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A viticultura da Região do Douro Dos primórdios às grandes mudanças no virar do século Nuno Magalhães
Nuno Magalhães Natural do Porto, licenciou-se em Engenharia Agronómica pelo Instituto Superior de Agronomia (Universidade Técnica de Lisboa). É Professor Emérito da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro onde se doutorou em Engenharia Agrícola e leccionou a maior parte da sua vida nas áreas da viticultura e da enologia. Desde 2000 que integra a Comissão Organizadora do International Master of Science Vintage, do programa Erasmus/Mundus. Uma vida incansável de profunda dedicação à vinha e ao vinho, é uma referência incontornável do Douro – seu espaço por excelência de experimentação – região e causa que tem projectado em todo o mundo. Funções de consultoria a empresas privadas do sector vitivinícola permitiram-lhe realizar trabalho de Norte a Sul do país (dos Vinhos Verdes ao Algarve) e mesmo no estrangeiro, colocando numa posição privilegiada de conhecimento a viticultura nacional e internacional. Em 2008, publicou o Tratado de Viticultura – A Videira, a Vinha, o Terroir que, em 2010, obteve o prémio da melhor obra do ano sobre viticultura, atribuído pelo Office International de la Vigne et du Vin. Em Maio de 2010 recebeu do Senhor Presidente da República a Comenda de Ordem de Mérito Agrícola.
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A diversidade da paisagem do Douro actual. Diferentes formas de sistematização da encosta, tradicionais e modernas encaixam-se no matagal mediterrânico original. Vale do Rio Pinhão
des marcos responsáveis por alterações profundas que ocorreram quer no sistema produtivo, quer na paisagem, tendo tido o segundo, relativamente recente e ainda em curso, um impacto mais significativo do que o primeiro, sobre grandes modificações, a nível global. Apesar da cultura da vinha ter já visibilidade na Alta Idade Média – nos extensos domínios agrícolas do Convento de Cister, instalados na sub-região agora designada por
Da Idade Média à crise filoxérica
Baixo Corgo –, é a partir dos finais do século XVII, quando se dão as primeiras exportações de Vinho do Porto para Inglaterra, as quais posteriormente crescem exponencialmente até um pouco antes da Demarcação Pombalina da Região do Douro (1756), que a viticultura começa a assumir um carácter quase monocultural e são traçados os contornos técnicos e visuais ainda hoje globalmente subsistentes. Independentemente das perturbações económicas e comerciais que ciclicamente sempre afectaram o sector vitivinícola da Região, o primeiro marco de mudança corresponde a uma grande crise registada na segunda metade do século XIX, por invasões, em catadupa, de doenças e pragas oriundas do continente Americano. Primeiro o oídio (1851), depois a antracnose, como que indiciam a tragédia concretizada pela total destruição dos vinhedos pela filoxera, cujos primeiros sinais de alerta foram dados em 1872, mas com rápida progressão a partir de então, apesar de o primeiro foco se ter registado anteriormente, na Quinta dos Montes, em Gouvinhas, no Cima Corgo, em 18631. Finalmente o míldio, introduzido na Região em 1893, ajudou à catástrofe. É uma etapa dramática, que se prolonga por mais de vinte anos, até à quase exaustão social e económica da região, mas à qual a tenacidade do Duriense põe termo, após várias soluções frustradas, ao introduzir o enxofre e o cobre no combate às doenças e o recurso à plantação de espécies de videiras americanas, sobre as quais foram enxertadas as castas locais da espécie europeia. Há que destacar, pela aplicação desta técnica que ressuscitou o Douro, a figura de Joaquim Pinheiro de Azevedo Leite, de Provezende, a partir de experiências de enxertia em vinhas da zona de Vale de Mendiz2. Ao reinstalar as vinhas, altera-se a configuração da paisagem e, também, embora provavelmente com pouco significado, o comportamento da videira e consequentes reflexos na qualidade dos vinhos. No período pré-filoxérico, o terreno das encostas era sistematizado segundo calços separados por pequenos muros de pedra seca, em cujos estreitos terraços, ou geios, se procedia à plantação de uma ou duas fiadas de videiras com tutores individuais. O acesso entre calços era feito por pequenas escadas, também em pedra de xisto, incrustadas nos próprios muros ou com pedras salientes. A vinha era então instalada, após “arroteia” para retirar os matos, a que se seguia o “desmonte” ou “rompimento”, para construção de calços e geios, e o “saibramento” que consistia na abertura de valados para criar solo e aí instalar as videiras. Todo este trabalho era feito a poder de braço; “ aberta a penedia a guilho, e de alvião ou de marreta em punho… o ferro vai penetrando até fender a laje, que depois de moída, desfeita em cascalho miúdo, compõe a terra dos geios… as mulheres carregam as lajes aos pedreiros para construção dos muros… ajoeira-se a terra nas pás, cava-se a folha larga e assim vagarosamente o valado avança…”3. “…levantadas as paredes dos geios, que impedem os danos calamitosos da enxurrada, e evitam o desgaste lento e constante da erosão, é do xisto da serra que o cavador mói e cria o chão fértil em que planta a vinha”4. É de referir que, mais tarde, aquando da construção das vinhas
45 a viticultura da região do douro
Na já longa História da Vitivinicultura Duriense, pode-se considerar, grosso modo, dois gran-
Notas históricas da viticultura duriense anterior a meados do séc. xx
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À esquerda Trabalhos de “saibramento” para instalação da vinha, início de Séc. XX
mecanizadas a partir dos anos 70 do século XX, apesar dos meios e conhecimentos téc-
À direita A poda, início de Séc. XX
devida atenção aos problemas da erosão e respectivas defesas, contrastando com o que
Fotografias de Álvaro Cardoso de Azevedo (Casa Alvão). Colecção do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, IP
outrora era respeitado e executado, pelo conhecimento empírico acumulado ao longo de
nicos serem supostamente mais avançados, nem sempre se deu, pelo menos de início, a
muitas gerações. “Em tudo o que é novo ou inovatório, apesar de representar um avanço para o desenvolvimento, raramente é tomada a atitude humilde de não esquecer o que de correcto foi feito pelos “antiquados” antepassados…!”5 A videira, “unhada” de “péfranco”, pois não necessitava de porta-enxerto, já que a filoxera não havia ainda chegado, era conduzida em forma livre, apenas amparada por tutores, designados por “pau de espera”; o mais junto ao tronco da cepa, o “pau do meio ou de forrar”, e o “pau do fim”6. É, contudo, nos finais do século XIX, simultaneamente com a luta à crise que assolou a Região, concretizada em particular pela plantação com bacelo americano, pela enxertia e pela utilização dos tratamentos contra as doenças entretanto chegadas, que surgem as primeiras vinhas “embardadas” com esteios de xisto – provenientes das pedreiras de Vila Nova de Foz Côa, que então iniciaram a sua exploração –, para suportarem duas ou três fiadas de arame por onde as varas e a folhagem das videiras eram conduzidas, no decorrer do seu ciclo vegetativo7. A densidade de plantação era, então, relativamente elevada (quando reportada à superfície do geio), pelo que o vigor e a produtividade unitária eram reduzidos. Fertilizantes químicos não existiam ainda, sendo aplicados pontualmente, para a nutrição da videira, estrumes, ou enterrado o tremoço. Os tratamentos fitossanitários não eram necessários, até ao aparecimento do oídio, em 1851, e, mais tarde, do míldio, em 1893. As castas, em grande número (embora Vila Maior, 1876, faça referência apenas a 20 tintas e 8 brancas, como predominantes), já que o clima da Região do Douro, quente e seco, permite, mais cedo ou mais tarde, a maturação de todas elas, encontravam-se aleatoriamente misturadas na vinha. Os granjeios, quer na videira, quer no solo para
a viticultura da região do douro
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À esquerda A “escava” das videiras com enxada, início de Séc. XX
controlo das ervas infestantes, eram executados manualmente ou com ajuda de mu-
À direita A “enxofra” — aplicação de enxofre para combate ao oídio, ainda por meios manuais, início de Séc. XX
designada por “desmadeiramento”, para permitir, de seguida, a execução da poda,
Fotografias de Álvaro Cardoso de Azevedo (Casa Alvão). Colecção do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, IP
ares. O primeiro trabalho na vinha consistia em retirar os tutores à videira, operação também designada por “chapota”, na altura, com uma “podoa”, cortando e traçando as varas segundo a medida adequada à condução. Entretanto, ainda no período do repouso vegetativo, era a “escava de água”, com auxílio de enxadas de ganchos, para retirar a terra de junto das cepas e permitir uma melhor infiltração das águas das chuvas, bem como, após o aparecimento da filoxera, cortar as raízes que nasciam acima da zona de enxertia e facilmente atacáveis pelo insecto. Também neste mesmo período, havia que replantar as falhas com bacelo, neste caso com videiras Europeias, ou por mergulhia, de uma vara ou da cepa inteira, esta designada por “lançar de cabeça” ou “camear”. Após a rebentação da vegetação, na Primavera, era executada uma primeira “erguida” dos pâmpanos, a “levanta” e, mais tarde, uma segunda, a “apensa” ou “arregaça”, a fim de endireitar os tutores para que os cachos não tocassem no chão. Ainda durante a fase activa da vinha, no solo eram feitas mobilizações para combate às ervas infestantes, também com recurso a enxadas: primeiro, a “cava”, para dispor o perfil do terreno uniforme ou, por vezes, também simultaneamente, para incorporar o tremoço como fertilizante verde; depois, a “redra” ou “cava rasa” ou “arrenda”, para combate às infestantes de Primavera-Verão8. Apesar do trabalho árduo, quer na instalação da vinha, quer no seu granjeio, e dos conhecimentos, ditos técnicos, serem rudimentares, o viticultor comunga sabiamente com a Natureza. Este estado de equilíbrio “Meio – Videira – Homem” constitui o ecossistema-base para a produção dos “vinhos finos” de então9. Aliás, este “estado de graça” vem a manter-se posteriormente, já na fase pós-filoxérica, nas vinhas tradicionais ainda não mecanizáveis então instaladas, até aos dias de hoje, salvo introdução de algumas técnicas novas, que oportunamente se referirão.
