OS DANÇARINOS DE DIONISO
ROXANE 4. Durante uns momentos, o tempo e o espaço gelaram. Tão fugaz quanto aterradora, a imagem dos dez bustos com máscaras de cavalo tornara o ambiente irrespirável. Olhares ainda fixados nessa imagem do exército de demónios, os polícias esta‑ vam no limite do auto‑controlo, paralisados pelo medo. Sorridente, olhos a brilhar, Amyas Langford gozava a situação. Uma rajada de relâmpagos espalhou‑se pela sala e voltou a agitar os presentes. — Quem eram esses tipos? — perguntou Ca‑ brera. A pergunta permaneceu sem resposta, ecoando nas paredes da sala gelada. Com uma violência in‑ contida, o pied‑noir agarrou Langford pelo pescoço. — Quem eram estes tipos? — repetiu, gritando. Mas quanto mais o polícia o abanava, mais Amyas parecia gostar. Era claro para todos que o equilíbrio de poder se tinha deslocado. Sorbier interveio para acalmar o capitão da DPJ. De costas, com a testa pressionada contra o vidro gotejante da sala de interrogatório, Roxane
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olhava para as caleiras do novo edifício, que já não conseguiam escoar a água da chuva. Uma bela metáfora para a situação em que agora se encontravam. — Então, gordo, já não te sentes tão esperto como quando estavas do outro lado da muralha? — disse o inglês quando Cabrera o libertou do apertão. O sotaque alemão defensivo tinha desaparecido completamente. O camaleão estava a colocar uma nova pele adequada a outra investida. — De que muralha estás a falar, sacana? — Estar do lado do JÚRI. — Neste julgamento és tu que vais ser confron‑ tado com um júri, meu idiota. E sabes o que te espera. A palavra «júri» ressoou na cabeça de Roxane. Afastou‑se da janela para ir à mesa buscar o livro e encontrar uma página sobre a organização das antigas Dionísias, que tinha lido e anotado no helicóptero.
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E de repente, tudo fez sentido na sua mente. Os drones, as câmaras de espionagem, os dançarinos, a rede identificada por Le Hénaff, a referência ao culto dionisíaco, a história romântica da mulher desconhecida no Sena, a dimensão teatral que pairara sobre esta investigação desde o início... A lógica que lhe tinha escapado nos últimos dias, a ilusão com que a tinham enganado, tornaram‑se então claras como o caminho é evidente para um peregrino. Os dez indivíduos com máscaras de ca‑ valo integravam‑se na tradição de um júri online que fazia eco de um júri da antiguidade. — Tudo isto é afinal uma competição teatral, não é? — perguntou, aproximando‑se de Amyas. — Os Dançarinos de Dioniso são uma das três trupes que estão a concorrer sob o olhar de um júri, à maneira das competições teatrais das Gran‑ des Dionísias. O sorriso de Amyas Langford abriu ‑se nova‑ mente. Roxane dizia finalmente o que ele estava à espera que ela dissesse! Em poucos segundos, vários telefones começa‑ ram a tocar, causando uma agitação na sala. Um a um, todos os polícias agarraram nos smartphones. Com o rosto tenso, Sorbier olhou longamente para o ecrã do telefone dele antes de o mostrar a Ro‑ xane: o Le Parisien tinha continuado a investigar e fora citado num despacho da Agência F rance‑Press
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intitulado: «A desconhecida do Sena será a pia‑ nista Milena Bergman?» O jornal ainda estava uns passos atrás deles na investigação, mas o que publicaram foi a centelha suficiente para tornar a história tão entusiasmante que captou a atenção de todos os meios de comunicação social. A notícia e o relatório inicial foram divulgados por todo o lado, passando para a grande máquina de lavar roupa suja da informação. Retuitadas ad nauseam, comentadas, distorcidas, as notícias incendiaram as redes e tornaram‑se mundiais. Exactamente o que Amyas e os seus pretendiam. Era evidente que este rastilho de pólvora assusta‑ va os polícias na sala. A exposição mediática teria como corolário a procura de bodes expiatórios. Se a investigação viesse a ser um fiasco, mais cedo ou mais tarde iriam rolar cabeças. E quando a gui‑ lhotina está à espera, não se procura nem verdade, nem reflexão, nem se relativiza nada. Roxane viu que todos os olhos estavam postos nela. Os colegas sentiam que aquilo estava fora do alcance deles. Desiludidos por uma investigação cujos vários meandros nunca tinham compreen‑ dido. Enfim, ela acabara por vencer. Agora não tinham outra escolha senão confiar nela. E ela, triunfante, como uma rainha no palácio de Inverno, tratava‑os com desprezo. Sorbier, que a colocara na prateleira cinco dias antes, o gordo Cabrera, que
