitação eram imensas, pois estava-se a celebrar a recolha do trabalho árduo desenvolvido durante todo o ano. No nosso caso, parte das uvas chegavam de Ervamoira em camiões enormes, carregados com oito dornas, atingindo a temperatura, dentro destas máquinas “pré-históricas”, facilmente os 40 graus. Eram necessárias inúmeras manobras complicadas para conseguirem entrar em portões concebidos para carros de bois. As crianças esperavam-os, ansiosamente, no estradão de acesso à Quinta, fazendo o percurso até à adega, radiantes, perigosamente pendurados nos taipais das camionetas, por eles apelidadas de “dron drons”, devido ao barulho sincopado que faziam as velhas Bedfords.


vinha, vinho e vida

125

DRON... DRON... As famosas Bedford

Era o momento em que as gentes se reencontravam, transformando a labuta diária numa festa “Baquiana”. Sempre vivi esta época festiva (desde pequeno) e, quando comecei a trabalhar, continuei de bom grado a celebrá-la. Claro que, para os meus filhos e filhos dos trabalhadores da quinta, a festa era ainda maior. Desciam e subiam as encostas dentro dos grandes cestos de vime, transportados pelos vindimadores, ao som de um acordeão e de algumas cantigas que provocavam as mulheres. O último dia era o auge, e o pessoal de Gaia subia todo à Quinta para uma grande almoçarada. À tarde, aconteciam os jogos olímpicos. Para além do lançamento do peso e do jogo da malha, as corridas eram o mais importante e que mais concorrência tinha. Havia a corrida para os pequenitos que, bem alinhados, ao ouvirem o tiro de partida, assustados, partiam em todas as direcções menos a da meta. Era complicado alinhá-los novamente. Depois vinham os craques que disputavam seriamente um percurso de 5 kms. Finalmente, os veteranos e veteranas que partiam a grande velocidade, desistindo metade deles ao fim de 100 metros, sem fôlego, vermelhos e com o coração a mil. À noite procedia-se à entrega de prémios e abria-se o grande baile com um conjunto local que tocava as gostosas músicas populares. Este ambiente da vindima, com o tempo, foi desaparecendo devido à substituição do Homem pela máquina, devido aos custos de exploração e devido, sobretudo, à cada vez maior exigência qualitativa do mercado. Actualmente, a vindima é um processo muito mais stressante, mais competitivo, mas, ao mesmo tempo, muito mais profissional, com resultados também eles muito mais eficazes. O mundo mudou e o Douro não podia ficar para trás.


126

Lembro-me das minhas idas ao Douro nos anos 60, com o meu Pai, em que me ficou

A ENTRADA DO TRACTOR

gravado na memória o contínuo chiar das rodas dos carros de bois subindo e descendo aquelas montanhas, para o transporte de pipas e outras mercadorias. Era como se aqueles montes chorassem, gritassem pelo esforço praticado por aquelas bandas. Nas vinhas propriamente ditas, e até meados dos anos 70, era o esforço humano com a ajuda do famoso macho, um cruzamento de cavalo com burro, que trabalhavam os talhões de vinha suportados pelos muros de xisto. Em 1974, o CEVD instalou nas Quintas do Bom Retiro e Roeda, ambas situadas no Pinhão, e na Quinta de Vargelas, já mais a montante, um ensaio de plantação da vinha em patamares estreitos com 2 ou mais bardos, para que o tractor “enjambeur” pudesse entrar na vinha. Foi um desastre! O tractor entrou, mas para sair foi um problema, pois ficava emaranhado nos arames. A seguir, experimentou-se a introdução do tractor vinhateiro para trabalhar em patamares de dois bardos, mas mais largos. Também não satisfez totalmente, mas constituiu, no entanto, um grande avanço; era a 1.ª vez que um tractor vinhateiro entrava nas vinhas. No entanto, surgiram outros problemas na vinha em patamares, como, por exemplo, a erosão e a invasão das infestantes nos taludes, a baixa densidade de plantação (passou-se de 6.000 plantas por hectare, na vinha tradicional, para 3.000). Em 1976, tive a sorte de examinar todos estes problemas com José Rosas e o Professor Branas, da Escola Superior de Agronomia de Montpellier, ESAM, em pessoa. Em 1977, quando comecei a dar apoio técnico na Quinta de Murças, reparei, com curiosidade, numa vinha já com muita idade, e plantada segundo o maior declive. O feitor da quinta, o minhoto Sr. José – pai do Eng.º Paulo Costa, a trabalhar actualmente na ADVID, Associação para o Desenvolvimento da Vitivinicultura do Douro – disse-me que achava este sistema bom, pois usando um cabrestante ligado à tomada de forças do tractor, como era feito para puxar, encosta acima, os pinheiros no Minho, podia igualmente ser utilizado também naquelas vinhas, para puxar o arado. O que se tinha passado era que essa tal vinha tinha sido plantada, nos anos 50, por um amigo suíço do proprietário da quinta, Manoel Pinto de Azevedo, que tinha uma

Em cima Corridas nas festas da vindima Arquivo pessoal JNA

fábrica de material para ser usado com o cabrestante, para trabalhos nas vinhas ao alto, da Suíça e da Alemanha. Esta vinha foi seguida pelo Sr. José Costa.


nalmente, segundo as curvas de nível, tendo as duas a mesma densidade de plantação. Os resultados das maturações da vinha plantada ao alto eram melhores do que os da outra, o que me fez concluir que, pelo menos em relação à qualidade, ela não se alterava; antes podia, até, ser melhor nessa vinha. Como o novo gerente, António Quintas, queria investir na quinta com novas plantações em patamares, tentei explicar-lhe as vantagens da vinha ao alto. Com a concordância deste, fui à Alemanha para estudar melhor estas transformações. Havia também um ensaio feito, em finais da década de 60 e início de 70, pelos serviços oficiais na Quinta de St.ª Bárbara (CEVD). O problema é que o dito ensaio tinha sido abandonado, pois, segundo afirmavam, as máquinas tinham avariado, ficando os dados que já tinham conseguido por revelar. Livro com indicações para “plantação de vinha ao alto” Arquivo pessoal JNA

Era, pois, imprescindível visitar as vinhas plantadas ao alto na Alemanha. Encontrei-me, na Universidade de Geisenheim, na região do Reno, com o professor Kieffer que me apresentou o Sr. Bernard Breurer que estava a fazer uma vinha ao alto sendo por isso o homem certo para me esclarecer muitos aspectos sobre esse modo de plantação. Ele há muito tempo que plantava desta forma, passando-me a sua enorme experiência neste tipo de plantação e sua mecanização. Na posse de todos estes elementos, em 1978 sugeri ao meu Tio fazer no Bom Retiro uma experiência de vinha ao alto, sugestão essa muito bem aceite por ele. A mão-deobra estava a desaparecer do Douro, devido à emigração para outros países e para os centros urbanos. Os jovens já não queriam trabalhar na vinha. Por isso, era muito importante estudar uma forma de mecanizar os trabalhos nas vinhas. Nesta experiência feita no Bom Retiro em 1978, numa vinha que tinha uma inclinação de 40-50%, repetimos os espaçamentos e densidades que havia naquela outra vinha da antiga quinta de Murças, mas cortámos a vinha, a cada 60 metros, com uma estrada inclinada para dentro e longitudinalmente, evitando assim a erosão provocada pelas águas das chuvas. A ansiedade era enorme. Acordava a meio da noite, aterrorizado com a possibilidade de a nova vinha estar toda no rio, devido ao mau escoamento das águas das chuvas. Mas uma vez percebendo por onde a água escorria naturalmente, bastava ajudá-la, conduzindo-a para os vales através de regos ou meias manilhas. Assim, o problema da erosão reduziu-se significativamente, e prova disso é o facto de a vinha ainda se encontrar lá, com níveis de erosão mínimos, bem inferiores aos das vinhas em patamares. Entretanto, comprámos o dito material da fábrica suíça (cabrestantes) e adaptámolo àquele solo difícil. Funcionava mas, para tal, era necessária uma organização humana da vindima, de alto nível, que só os alemães ou os suíços tinham. O problema da mecanização não era de tão fácil resolução. Contudo, anos depois, outras experiências de vinha ao alto foram implantadas na Quinta do Seixo e noutras. Neste mesmo ano, estávamos a plantar em Ervamoira, tendo eu sugerido ao meu Tio plantar ao alto, fazendo um espaçamento, entre os bardos, não de 1 metro, como tinha sido feito até ali, mas de 2,10m, para o tractor de rasto poder passar. Visto que as inclinações não ultrapassavam os 45%, o resultado foi óptimo e a quinta foi toda plantada neste novo sistema, sendo a densidade de plantação cerca de 4.500 plantas por hectare, contra