A crise provocada pela filoxera e pelas doenças que destruíram os vinhedos constitui um
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Da crise filoxérica aos anos 60/70 do século XX
primeiro marco de mudança da viticultura duriense, ao registar-se algumas alterações, mais ou menos significativas, no cultivo da vinha e no plano geográfico, na economia regional, nas relações sociais e na transferência da propriedade (novos proprietários acederam à posse de quintas, tornando-se viticultores), “…mantendo-se o Douro, no entanto, agarrado a muitos elementos da tradição…”10. Contudo, é durante este mesmo período que o comboio chega ao Douro (em 1879, à Régua; em 1880, ao Pinhão), carregando o sulfureto de carbono para o combate à filoxera, assim como outros produtos, facilitando o êxodo de jornaleiros e de viticultores para o Porto, dos quais alguns emigraram para o Brasil, de onde, mais tarde, muito dinheiro aí ganho viria a ser aplicado na reconstituição dos vinhedos, já nos inícios do século XX11. Relativamente às mudanças no plano vitícola, as primeiras dizem respeito, naturalmente, à introdução de porta-enxertos resistentes à filoxera, e à necessidade do recurso à enxertia, técnica que anteriormente se realizava, muito pontualmente, no mundo da fruticultura em geral, mas nunca com aquele fim. Cada videira passa, então, a ser constituída por dois biontes de características distintas, fornecendo, um, a parte radicular; outro, a parte aérea e respectiva frutificação. Dependendo da adaptação de cada variedade de porta-enxerto ao solo e à influência que exerce sobre o comportamento da casta, assim esta já não é dependente apenas dela própria e do meio onde está inserida, para passar a ser influenciada por mais um factor, neste caso biológico, o porta-enxerto, na altura o montícola (Rupestris du Lot), que se vai reflectir na sua expressão vegetativa, na produtividade e nas características qualitativas do mosto. Um traço comum, contudo, mantém-se: é elevado o número de castas (embora agora sujeito a uma nova escolha ou selecção), promíscua e aleatoriamente instaladas em cada parcela de vinha. Uma segunda alteração, embora ainda decorrente do final do período anterior, consolida-se em definitivo: o combate ao oídio e ao míldio, permanecendo ainda os mesmos produtos – o enxofre, para a primeira; e a calda bordalesa, com base no cobre, para a segunda –, bem como a forma da sua aplicação, por aparelhos manuais, geralmente a dorso de homem. Devido à persistência de acção daqueles produtos ser reduzida e por serem facilmente arrastados pelas chuvas, o número de tratamentos é frequentemente elevado e nem sempre com absoluta eficácia. Por outro lado, embora o seu grau de toxicidade ou de poluição seja reduzido, não deixa de haver alguma acumulação de resíduos de enxofre e de cobre, traduzindo-se de forma negativa, nomeadamente em solos de reacção ácida. A condução da vinha sofre, igualmente, alterações em relação à praticada no período anterior, quando as videiras eram conduzidas em forma livre, com uma vara e uma espera, apoiadas por tutores. Pelo embardamento com esteios de xisto e arames, as videiras dispõem-se, então, em fiadas (bardos), para facilitar a passagem de homens e de animais de trabalho, na realização das diversas operações culturais. Mas neste segundo período, já no século XX, esta forma de estrutura passa a ser generalizada, sendo a videira conduzida geralmente em Guyot duplo, com duas varas e duas esperas, para renovação da poda seguinte ou, outras vezes, quando o solo é mais pobre ou em situações mais “cálidas”, em poda “torneada”, comportando a videira dois, três ou mais braços, na extremidade de cada qual são talhados talões com dois a três olhos (gomos ou gemas).
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Socalcos pré-filoxéricos replantados, com muros baixos arredondados. Quinta do Noval, Alijó
A forma de sistematização do terreno da encosta sofre, também, alterações. Após vencida a crise filoxérica, as novas plantações são feitas com surribas um pouco mais fundas; os socalcos pré-filoxéricos, de muros baixos e tortuosos, de geios estreitos e horizontais, são substituídos por outros, mais largos e com alguma inclinação, de muros sólidos, altos e rectilíneos12. Um pouco mais tarde, estes irão dar lugar, provavelmente por alguma escassez de mão-de-obra ou altos custos, a terraços com declive a acompanhar de perto o da encosta, separados por pequenos muros para arrumação de pedra e para reter os escorrimentos das águas pluviais, contendo aqueles 20, 30 ou mais fiadas de videiras. Em qualquer dos casos, as videiras dispõem-se segundo densidades elevadas, conforme as curvas de nível do terreno. Apesar de os antigos calços terem dado lugar a terraços mais largos e mais inclinados, separados por muros comportando, cada, um número muito superior de videiras, o espaçamento entre elas não deixa de ser muito semelhante (4 x 6 ou 7 palmos, de 22 cm, segundo as bitolas e designação regional), pelo que a expansão vegetativa e a capacidade produtiva de cada cepa também não deve ter diferido muito. Quando comparados os dois sistemas, o pré e o pós-filoxérico, não se pode deixar de registar alterações, mais ou menos significativas, quer nas formas de armação do terreno, quer na forma de condução e técnicas culturais, quer, ainda, a nível da paisagem. Contudo, sob o ponto de vista socioeconómico e do comportamento das videiras e seu potencial produtivo e qualitativo, não se registam alterações tão importantes como, à partida, seria de pensar.
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Socalcos pós-filoxéricos com muros rectilíneos. Quinta de La Rosa, Sabrosa
Relativamente ao primeiro ponto, os duríssimos trabalhos de saibramento, para instalação da vinha, continuam a ser realizados integralmente por meios manuais, à profundidade de 5 a 6 palmos (de 22 cm), exactamente da mesma forma e com os mesmos meios de antigamente: “…ranchadas de Galegos saibram as encostas de caras acima a ferro e fogo”13. Também se recuperaram alguns calços antigos, segundo surriba de través, designada por “chorandar”. A dureza do trabalho é extensiva a todas as operações culturais subsequentes, as quais são acrescidas de mais alguns trabalhos, tais como a enxertia, a erguida e ampara dos pâmpanos aos arames, os tratamentos fitossanitários e os arranjos ao embardamento (“arriosta”). Os salários permanecem baixos, os horários de sol a sol, o transporte das uvas em cestos “vindimos” de 70 kg, às costas dos homens, e as 4 horas nocturnas de pisa no lagar mantêm-se, as condições de alimentação, alojamento e higiene, nos cardenhos, permanecem péssimas. Parece, pois, não ter havido grande distinção, em termos de condições de trabalho, em geral, entre os períodos pré e pós-filoxérico. O mesmo poderá ser sugerido quanto à estrutura social e fundiária. A população duriense continua a ser constituída essencialmente por pequenos proprietários, já que os donos de terras maiores são, no geral, absentistas, mas sobretudo por rurais jornaleiros e, ainda, barqueiros, marinheiros, pescadores e profissionais de vários ofícios. E há, ainda, a considerar outros grupos profissionais de grande importância nessas épocas: os galegos, na
Página anterior Socalcos pré-filoxéricos replantados e geias pós-filoxéricas. Vale do Rio Torto
construção dos socalcos e instalação das vinhas, e as “rogas”, constituídas por pessoal contratado geralmente das zonas serranas das Beiras e do Minho, que se instalavam nos cardenhos das quintas do Douro, durante o período das vindimas. Sob orientação do rogador
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Calços pré- filoxéricos, à esquerda, e “geias” pós-filoxéricas, à direita. Vale do Rio Torto
e do feitor da Quinta que marcava, com uma navalha, num pau de marmeleiro, o número de cestos entregues. As mulheres vindimavam, as crianças acarretavam as uvas, em cestas, despejando-as nos “cestos vindimos” que os homens transportavam às costas, socalcos acima, ou abaixo, para as dornas que os carros de bois conduziam até à adega. Após um dia inteiro de trabalho, seguia-se a “meia noite” de lagar, em que, durante quatro horas, os homens ao ritmo do “marcador” e depois ao som da concertina, cortavam o lagar em linha, centímetro a centímetro pisavam aleatoriamente as uvas. Depois de caída a folha da videira, novas rogas chegavam ao Douro, estas constituídas apenas por homens válidos, para escavarem junto das cepas e reporem falhas de videiras mortas. Depois, para a realização da poda, eram contratados ranchos de pessoal especializado, oriundo de terras de tradição afamada, protegidos do frio invernal por mantas, capotes e “crossas” de palha14. As “rogas” mantiveram-se nestes moldes, para a realização da vindima e granjeios da vinha, até aos anos 60 do século XX, enquanto as equipas de podadores das tais “terras afamadas” subsistiram, embora com cada vez menos representatividade, até aos nossos dias. Quanto à vinha ou à videira, em si, se os custos de produção se agravam por incorporação de um maior número de operações, já o reflexo das novas condições de cultivo, sobre o potencial produtivo e qualitativo, não terá tido grande significado. Se as castas de videira deixaram de ser plantadas em “pé franco”, para serem enxertadas sobre portaenxertos de variedades americanas resistentes à filoxera, predominando então o Montícola e algum Aramon e Ripárias, o seu vigor e produtividade ficou mais reduzido. O tipo
de poda e o número de gomos deixados na poda não terão diferido muito, já que este
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é condicionado, neste caso, sobretudo pelas características do solo e do clima, as quais não sofreram modificações de monta, neste período. O vigor, produtividade individual e condições de maturação, também não terão tido alterações significativas por influência da densidade de plantação, a qual, reportada à superfície ou volume útil do solo, não foi muito distinta entre os dois sistemas de armação do terreno. A altura e estrutura da cepa, como uma das bases fundamentais para a resistência à secura em viticultura de sequeiro, basicamente, são semelhantes. Ou seja, o referido equilíbrio entre o Meio, a Videira e o Homem não terá sido molestado, pelo que as características dos mostos e dos vinhos também se terão mantido muito semelhantes.