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parecia estar a morrer de um ataque de apoplexia, os cretinos da DPJ da Rive Gauche, os parolos da Côte d’Azur que se fingiam importantes com o seu sotaque que cheirava a bebida anisada. Como se tivessem passado palavra uns aos outros, os ratos foram abandonando o navio, deixando‑a sozinha num último face a face com Amyas Langford. O inglês não tinha perdido nada da cena e preparava‑se para saborear o mano a mano que viria. Pela primeira vez, tudo estava no ponto que queria para falar com ela. — És como a pimenta — disse, enquanto Ro‑ xane se sentava à frente dele. — Aquela que vai apimentar o prato que inventei. Roxane pensava depressa. Langford precisava obviamente dela e via ‑a como uma ferramenta útil para realizar o seu papel macabro. Porquê? Veio‑lhe à mente um pormenor. — Nos tempos antigos, as Dionísias duravam cinco dias, não era? Hoje é sexta‑feira de manhã. A história da desconhecida do Sena começou a sério na segunda‑feira passada, o que significa... — ... que o fim está próximo. Acertaste, rapariga. — Está então na hora do fogo‑de‑artifício, certo? — Pode‑se dizer que a expressão foi bem es‑ colhida. — De que estás então à espera? Acende o fós‑ foro!
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— Já começou, não percebeu? Tanto quanto sei, os media de todo o mundo falam de nós... — Sim, mas isso é apenas espuma. Para vence‑ res a tua luta, precisas de algo mais. Replicar o sacrifício do bode, não é isso? — Finalmente, começas a compreender. Para vencermos, tem de se replicar o sacrifício supremo. — Dá‑me uma pista. Ele fez uma careta e inspirou fortemente pelo nariz como se snifasse uma linha de cocaína invisí‑ vel. O rosto estava cheio de tiques. Podia‑se sentir o regresso de uma violência pronta a explodir. — Será que a batalha de Salamina lhe diz al‑ guma coisa? Mais uma vez afluíram a Roxane as memórias das aulas às terças‑feiras à tarde com a senhora Casanova, entre as 17h00 e as 18h00, no Liceu Louis‑le‑Grand, em 1997, cheias de pormenores de história da Grécia Antiga. A resposta saiu‑lhe da boca como se estivesse a responder a uma «chamada» numa aula: — Foi uma das batalhas navais entre os gregos e os persas. — As Guerras Medas, bravo! É bastante culta, o que é raro nos polícias. Salamina foi uma batalha decisiva. Não só na história grega, mas também na história da Humanidade. Sabe porquê? — Sou toda ouvidos.
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— Muitos historiadores acreditam que, se os per‑ sas tivessem triunfado, o desenvolvimento da Gré‑ cia Antiga atrofiar‑se‑ia impedindo o nascimento da cultura ocidental e a realidade do mundo tal como hoje o conhecemos. Imagine só: o destino da nossa civilização a depender do resultado de uma batalha! Em poucos segundos, a cara de Langford mu‑ dara. Os olhos penetrantes, as pupilas dilatadas, o sorriso carnívoro, os músculos do pescoço e do rosto tensos como os de um animal à espreita. — Nessa batalha, a frota grega liderada por Te‑ místocles era apenas de duzentos navios, contra mais de mil dos Persas! O confronto parecia antecipada‑ mente perdido. Para motivar as suas tropas, o general grego decide sacrificar os mais valiosos prisioneiros de guerra que tinham feito e ordena a imolação de três príncipes persas em honra de Dioniso. — Então é esse o vosso sacrifício final? Três homicídios? — Sim, três sacrifícios. — Corrige‑me se estiver errada, mas ainda nin‑ guém foi morto nesta história, parece‑me... Langford ofegava para conseguir respirar, a ins‑ pirar e a soprar. Durante alguns segundos, segurou a cabeça entre as mãos, a testa baixa. Quando se ergueu, a expressão tinha‑se tornado ainda mais assustadora. O rosto, invulgarmente plástico era
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uma verdadeira máscara de plasticina. As sobran‑ celhas tinham agora a forma de acento circunflexo e o cabelo parecia ainda mais desgrenhado, como que formando chifres. Um Belzebu demente fora da caixa. Ou Jack Nicholson em algumas cenas do filme The Shining. — Ninguém foi morto? Ah! ah! ah! Está a esquecer ‑se da mãe inocente que foi atropelada pela japonesa, deixando um pobre órfão de três meses de idade. Verá como os media se deliciarão com essa história e se divertirão com o fiasco da polícia que não foi capaz de a evitar! — Estás a querer ficar com os louros de mortes que foram danos colaterais, que não poderias ter previsto. Com o rosto coberto de suor, contrariou‑a: — Mas esse é o encanto do teatro total e da improvisação! Plantam‑se as sementes e observa‑se o crescimento das plantas. — E o segundo assassínio? O sorriso manhoso distorceu‑se, acenderam‑se duas chamas de ódio no lugar dos olhos. Estava a cair na loucura. — A segunda vítima sou eu. — Tu? — Tenho de me sacrificar, sabe? — Tudo o que vejo neste momento é um gajo algemado e guardado por uma dezena de polícias.