127 vinha, vinho e vida

Fiquei imediatamente interessado pelo assunto e comparei as maturações dessa vinha com as de uma vinha idêntica, situada mesmo ao lado, mas plantada tradicio-


3.000 nos patamares do Bom Retiro. Com o sucesso obtido em 1978, outros viticultores

128

atentos à modernização começaram a plantar, espalhando-se este sistema de plantação por toda a região, como o Eng.º Jorge Ferreira na Quinta do Seixo. Ao fim de 30 anos, os problemas de erosão, tanto físicos como dos elementos nutritivos, são mínimos. Surgiu então outro problema: os serviços administrativos eram contra este novo tipo de plantação, eram contra a vinha ao alto, chegando ao ponto de não nos quererem deixar plantar. Foi necessário pedir ajuda aos responsáveis da Comissão de Planeamento da Região Norte, para virem arbitrar toda esta questão. Entretanto, em Vila Real, destacava-se um outro professor que também estava interessado pelo Douro e pelo problema da mecanização das vinhas, tendo sido a sua tese de doutoramento exactamente sobre esse assunto, Fernando Bianchi de Aguiar. Perante as nossas explicações e provas no terreno (o tractor de lagartas subia e descia por entre os bardos pulverizando as vinhas com toda a facilidade) e apoiados pelo Prof. Fernando Bianchi, tal intransigência por parte dos serviços acabou. Tradições de longos anos não são fáceis de quebrar. Assim, achamos que até 40-45% de inclinação máxima, para a subida do tractor de rasto, a plantação ao alto é muito favorável, a todos os níveis: mecanização, erosão e qualidade. Hoje em dia, já se encontraram novos sistemas implantados com máquinas sofisticadas, como, por exemplo, a plantação em patamares de um só bardo, diminuindo assim a altura do talude, permitindo uma densidade de plantação de 2.500 a 3.000 plantas por hectare. Existem também os micropatamares para os socalcos pós-filoxéricos. Na altura, tudo era feito a olho e com a ajuda, apenas, de um inclinómetro. Hoje usam-se aparelhos com raios laser, para a execução dos patamares. Devido ao sucesso da vinha ao alto, pedi aos professores Nuno Magalhães e Bianchi de Aguiar que me ajudassem a escrever um pequeno manual sobre como plantar ao alto, que pusemos à venda numa livraria na rua Ferreirinha. Os custos de exploração deste novo sistema de plantação, na quinta de Ervamoira, foram 1/3 daqueles que tínhamos no Bom Retiro, nas vinhas plantadas em patamares de 2 bardos e, por isso, toda a quinta de Ervamoira foi assim plantada, até hoje. Aumentou-se a densidade de plantação produzindo, assim, menos por pé, mas mais por hectare, com um nível de mecanização muito satisfatório. É evidente que, a partir de 45% de inclinação, tudo se torna mais arriscado, quer de uma forma, quer de outra. Hoje, estou plenamente convencido de que este sistema é o que resolve melhor os problemas de erosão provocada pelas chuvas intensas.

Em Ervamoira (Douro Superior), deparámos com outro problema: uma fraca pluvio-

O STRESS HÍDRICO

sidade: cerca de 300-400 mm/ano. Em 1979 começámos, “secretamente”, a implantar a rega por aspersão, que contribuiu para uma melhor qualidade das uvas, mas era muito pouco rentável, por o processo da rega ser caro e pouco eficaz, já que uma grande parte da água se perdia, devido à evapotranspiração. Fomos verificando, ao longo dos anos, que na Quinta de Murças (Cima Corgo) os problemas originados pela seca também aí existiam, embora com menor intensidade. Então, em 1983, instalou-se, numa parcela da vinha, rega por aspersão.


da com 5 porta-enxertos diferentes: Rupestris du Lot R-99, 1103P, R110, 196-17. Os resultados deste estudo foram bastante interessantes, fazendo, hoje em dia, parte do espólio da ADVID. Mais tarde, em 1993, com a colaboração de Fernando Alves, Paulo Costa, Ana Rosas e Carlos Peixoto, fizemos um novo estudo de rega na Quinta de Ervamoira, cujos resultados, mais uma vez, nos confirmaram a necessidade de compensar o stress hídrico das vinhas por uma rega devidamente controlada, para obter uma maior qualidade. As conclusões deste trabalho também se encontram na ADVID. Esta instalação foi, mais tarde, em 1990, substituída pelo sistema de gota-a-gota. Hoje, a quinta está toda com esse sistema, o que nos permite um controlo muito superior em termos de qualidade de maturação e, por conseguinte, das uvas. A rega era muito criticada no Douro, pois achava-se que ela só servia para aumentar a quantidade, não se pondo, sequer, em equação que ela poderia melhorar a qualidade. Depois de muitas discussões académicas sobre o assunto, em 1999, numa reunião da Comissão Interprofissional da Região Delimitada do Douro, CIRDD, e com o entendimento do Dr. Vilhena, seu presidente, aprovou-se não se pôr de parte a rega, mas sim continuar com os estudos para melhorar a qualidade das uvas nos anos secos e nas regiões mais quentes e áridas. Estava aberta a era moderna. Pode-se dizer que a Quinta de Ervamoira foi uma das quintas pioneiras da era moderna no Douro, não só pela instalação da rega para controlo da maturação, mas também pela opção total de plantação ao alto, com espaçamento suficiente para a passagem do tractor vinhateiro de rastos, pela utilização do novo porta-enxertos 196-17 e outros, pela utilização de plantas já enxertadas com apenas 5 castas tintas e 3 brancas, em separado, conduzidas em poda de cordão, para produzir Vinho do Porto e Vinho Doc Douro.

Em meados dos anos 70, a seguir à vindima, os vinhos já eram transportados para Gaia em

E EM GAIA?

camiões com cisternas em inox (até 1964, o transporte era fluvial – barcos rabelos – e por comboio). Aqui ficavam em balseiros que, segundo me diziam, eram feitos de menel (diziase que Menel era uma região da Polónia de onde vinha a madeira para fazer as pipas e balseiros, antes de aparecer o carvalho francês). Em Janeiro, era então chegado o momento de fazer os ajustes de aguardente aos lotes de Vinho do Porto, e a escolha dos vinhos para esta ou aquela categoria de Vinho do Porto. Tudo isto era controlado no coração da empresa, “a sala de provas”, lugar onde o conhecimento e experiência “do blend” de gerações antigas passavam para os mais novos e futuros provadores. O “blend” ou baliza, não se aprende a fazer de um momento para o outro. Comparo-o com a música: cada nota corresponde a um lote no armazém e o provador tem de trabalhá-lhos como se de teclas dum piano se tratasse. É um trabalho que não tem fim, pois tenta-se sempre encontrar a perfeição, o equilíbrio, a harmonia, tornar o vinho espirituoso. Cabe a cada provador impregnar a sua personalidade, fazer a sua própria música. Verifiquei isto ao aperceber-me do carácter do meu Pai nos vinhos que fazia. Eram, assim como ele, vinhos rigorosos, energéticos, robustos e decididos, contrastando, por exemplo, com os vinhos do meu tio José Rosas, que revelavam uma personalidade poética, discreta, vinhos mais redondos e elegantes.