Um segundo marco na História da Região do Douro, responsável por alterações impor-
as mudanças ao virar do séc. xx
tantes na sua vitivinicultura, regista-se cerca de um século após o primeiro. Apesar de não corresponder a uma crise dramática como foi esta, não deixou de ter impactos profundos, ainda hoje em curso, que alteraram, de forma muito mais radical, as técnicas e soluções vitivinícolas, a paisagem e o panorama socioeconómico da Região. Convém, no entanto, referir que essas importantes e significativas modificações, antes
O embrião — das grandes transformações à fase embrionária
de emergirem quase bruscamente, resultaram, quer da diminuição de mão-de-obra que gradualmente se vinha sentindo, quer das alterações da conjuntura do meio rural – verificadas não só no Douro, como também em todo o País, por razões socioeconómicas e políticas –, quer da consciencialização, por parte de alguns Homens do Douro, e do próprio Estado ao criar estruturas institucionais na Região, de que havia necessidade de mudança e, para tal, haviam já iniciado estudos e acções para que ela viesse a concretizar-se. Nesse sentido, o Estado Novo, preocupando-se com a protecção e valorização dos vinhedos, e segundo o seu modelo Corporativo, cria, em 1932, a Casa do Douro, como uma Federação dos Viticultores da Região do Douro, então tutelada pelo Ministério da Economia, o Grémio dos Exportadores de Vinho do Porto – tendo como uma das suas principais funções a fixação dos preços de vindima –, e o Instituto do Vinho do Porto, tutelado pelo Ministério do Comércio15. Anteriormente, em 1931, havia sido criada a Estação Vitivinícola da Região Duriense, através da fusão do Posto Agrário do Pinhão com a Escola Agrícola Móvel da Região Duriense e a Escola Agrícola Macedo Pinto, de Tabuaço. Até 1958, a Estação era vulgarmente conhecida por Posto Vitivinícola, recebendo mais tarde, em 1979, a designação de Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro. Era missão da Estação Vitivinícola promover estudos e ensaios para melhoria da viticultura, fazer formação técnica nas áreas da vinha e do vinho, dar assistência técnica no âmbito da viticultura e prestar informações, e ainda proceder a análises de mosto. Contudo, apesar da justificação e bondade dos objectivos, o Estado nunca concedeu à Estação, até meados da década de 70, os meios humanos e materiais necessários para que ela pudesse promover as acções para que havia sido incumbida. Não pode, no entanto, deixar de ser referido o facto de que os meios de acesso e o subdesenvolvimento regional tenham
constituído pretexto para exercer uma maior pressão junto do Governo, no sentido de captar verbas e promover o desenvolvimento de estudos e correspondente análise de resultados, tão necessária para a sua transferência prática para o campo. Assim, infelizmente, a esmagadora maioria dos dados colhidos, durante décadas, com grande dedicação e esforço pelos poucos técnicos da Estação, nunca foram trabalhados, tendo-se perdido nos depósitos das instituições centralizadas na capital. Durante este período embrionário das grandes transformações que viriam mais tarde a surgir na Região do Douro, são de referir acções e personalidades que, então, muito contribuíram para que aquelas tomassem corpo. Mas voltando ainda um pouco mais atrás, e para estabelecer uma corrente histórica da vitivinicultura desde meados do século XIX até aos nossos dias, não podem deixar de ser referenciados, de forma muito genérica e sumária, trabalhos importantes que, nos finais daquele século e início do século XX, foram desenvolvidos e publicados, particularmente no âmbito do levantamento de castas cultivadas e algumas das suas características botânicas, ampelográficas e culturais, nomeadamente, de Pinto de Menezes e de Marques de Carvalho, entre outros, publicados nos Boletins da Direcção Geral de Agricultura; em “O Portugal vitivinícola. Estudos sobre a Ampelografia e o valor enológico das principais castas de Portugal”, de Cincinnato da Costa; os promovidos pela Comissão Anti-Filoxera; e, sobre as técnicas de viticultura do Visconde de Villa-Maior, no seu Manual de Viticultura Prática. Todos estes trabalhos não deixam de constituir um certo pioneirismo para os alicerces da viticultura moderna, mesmo que assentes na cultura empírica ou abordados segundo as técnicas então disponíveis. Uma primeira acção de referência e de grande importância para o embrião de desenvolvimento da Região, posta em prática pelo Estado Novo, diz respeito ao seu levantamento físico e vitícola, através do Cadastro realizado pela Casa do Douro, iniciado em 1937. O cadastro começa, então, a ser construído através de 6 brigadas, constituídas por um Engenheiro Agrónomo, um Regente Agrícola, um Classificador de castas e um anotador, as quais, durante anos, percorreram toda a Região, palmo a palmo, recolhendo de cada parcela de vinha, nomeadamente, os seguintes elementos: identificação geográfica da parcela, nome e residência do proprietário, limites da propriedade, natureza do terreno, sua inclinação e altitude média, espaçamento entre videiras, estado geral das vinhas e aspectos da sua condução e cultivo, castas cultivadas, percentagem de falhas e, ainda, outras informações consideradas úteis. Constituiu um trabalho fundamental para o levantamento e consequente gestão e zonagem da Região, e a tarefa gigantesca de cadastrar minuciosamente cerca de 30.000 viticultores, quase 100.000 parcelas e mais de 200 milhões de cepas…! Uma outra questão fundamental que então se pôs foi a de estabelecer os quantitativos de mosto a beneficiar com aguardente vínica, para a sua transformação em Vinho do Porto, e também os correspondentes critérios qualitativos. De facto, sendo a Região do Douro tão heterogénea em relevo, clima e distribuição de castas, as potencialidades para produzir melhores ou menos bons vinhos são distintas, de encosta para encosta, entre margens do mesmo rio ou ribeira, entre diferentes cotas e exposições. De início, os quantitativos de mosto a beneficiar não eram limitados. Solicitados os pedidos de
55 a viticultura da região do douro
contribuído para a dificuldade de fixação de técnicos na Região, o que, a verificar-se, teria
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benefício, a Casa do Douro apenas os registava, funcionando depois as leis de oferta e procura do mercado. Tal situação criava, com certa frequência injustiças e originava insuficiente controlo, já que nem sempre a quantidade de mosto beneficiado coincidia com a procura de mercado e, por outro lado, mostos de distinto nível qualitativo eram, por vezes, valorizados de igual modo. Em 1938, a Casa do Douro dá um primeiro passo para minimizar o problema, eliminando os pedidos de benefício para qualquer uma das seguintes situações: vinhas em cotas abaixo dos 70 m ou acima dos 500 m, terrenos de areia, várzea ou aluvião, ramadas e terrenos de granito ou de transição xisto/granito. Posteriormente, em 1949, e já com base nos elementos cadastrais entretanto recolhidos e na qualidade organoléptica reconhecida dos vinhos produzidos em diferentes locais, e após trabalho minucioso de Moreira da Fonseca, que viria a ser presidente da Casa do Douro, é publicado um método de zonagem, designado por Método de Pontuação de Moreira da Fonseca, o qual classifica cada parcela por um dado número de pontos, baseados em 3 factores fundamentais: o solo, o clima e as condições culturais. Cada um destes é, por sua vez, subdividido em 4 parâmetros: o solo, em natureza do terreno, grau de pedregosidade, produtividade e declive; o clima, em localização, altitude, abrigo e exposição; as condições culturais, em castas, forma de condução, idade das videiras e compasso. A cada um destes 12 parâmetros era atribuído um gradiente de classificação próprio. O somatório de todos eles dá a pontuação e classificação das parcelas e correspondente nível qualitativo potencial, a que é atribuída uma letra, designada por letra de benefício. Assim, segundo uma escala crescente de qualidade e consequente remuneração, bem como o quantitativo de mosto autorizado a beneficiar, a letra F corresponde à pontuação entre 201 a 400, a E entre 401 e 600 pontos, a D entre 601 e 800, a C entre 801 e 1000, a B entre 1001 e 1200 1, a A acima de 1.200 pontos. Este método, ainda hoje aplicado para a distribuição do benefício, sofreu posteriormente sucessivas alterações, no sentido de o ajustar às realidades temporais. A IV Brigada Móvel do Plantio da Vinha, integrada na Estação Vitivinícola da Região Duriense, tinha, por sua vez, competências para autorização de novas plantações, reconversões e transferências de direitos de plantação de vinha, e fiscalização das mesmas. A chefiar esta Brigada, surgem nomes de relevo que muito contribuíram para a vitivinicultura regional: António Morais Sarmento, de 1937 a 1939; Gastão Taborda, de 1945 a 1958; a que se seguiu Armindo Martinho, quando tomou posse de Director da Estação através da qual desenvolveu um trabalho notável de experimentação vitivinícola, de extensão e de comunicação, pessoalmente deixando um importante legado, constituído por apontamentos e dados de ensaios, por ideias e por projectos para o desenvolvimento futuro do Douro, trabalho esse que viria, de facto, a ser tomado em consideração por aqueles que se lhe seguiram, já numa fase em que os meios humanos, técnicos e materiais eram significativamente mais abundantes. Das acções desenvolvidas pela Estação Vitivinícola, para além das funções que lhe estavam confiadas e já referidas, é oportuno salientar algumas que mais impacto tiveram na viticultura.16 Em 1946 surge, com grande intensidade, uma anomalia nas videiras, a “maromba”, já conhecida no século anterior, então designada por “gomosa” ou “mal negro”. Inicialmente
roses nas folhas, afectando fortemente a produtividade, por queda precoce de bagos ou pelo seu enegrecimento e destruição posterior. Pelos estudos efectuados, então, por Humberto Dias, da Estação Vitivinícola Nacional, este investigador veio a constatar não se tratar de uma doença, mas sim de uma deficiência num micronutriente, o boro, a qual poderia ser completamente ultrapassada através de correcções ao solo. Na luta contra esta deficiência nutritiva, assume a Estação, a partir de 1952, um papel determinante, tendo, como responsáveis, o seu Director, Eduardo Serpa Pimentel, e Gastão Taborda. Esta acção de informação junto dos viticultores, sobre como tratar a “maromba”, terá tido como reflexo, segundo o último relatório da Estação Vitivinícola (então já designada por Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro – CEVD), datado de 1979, um aumento de 30 a 35.000 pipas de vinho.17 Desde a resolução do problema da filoxera – através da plantação de variedades de videira de origem americana resistentes à praga, para sua posterior enxertia com castas europeias –, várias variedades de porta-enxertos foram utilizadas, muitas delas decorrentes da experiência francesa, onde a filoxera havia sido anteriormente introduzida, bem como a respectiva solução, pelo recurso à enxertia. As dúvidas sobre quais daqueles seriam os mais apropriados para as condições do Douro, contudo, subsistiam. No sentido do seu esclarecimento, entre 1946 e 1948, são instalados os primeiros campos de ensaio para o estudo do comportamento de porta-enxertos e do seu comportamento com algumas das castas mais importantes cultivadas no Douro. Foram, então, cinco as parcelas instaladas, procurando representar as 3 sub-regiões em que o Douro se divide, de acordo com as respectivas características climáticas, tendo sido duas no Baixo Corgo, em Mesão Frio e Cever; duas no Cima Corgo, na Quinta de Santa Bárbara, pertencente à Estação Vitivinícola; e uma no Douro Superior, junto ao Pocinho. Cada campo experimental incluía entre 14 a 16 porta-enxertos e 16 castas tintas. Relativamente aos primeiros, estava sempre presente a cultivar Rupestris du Lot – designada regionalmente por Montícola, como porta-enxerto mais correntemente utilizado na Região – e outros híbridos, de Berlandieri x Rupestris e de Berlandieri x Riparia, que posteriormente caíram em desuso, provavelmente por o primeiro ter demonstrado sempre melhor comportamento em todas as parcelas de ensaio e pelo surgimento de outros, mais rústicos e produtivos. As determinações, feitas durante cerca de 10 anos, consistiam na avaliação da percentagem de videiras pegadas, em produção por complexo, número de cachos por videira e seu peso médio, produção média por pé e peso da lenha de poda. Esta primeira abordagem ao estudo da problemática da adaptação dos porta-enxertos e seu reflexo no comportamento das castas, além de ter constituído um contributo através de algumas conclusões importantes, sensibilizou os Serviços do Estado para a implementação de uma rede mais vasta de ensaios de afinidade casta x porta-enxerto, a nível das principais regiões vinhateiras do País, incluindo, naturalmente, a Região do Douro. Nesta foram instalados, no início Baixo Corgo
dos anos 60, sete novos campos experimentais, distribuídos da mesma forma pelas três
Cima Corgo
sub-regiões, abordando 12 castas e 8 porta-enxertos, dos quais um na Quinta de Santa