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— Não pode estar sempre a vigiar‑me. A cara alucinou‑se, o sorriso tornou‑se assus‑ tador, começou a bater os dentes como se tivesse entrado em convulsões, numa espécie de transe místico. Roxane sentiu medo. Sabia que aquele olhar demente não era fabricado. Pôs a mão na Glock enquanto sentia a agitação na sala atrás do espelho. — Olha com atenção — gritou ‑lhe Langford no seu delírio. E num ápice, com violência brutal, esmagou a cabeça na borda metálica da mesa de interrogató‑ rio. O primeiro impacto estilhaçou‑lhe o osso do nariz, partindo‑o totalmente e libertando um jacto de hemoglobina. A pancada do segundo impacto cortou‑lhe a testa em toda a extensão, como se um cutelo tivesse arrancado a pele para alcançar o osso do crânio. A legião de polícias irrompeu pela sala e correu para Langford para o imobilizar. — Uma ambulância, rápido! — ordenou Sorbier. Com o rosto a sangrar, Amyas continuava a bater com os dentes violenta e freneticamente. — Porque é que este idiota obstinado está a fazer isto? — perguntou Cabrera, com o inglês já manietado. De repente, Roxane lembrou‑se daquilo que a directora de casting lhe tinha contado: «Há alguns
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anos, quando fazia de combatente da resistência num filme televisivo sobre a Segunda Guerra Mundial, chegou ao ponto de ter um dente oco com uma verdadeira cápsula de cianeto implan‑ tada! Está a perceber de que tipo de personagem se trata...» Numa fracção de segundo Roxane adivinhou que o dente falso que Amyas tinha acabado de partir libertara o veneno. A face dele congelava no sorriso de louco à medida que a substância tóxica se espalhava pelo corpo. Roxane correu, empurrou Cabrera para o lado, e agarrou o actor pelos cabelos. — Quem é a terceira vítima, Amyas? Inclinou‑se colocando a orelha perto da boca de Langford, na esperança de obter uma confissão final. Podia sentir o cabelo dele colado e mistu‑ rado com as manchas de sangue que lhe corriam pela face de moribundo. Sentia também o hálito quente e ferruginoso enquanto tentava pronunciar alguma coisa. Depois Roxane levantou‑se num salto e ficou al‑ gum tempo imóvel, sentindo uma onda de arrepios da cabeça aos pés. Convencera‑se nos últimos dois dias que o seu grande momento tinha chegado, que finalmente conseguira o caso da sua vida e que iria resolvê‑lo. A investigação por que já não esperava e colocaria a sua carreira novamente no
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bom caminho. Mas tinha cometido um erro, mais uma vez. Abriu novamente o computador. Os homens com cabeça de cavalo já tinham desaparecido há muito tempo. Clicou para abrir uma pequena janela no canto do ecrã. Apareceram imagens de vários drones. Inicialmente julgou identificar uma paisagem grega, mas percebeu depois que era a ilha bretã dos Karadec, em cuja costa atracava um barco. Nesse preciso momento. Uma onda eléctrica atravessou ‑lhe a coluna. O terceiro e último crime ritual estava em vias de acontecer. Ali, na ilha, com ela a mais de mil qui lómetros de distância do teatro de operações.
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