129 vinha, vinho e vida

Com a ajuda do Eng.º Nuno Cancella de Abreu (ADVID), decidimos proceder a um ensaio de rega num campo de estudo instalado nesta Quinta, com base na Tinta Roriz enxerta-


130


131


132

Vintage envelhecendo em garrafeira

José Rosas ensinou-me que o Vinho do Porto era o vinho mais humanizado que ele conhecia. Eu também acho isso, por variadíssimas razões: - pelo trabalho de partir a rocha xistosa, cerca de 1m a 1,5m de profundidade, para assim obter terra que sirva de berço às novas videiras; - pelo trabalho contínuo da construção de muros e outras formas difíceis e complexas, para encanteirar as vinhas; - pelo custoso trabalho anual em terrenos extremamente inclinados, onde o clima tem 9 meses de Inverno e 3 de inferno; - pela cultura, única, de envelhecimento permanente dos vinhos em armazém; - finalmente, pelas balizas que são um verdadeiro casamento entre o vinho e o homem. Quando comecei a trabalhar, confuso com tantas categorias, perguntei ao meu Pai como é que ele definia exactamente um vintage e um tawny, ao que me respondeu: “o Vintage é um vinho e o Tawny é um Vinho do Porto”. Realmente assim é, pois o Vintage é de uma só colheita, representa o que a Natureza ofereceu ao Homem num determinado ano, e é engarrafado ao fim de dois anos, tal como o vinho de consumo, o que lhe permite conservar os frutos frescos e vermelhos das uvas. Com os Tawnies, a história é outra. É o homem que os faz, que os cria, que os segue ao longo da sua vida como se de seus filhos se tratasse, pre-

Página anterior Garrafeira onde envelhecem os Vintages em garrafa. Casa Ramos Pinto, Vila Nova de Gaia

vendo se eles precisam de apanhar um pouco de ar ou não, se precisam de uma companhia mais jovem adicionando alguns litros de vinho novo, ou se, pelo contrário, precisam de uma companhia mais velha para lhes indicar o caminho. Por vezes, ficam doentes. Sofrem


vinha, vinho e vida

133

Armazém de envelhecimento do Vinho do Porto “Tawny”

de claustrofobia em ambientes muito fechados, preferindo arejar em pipas que comunicam com o ar, através dos poros da madeira. Os vinhos mais novos casam-se sem dificuldade, podendo ter uma vida equilibrada e harmoniosa. Os mais velhos são mais difíceis de casar. Precisam de mais tempo de vida em conjunto, para finalmente darem o nó. Mas também há divórcios entre os vinhos. Vinhos que viveram bem em conjunto, mas que não evoluíram em harmonia. Os Tawnies são produtos vivos de quem temos de tomar conta, de educar para serem bem formados, bem parecidos, gostosos e com carácter. Os franceses têm uma palavra que traduz exactamente este processo, que é a “élevage” do vinho. Com tipos tão diferentes dentro do Vinho do Porto, naturalmente, estes dão origem a várias categorias: dentro da família dos rubies, temos os rubys, ruby reserva, LBV, vintage, single quinta vintage. Dentro dos tawnies, encontramos o tawny, o tawny reserva, o 10 anos, o 20 anos, o 30 anos, mais de 40, colheitas!!! Coitado do consumidor! Para escolher um vinho na prateleira, vê-se aflito. Durante cerca de dez anos, participei num grupo formado para diminuir as categorias de Vinho do Porto. No fim deste período, chegou-se à conclusão de que isso não seria possível, pois a característica do Vinho do Porto é exactamente essa, a diversidade. Hoje em dia, o número de categorias foi ainda aumentado com os rosés e outros. Todas estas categorias correspondem à riqueza dos diferentes microclimas que a região do Douro nos oferece. O “terroir” do Douro é a essência do Douro, a diversidade em equilíbrio.


134

Não contentes, ainda fomos reinventar, na região, os vinhos secos, tal como se faziam no tempo em que deram nome e fama a este vinho. A verdade é que o vinho do Douro, desde o tempo dos Romanos, é um vinho seco. Depois de fermentado, seguia pelo rio nos famosos barcos rabelos, até ao Porto e, mais tarde, Gaia. Aqui era trabalhado, loteado e, antes de se exportar para a Flandres, Rússia e depois Inglaterra, eram-lhe adicionados um almude de aguardente vínica, para aguentar a viagem sem se alterar. Em 1820, devido às elevadas temperaturas que se fizeram sentir, as uvas ficaram extremamente maduras, tal como recentemente, em 2003, tão carregadas de açúcar, que, quando fermentaram, as leveduras, encarregues de transformar o açúcar das uvas em álcool, asfixiaram-se com o próprio álcool por elas produzido, morrendo, ficando o vinho com uma graduação já bastante alta (18 a 19 graus) e ainda com açúcar natural por fermentar. Estava descoberto o Vinho do Porto, tal como ele é hoje! A Natureza tinha mostrado a possibilidade de fazer um vinho fortificado. O sucesso em todos os mercados foi de tal ordem que, nos anos seguintes, instalou-se a polémica se se devia fazer artificialmente o que a Natureza nos tinha desvendado, abafando a fermentação do mosto com aguardente, ou se se devia continuar a fazer o que desde sempre se fizera. Um dos grandes defensores desta última teoria foi o famoso Barão de Forrester. Esta discussão durou até finais do séc. XIX, acabando por vencer a prática de abafar o mosto, a meio da fermentação. No fundo, foi o mesmo que aconteceu com outros vinhos especiais, como o Champagne, o Xerês, etc., em que a Natureza nos mostrou outra via de vinificação. O Vinho do Porto a granel era, assim, exportado em oitavos (67 L), quartos (135 L), meias (267 L), cartolas (500 L), pipas (550 L), cascos (+ de 550 L), e bombos (600 a 650 L). Vendia-se fundamentalmente para Inglaterra e para o Brasil, nos finais do século. Era quase todo para exportação, até aos tempos modernos em que, finalmente, descobrimos que ele se podia e devia, consumir na terra Pátria. Talvez tenha sido um erro do sector nunca ter dado a conhecer convenientemente este néctar aos Portugueses. Mesmo hoje em dia, existe uma cultura muito rudimentar sobre o Vinho do Porto no nosso país. A maioria do Vinho do Porto era então exportada a granel. Em 1975, passou a ser obrigatório exportar o Vintage em garrafas e só no início dos anos 80. é que a casa Ferreira, seguida da Calem, passaram a exportar todo o seu vinho engarrafado. As outras casas continuavam a exportar basicamente a granel, com algumas excepções. Em 1995, por um despacho do IVP, a exportação a granel ficou suspensa, tornando obrigatória, durante um determinado período, a venda do Vinho do Porto engarrafado. Com o passar do tempo, toda a exportação passou a optar pela venda em garrafas, por decisão geral do Sector. Para promover o desenvolvimento dos mercados, depois do 25 de Abril de 1974 – visto que, até aí, Salazar proibia qualquer tipo de associação –, foi fundada a Confraria do Vinho do Porto, em 1982, por Fernando Nicolau de Almeida, Robin Reid, José Ramos Pinto Rosas, Michael Symington e Manuel Poças Pintão, tendo hoje, como chancelários, 34 Chefes de Estado. Em 1990, foi fundada uma outra confraria, a do Vinho do Douro, Confraria dos Enófilos da Região Demarcada do Douro.


teriais, começaram a fazer-se, um pouco por todo o Douro, adegas mais modernas, de acordo com os conhecimentos já obtidos. Em 1986, a Ramos Pinto comprou a Quinta dos Bons Ares, em Sebadelhe (Douro Superior), onde foi feito, de raiz, um dos primeiros centros de vinificação modernos no Douro (1989), com uma estrutura em tijoleira lavável, para melhor poder controlar a higiene, e aí se instalaram as primeiras cubas em inox com controlo de temperatura integrado, e prensas horizontais de enchimento automático. Em relação ao envelhecimento dos vinhos, começou-se a estudar os diferentes tipos de madeira de carvalho que melhor se poderiam adaptar para tal. Em 1991, criou-se um outro centro de vinificação na Quinta do Bom Retiro, tendo sido, neste caso, o chão pintado com uma tinta dura epóxi que, para além de evidenciar qualquer tipo de sujidade, era de fácil limpeza, apresentando um aspecto mais moderno. Outra novidade foi a introdução, no “pipeline” condutor das massas vínicas para as cubas de fermentação, de um sistema de refrigeração de choque, que baixa em 6 graus a temperatura das uvas que por ele passam. Na adega instalou-se um sistema de movimentação do ar, para controlar o aquecimento e arrefecimento do ambiente, e para a expulsão de gases. As cubas de cimento armado abertas existentes foram pintadas com tinta epóxi e nelas se introduziram placas em inox condutoras de água, para aquecer ou refrigerar os mostos. Montaram-se mais cubas em inox, desta vez de muito maior qualidade, sobretudo nas soldaduras. Para além de todas estas modernizações, atendeu-se também à parte estética interior, em vários pormenores, e à estética exterior, tentando não ferir a paisagem, coisa rara na região. Havia uma ou outra adega que já tinha melhoramentos, como cubas ou aparelhos mais modernos, mas sempre dentro de um contexto das velhas adegas. A pouco e pouco, as cubas de ferro e cimento, os autovinificadores, os desengaçadores-esmagadores em ferro foram dando lugar ao inox. Quanto às prensas, as mais conhecidas, as hidráulicas a que também se chamava “titãs”, e prensas contínuas, foram substituídas pelas horizontais, de enchimento automático ou não, tipo Dienne, Bucher-Vaslin, etc… Na minha juventude, ainda vi a funcionar algumas prensas medievais. Tinham um grande tronco de madeira encaixado no fundo da parede de pedra do lagar, possuindo um furo na outra extremidade onde rodava um sem-fim também ele de madeira, com uma bola enorme de granito na ponta inferior. Essa bola ao ser levantada pelo movimento rotativo do sem-fim, fazia pressão em todo o corpo do tronco que atravessava o lagar pisando uma série de tábuas que cobriam a manta. Assim começava a escorrer o mosto prensado. Actualmente, voltou-se a considerar melhores as cubas em cimento, do que as de inox, para o estágio dos vinhos, assim como já se chegou à conclusão de que as prensas verticais, as “titãs”, são as melhores, havendo, hoje em dia, prensas com o mesmo princípio, mas com muito mais qualidade, mais eficazes e modernas. Todos estes melhoramentos, em meados dos anos 80 e início de 90, tiveram, como resultado, vinhos naturalmente diferentes. Os vinhos do Porto tornaram-se muito mais frutados e elegantes, com muito menos cheiros estranhos ao próprio vinho.