Douro Superior
As sub-regiões da Região Demarcada do Douro
Bárbara e outro numa cota mais alta, de clima mais fresco, em Sabrosa, para estudo de castas brancas. Os campos são agora instalados segundo um delineamento experimental, a fim de permitir a análise estatística dos resultados, entregue a Machado Grácio,
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tomada como uma doença, a maromba provocava raquitismo na videira, deformações e clo-
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da Estação Agronómica Nacional, sendo a condução e a colheita de dados, os quais incluíam já determinações enológicas para o mosto além das vitícolas, executadas pela equipa de técnicos e auxiliares chefiada por Gastão Taborda. Durante cerca de 20 anos, foram efectuados registos e feitas colheitas e pesagens, enviando-se anualmente relatórios para o Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas, cujos resultados, infelizmente, só numa pequena parte foram analisados na Estação, embora sem tratamento estatístico, e mais tarde também pela Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID), nesta já com aplicação da estatística, o que, mesmo assim, associado aos conhecimentos de observações no campo, permitiu chegar a algumas conclusões bastante úteis para serem postas na prática.18 Em 1958, quando Gastão Taborda assumiu a Direcção da Estação Vitivinícola, foram instalados na Quinta de Santa Bárbara, cerca do Pinhão, ensaios de fertilização, com o propósito de substituir as tradicionais adubações com matéria orgânica – sob a forma de estrumes ou pelo enterramento de tremoço (siderações) –, por outro tipo de fertilizantes naturais de reacção alcalina, já que a maioria dos solos da Região têm reacção ácida, e também para averiguar quais os processos mais correctos da sua aplicação ao solo. Simultânea ou subsidiariamente, foram promovidos ensaios sobre a eficácia de fertilizantes químicos de síntese, com diversas formulações, de composição simples ou composta, e ainda sobre aplicação de fertilizantes por via foliar, quer de borato para a cura da maromba, quer de sais de potássio e de magnésio, e depois com azoto, fósforo e potássio. Registe-se que estes primeiros ensaios sobre fertilização da vinha marcam o começo de uma inovação das técnicas e critérios da fertilização da videira, através da substituição dos adubos orgânicos tradicionais pelos químicos industriais, mais controláveis em termos das necessidades da planta, mais fáceis de aplicar e geralmente mais baratos, particularmente na sua aplicação. Refira-se, por outro lado, que, pese embora o facto de esta solução ter constituído uma inovação técnica nunca antes posta em campo na RDD, mais tarde, já nos nossos dias, foi limitada através das normas de Produção Integrada da vinha, que apontam para a utilização exclusiva de produtos naturais. É também naquela data que a Estação inicia, na sua vinha experimental da Quinta do Paço, na Régua, o emprego de herbicidas para o controlo de infestantes, cujos resultados de ensaio permitiram a sua aplicação posterior noutras vinhas particulares, e a generalização desta técnica, praticamente por toda a Região, a partir dos anos 70. Ainda naquela década de 50, são iniciados estudos de sinonímia e de análises de mosto, a partir das colecções ampelográficas instaladas na Quinta do Paço e na de Santa Bárbara, as quais incluíam, respectivamente, 129 e 120 castas cultivadas na Região. Daquelas consideradas, à partida, como mais interessantes, passaram a ser marcadas, em diversas outras vinhas, videiras para fornecimento de “semente” (estacas para enxertia) aos viticultores, pelos Serviços de Condicionamento do Plantio, os quais integravam a estrutura orgânica da Estação Vitivinícola do Douro.19 Com o aparecimento de novos fungicidas, de síntese, para o combate ao míldio em alternativa à tradicional calda bordalesa, que coincidiu com a introdução de pulverizadores de dorso motorizados (atomizadores), a Estação aplicou-se num estudo que abordou quer os problemas inerentes ao emprego dessas substâncias e produtos co-
de aplicação e sua eficácia, quer sobre as formas mais eficazes de utilização daquelas máquinas. Estes estudos e ensaios viriam a dar origem, em 1964, à primeira Estação de Avisos Fitossanitários criada no País, para apoio aos viticultores sobre as formas de luta contra pragas e doenças da vinha, na qual a Estação, através de Gastão Taborda, se empenhou, assessorando o seu fundador Xavier da Cruz, o qual viria a ser seguido, durante cerca de duas décadas, por Álvaro Queiroz. Em 1963, é criado o Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas (CNEV) que vem a constituir um organismo-chave para o desenvolvimento da viticultura portuguesa e, neste caso, em particular para a região do Douro. De uma forma resumida, alguns dos principais objectivos definidos no programa geral do Centro eram: orientar a política do condicionamento do plantio da vinha; rever e reestruturar a organização político-administrativa da vitivinicultura; conhecer o potencial produtivo e os factores que a ela presidiam, de molde a imprimir-lhes as alterações mais convenientes à obtenção do equilíbrio entre os complexos culturais e a ecologia regional; colher os elementos e estudar os factores mais adequados à redução dos custos de produção; determinar, no campo enológico, as formas e os métodos técnicos e económicos susceptíveis de conduzirem a maior economia de fabrico; organizar, em bases de se alcançarem resultados eficientes, os serviços de preparação de pessoal, de divulgação técnica e de assistência à vitivinicultura. A criação do Centro teve, certamente, algum impacto nalgumas acções então promovidas na Estação Vitivinícola do Douro. É justamente por esta época que são iniciados estudos na Quinta de Santa Bárbara, nomeadamente sobre sistemas de poda e de empa, sobre formas de implantação da vinha e de avaliação de riscos de erosão, e sobre o potencial qualitativo de castas. Já em 1962, haviam sido instaladas duas parcelas de vinha, uma com os bardos orientados segundo as linhas de maior declive (vinha ao alto) e outro segundo patamares horizontais, tendo a primeira, na sua parte inferior, receptores para as águas de escorrimento superficial e de partículas de terra e pedra por ela removidas, para estudos de erosão. Também as mesmas tinham como objectivo estudar a viabilidade de mecanização das operações culturais na vinha. Apesar de os resultados obtidos através deste estudo terem sido pouco desenvolvidos e pouco conclusivos – salvo a componente da erosão que revelou ser, na vinha ao alto, praticamente nula –, a sua implantação não deixa de ser pioneira, relativamente às soluções de sistematização do terreno de encosta e de mecanização. Estas viriam a concretizar-se, passados uns dez anos, pela instalação das primeiras vinhas em patamares, através da Brigada de Mecanização e Reconversão do Douro, em 1972, a seguir referida, e de patamares e de vinha ao alto, por empresas privadas que implantaram estas duas formas mecanizáveis nas suas quintas. Quanto ao estudo de castas, permito-me transcrever, do último relatório da Estação Vitivinícola (então já designada por CEVD), elaborado em 1979 por Gastão Taborda, o seguinte excerto: “O número exageradíssimo de castas de uvas para vinho existentes na Região – mais de 130 – constitui um dos problemas mais graves e difíceis de resolver, mas que é preciso encarar a sério, dada a influência que a casta tem na qualidade do Vinho do Porto. Para já, temos analisado os mostos de castas existentes nos mostruários e nos campos de ensaio e, desde 1967, feito vinhos de 18 castas das mais representativas da Quinta de Santa Bárbara, cuja evolução é acompanhada com análises e pro-
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merciais que começaram a surgir no mercado, nomeadamente sobre doses, intervalos
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vas feitas periodicamente no IVP. Para estes estudos, aproveitámos ainda vinhos elementares feitos de 1932 a 1939, que existiam nas nossas garrafeiras”. Embora a Estação tenha sido, de certo modo, pioneira também nesta importante área, não se conhecem resultados publicados sobre estes estudos. É, contudo, certo que as longas conversas que Gastão Taborda teve com José António Rosas, da empresa Ramos Pinto, tenham motivado este, dando-lhe primeiras sugestões para os ensaios vitícolas e de vinificação que promoveu com o seu sobrinho João Nicolau de Almeida, mais tarde, a partir de meados da década de 70, e pelos quais obtiveram e publicaram os primeiros e importantíssimos dados sobre as características enológicas das principais castas, tintas e brancas, o que constituiu uma orientação fundamental na revolução do encepamento duriense, em anos posteriores, na reconversão e constituição de novas vinhas, orientadas quer para a produção de Vinho do Porto, quer para vinhos DOC Douro. Durante o período compreendido entre os inícios da década de 50 e inícios da de 70, ocorre uma outra importante transformação, neste caso, a nível da estrutura de comercialização das uvas, mas que não deixa de o ser também a nível da viticultura, pela criação da rede de Adegas Cooperativas, para apoio à produção dos pequenos viticultores, no escoamento quer de vinhos do Porto, quer dos vinhos de pasto, cujas uvas, de baixo valor, não tinham qualquer hipótese de ser vendidas às Casas Exportadoras de Vinho do Porto, ou mesmo por outras vias de comercialização. Em 1954, entram em funcionamento as Adegas de Mesão Frio e da Régua, representadas por 140 associados, seguindo-se outras, até um total de 24 já em 1974, então com 8000 associados. Actualmente, já na primeira década do século XXI, o número de Adegas Cooperativas diminuiu para 20, uma vez que houve a fusão de algumas – Régua com Armamar e Tabuaço, Santa Marta com Cumieira e Medrões –, com o objectivo de criar não só sinergias, sobretudo a nível comercial, mas também nos recursos e na evolução técnica. O número total de associados passa, então, para cerca de 20.000, o que revela um importante aumento da adesão dos viticultores ao sistema cooperativo, o qual, a nível da comercialização dos vinhos da Região, representa 30% dos generosos e 40% dos vinhos não beneficiados. Chegados aos finais dos anos 60, apesar da quantidade apreciável dos trabalhos e estudos desenvolvidos e atrás sumariamente referidos, se “olharmos” para a Região do Douro, constatamos que, estruturalmente, muito pouca coisa mudou: a paisagem vitícola é praticamente idêntica à reconstruída após a filoxera; os granjeios não se alteraram, nem os respectivos meios; o trabalho de sol a sol, as rogas para as vindimas, para a escava e para as podas permaneceram; o modo e condições de vida não progrediram; as relações sociais e a estrutura da propriedade, idem; a inovação técnica, apesar dos esforços pertinazmente assumidos por alguns, muito pouco; as castas, na sua diversidade e mistura nas vinhas, as mesmas. No dizer de Amândio Barros, “Naquela época o trabalho, passe o exagero, continuava praticamente igual ao que se fazia nos séculos XVIII e XIX: muita força de braços e de bestas de carga”. Mas o embrião, fruto da persistência de meia dúzia de homens de talento e também da dinâmica da História, havia vingado, pelo que se adivinhavam, já, modificações profundas e irreversíveis, no sentido da modernização da Região e de todo o sector. “O Douro beneficiou da capacidade de homens que viveram intensamente este período e estas alterações na mentalidade científica e na forma de actuar no terreno”20.
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Formas modernas mecanizáveis de implantação da vinha — vinhas ao alto e patamares. Quinta do Ventozelo, São João da Pesqueira
Aliás, é interessante verificar que, na Região Demarcada dos Vinhos Verdes, algo de profundamente semelhante se passou, o que é possível constatar pela leitura dos textos desta obra sobre a mesma. De igual modo, as grandes transformações técnicas, estruturais e socioeconómicas que aí ocorreram, a partir de 60 e 70, foram precedidas, também, por uma fase embrionária de mais de 20 anos de estudo e divulgação, na qual pautou a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, liderada por Amândio Galhano e seus discípulos, com quem alguns viticultores empresários, ainda muito poucos, de mente aberta, colaboraram e inovaram nas suas propriedades, dando origem à moderna vitivinicultura. Mas voltando ao Douro e citando Gastão Taborda no relatório da Estação elaborado já em 1979, dá-se conta da crise então vivida e das perspectivas já pensadas para o começo da sua resolução: “A evolução no sentido da utilização de cada vez menos mão-de-obra tem-se vindo a processar nestas últimas duas dezenas de anos, mas não com aquela rapidez e conhecimentos técnicos que permitam encarar com optimismo o futuro das vinhas existentes. De início deu-se a substituição da enxada pela charrua e depois pelo herbicida, e o bulldozer substituiu o ferro e a pá nas surribas. Mas tudo isto é insuficiente para a sobrevivência da vinha na Região, e há que instalar as vinhas de forma a permitir a mecanização do maior número de operações culturais”.
Na realidade, nas décadas de 60 e 70, a disponibilidade de mão-de-obra, para os traba-
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Do início da modernização da estrutura vitícola e das suas técnicas à actualidade
lhos agrícolas na vinha, inicia um ciclo de decréscimo acentuado, devido à diminuição da população, em termos absolutos, a qual se vem a intensificar nas décadas seguintes. Consequentemente, o valor dos salários aumenta. Estes dois factores – acrescidos, de forma indirecta, pelo substancial aumento dos preços à produção, verificado logo entre 1972 e 1974, pela intervenção de comerciantes do Douro, e também pelo aumento da procura interna e externa de Vinho do Porto – irão implicar a introdução da mecanização das vinhas, quer para a sua instalação, quer para grande parte das operações culturais que se processam ao longo do seu ciclo vegetativo21. No início da década de 70, através do Plano de Fomento Intercalar e das novas competências e meios de actuação da Estação Vitivinícola do Douro, e pela tomada de consciência da necessidade de introduzir alterações profundas nas técnicas e formas de cultura da vinha, em particular na sua mecanização, é criado, em 1971, pela Secretaria de Estado da Agricultura, um grupo de trabalho para a “Reestruturação socioeconómica da Região do Douro a partir da reconversão dos seus vinhedos”, que se vem a concretizar em 1972, pela implementação da “Brigada de Mecanização e Reconversão do Douro”, que vem então a ser chefiada por Machado Grácio, do CNEV, com apoio e concretização no terreno de Rogério Félix e Barrigas de Azevedo. Os primeiros ensaios de mecanização da vinha, em patamares largos comportando 4 a 5 bardos, são então conduzidos, com um modelo de tractor “pernalta” importado de França, nas Quintas da Roeda, de Varjelas, e d Pacheca , de Serpa Pimentel, na Régua. Este, para além das suas funções como Director de Organismos vitivinícolas Oficiais, foi também um vitivinicultor apaixonado e inovador. Este modelo de tractor veio, contudo, a revelar-se rapidamente desadequado às condições orográficas da Região do Douro, pelo que passou rapidamente a ser substituído por tractores vinhateiros, de lagartas ou de tracção às 4 rodas, em patamares horizontais com talude em terra, com cerca de 4 metros de largura, para comportarem dois bardos de videiras. Com o 25 de Abril de 1974, os trabalhos da Brigada são suspensos, regressando Machado Grácio ao CNEV. Continuou, no entanto, embora ainda timidamente, a processar-se a reconversão de vinhas para a sua mecanização, segundo aquela solução de armação do terreno. Sob o ponto de vista social, esboçam-se, por essa altura, algumas melhorias, nomeadamente no que diz respeito a definição de horários de trabalho e à sua remuneração, as quais não deixam de constituir um marco histórico para as condições de trabalho no Douro, nunca antes verificado de forma tão significativa. Quanto às funções e, principalmente, aos meios disponíveis para o desenvolvimento da viticultura por intermédio da Estação Vitivinícola, nada se alterou até 1976, quando António Barreto, Ministro com tutela conjunta para o Comércio e a Agricultura, apesar das enormes dificuldades financeiras que o País atravessava, não deixou de disponibilizar as verbas necessárias ao reequipamento material e humano, pelo aumento do corpo técnico, para aquela Estação e também para o Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão, já que considerava prioritária, para a economia dessas regiões, a implementação de trabalhos de experimentação e divulgação de resultados, junto dos protagonistas do sector. Os desafios que se punham, para o desenvolvimento e transformação, no sentido de
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Patamares mecanizáveis de dois bardos. Quinta de Ventozelo, São João da Pesqueira
uma viticultura moderna, à região do Douro eram enormes, bem evidentes na proposta de estudos a realizar, elaborada, por essa altura, por Gastão Taborda, cujos grandes temas se transcrevem: - Estudos sobre a influência, na qualidade do vinho do Porto, das alterações que será necessário introduzir na cultura da vinha para esta ser mecanizada, a realizar nas três sub-regiões, incluindo as instalações segundo vinha ao alto e em patamares, compassos e densidade de plantação e processos de condução da videira. - Estudo das máquinas e alfaias para a mobilização do solo e tratamentos fitossanitários. - Estudo, nas diversas zonas do Douro, das castas mais aptas à produção de vinho do Porto de alta qualidade. - Melhoramento de castas seleccionadas em cada zona. - Estudos sobre a rega da vinha. - Estudos sobre a produção de plantas em vaso. - Estudos sobre análise e diagnóstico foliar. - Estudos sobre novos processos de fabrico de Vinho do Porto e seu envelhecimento. - Estudo e caracterização de vinhos regionais.
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Como facilmente se adivinha, o caderno de encargos que esta análise/proposta representa, para uma região tão grande e complexa, exigiria, para a sua concretização, um enorme volume de meios, quer materiais, quer humanos, estes das mais diversas competências e especialidades. Por outro lado, nomeadamente pelo primeiro ponto enunciado, é desde logo dado o alerta sobre a noção clara de que alterações tão profundas, que seria necessário introduzir na viticultura, poderiam seguramente alterar a qualidade ou o perfil dos vinhos, implicando, por isso, estudos atentos para esta problemática, não só no sentido de confirmar tais relações, mas também de reencontrar equilíbrios adequados, através da adaptação das novas técnicas ao comportamento das videiras. Com a década de 70 dá-se, então, início a uma fase nova e completamente distinta da viticultura Duriense, envolvendo praticamente todas as técnicas vitícolas, desde a surriba, às diferentes formas de instalação da vinha, às operações culturais, aos materiais vegetais, à organização do trabalho, até aos tipos e categorias de vinhos produzidos. Até à década de 90, ocorre também o maior incremento de sempre na produção, exportação e valorização do Vinho do Porto, chegando a atingir, em 80, as 140.000 pipas comercializadas para o exterior do País, tornando-se a França o maior mercado importador em volume. “Foi neste período que ocorreram transformações fundamentais no processo produtivo e comercial, com relevo para o engarrafamento, o aparecimento de Vinhos de Quinta, a plantação de novas vinhas, a mecanização da viticultura e a modernização dos processos de fabrico”22. Se as mudanças ocorridas e introduzidas após a crise filoxérica, relativamente ao período anterior, pouco tinham alterado na substância, a condução e operações culturais da vinha, a paisagem, as condições de trabalho, e a estrutura fundiária, agora elas passam a ser muito mais profundas e, de certo modo, definitivas, implicando a procura e aplicação de novas soluções técnicas através de um corpo técnico especializado, no sentido da rentabilização da cultura, da preservação do equilíbrio e diversidade da paisagem, e mesmo melhoria dos vinhos, que rapidamente, para além do Porto, irão incluir vinhos tintos e brancos ditos de consumo (DOC Douro) Moscatel do Douro e espumantes de qualidade elevada. As surribas, que até então eram executadas a braço de homem, com recurso a ferramentas tradicionais, passam a ser feitas com potentes “bulldozers” que, equipados com uma lâmina frontal e ferros subsoladores traseiros, rasgam o solo alterando a orografia quando necessário, traçam e surribam terraços (patamares) onde a vinha irá ser plantada. Os anteriores trabalhos de arroteia, desmonte e construção de socalcos separados por muros de pedra seca, que ocupavam dezenas de homens, durante dias inteiros, num inaudito esforço, é agora substituído por máquinas, ainda com algum apoio de homens que deslocam pedras de maiores dimensões para o fundo da vala de corte da surriba. Para destruir veios ou afloramentos de xisto mais rijo, são utilizados compressores que perfuram a rocha, para introdução de dinamite para os destruir, transformando-os num solo cascalhento, mas passível de ser cultivado, depois de retirados alguns calhaus que ainda restaram. Bastam, então, cerca de 120 horas de trabalho de máquina, para arrotear, saibrar e construir um hectare de vinha em patamares. O solo resultante continua a ser designado por Antrossolo (solo fabricado pelo Homem, a partir da rocha-mãe destruída). Só que, se dantes era apenas o homem, com a força dos seus braços, que o construía, agora é a máquina, pela
máquina, quer para os auxiliares (geralmente, dois por máquina), trabalhando sob poeira e calor intensos no Verão, ou sob chuva e frio durante o Inverno. Pela evolução técnica, a dureza destes trabalhos vem a ser atenuada, já ao passar do século, através da introdução de novos tipos de máquinas, designadas por “giratórias”, equipadas com cabines, por vezes, climatizadas, cujo trabalho de surriba dispensa auxiliares exteriores. Terracear a encosta segundo patamares, na altura, com cerca de 4 m de largura, para plantar duas fiadas de videiras (bardos), possibilita o trabalho de tractores vinhateiros geralmente de rastos, com cerca de 1,2 m de largura, circulando entre os bardos, procedendo a mobilizações do solo, executando tratamentos fitossanitários, aplicando herbicidas e transportando as uvas da vindima. Pela mecanização, o número de horas de trabalho manual reduz-se, assim, para metade, ou mesmo um terço, das dispendidas nas vinhas tradicionais. Mas a introdução da mecanização não se limitou a facilitar os trabalhos e a reduzir os custos de instalação da vinha e da sua manutenção. Alterou a orografia e a paisagem, implicou novas soluções de combate à erosão, de princípio, aliás, bastante ignoradas e cujas consequências foram frequentemente perversas culminando na destruição de largas extensões de vinha no Inverno de 2001. Por outro lado, ao terracear a encosta desta forma, o terreno perdido pela superfície dos taludes chega a atingir metade da superfície total da vinha e, para que os tractores possam circular, a densidade de plantação diminui drasticamente, de quase 7.000 cepas/ha nos terraços pós-filoxéricos, para 2.500 a 3.000 cepas/ha nos novos patamares. Se há menos cepas por unidade de superfície, as raízes de cada uma dispõem de um maior volume de solo, adquirindo assim um vigor superior e uma maior capacidade produtiva (ou seja, com menos plantas, pode obter-se uma produção por hectare semelhante à das vinhas tradicionais, estas com mais videiras por unidade de superfície, mas de pequena produtividade). A ajudar, os porta-enxertos tradicionais (Rupestris du Lot ou “Montícola”, na sua maioria; Aramons e Riparias em solos mais férteis), adaptados a solos secos e pedregosos, mas indutores de baixas produtividades, são substituídos, nesta reconversão das vinhas, por outros, também adaptados à secura, mas com superior potencial produtivo: o 99R, numa fase inicial predominante e depois, o 110R, o 1103P e o 196-17. As produções por videira chegam, então, a duplicar ou a triplicar, o que altera, naturalmente, as características qualitativas das uvas no final da sua maturação. Para contrariar este efeito e procurar novo equilíbrio entre vegetação e produção, a parede vegetativa torna-se mais ampla, ganhando em altura (1,6 a 1,8 m contra 1,2 m das vinhas tradicionais). A forma de condução das videiras também se altera substancialmente. O tradicional Guyot de tronco baixo, ou as formas “torneadas”, dão lugar ao Cordão Bilateral ou, mais recentemente, ao Unilateral, de tronco mais alto, podado a talões, para reduzir o tempo de trabalho com a poda, comportando um número de gomos por cepa geralmente superior ao daquelas formas implantadas nas vinhas não mecanizadas. Contudo, o equilíbrio até então encontrado, de forma natural, entre o meio, a videira e o viticultor, é agora quebrado. As técnicas de poda e de condução da videira são suficientemente diferentes, para que o viticultor as aplique de imediato, correctamente, o que se vai reflectir negativamente na condução e na durabilidade da vinha, por vezes, até na qualidade. Serão necessárias duas décadas, por vezes mais, para que um novo equilíbrio se estabeleça.