135 vinha, vinho e vida

A partir de meados dos anos 80, com o aparecimento de novas tecnologias e novos ma-

NOVAS ADEGAS E TECNOLOGIA


136

Os confrades “meteram uma cunha” ao Bispo para que este interferisse junto do Infante D. Henrique e poderem usar o mesmo chapéu Pintura de Fermando Nicolau de Almeida Arquivo pessoal JNA

Casas exportadoras, como a Ferreirinha e Real Vinícola, e alguns produtores em menor escala, como a Quinta do Coto, Quinta da Pacheca e Quinta do Infantado e outros, produziam já os seus vinhos Douro, sendo o Barca Velha o grande vinho de destaque nessa altura. Em 1990, a Ramos Pinto, baseando-se nos seus estudos e experiência desde 1976, lançou-se numa estratégia de produção própria para vinhos de mesa Douro, dando assim um forte impulso ao que hoje chamamos New Douro. Por norma, sempre se fez, na Ramos Pinto e noutras casas exportadoras, algumas pipas de vinho de mesa para consumo próprio e mesmo para exportação a granel. Na nossa casa, ficaram famosos o Rebentão 64, o Tinto Cão 81 e o Reserva Bom Retiro 85. e outros. Mas um verdadeiro início de produção, com uma estratégia comercial, começa definitivamente em 1990. O primeiro vinho DOC deste novo Douro a ser lançado no mercado nacional e de exportação foi o Duas Quintas tinto 1990 (60000 garrafas), sendo de imediato um sucesso, fora e dentro do país. Em 1992, lançámos o Duas Quintas branco, que é feito com as castas Viozinho, Rabigato e Arinto, escolhidas de um lote de 9 castas brancas plantadas em campos experimentais nas quintas de Ervamoira e Bons Ares. Teve igualmente uma grande aceitação por parte do público. Era uma novidade, pois até aí não havia na região, salvo raras excepções, vinhos brancos que nessa altura se pudessem chamar de modernos, ou seja, limpos, aromáticos, frutados, não oxidados, sem quilos de ácido tartárico a que já se estava habituado, etc… Mas porquê um vinho feito com as uvas provenientes de duas quintas? Foi o exemplo do meu pai e do seu vinho Barca Velha, que tanto sucesso fez e continua a fazer, e que era feito com uvas da quinta do Meão (100 metros) e uvas de vinhas da região da Meda, a 600 metros de altitude, que nos inspiraram a fazer um vinho com uvas plantadas a baixa altitude (Quinta de Ervamoira) e uvas de zonas com altitudes superiores (Quinta dos Bons Ares). Apesar da polémica gerada quanto à possibilidade, ou não, de se poderem fazer, na mesma região, Vinho do Porto e do Douro, a partir de 1995, 1997 e 2000, a grande maioria


nuiu, bem pelo contrário, aumentou a qualidade dos vinhos do Porto (veja-se a quantidade de vintages de grande qualidade, desde essa altura até agora), o que confirma a possibilidade – e vantagem, até – de coabitação entre o Vinho do Porto e o vinho DOC do Douro. O Vinho do Porto deverá ter, e terá sempre o seu lugar como um vinho excepcional. Um vinho carregado de fruto, único na sua capacidade de envelhecimento, estando classificado entre os melhores do mundo tradicional, como o Bordéus e o Borgonha. Só temos que aprender a vendê-lo melhor e sobretudo mudar as condições em que é feito para que os jovens possam adquirí-lo sem recorrer a avultadas quantias. Sem jovens o Porto morre. Há que levar isto muito a sério se queremos perpetuar este vinho. O facto é que, a partir de meados dos anos 90, os vinhos DOC Douro começaram a ganhar prémios internacionais, o que lhes deu um reconhecimento, a nível mundial, que se mantém até hoje em dia.

Em 2001, resultado de um fantástico trabalho coordenado pelo Prof. Bianchi de Aguiar,

DOURO, PATRIMÓNIO MUNDIAL

o Vale do Douro, desde a Régua até ao Pocinho, foi igualmente declarado património mundial pela UNESCO, o que veio dificultar as investidas de gente que queria, à força, estragar esta beleza natural, dádiva dos Deuses e do trabalho dos nossos antepassados, que deve ser preservada e respeitada por todos nós. No entanto, já muito se estragou: logo na entrada da região, deparamos com 3 pontes e uma barragem! Imagine-se que se queria fazer uma via rápida ao longo de todo o rio Douro!! Agora está-se a rasgar todo o Douro Superior com uma bela auto-estrada, em vez de se aproveitar uma estrada já existente, melhorando-a e alargando-a. Será que os nossos descendentes nos perdoarão? No início da década de 90, começámos a ouvir rumores de que uma barragem poderia ser construída no rio Côa. Não queríamos acreditar: inundar 900 hectares de uma das melhores áreas para produzir vinho no Douro! A região demarcada mais antiga do mundo! Como era possível? Nem uma voz, ou um parecer do Ministério da Agricultura, ou dos organismos locais. Apenas o I. V. P. e a A. E. V. P. fizeram uma declaração de que tal construção constituiria um prejuízo nacional. Vários engenheiros, inclusive do próprio Governo, nos confessaram que o projecto da barragem não teria a rentabilidade suficiente para ser levado adiante. Seria, pois, mais um elefante branco, mas agora na região demarcada mais antiga do mundo. Em Lisboa, como de costume, num gabinete qualquer, olhou-se para o mapa de Portugal e decidiu-se que aquele é que era o sítio ideal para construir a dita barragem. O Vinho do Porto, um dos produtos mais emblemáticos do país e com grande peso na exportação geral, não interessava. Mas porque é que ainda não sabemos dar valor ao que de melhor temos? Porque não valorizar o interior? Isto era o que, na altura, o Sr. José Rosas e eu próprio pensávamos. Seria possível acontecer uma coisa destas em Bordéus? Com certeza que não. Lá, sabem dar valor ao que têm de bom, sabem valorizar e sobretudo rentabilizar o seu passado, a sua história. O Sr. José Rosas, entrevistado na televisão, não aguentou a pressão, mostrando nas suas palavras choradas o sofrimento e o desespero por ter de enfrentar os poderosos sem nada poder fazer. Será que o Marquês de Pombal admitiria tal afronta? José Rosas, desiludido, afastou-se desta tormenta, adoecendo de vergonha. Fiquei com esta batata quente na mão e lutava como

137 vinha, vinho e vida

das casas exportadoras e Quintas faz hoje os seus Douros e Portos, facto que não dimi-