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força do seu motor. Não deixa de ser, ainda, uma tarefa árdua, quer para o operador da
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É por esta altura, no sentido de solucionar a escassez de mão-de-obra e seu maior custo, que passam a ser utilizados herbicidas, em substituição das tradicionais mobilizações, não só nas linhas e taludes dos novos patamares, mas também na grande maioria das vinhas tradicionais, recorrendo, nestas, a atomizadores de dorso. Também para os tratamentos fitossanitários de combate ao míldio, oídio e mais raramente a pragas, são usados os atomizadores nestas vinhas, em alternativa aos pulverizadores tradicionais não motorizados, poupando em tempo de trabalho (e metade da água necessária) e a pulverizadores acoplados ao tractor, nas novas vinhas mecanizadas. Os produtos fitossanitários tradicionais, à base de enxofre e de cobre, irão ser gradualmente substituídos por produtos de síntese, mais eficazes e flexíveis, permitindo reduzir o número de tratamentos anuais. Contudo, se estas novas técnicas contribuem para minimizar os custos de produção e os tempos de trabalho, por outro lado, são, por vezes, co-responsáveis por desequilíbrios naturais, traduzidos pela acumulação de resíduos nocivos no solo e águas, pelo aparecimento de novas pragas e doenças, pela inversão da flora autóctone pela degradação biológica dos solos e poluição de linhas de água e eutrofisação do próprio rio Douro. Só mais tarde, pela aplicação das normas da Protecção Integrada e da Produção Integrada e da Viticultura Biológica, é retomado um sistema de viticultura mais racional e consentâneo com as regras da Natureza. A partir dos anos 70, para além das novas formas de sistematização do terreno de encosta, com vista à mecanização da vinha, outras importantes mudanças estruturais ocorreram. Pouco depois do 25 de Abril de 1974, ainda em pleno período revolucionário em que as directrizes relativas às formas de desenvolver a Região eram ainda pouco esclarecidas, o Centro de Estudos promove e leva a cabo um trabalho de fundo, “O Inventário dos Mortórios do Douro”23, com potencial de valorização vitícola, o que viria a permitir, mais tarde, já em 1982, um plano-base para o alargamento da área de vinha plantada para produção de Vinho do Porto de alta qualidade, através da implementação do Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes (PDRITM), ao qual, de novo, se fará referência. Por este inventário, os técnicos daquele Organismo contabilizaram mais de 3.700 ha de área de mortórios com potencial de reconversão, agora para formas mecanizáveis e para plantação com castas de superior potencial qualitativo, e segundo novas formas de condução. Apesar dos estudos sobre castas, anteriormente conduzidos pela Estação Vitivinícola, em colaboração com o Instituto do Vinho do Porto e apoio de alguns Enólogos de nomeada, tais como John Smith, José Rosas, António Serôdio, John Graham, Bruce Guimaraens, serem ainda insuficientemente conclusivos, uma vez que as condições e meios de estudo não eram os melhores, já se havia chegado a uma selecção prévia daquelas que, à partida, poderiam ter mais interesse para a produção de Vinho do Porto. Como consequência, algumas importantes linhas de trabalho sobre castas foram iniciadas a partir de meados da década de 70. Como já foi anteriormente referido, o número de castas cultivadas na região do Douro ultrapassa uma centena, das quais não se conhecia, com rigor, nem o seu comportamento vitícola, nem o enológico. Apenas, e com base em conhecimentos empíricos, havia uma classificação das castas segundo o Método de Moreira da Fonseca para atribuição de benefício, subdividindo-as em Muito Boas, Boas, Regulares, Medíocres e Más. Mas esta
a viticultura da região do douro
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Aplicação de enxofre em pó por meios mecânicos
classificação era manifestamente insuficiente, pois carecia de uma avaliação técnica ou científica mais rigorosa, e de uma análise do comportamento e adaptação de cada casta às diversíssimas características dos múltiplos ecossistemas existentes. Em 1976, José Rosas e João Nicolau de Almeida iniciam um estudo de caracterização vitícola e enológica de uma dezena de castas tintas e uma meia dúzia de brancas, através do registo de estados fenológicos, da evolução da maturação, seguindo-se microvinificações de vinhos elementares (por tecnologia para Porto e para Douro), o qual se prolonga até 1981, quando são publicados os primeiros resultados nas Jornadas Vinorde realizadas nesse ano, em Vila Real. Esta primeira selecção de castas para estudo baseou-se, contudo, já em critérios prévios de apreciação de vinhos elementares, atrás referidos. Partindo do pressuposto de que cada casta pode ter comportamento distinto, em função das condições edafo-climáticas onde é cultivada, assentaram o estudo, em paralelo, nas três sub-regiões, numa parcela do Baixo Corgo, em duas a diferentes altitudes no Cima Corgo, e numa no Douro Superior. Pelos resultados analíticos dos mostos e organolépticos dos vinhos, realizados em cada um dos cinco anos de estudo, elegeram cinco castas tintas (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão) e três brancas (Viosinho, Rabigato e Arinto), com superior potencial qualitativo para qualquer uma daquelas sub-regiões. Em consequência dos resultados deste estudo, aquelas cinco castas tintas vieram a ser as obrigatórias na instalação de novas vinhas instaladas ao abrigo do PDRITM, em 1982. É também justo referir a consistência daquelas conclusões, pois ainda hoje qualquer uma das castas referidas, para além de mais algumas que entretanto vieram a revelar-se também de boa qualidade, geralmente figura em novas plantações, seja com o objectivo da produção de Vinho do Porto, seja de DOC Douro, denominação regulamentada também no ano de 1982.
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Um outro importante e indispensável estudo, complementar ao agora sumariamente descrito, sobre o valor enológico de castas, iniciou-se em 1979, a nível nacional, mas começando pelo Douro. Refere-se à selecção clonal das castas, então conduzido por Antero Martins, do Instituto Superior de Agronomia; Luís Carneiro, da Estação Agronómica Nacional; e pela equipa de Viticultura do então Instituto Politécnico de Vila Real (mais tarde, a partir de 1986, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro). A selecção clonal parte do princípio de que, para cada casta, existe um sem número de variantes genéticas, na sua maioria invisíveis, que se reflectem em comportamentos distintos, traduzidos por diferenças frequentemente acentuadas na produtividade, no açúcar, na acidez e noutros componentes do vinho. Através de metodologias próprias, é possível seleccionar, para cada casta, um número variável de clones com aptidões mais interessantes, seja do ponto de vista vitícola, seja do enológico, ou de ambos. A selecção clonal era já praticada, há algumas dezenas de anos, noutros países Europeus, em particular na Alemanha, França, Itália, Suíça, Espanha, enquanto em Portugal constituía uma inovação. Iniciada a selecção no Douro, naquele ano pela Touriga Nacional, rapidamente se estendeu, por todas as regiões vitícolas do País, a outras castas, pelo contributo activo de várias dezenas de técnicos de organismos oficiais e privados que contaram com o contributo precioso de empresas vitivinícolas, nomeadamente, pela cedência de terrenos para ensaios e multiplicação dos materiais seleccionados, constituindo o que veio a designar-se, mais tarde, por Rede Nacional para a Selecção da Videira em Portugal; a qual deu lugar, em 2010, à Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira (PORVID). Passados poucos anos do início deste projecto, foram introduzidas metodologias inovatórias a nível Mundial, baseadas na genética quantitativa, o que faz com que Portugal seja, hoje, o País mais evoluído do mundo vitícola, na área da selecção e preservação de recursos genéticos da videira. Em resultado, existem actualmente 60 castas portuguesas com selecção massal genotípica, sendo cerca de 20 da Região do Douro e umas 10 da Região dos Vinhos Verdes; e ainda, para cada uma delas, populações mais vastas, representativas da sua variabilidade genética, constituindo um reservatório de genes para o futuro. São ainda de referir dois aspectos importantes a considerar no âmbito deste trabalho. Um diz respeito à Touriga Nacional, hoje a mais importante casta tinta portuguesa, cuja alta qualidade começa a ser reconhecida, a nível dos principais países vitícolas mundiais. Quando do início da selecção, encontrava-se quase extinta, devido à sua baixíssima produtividade. Graças àqueles trabalhos, é actualmente uma das mais plantadas nas regiões vitícolas portuguesas, com uma divulgação crescente em muitos países vitícolas, particularmente nos do chamado Novo Mundo Vitícola. O outro aspecto que importa citar diz respeito ao facto de todas as equipas terem trabalhado em paralelo, segundo idêntica metodologia e motivação, até porque algumas castas eram comuns a mais do que uma região. Visando esta obra o cruzamento de duas regiões nortenhas, a dos Verdes e a do Douro, através de transformações que sofreram, em paralelo ou em comum, ao longo das suas histórias, e sobre as quais se salientaram protagonistas de relevo, também neste capítulo da selecção se podem referir castas de grande importância e de cultivo comum, das quais se salienta o Sousão, tradicional no Douro e actualmente em expansão significativa, e a designada por Vinhão, nos Verdes, onde é a tinta mais importante e representativa, tratando-se, afinal, da mesma casta; pelo que, para o seu estudo, estiveram presentes plantas oriundas das duas regiões. Finalmente, estes trabalhos
internacional de castas portuguesas, neste caso oriundas das duas regiões abordadas, de que são exemplo a já referida Touriga Nacional, o Alvarinho do Alto Minho, a Tinta Roriz – apesar de comum ao Aragonêz Alentejano e ao Tempranillo Espanhol –, e de outras que seguramente virão a ser reconhecidas lá fora, tais como o Loureiro e o Avesso, dos Verdes; a Touriga Franca, o Gouveio, ou o Viosinho, do Douro. Ainda no que se refere às castas, a sua caracterização e rigorosa identificação constituem um conhecimento indispensável para uma viticultura moderna. Em caso contrário, há o risco, tantas vezes concretizado no passado, de não se saber o que se planta, de se julgar estar a usar uma determinada casta que afinal é outra, ou de confundir nomes, situação muito corrente até tempos recentes, antes de terem sido desenvolvidos trabalhos de ampelografia. Aquela última situação decorre de problemas de sinonímia e de mononímia, ou seja, respectivamente, de uma mesma casta possuir nomes distintos conforme designações regionais, ou de duas castas distintas terem igual nome. Nos finais do século XIX, surgem já descrições botânicas de castas portuguesas elaboradas por diversos autores. Embora úteis, não são suficientes para uma caracterização segura, já que eram muito personalizadas e portanto algo subjectivas, além de que não assentavam em descritores padronizados. Daí que, hoje, nem sempre tenhamos a certeza de que uma determinada casta então descrita corresponda à que actualmente tenha idêntica designação. Mais tarde, na primeira parte do século XX, João Vasconcelos e Pereira Coutinho publicam um livro sobre castas portuguesas, com base numa descrição botânica, já técnica e cientificamente mais elaborada. Mas só nos anos 50 surge um método filométrico e carpométrico de caracterização de castas, elaborado por Acúrcio Rodrigues, da Estação Agronómica Nacional, assente em medições e determinações matemáticas suficientemente rigorosas para uma identificação segura das mesmas, através da caracterização das folhas e dos frutos. No entanto, e apesar da fiabilidade do método, passaramse décadas sem que fosse posto em prática em Portugal, só pontualmente na Itália… Até que, já nos inícios da década de 80, Mário Cardoso, no CEVD e depois na Casa do Douro, utilizando aquele método e o de caracterização botânica designado por UPOV, adoptado pelo Office Internacional da la Vigne et du Vin (OIV), caracteriza as principais castas da Região do Douro, tendo sido objecto de duas publicações, por parte daqueles Organismos. Constituiu, pois, um primeiro contributo muito importante para a caracterização e identificação de castas durienses, e para esclarecer problemas de sinonímia e de mononímia, nomeadamente através da confrontação com outros trabalhos da mesma índole, desenvolvidos por técnicos de outras regiões do País, dos quais sobressai Eiras-Dias, da Estação Vitivinícola Nacional. Ainda no período que decorre em meados da década de 70, prolongando-se pela de 80, regista-se um facto inédito e importante, pelas alterações significativas que passaram a ocorrer na Região do Douro. As Empresas Exportadoras de Vinho do Porto, até então sediadas em Vila Nova de Gaia, cujos responsáveis técnicos se deslocavam ao Douro praticamente apenas no período das vindimas, para controlo das mesmas e para compra de vinhos, poucos meses depois, transportados para os seus armazéns em Gaia, passam a dedicar-se também à viticultura. Compram quintas, instalam novos vinhedos, constroem adegas recorrendo aos modelos de equipamentos mais recentes, passam, enfim,
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de selecção clonal, iniciados em finais de 70, muito contribuíram também para a projecção
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a controlar a qualidade da matéria-prima e a vinificação, introduzindo simultaneamente inovações, quer na viticultura, quer na enologia. Apercebem-se de que, apesar dos esforços antes desenvolvidos pelos poucos técnicos a trabalhar na Região, já antes citados, e dos incentivos dados ao CEVD pelo Ministério de António Barreto, a carência de respostas aos novos problemas postos pela viticultura moderna, que então dava os primeiros passos, era enorme. Os investimentos na instalação das vinhas e sua manutenção eram muito elevados, pelo que era urgente procurar, permanentemente, novas soluções técnicas para redução de custos, aumento da produtividade e melhoria da qualidade das uvas. Um grupo de Administradores, representante de empresas exportadoras de Vinho do Porto (José Rosas, Jorge Ferreira, José Gaspar e António Filipe), decide e põe em prática uma Associação sem fins lucrativos, com o objectivo de dar continuidade a estudos particulares já encetados, sistematizar e promover novos estudos e experimentação no âmbito da viticultura duriense e dar apoio técnico às explorações dos seus associados. Fundada em 1982, toma o nome de Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID), englobando então 11 empresas. Com um grupo de técnicos inicialmente reduzido, que se foi progressivamente alargando à medida que o volume de trabalho se incrementou, teve como primeiro Director Nuno Cancella de Abreu, a que se seguiu Bianchi de Aguiar, depois, e até á data, Fernando Alves. Das diversas vertentes de estudo da viticultura, salientam-se as dos âmbitos da mecanização, motorização e racionalização das operações culturais, da sanidade da vinha, das relações hídricas e comportamento ecofisiológico das castas, da análise de custos de produção, da participação na selecção clonal de castas, quer por realização directa de trabalhos, quer indirectamente pela disponibilização de parcelas de vinha dos associados para instalação de campos experimentais e, ainda, de acções de formação técnica e de divulgação, através de folhetos informativos, publicações diversas e participação em seminários, simpósios e congressos nacionais e internacionais. Quase em paralelo com a criação da ADVID, nasce na UTAD o primeiro curso superior, a nível nacional, de formação em Enologia, incluindo no seu curriculum uma componente forte, também, em viticultura. Com o crescimento rápido do número de novos projectos de vinha e de adegas, do surgimento de pequenas e médias empresas, e dos investimentos na Região por parte das empresas exportadoras, os jovens licenciados em Enologia ou em Engenharia Agrícola por aquela Universidade, bem como do Instituto Superior de Agronomia e de outras Escolas de formação superior recentemente criadas um pouco por todo o País, facilmente encontram emprego no Douro. Pela sua formação, juventude e espírito empreendedor, vêm a dar uma forte dinâmica ao sector e à modernização da RDD, que se vem revestindo, até aos dias de hoje, de uma importância inequívoca. Recorde-se que, até então, o número de Agrónomos e de Enólogos a trabalhar no Douro contava-se pelos dedos de uma mão. Em 1997, pelo aparecimento crescente de novos agentes económicos, nomeadamente de produtores-engarrafadores, de empresas vitivinícolas de dimensão variada, e do enorme desenvolvimento das Quintas das empresas exportadoras, a ADVID sentiu a necessidade de rever os seus estatutos, no sentido de poder ser alargada a sua acção a outros produtores e entidades, o que de imediato se veio a concretizar, implicando um reforço da sua equipa técnica. Dada a credibilidade técnica e científica demonstrada no âmbito da
mais tarde, em 2003, para a Produção Integrada. Tendo-se candidatado ao Programa Operacional de Factores de Competitividade (POFC) promovido pelo Ministério da Economia e Inovação, foi reconhecida para liderar o “Cluster dos Vinhos do Douro”, como “Estratégia de Eficiência Colectiva”. A ADVID conta actualmente com 9 empresas exportadoras, na qualidade de membros principais, e com mais de 70 empresas e instituições privadas e oficiais, incluindo universidades, como membros individuais parceiros do “Cluster”. É também em 1982 que, por iniciativa de Valente de Oliveira, então presidente da Comissão da Região Norte, se iniciam os trabalhos do PDRITM, projecto de desenvolvimento rural de Trás-os-Montes, já referido, em particular os referentes ao incremento da instalação de vinhas mecanizáveis, neste caso, pelo terraceamento das encostas segundo patamares horizontais com cerca de 4 m de largura, comportando, cada um, dois bardos de videiras. O objectivo da componente vitícola do Projecto visava não só fazer face à escassez crescente de mão-de-obra, mas também o alargamento da área de produção de vinhos do Porto de qualidade superior. Assim, durante os anos seguintes, foram instalados 2.500 hectares de vinhas através daquela forma de sistematização do terreno, em zonas de classificação A, B e nalguns casos, C. O Projecto financiou, ainda, a reconversão de mais 1.000 hectares de vinhas de formas antigas, para mecanizáveis. Mas estas reconversões não se limitaram à construção de terraços permitindo a mecanização de operações culturais. Para facilitar os trabalhos de poda e diminuição dos tempos de trabalho respectivos, as tradicionais formas de condução em vara e talão foram substituídas pelo cordão bilateral tipo “Royat”, constituído apenas por talões, o que eliminava, logo à partida, a operação da “empa” das varas. Recorreu-se a porta-enxertos resistentes à secura, mas mais produtivos do que o tradicional Montícola”, predominando então o 99 R nas novas plantações. Com a finalidade de incrementar a qualidade dos vinhos tintos do Porto, só foram permitidas, no âmbito do PDRITM, as cinco castas seleccionadas a partir dos trabalhos de José Rosas e Nicolau de Almeida, atrás citadas. Pese embora o facto de os primeiros patamares deste tipo terem sido já instalados na década anterior, na sequência dos trabalhos iniciados pela Brigada de Mecanização, foi, de facto, o PDRITM que deu o grande impulso à modernização da viticultura regional, a qual veio sofrendo, depois e até à data, alterações e aperfeiçoamentos, nomeadamente pelo recurso a outras formas de condução e de armação do terreno, outras castas e portaenxertos, novas soluções de mecanização e novas técnicas culturais. No ano de 2000, é criada uma outra Associação, designada por “Lavradores de Feitoria”, sociedade por quotas, que reúne actualmente quinze produtores, num total de 18 Quintas, e accionistas não produtores. O seu objectivo principal visa promover e valorizar os vinhos não fortificados, ou seja, os DOC Douro, cujas uvas eram pagas a preços muito inferiores às destinadas a Vinho do Porto. Estas seguiam o destino normal de mercado de cada associado, sendo as restantes entregues aos Lavradores de Feitoria para vinificação sob orientação da sua equipa de Enólogos, recorrendo à própria adega ou às de alguns dos produtores, desde que suficientemente equipados enologicamente. Antes da vinificação, o controlo da evolução da maturação é executado pelo corpo técnico (Enólogos e Técnicos de viticultura). Depois dos vinhos feitos e avaliados organolepticamente, são classificados
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sanidade da vinha, foi acreditada como associação para a Protecção Integrada da Vinha e,
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Desponta mecânica da vegetação
segundo as categorias Base, Superior e Extra, sendo então pagas as uvas que lhes deram origem, a preços diferenciados correspondentes. Actualmente, a Empresa comercializa cerca de um milhão de garrafas para o mercado nacional e mercados internacionais, sob a designação comum de Lavradores de Feitoria, acrescidas das designações Três Bagos, Três Bagos Grande Escolha ou ainda pelo nome da Quinta onde as uvas foram produzidas. Deste modo, os viticultores associados, para além da receita proveniente do vinho do Porto, podem tirar partido de uma valorização das uvas excedentárias ao benefício, geralmente muito mal remuneradas na Região, já que, neste caso, são vinificadas por enólogos competentes, dispondo de equipamentos enológicos modernos e adequados, e de uma comercialização e marketing comuns, assegurados também por um corpo técnico especializado. A nível da viticultura, os associados podem dispor de acompanhamento técnico, quer a nível da Protecção e Produção Integradas, quer do conselho para boas práticas vitícolas, com vista a reduzir custos de produção, melhorar a qualidade das uvas e aumentar a produtividade quando tal se justifique. Apesar de esta Empresa incluir um número reduzido de Produtores, não deixa de ter grande importância para a promoção dos vinhos da região do Douro, e de representar um modelo associativo a ser seguido por outras que se venham a constituir. Aliás, outras associações e sociedades formalizadas, por exemplo, a Associação dos Viticultores Produtores Engarrafadores de Vinhos do Porto e Douro (AVEPOD), e outras menos formais mas de grande impacto e visibilidade nos mercados internacionais, vêm sendo, pouco a pouco, constituídas durante os anos mais recentes.