138

Grupo de técnicos que deram o aval para a declaração do Côa como Património Mundial Arquivo pessoal JNA

podia, tendo sido chamado, por várias vezes, à televisão para debater o assunto. Numa entrevista em que estavam os engenheiros do outro lado da mesa, esgrimindo argumentos pró e contra a barragem, cheguei à conclusão – e disse-o ao vivo – de que só um milagre poderia salvar aqueles 900 hectares na região demarcada mais antiga do mundo! O facto é que, passados 15 dias, no ano de 1995, no telejornal da noite, a locutora anunciou como 1.ª notícia: o milagre para o Côa aconteceu. Foram encontradas gravuras paleolíticas numa larga extensão no Vale do Côa. Estalou de imediato uma grande discussão em torno deste tema, primeiro a nível nacional e, depois, a nível internacional. Os engenheiros do betão, claro que afirmavam a falta de interesse das ditas gravuras, questionando, inclusivé, a sua datação, contrastando com a opinião científica mundial dos peritos sobre a matéria. Intelectuais portugueses das mais altas esferas demonstravam, perante o mundo, a sua ignorância. E não faltavam exemplos concretos que pudessem servir-nos de exemplo para o caminho a tomar. Aqui bem perto, na região da Dordogne, em França, o vinho e produtos locais convivem harmoniosamente com gravuras do paleolítico. O turismo é enorme, de alto nível, e o factor económico funciona em pleno. 17 Kms de gravuras, a céu aberto, que modificaram a concepção pré-histórica da nossa vida humana. Como santos de casa não fazem milagres, foi o forte movimento nacional e internacional que levou o nosso Governo a suspender a construção da barragem. O mundo da cultura e da vitivinicultura suspirou fundo. O Homem tinha vencido. Em 1997, o Vale do Côa foi considerado património mundial pela UNESCO, para vergonha dos seus cépticos. O mundo da especialidade, pessoas da terra e de todo o país levantaram-se, não deixando que a nossa ignorância prevalecesse. O património “natural bíblico”, segundo as palavras do director geral da UNESCO, foi salvo, assim como a quinta-piloto do Douro moderno, a Quinta de Ervamoira. Infelizmente, José Rosas não teve a alegria de assistir a este desfecho. Passada toda esta polémica, várias empresas e viticultores apostaram no Douro Superior, o que fez com que aparecessem vinhos diferentes daqueles que se fazem no


vinha, vinho e vida

139

Visita do Rei Juan Carlos de Espanha, do Presidente da República Jorge Sampaio e do Director Geral da UNESCO Frederico Mayor às gravuras do Côa Arquivo pessoal JNA

Baixo e Cima Corgo. Actualmente, as empresas mais significativas têm uma vinha nesta região. Os vinhos que aí se fazem são vinhos modernos, com uma concentração forte em frutos e taninos, vinhos macios com um final de boca muito saboroso e cheios de frescura. Envelhecem bem e são ideais para fazer blends com os vinhos das outras subregiões, dando-lhes volume, corpo e estrutura, completando, assim, a paleta de cores, sabores e aromas da Região Demarcada do Douro. São as 3 sub-regiões que constituem um “terroir” único no mundo. Estas duas classificações, dadas pela UNESCO, impediram, na realidade, o desmoronamento deste património cultural e vitivinícola, permitindo actualmente ao turismo mundial interessar-se e apreciar a beleza, a história e o vinho da região demarcada mais antiga do mundo. É evidente que o progresso nos traz conforto, mas não pode ser a qualquer preço!

Um dos factores-base que, em conjunto com particulares e alguns organismos oficiais,

ADVID

contribuiu para o desenvolvimento do Douro foi, sem dúvida, a ADVID, uma associação sem fins lucrativos, fundada em 1982, para o desenvolvimento da viticultura do Douro, com o voluntariado de José Rosas, Jorge Ferreira, José Gaspar e António Filipe. À falta de organismos oficiais capazes de dar continuidade e sistematizar todos os estudos e experiências levadas a cabo por particulares, só uma associação com esta tipologia poderia dar seguimento a todo um movimento ávido de evolução e mudança. As entidades que logo se aperceberam da importância desta iniciativa foram: - A. A. Ferreira, S. A. - Adriano Ramos Pinto Vinhos, S. A. - Barros, Almeida & C.ª, Vinhos, S. A. - Caves da Raposeira, L.da - Cockburn Smithes & C.ª, L.da


140

- Gran Cruz Porto - Quinta dos Murças, L.da - Quinta do Noval, Vinhos, S. A. - Sandeman & C.ª, S. A. - Taylor, Fladgate & Yeatman, Vinhos, S. A. - Poças Júnior Infelizmente, nenhuma instituição do Douro se apercebeu, ou quis aperceber-se, da intenção altamente positiva e construtiva desta associação, para o desenvolvimento da região. Assim, debaixo da batuta de José Rosas, os técnicos destas casas encontraram um local próprio para discutir as suas ideias e experiências. Estou certo de que os Engenheiros José Maria Soares Franco, Nuno Cancella de Abreu, Miguel Côrte-Real, Paulo Carneiro, Carlos Peixoto, entre outros, se lembram bem do entusiasmo que constituiu a nossa primeira exposição feita em conjunto, e dos estudos que fizemos, para que a região do Douro saísse do marasmo terceiro-mundista em que se encontrava. Foi um período que, seguramente, nenhum de nós jamais poderá esquecer, extremamente produtivo e enriquecedor. Em cinco anos, fez-se mais do que nos 50 anos passados, e em 1986 foi publicado um resumo das actividades exercidas. A ADVID passou a ser reconhecida, tanto local, como nacional e internacionalmente. Centenas de trabalhos de qualidade já foram publicados e divulgados, de tal forma, que hoje em dia, quando se pretende qualquer informação de fundo sobre a viticultura do Douro, recorre-se naturalmente à ADVID. O Douro ganhou prestígio com esta instituição. A UTAD, através, nomeadamente, dos professores Bianchi de Aguiar, Nuno Magalhães e seus discípulos, desceu ao Douro pela mão da ADVID. Tenho que referir os directores Nuno Cancella de Abreu, Fernando Bianchi e Fernando Alves, pela grande prestação dada a esta associação e pelo trabalho desenvolvido que levou a uma diminuição de custos baseada num aumento de qualidade e mais-valias do produto. Só através de uma imagem séria e de qualidade é que podemos permitir-nos aumentar os nossos preços e rentabilizar as nossas empresas. Devido às convulsões económicas dos anos 90/91, saíram da ADVID: Taylor, Fladgate & Yeatman, Vinhos, S. A., Gran Cruz Porto, Quinta de Murças, tendo aderido, nos anos seguintes, a Forrester & C.ª S. A. e a Warre & C.ª, S. A. e, mais tarde, a Churchill, a Niepoort e a Rozès. Até ao presente momento, a composição dos associados efectivos tem sofrido ajustamentos resultantes da reorganização empresarial do sector. Com o aparecimento, no Douro, de novas entidades produtor-engarrafador, as Quintas, e a chegada de uma nova geração de enólogos vindos de diversas universidades, tornou-se imperativo que a ADVID criasse uma nova forma de receber e unir, em volta do mesmo interesse científico, toda esta nova realidade. Deste modo, em 1997, houve uma revisão dos estatutos, de modo a alargar o âmbito da actuação a um número mais alargado de viticultores e outras entidades interessadas pelo desenvolvimento da Região. A partir desta data, foi também a Associação reconhecida para a promoção de Protecção Integrada da Vinha e, posteriormente, em 2003, para Produção Integrada. Alargou-se a forma de actuação, com a entrada de novos técnicos para o quadro de colaboradores.


vinha, vinho e vida

141

Siza Vieira desenhando o Douro Arquivo pessoal JNA

Em simultâneo, a actividade da ADVID que, no seu início, estava centrada nos aspectos mais relacionados com a instalação da vinha, nomeadamente estudando formas de sistematização do terreno, mecanização, formas de condução, castas, porta-enxertos e selecção clonal, passou a incluir no seu plano de actividades a protecção da vinha, a biodiversidade, as relações hídricas da videira e a zonagem, apenas para destacar alguns temas. O alargamento da actividade exerceu-se, também, no domínio da formação técnica, organização, redução de custos e práticas mais ecológicas. Fernando Alves, como Director Executivo, continuou este trabalho estabelecendo uma ponte entre a UTAD, Escola Superior de Biotecnologia, Universidade do Porto e outras instituições científicas e os viticultores. Mais recentemente, em 2007, no seguimento da avaliação interna encetada, a Direcção iniciou um processo de reflexão com vista à reformulação da actividade da associação, das suas competências e da sua adaptabilidade aos desafios e necessidades antecipados para o sector na década seguinte. Para o efeito, apresentou a ADVID uma candidatura ao Ministério da Economia e Inovação, através do POFC (Programa Operacional Factores de Competitividade), para obter o reconhecimento do «cluster» como Estratégia de Eficiência Colectiva, na tipologia «Outros clusters», obtendo o seu reconhecimento em 2009, como o “ Cluster” dos Vinhos do Douro. O Cluster, promovido pela ADVID, tem como missão “dinamizar e consolidar o sector de produção de vinho na Região do Douro, através de uma estratégia tecnológica sustentável aplicada a todos os seus intervenientes”, cuja visão aponta para “um sector ambiental, económica e socialmente sustentável, animado por uma cultura de cooperação em rede para a diminuição de ameaças e optimização de oportunidades”. A estratégia proposta está alavancada num conjunto de acções, com carácter mobilizador e potencialmente geradores de externalidades positivas para os actores do cluster e da fileira vitivinícola em geral: A ADVID tem como actuais associados efectivos: Adriano Ramos Pinto – Vinhos, S.A. – C.ª Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro – Churchill Graham, L.da – Niepoort (Vinhos), S.A. – Quinta do Noval – Vinhos, S.A. – Rozès, S. A. – Sogevinus Fine Wines, S. A. – Sogrape Vinhos, S. A. – W. & J. Graham, C.ª – Quinta do Portal.


142

Museu do Douro — guardados os segredos de uma história de drama e alegria

Outro factor que fez despertar e desenvolver a região foi o facto de as Quintas, a partir

ABERTURA DA REGIÃO

de 1986, poderem engarrafar e exportar directamente do Douro para os diferentes mercados, fazendo com que os proprietários passassem a interessar-se mais pelo seu património, visitando-as frequentemente e criando condições para que os seus descendentes lá pudessem trabalhar e viver. Os sucessos obtidos nos vinhos tintos e brancos DOC nos anos 90, além de motivar quem lá trabalhava, permitiram que as quintas pudessem, rapidamente, rentabilizar melhor os seus investimentos. Os acessos à região contribuíram, e muito, para o seu desenvolvimento e modernização. Em 1976, demorava-se cerca de 4 horas do Porto ao Pinhão, se tudo corresse bem, e mais 3 para chegar a Foz Côa. As estradas eram autênticas montanhas russas, devido às curvas e ao piso (a estrada de Amarante para o Cavalinho era em terra batida). Hoje em dia, faz-se numa hora e meia Porto-Pinhão e, com mais 1 hora, chegamos a Foz Côa. Pode-se ir do Porto ao Douro e vir no mesmo dia, coisa impensável há 15 anos atrás. Também se está a ampliar a A4 com o troço Amarante-Bragança. Mais uma melhoria para o acesso ao Douro, sem o estragar. Devido a estes novos acessos e à instalação de toda uma quantidade de infra-estruturas que até aí não existiam, como hotéis, turismos rurais, de habitação, etc., a região agitou-se. Mário Ferreira introduziu o turismo fluvial no Douro, com grandes barcos-


gião. Artistas de renome mundial também começam a mostrar interesse por esta região. Em 2008 criou-se o Museu do Douro, na Régua, e em 2010 inaugura-se o Museu de Foz Côa. Restaurantes e bares abriram portas, onde os enólogos se encontram para discutir, até ao infinito, o Vinho do Porto. Também as novas adegas já são concebidas de forma a receber os turistas com salas de recepção para provas, vendas, etc… Todos estes melhoramentos permitiram que uma nova geração se instalasse no Douro, a partir do final dos anos 90. No fundo, fez-se aquilo que, em Bordéus e noutras regiões vitícolas francesas, se fez a seguir à 2.ª Guerra Mundial. Os proprietários dos châteaux, que viviam nas grandes cidades, deslocaram-se para o campo, tornando os seus vinhos reconhecidos e famosos. No Douro, este movimento começou pelo Baixo Corgo, passou ao Cima Corgo e, finalmente, chegou a Foz Côa. Na época de 70-90, só havia meia dúzia de técnicos formados em Enologia (homens), no Douro. Estes, ou eram licenciados em Agricultura Geral, tirando depois uma especialização em Enologia, em Bordéus, ou iam directamente para essa universidade. A escola de Bordéus, iniciada por Pasteur com o estudo das fermentações, fazia parte do ensino de Medicina. Nos anos 70, quando frequentei este Curso de Enologia, o 1.º ano era ainda dado em conjunto com os alunos de Medicina. No pós-guerra, foi a dupla Jean Riberau Gayon, grande cientista da universidade, e Emile Peynaud, seu ajudante, também cientista, mas mais ligado à produção de vinho e sobretudo ao desenvolvimento do estudo da degustação e vinificação modernas, que, em conjunto, criaram a Catedral do ensino da feitura dos vinhos de “terroir”. Foram eles que descobriram e resolveram os problemas de estabilização dos vinhos, tanto nos tintos como nos brancos, através do estudo das fermentações malolácticas. Mais tarde, nos anos 50 e 60, o Novo Mundo começou, também, a especializar-se nos vinhos, criando cursos de Enologia na Austrália, nos Estados Unidos da América e na África do Sul, países que rapidamente nos ultrapassaram em termos científicos. Existe, porém, uma diferença significativa na forma de ensinar, entre as escolas europeias e as do Novo Mundo. As primeiras estão vocacionadas para os vinhos de “terroir”, ou seja, para o desenvolvimento de vinhos específicos que transmitam as especificidades do local em que são feitos, desde o solo ao clima, às vinhas, castas, à maneira como se faz o vinho, tendo sempre em conta a tradição. A personalidade de quem faz o vinho é tida muito em conta. No caso das universidades do Novo Mundo, a ciência tem mais importância, devido à pouca tradição na feitura de vinhos. Ambas as vertentes são importantes e o ideal será ter sempre as duas em conta. Em 1984, foi criado em Vila Real, na UTAD, o 1.º curso de Enologia (2 anos), tendo sido transformado em licenciatura em 1989, o que veio aumentar significativamente o número de jovens enólogos que contribuíram para a melhoria do Sector. Com o novo “savoir-faire”, em 2000, inúmeros vinhos DOC começaram a aparecer, e associações de produtores, como os Douro Boys ou os Lavradores da Feitoria, foram criadas, tendo como objectivo a divulgação e venda dos seus vinhos. As discussões entre os

143 vinha, vinho e vida

hotéis, permitindo, assim, a milhares de estrangeiros e portugueses apreciarem esta re-


144

Museu do Côa

jovens enólogos são acesas, quanto aos métodos a aplicar na feitura destes vinhos. Há os mais tradicionais, que dão mais importância ao “terroir”, e os mais “mundo novo”, que vinificam as castas em separado, exaltando as qualidades de cada uma, em rótulos com o seu nome. Põe-se, de novo, em causa a mistura das castas no terreno. Será melhor, ou pior? Mas, pergunto-me eu, porque não? Agora, que já sabemos o valor de cada uma, porque não plantar modernamente vinhas com as castas conhecidas, evitando problemas antigos? Penso que devemos respeitar o “terroir”, a tradição que temos, adaptando-os à nossa era moderna. Os vinhos de apenas uma casta podem ser, sem dúvida alguma bons, mas a complexidade do blend, dada pelo homem e pelo “terroir”, enaltece e diferencia, ainda mais, esse mesmo vinho, distinguindo-o de todos os outros vinhos que se fazem por esse mundo fora. Como podemos nós competir com regiões, planas e mecanizadas, que não têm os problemas e as dificuldades que nós temos? Parece-me que a única maneira é valorizar o que temos, os nossos microclimas, castas, a nossa cultura e tradição, fazendo vinhos que sejam apreciados e considerados como únicos no mundo, criando um mercado de alta qualidade que nos permita continuar a trabalhar nesta região, também ela única no mundo. Por isso, as vinhas têm de ser todas de boa qualidade, para produzirem os dois tipos de vinho. De momento existe uma geração nova, na idade dos 30 anos que já apresenta novas ideias, em que a terra e o “terroir” ganham cada vez mais força e o espírito Vigneron se acentua.