em 1998, sob a presidência de Miguel Cadilhe, e naquela data já sob a presidência de Luís Braga da Cruz, é aceite e aprovada a candidatura à Convenção do Património Mundial da UNESCO, para reconhecimento do Alto Douro Vinhateiro (ADV), à luz do conceito de paisagem cultural evolutiva viva. A superfície do ADV considerada Património Mundial estende-se desde o Extremadouro (Mesão Frio), acompanhando as margens do rio Douro e parte das dos seus afluentes Corgo e Pinhão, da margem direita, e do Távora e do Torto, da margem esquerda, até ao Saião (Pocinho), já na sub-região do Douro Superior, num total de 24.600 ha, incluídos nos 250.000 ha da Região Demarcada do Douro. Este estatuto vem dar uma visibilidade importante da Região do Douro, a nível Internacional, aliás inteiramente merecida, que se reflecte na promoção não só dela própria, mas também, naturalmente, dos vinhos nela produzidos. Na qualidade de paisagem cultural, evolutiva e viva, e como património de reconhecido interesse universal, seria necessário regulamentar as intervenções humanas no Alto Douro Vinhateiro, de modo a conciliar a componente económica com a salvaguarda do padrão da paisagem e dos valores naturais e históricos nele existentes. Nesse sentido, foi elaborado um Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território – Alto Douro Vinhateiro (PIOT – ADV), que veio a ser aprovado em 2003 por Resolução do Conselho de Ministros, pelo qual são definidas as condicionantes às referidas intervenções, que sumariamente se mencionam24: - Não implicar a obstrução ou destruição das linhas de drenagem natural, nem a alteração da morfologia das margens dos cursos de água. - Apresentar estudo de sistemas de drenagem para declives superiores a 10%, no caso de novas plantações. - Interdição de plantações de vinha em encostas com declive superior a 50%, salvo em situações já ocupadas com vinha ou outras culturas permanentes, ou por “mortórios”, sendo então autorizada a plantação em micropatamares. - Para declives da encosta entre 40% e 50%, só são autorizadas plantações segundo patamares estreitos, de uma só linha, ou em micropatamares. - A plantação em “vinha ao alto” só pode ser efectuada em encostas com declive máximo de 40%. - As plantações em parcelas já ocupadas com vinha, olival ou amendoal, armadas com muros, ou ainda em “mortórios”, têm de ser feitas com recurso a patamares estreitos, mantendo os muros de suporte. Muito mudou, pois, a Região do Douro, desde os anos 60/70 a esta parte, quer do ponto de vista técnico, quer do socioeconómico, quer mesmo do paisagístico, cujas principais modificações a seguir se sintetizam. As vinhas tradicionais, de compassos estreitos, trabalhadas manualmente ou pelo recurso a muares nas mobilizações, dão progressivamente lugar a vinhas mecanizáveis, segundo terraços com talude em terra, ou segundo as linhas de maior declive (vinhas ao alto), estimando-se que a sua área actual ocupe cerca de 30% da Região. É, contudo, a partir daquela época, em virtude da escassez de mão-de-obra, que o controlo de infestantes por herbicidas se começa a generalizar, em geral por aplicação com pulverizadores de dorso, reduzindo substancialmente os custos de produção. Mas, não há bela sem senão;
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No ano de 2001, na sequência de estudos patrocinados pela Fundação Afonso Henriques,
a viticultura da actualidade / o douro património mundial
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Patamares mecanizáveis com um só bardo
passados anos, alguns efeitos nefastos começam a fazer-se sentir, pela dominância de determinadas infestantes vivazes, contaminação das águas por herbicidas residuais e esterilização biológica dos solos. Daí que, hoje em dia, se veja cada vez mais reduzida a lista de substâncias activas autorizadas e que a prática de relvamentos nas entre-linhas constitua uma prática frequente nas novas vinhas mecanizadas, com reflexos positivos para a revitalização do solo e para a qualidade da paisagem. O porta-enxerto dominante nas vinhas tradicionais era o “Montícola” que, apesar da sua rusticidade na adaptação aos solos secos, pobres e pedregosos do Douro, induzia a produtividade baixa. Nas novas plantações, deixou de ser utilizado, sendo substituído por outras variedades, igualmente adaptadas ao meio, mas com potencial produtivo bastante mais elevado. A conjugação deste potencial com a diminuição, para cerca de metade, da densidade de plantação imposta pela mecanização conduziu a aumentos significativos da produtividade unitária, com evidentes reflexos nas características do produto final. Para a manutenção dos níveis qualitativos dos vinhos, houve então que recorrer à plantação exclusiva de castas mais nobres, à alteração e aperfeiçoamento de práticas culturais, no sentido de reencontrar equilíbrios entre produtividade e qualidade dos mostos. Dessas práticas, salientam-se o aumento da dimensão da parede vegetativa e a manipulação do coberto vegetal por intervenções em verde, diversas e rigorosamente determinadas, segundo
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métodos de viticultura tecnicamente moderna. Se nas vinhas tradicionais as castas se misturavam aleatoriamente e em número elevado em cada parcela, as novas plantações
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Adaptação de antigas “geias” para micropatamares mecanizáveis
dispõem-se segundo talhões monovarietais, possibilitando intervenções vitícolas diferenciadas, em função das características de cada casta, e um controlo rigoroso da evolução da maturação das uvas, no sentido de melhorar a sua qualidade. A redução drástica do número de castas utilizadas nas novas plantações pode conduzir, no entanto e a breve prazo, a uma erosão varietal muito significativa, pela extinção de muitas castas que, apesar de agora consideradas de menor qualidade, são indispensáveis para a manutenção do rico património genético que o País, e em particular o Douro, possuem. Por outro lado, a implementação, a partir dos finais da década de 70, da selecção clonal de castas, segundo novas metodologias que respeitam a manutenção da variabilidade, permitiu não só a sua preservação a nível de clones, mas também a recuperação de castas de alta qualidade que se encontravam em vias de desaparecimento, devido à sua baixa produtividade. Relativamente às técnicas culturais anualmente praticadas na vinha, são de referir, também, alterações mais ou menos profundas entre o tradicional e o actual. A poda, antes executada em vara e talão, ou torneada, passou a cordão uni ou bilateral, para permitir a sua mecanização e diminuir os tempos de trabalho manuais. Algumas intervenções na vegetação passaram a ser mecanizadas, como a desponta mecânica, em substituição da tradicional “enrola” manual. As fertilizações, dantes feitas, muitas das vezes, por enterramento de tremoço ou por incorporação de estrumes, são rapidamente substituídas por adubos químicos de síntese. Estes, presentes no mercado segundo numerosas formulações e de fácil aplicação, eram e são, ainda, frequentemente utilizados sem
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critérios rigorosos. No entanto, através da assistência técnica de profissionais e pelas regras estabelecidas para a Produção Integrada, cada vez mais os viticultores recorrem a análises de solo e foliares, no sentido de aplicar os nutrientes de que a vinha, de facto, necessita, segundo as doses recomendadas. Também quanto ao diagnóstico e controlo de doenças e de pragas, algo de semelhante de passa. Dantes, apenas produtos de origem natural, o cobre e o enxofre, eram utilizados como tratamentos contra as doenças. Pelo surgimento de novos produtos de síntese, a utilização daqueles passa a ter um carácter pontual, já que estes são, em geral, mais eficazes e permitem um número mais reduzido de aplicações. Contudo, devido a efeitos secundários na aplicação destes pesticidas, surgem, por vezes, novas pragas e fenómenos de resistência das doenças aos produtos. Então, se uns saem do mercado, outros, com novas formulações, passam a estar disponíveis, devido a superior eficácia, menores efeitos secundários, ou inferior toxicidade para homens e animais. Pela complexidade desta problemática, face ao grau de conhecimento da maioria dos viticultores, são criadas associações, primeiro para a Protecção Integrada e, mais recentemente, de Produção Integrada, para apoiar os seus associados no sentido do diagnóstico de pragas e doenças, e da recomendação de quais, quando e em que doses utilizar os produtos mais indicados. Na instalação da vinha, até sensivelmente aos anos 60, as surribas eram efectuadas exclusivamente à custa da força humana, com recurso a ferros de monte, pás e outras ferramentas, de igual forma e pelos mesmos meios como eram executadas desde o nascer da Região. A partir daquela altura, entram as máquinas, potentes tractores que desfazem a rocha de xisto, constroem terraços e criam o solo para a plantação da vinha, poupando esforço humano e custos de instalação. As videiras são plantadas já enxertadas, técnica inovatória na Região; as pedras de xisto, para sustentação dos arames que conduzem as videiras, passam a ser substituídas por paus de madeira tratada e por postes metálicos, o que permite uma mais fácil execução de algumas operações culturais. Sob o ponto de vista social, também muito mudou. O trabalho de sol a sol, os salários baixos, as condições de alojamento e de alimentação dão lugar à fixação de horários de trabalho, à regulamentação das remunerações, à segurança social e a melhores condições de transporte e de vida em geral. As rogas para a poda e para as vindimas, de homens, mulheres e crianças, vindos das aldeias das montanhas limítrofes, desaparecem. Os trabalhos nas vinhas passam a ser assegurados por permanentes ou assalariados e, recentemente, por empreiteiros que garantem quer a instalação da vinha, quer operações especializadas. O absentismo, praticamente generalizado relativamente às Quintas de maior dimensão, torna-se cada vez menos frequente, pela fixação, na Região, de proprietários, gestores e técnicos, surgindo uma nova figura, a de Produtor Engarrafador. Também as Casas Exportadoras de Vinho do Porto, que dantes não possuíam vinhas, limitando-se a adquirir uvas ou, mais frequentemente, vinho que rapidamente seguia para Gaia, onde era lotado, acompanhado e envelhecido até à sua comercialização, compram terras e Quintas, instalam novos vinhedos segundo técnicas modernas, constroem adegas e contratam Agrónomos e Enólogos para acompanhar as vinhas e fazer o vinho. Se naquela época não muito remota, dos anos 60 e 70, os poucos técnicos de viticultura se sediavam no Centro de Estudos e na Casa do Douro, agora contam-se às dezenas, a trabalhar na vitivinicultura do Douro,
ou de apoio à vitivinicultura, para Produtores Engarrafadores e outros proprietários de média dimensão. Para além do Vinho do Porto, a Região passa a produzir outros vinhos, tintos e brancos de alta qualidade, sob a designação DOC Douro, ou Terras Durienses, e ainda espumantes e Moscatéis licorosos. A paisagem muda e diversifica-se, num mosaico de vinhas tradicionais, de patamares largos e estreitos, de vinha ao alto, de recuperação de geios filoxéricos, de adaptação de antigos terraços com muros em pedra à mecanização. Por tudo isto, a UNESCO inscreveu o Alto Douro Vinhateiro na categoria das “paisagens culturais, evolutivas e vivas”, ou seja, uma paisagem que valor excepcional e universal construída pelo Homem, que vai evoluindo ao ritmo das transformações sócio-económicas e técnicas para que se mantenha rentável e viva25.
1 PEREIRA, Gaspar Martins — Morte e ressurreição : o Douro perante a filoxera in “ O Douro Contemporâneo”, Lisboa, 2006, p 151-161
10 PEREIRA, Gaspar Martins — Morte e ressurreição : o Douro perante a filoxera in “ O Douro Contemporâneo”, Lisboa, 2006, p. 151-161.
2
11
Idem.
Ibidem.
3 MENDES, Manuel — Roteiro Sentimental, Douro, 2002, Edição Fundação do Museu do Douro, p. 185.
12 PEREIRA, Gaspar Martins — Morte e ressurreição : o Douro perante a filoxera in “O Douro Contemporâneo” , Lisboa, 2006, p.151-161.
4
Ibidem.
5
Idem.
13 PEREIRA, Gaspar Martins — morte e ressurreição : o Douro perante a filoxera in “O Douro Contemporâneo”, Lisboa, 2006, p. 151-161.
6 MAYOR, Visconde Villa — Manual de Viticultura Prática, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1976. 7 BARRETO, António — Douro, Edições INAPA s.a., 1993, p. 171. 8 MAYOR, Visconde Villa citado por MAGALHÃES, Nuno — A cultura da vinha na região do Douro in “Enciclopédia dos vinhos de Portugal: O vinho do Porto – Vinho do Douro”, Edições Chaves Ferreira, p. 171. 9 MAGALHÃES, Nuno — Técnicas vitícolas e seu impacto na estrutura socio-económica da exploração Duriense e na qualidade do produto, in “O Douro Contemporâneo”, GEHVID, 2006, p.171-177.
14 MENDES, Manuel — Roteiro Sentimental, Douro, Edição Fundação do Museu do Douro, 2002, p.185. 15 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a construção do Douro Contemporâneo, Edição Fundação do Museu do Douro, 2008. 16 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a construção do Douro Contemporâneo, Edição Fundação do Museu do Douro, 2008. 17 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a construção do Douro Contemporâneo, Edição Fundação do Museu do Douro, 2008. 18 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a construção do Douro Contemporâneo, Edição Fundação do Museu do Douro, 2008.
19 BARROS, Amândio — Último relatório da Estação Vitivinícola (1979) in “Gastão Taborda e a construção do Douro Contemporâneo”, Edição Fundação do Museu do Douro, 2008. 20 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a construção do Douro Contemporâneo, Edição Fundação do Museu do Douro, 2008 21 BARRETO, António — Douro, Edições INAPA s.a., 1993, p. 171. 22 BARRETO, António — Douro, Edições INAPA s.a., 1993, p. 171. 23 Antigos calços pré-filoxéricos abandonados após a devastação das vinhas pela filoxera, agora reocupados pela vegetação indígena. 24 AGUIAR, Fernando Bianchi de; DIAS, Jorge —A evolução das tecnologias vitícolas e o padrão da paisagem. O caso do Alto Douro vinhateiro in “O Douro Contemporâneo”, GEHDIV, 2006, p.163-170 25 CCDRN — Alto Douro Vinhateiro Património Mundial, Edição CCRDN, 2006, p. 211.
79 a viticultura da região do douro
para as grandes empresas, para as adegas cooperativas, para associações de investigação