te a dita discussão: fazem-se vinhos de “terroir”, ou vinhos mais modernos, vinhos a pedido? Na minha opinião, só podemos fazer vinhos de “terroir”; mas, tendo em conta que temos de os vender num mercado globalizado, eles têm de ser igualmente modernos e cada vez melhores, procurando, ao mesmo tempo, mercados de qualidade, de nicho. Os vinhos do Porto foram, durante séculos, muitíssimo bons, mas adaptados a outras diferentes exigências. Permitiam-se alguns cheiros e gostos exteriores ao próprio vinho, originados em fermentações secundárias e mal controladas: cheiros a madeira mal lavada, por exemplo. Mas a qualidade do vinho sempre superou esta realidade. O IVP tinha a tarefa de controlar estes defeitos, para garantir as exportações. Actualmente, visto a qualidade ser obrigatória para a venda, a função do IVP é, mais, controlar as várias categorias de Vinho do Porto, sem descuidar, evidentemente, quaisquer defeitos que possam aparecer. De há dez anos para cá, a pouco e pouco, as mulheres foram, igualmente, entrando no mundo do vinho, o que tornou a vida dos jovens bem mais colorida. Em 1998, o Restaurante «Wine Bar Divino» teve a ideia de promover jantares para enólogos, a fim de que estes pudessem trocar ideias e mostrar os seus vinhos. Nos primeiros dois anos, apareciam apenas homens. Depois, começaram a aparecer uma ou outra enóloga. Agora, não sei se há tantos enólogos como enólogas. Toda esta juventude deu vida ao Douro, pondo em prática ideias novas trazidas das viagens e estágios feitos em adegas e países diferentes. Antes da década de noventa, eram poucos os que tinham possibilidade de estudar no estrangeiro e viajar por esse mundo fora. Hoje, felizmente, as viagens tornaram-se muito mais acessíveis e o contacto dos nossos enólogos com o que de melhor se faz em relação ao vinho tornou-se normal, facto que compensa a lacuna em Enologia, a nível nacional. A UTAD, situada num dos centros vitivinícolas nacionais mais importantes, com as regiões de Vinho Verde, Douro, Dão e Bairrada à volta, apesar de ter dado um forte impulso à região com a formação de novos enólogos, não tem tido a capacidade de prestar um serviço de vanguarda. Os estudos pioneiros e científicos são raros (exceptuando Nuno Magalhães) e não satisfazem as necessidades e interesse dos enólogos, pois têm pouco a ver com a realidade dos problemas do dia-a-dia. Quem se tem interessado bastante pelo sector tem sido o ISA e a Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica (ESBUC), tendo, inclusive, criado um curso de grande qualidade de pós-graduação. Outra novidade na região foi o aparecimento dos jornalistas de vinhos, que vêm de todo o mundo e também de Portugal. Nos anos 90, as revistas nacionais começaram a escrever artigos em que se classificavam os vinhos. O exemplo, entre outros, de José Salvador, Luís Lopes e João Paulo Martins, da Revista dos Vinhos, a Revista dos Escanções, e outros, foram, ao longo do tempo, contribuindo para o melhoramento dos vinhos em geral. Fizeram com que os apreciadores, não do ramo, pudessem melhor usufruir este mundo do vinho com mais conhecimento e proximidade, aumentando, assim, a competição no sector. Mais tarde, apareceram a Blue Wine, Wine Passion, Néctar, a nível nacional, com jornalistas tais como Rui Falcão, Luis Antunes, Aníbal Coutinho, Maria João Almeida, João

145 vinha, vinho e vida

Até há bem pouco tempo, a produção é que ditava as leis de venda. Agora, a distribuição tornou-se indispensável, sem a qual não se poderá singrar. Aqui, entra novamen-


146

Afonso, etc. O que ajudou, também, a despertar o interesse dos jornalistas das revistas internacionalmente reconhecidas, como o Wine Avocat, Wine Spectator, Decanter, Wine Enthusiast, Wine & Spirits e muitas outras. O Vinho do Porto, primeiro, e mais recentemente o DOC Douro entraram no número dos vinhos reconhecidos internacionalmente. A exportação começa a dar os seus passos, a nível do DOC Douro, e os enólogos são chamados a visitar estes mercados, para aí mostrarem os seus vinhos. Uma carga suplementar que o enólogo não adivinhava ser necessária. Os compradores querem saber o que se passa, em directo, ou seja, da boca do enólogo. As casas exportadoras têm mais facilidade em arranjar mercados, usando os canais que já tinham para o Vinho do Porto. As quintas aproveitam estes caminhos e vão criando mercados de nicho. Os vinhos do Douro estão em ebulição, mas esta crise mundial actual, desencadeada em 2009, veio marcar um pouco o passo. Sem dúvida que os vinhos melhoraram, e muito, e cada vez há mais variedades. Explora-se o “terroir”, a vinha, o local, para que o seu seja um vinho único. Também a cultura biológica apareceu na região. Quer-se o sabor da terra, dos frutos que ela dá, o sabor puro e natural, sem a intervenção dos clássicos químicos. Mais recentemente, a biodinâmica dá os seus passos. O que se pretende é harmonizar o espaço, o solo e a cultura, de uma forma equilibrada. Com o aquecimento global, o clima sofreu transformações. Nos últimos dez anos, têm-se notado temperaturas, pluviosidades e secas mais radicais, transtornando, assim, os ciclos vegetativos. Procuraram-se soluções para obviar o problema da seca e elevadas temperaturas com a rega gota a gota, não só para dar água à planta, mas também para que haja uma produção regular de folhagem para sombrear as uvas. Outras técnicas começam também a desenvolver-se e terão de ser estudadas mais a fundo pelas novas gerações, como, por exemplo, a colocação de redes ao nível das uvas, nas vinhas viradas a sul (as que mais horas de sol apanham); diferentes conduções das vinhas, de forma a que as uvas tenham mais sombra; pulverizações com soluções de cactos e outras plantas resistentes ao sol; regas controladas, de maneira a que a planta tenha a água estritamente necessária; trabalhos no solo, de maneira a melhor reter a água; escolha criteriosa das uvas mais ou menos resistentes ao calor e à seca, consoante o local escolhido para a sua plantação; blends das uvas dos baixos com as dos altos, exposições norte e exposições sul, etc… Países europeus mais a norte, como a França, e também países do Novo Mundo estão de olho nas várias castas portuguesas, principalmente na Touriga Nacional (vedeta incontestável), para resolver e melhorar os seus próprios problemas climáticos. Há um trabalho infindável, de pesquisa, a fazer. Há quem diga que todas estas mudanças climáticas afectarão muito o Douro, mas eu penso que não, pelo menos nos tempos mais próximos. Irá mudar, irá ficar diferente, com certeza; mas não estragará, pelo contrário, cada vez mais irá melhorar a qualidade dos seus vinhos. E no clima não mandamos. Contudo, temos uma vantagem em relação às regiões planas: a grande diversidade de microclimas originados pelas diferentes altitudes, exposições, sub-regiões e castas permite-nos uma maior defesa, em função do ano. Nos anos muito quentes, as uvas são melhores nos sítios mais altos, mais frescos; nos anos não tão quentes, serão


vinha, vinho e vida

147

Várias adegas modernas, integradas na paisagem, estão a ser construídas para melhoria dos vinhos, mas também para receber o enoturismo. Quinta de Nápoles (em cima), Quinta da Romaneira (à esquerda) e Quinta do Vallado (à direita)


148

HCCP (Análise e controlo nos pontos críticos de produção da vinha) visto por Fernando Nicolau de Almeida Arquivo pessoal JNA

as uvas dos locais mais baixos que estarão em vantagem. Além disso, pode-se também jogar com as castas, as sub-regiões, a altura de colher as uvas, e ainda recorrer a vinificações sofisticadas em cubas de todas as formas e tamanhos. Constroem-se, hoje em dia, adegas desenhadas por grandes arquitectos, que recebem um só enchimento de cubas durante a vindima. São, na verdade, condições totalmente diferentes das que existiam há uns 15 anos atrás, em que as uvas entravam para grandes cubas sem possibilidade de escolha entre o trigo e o joio, e sem possibilidade de se fazerem fermentações rigorosas, pois teriam de se desencubar à chegada de novo carregamento de uvas. Além disso, estas adegas são dirigidas por enólogos e enólogas ajudados por estagiários portugueses e estrangeiros. Cada vez são mais os pedidos de estágio vindos do exterior, o que demonstra a crescente curiosidade que os nossos vinhos despertam lá fora. A região inundou-se de laboratórios, públicos e privados, lojas de produtos enológicos com catálogos de leveduras e bactérias à disposição para qualquer eventualidade, ajudando, assim, à regularização da feitoria do vinho. Do meu tempo para cá, o número de moléculas detectadas no vinho foi crescendo. Hoje, os enólogos profissionais devem saber distinguir defeitos olfactivos, como os fenóis volá-


sideradas um defeito. Acontece, também, com os clorofenóis, moléculas que dão ao vinho o chamado gosto a rolha, que não vem só dela, mas também de contaminações de madeiras tratadas à base de produtos clorados, como as paletes, etc. Houve um grande avanço na descoberta de aromas “bons” e na forma como os enólogos podem preservar ou realçar esses ditos aromas nos vinhos. Podemos distinguir aromas da uva (norizoprenóides, pirazinas, mercaptopentanonas), aromas de fermentação produzidos por leveduras seleccionadas utilizando várias técnicas de fermentação (esteres frutados) e aromas de madeira (whisky-madeira, guaiacol-torrado), por nós seleccionada para se adequar aos nossos vinhos. Antes da década de 90, não se descreviam os vinhos com o pormenor actual, em que se tenta decifrar os cheiros aromáticos e os cheiros dos defeitos nas vinificações. Os enólogos têm à sua disposição uma variadíssima gama de novos produtos e de novas técnicas para fazer o seu trabalho, não querendo, com isto, dizer que as técnicas tradicionais não constituam uma boa opção. Entre os novos produtos, os mais utilizados, são as leveduras seleccionadas, as bactérias lácticas, o gás carbónico e o azoto, as enzimas, taninos, etc. As novas técnicas de análise são uma ferramenta quase indispensável. O isolamento com que me deparei nos anos 70, felizmente, já não tem nada a ver com a enorme possibilidade de contactos existente hoje em dia, também muito devido ao desenvolvimento da Internet no país, o que trouxe uma interessante dinâmica à região. A evolução das máquinas tem sido enorme, desde os materiais utilizados para não danificar nem contaminar o vinho, até ao seu desenho, para uma melhor performance. Entrámos num mundo sofisticado, onde são utilizados lagares antigos com pisadores robôs. Desde o tempo de Pasteur que a higiene é uma boa prática. Actualmente, é uma condição sine qua non e existe um programa quase obrigatório chamado HCCP (Análise e controlo nos pontos críticos de produção da vinha). Também o transporte das uvas, das vinhas para as adegas, sofreu transformações. Com esta nova geração, as uvas já têm o direito a ser bem tratadas. Os cestos utilizados, hoje em dia, para levar as uvas, são de plástico, com capacidade de 30 a 50 kg, o que evita serem pisadas durante a viagem, possibilitando, assim, o seu arejamento. Algum deste transporte também já se faz em camionetas refrigeradas, permitindo uma paragem enzimática nas uvas, o que evita possíveis oxidações e o desenvolvimento de maus cheiros. Algumas adegas já têm, nos seus centros de vinificação, salas de recepção das uvas igualmente refrigeradas, e os enólogos, hoje, estão perfeitamente aptos e alertados para detectar defeitos que antigamente passavam desapercebidos. Na posse de centros de vinificação modernos que possibilitam um bom controlo das fermentações alcoólica e maloláctica, os técnicos voltam-se agora para o processo de envelhecimento. O processo de envelhecimento dos vinhos evoluiu, igualmente. Conforme o tipo de vinho a fazer, pode escolher-se o tipo de vasilha a utilizar. Depois de um período áureo, o inox para envelhecimento deixou de ser utilizado, dando lugar, novamente, às cubas de cimento com controlo de temperatura, visto estas manterem as temperaturas do vinho mais estáveis, e também às cubas de madeira com temperatura controlada.

149 vinha, vinho e vida

teis derivados de uma contaminação por leveduras brettanomyces, que antes não eram con-


150

Para os reservas, usam-se meias-pipas de carvalho. A utilização deste material gera, igualmente, alguma discussão, pois, sendo o carvalho um produto natural, varia muito, dando ao vinho sabores e aromas diferentes. Experimentaram-se, então, várias regiões de proveniência dessa madeira: Allier, Limousin, Vosges, América, etc. Fala-se, agora, de outras madeiras que podem ser igualmente boas para o envelhecimento do vinho, que não o carvalho. Em qualquer uma delas, é preciso definir o grão, a chauffe interior, o tamanho da vasilha, o fornecedor, o tempo de estágio para poder ser utilizada, enfim, um sem número de parâmetros que estão a ser ajustados aos nossos vinhos. Longe vão os tempos em que só havia o carvalho nacional, cujos taninos tinham o efeito de colar a língua ao céu-da-boca. No caso das empresas que fazem Vinho do Porto e DOC Douro, o problema do envelhecimento ficou um pouco facilitado, pois usam, durante 6 anos, pipas novas para o DOC e, depois deste período, em que já desapareceu a maior parte dos aromas e taninos da madeira, estas servem para pôr o Vinho do Porto, uma vez que o pretendido, para este, é apenas uma oxidação feita através dos poros da madeira, e não a extracção dos seus aromas e sabores. Com a ajuda de madeiras de boa qualidade, perfeitamente limpas e com aromas e sabores cristalinos, podemos começar a fazer vinhos que, depois de engarrafados, possam envelhecer bem. Até agora, existem ainda poucas marcas DOC Douro que tenham vinhos já com uma certa idade, mas brevemente eles começarão a aparecer e, então, a imagem do vinho desta região aumentará ainda mais, passando para um nível superior, pois todas as regiões consideradas top produzem vinhos com capacidade de envelhecimento. Na verdade, esta é uma das características que distinguem a excelência de uma região vitícola. O Vinho do Porto beneficiou, igualmente, com a chegada de todas estas novas tecnologias e da mão-de-obra especializada. Também aqui as experiências se multiplicam, e o vinho DOC veio dar uma ajuda, um suporte, ao seu irmão mais velho, o Vinho do Porto, que continua melhorando, estando esta nova geração com os olhos postos neste tão nobre produto, mas o Vinho do Porto será sempre o rei do Douro. E que dizer sobre a rolha, igualmente um produto natural que sempre se usou no vinho? Devido ao adormecimento da indústria, a qualidade da rolha foi-se deteriorando, não acompanhando, assim, a evolução havida no vinho e as exigências do mercado. Os produtores, conscientes do problema, reagiram virando-se, então, para outro tipo de material, o sintético. Isto foi uma vergonha para Portugal, o 1.º produtor de cortiça do mundo, mas felizmente o sector está a reagir e os avanços têm sido significativos na qualidade das rolhas. O engarrafamento também mudou. A partir de 2000, camiões especializados percorrem as quintas, para engarrafar ou tratar os respectivos vinhos. As novas máquinas utilizadas nos processos de engarrafamento são muito mais habilitadas no enchimento através do vácuo, no arrolhamento através de maxilas de pressão na rolha, na etiquetagem com papel autocolante em vez de cola, etc.


vinha, vinho e vida

151

Arquivo pessoal JNA

Foi extremamente gratificante assistir, e poder contribuir para a fantástica evolução que

À LAIA DE CONCLUSÃO

se deu no Douro nos últimos 30 anos, no início, lenta e difícil, mas que, a partir de determinada altura, arrancou definitivamente, não parando desde então. Evolução tanto na vinha – com o estudo das castas, novas formas de plantação que permitiram alguma mecanização, o estudo e subsequente utilização de novos porta-enxertos, a implantação da rega para obviar o stress hídrico, etc. –, como na feitura do vinho, com toda uma nova tecnologia que, finalmente, chegou ao Douro. A região encheu-se de enólogos/as cheios de entusiasmo e ideias novas, de curiosos do vinho e de turistas, e todo este movimento cria uma mudança nas mentalidades dos próprios Durienses, o que me parece ser extremamente benéfico para todos. Mas não se pense que está tudo feito, pois, numa região com características tão diversas, muito há ainda para descobrir, estudar e experimentar. Por exemplo, o estudo das muitas variedades de castas, que ainda não são minimamente conhecidas, tem de ser feito, tendo aqui a Universidade um papel fundamental. O Douro tem um riquíssimo património natural que ainda não foi descoberto, muito menos estudado. Não podemos descansar sobre a evolução e progresso já obtidos. O mundo não pára e nós temos de acompanhar essa evolução, utilizando e rentabilizando a enorme riqueza que a Natureza nos confiou. É difícil, mesmo muito difícil, extrair um vinho destas rochas de xisto. Este trabalho colossal, em que o Homem se empenha, só terá razão de ser se fizermos um verdadeiro vinho de “terroir”, um vinho único, que justifique trabalhar numa região tão complicada e controversa. Foi isto que fizeram os nossos antepassados e penso que é aquilo que a geração actual faz, com as devidas adaptações à época actual, e que as gerações vindouras certamente farão. Fazer este vinho ou não, eis a questão!


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.