Nota do Editor Nestor Burma é o expoente máximo em BD, a obra-prima do «polar» francês (o policial negro francês). Léo Malet, o autor do texto, com milhões de leitores, é considerado um clássico da literatura francesa. Figura de culto na BD franco-belga, Tardi, autor da concepção gráfica da série, é o desenhador dos primeiros quatro títulos, a preto e branco, que na edição portuguesa surgirão posteriormente. GUILHERME VALENTE
Título original Nestor Burma — L’envahissant cadavre de la Plaine Monceau Autores Tardi, Malet e Moynot © Casterman, 2017 / Fleuve Noir Éditions Baseado no romance de Léo Malet publicado por Fleuve Noir e no universo gráfico de Tardi Todos os direitos reservados Tradução Regina Guimarães Revisão Elisabete Lucas Fotocomposição Gradiva Impressão e acabamento ACD PRINT, S. A. Reservados os direitos para Portugal por Gradiva Publicações, S. A. Rua Almeida e Sousa, 21 – r/c esq. — 1399-041 Lisboa Telef. 21 393 37 60 — Fax 21 395 34 71 geral@gradiva.mail.pt 1. a edição julho de 2022 Depósito legal 501 383/2022 ISBN 978-989-785-151-3
Editor GUILHERME VALENTE
NOTA Dada a imperatividade de utilização do chamado «novo acordo ortográfico» para os livros serem disponibilizados nos estabelecimentos de ensino, a Gradiva segue esta norma ortográfica nas obras que o público escolar e académico lerá com proveito acrescido.
U
EA C N O M E N I ER DA PLA
ÁV D A C O S O T N O AFRO
TEXTO E DESENHOS DE MOYNOT, A PARTIR DO ROMANCE DE LÉO MALET E DO UNIVERSO GRÁFICO DE TARDI
Cor: L. Yerathél
TRADUÇÃO DE REGINA GUIMARÃES
9 de março de 1959.
... As árvores já verdejantes naquela primavera em antestreia, demasiado amável para ser honesta.
Naquela manhã, tudo parecia feito para enganar a malta: a Avenida de Wagram, deserta naquele troço, à distância duma injúria relativamente aos engarrafamentos da praça da Étoile...
Até o nome da minha cliente era demasiado bonito para ser verdade.
Jeanne Désiris. Com tanto desejo no radical do nome, um gajo desata a sonhar, não? O Nestor, poeta ao serviço das senhoras, sempre disposto a acreditar na Mãe Natal.
9h15. Ainda por cima cheguei adiantado. Só me resta ir beber um café.
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Campainha, batente, aqui há de tudo como na farmácia...
Engoli um café terrível, fumei a primeira cigarrada do dia e fiz-me ao piso.
E o piso, há que sublinhá-lo, parecia deslizante. De tipo cintilante.
Que estranho estaminé...
Tanto mais estranho que a serviçal está atrás da porta...
Estranho estaminé e estranho bairro!
Isto promete! Ainda não são 9h05 e o Nestor já anda por aí armado em cangalheiro!
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Bem, acho que fui demasiado pessimista...
... Afinal está só desmaiada.
... quer-me parecer que não perco pela demora.
É o que estou sempre a dizer à Hélène, a minha secretária: mesmo quando se engana, o Nestor Burma tem razão.
Mas conhecendo o meu galo...
Désiris, Charles, André, engenheiro. Natural de Neuilly. Nascido em 1912... Na verdade, o gajo parece mais velho...
Charles Désiris, o marido da Senhora. Até aqui, nada de muito original. O drama habitual.
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O Senhor e a Senhora dormiam em quartos separados. O Senhor sente-se insatisfeito, porventura deprimido...
« Seja feita a sua vontade, Ch. Désiris». Aí está, o que é que estou a dizer...
O registo de casamento revela-me que o Désiris, Charles, André e a Labouchère, Jeanne, Françoise, nascida em 1934... (22 anos de diferença... O Désiris não fazia nada por menos!!!)... ... deram o nó no dia de 7 de Julho de 1954.
Estranho casamento e estranho fulaninho.
Nasce uma criança três meses mais tarde, mas não sobrevive. Estranho casamento.
Ah!... Ah!... Quem... O que é que o senhor está a fazer aqui?
Nestor Burma, sim, sim, ouvi a Senhora telefonar-lhe ontem...
Não se apoquente. Chamo-me Nestor Burma e sou, por assim dizer, um polícia...
Como é que a menina se chama?
Mariette...
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Pronto, Mariette, encoste-se a mim. Quer-me parecer que está muito abalada... A menina ouviu a senhora telefonar-me. Sabe o que ela me queria?
Vou-lhe servir uma bebida forte... Isto vai-lhe fazer bem. Não, ela não me disse nada, só marcou um encontro.
Não era bem verdade... A Jeanne Désiris pretendia, supostamente, descobrir a origem de uma fortuna súbita. Cá para mim, aquilo foi a primeira balela que lhe passou pela cabeça.
Não, eu... Ela não lhe disse?
Sente-se melhor?
Bebeu alguma coisa antes de se deitar? Chá? Vinho?
Nem por isso. Sinto-me esquisita desde que me levantei. Aliás, não acordei à hora que devia, coisa que nunca me acontece.
Desta garrafa?
Bebi vinho, sim.
Está visto que o Désiris drogou a moça para poder limpar tranquilamente o sebo à legítima.
Sim.
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Já estou a ver o filme todo a cores. Só me resta prevenir o Faroux.
... E a moça desmaiou quando quis sair em busca de socorro. Foi aqui que a encontrei.
Bem, resumindo o que você me contou: o tipo matou a sujeita e depois matou-se, e tudo isso premeditadamente, já que drogou a moça.
O comportamento dele assustou a mulher, que lhe telefonou...
Acredito que sim. Bate tudo certo. Mas um inquérito é um inquérito.
Terça-feira, 10 de março, 10h07, Agência Fiat Lux.
Alô, Burma? Aqui Covet... O que vem a ser este caso Désiris?
A moça e você têm de ir comigo à esquadra. Para me fazer um relato circunstanciado. Não há nenhum caso Désiris. Ia eu a passar na rua quando vi a mão da criadita através da porta entreaberta.
Desta vez, demorou a telefonar-me. Noutros tempos, você era mais reativo...
Não há outra versão. Eu ia a passar por acaso. Está a pensar escrever um artigo sobre o assunto?
Sim, ok, essa cena é a versão oficial... E a outra?
Eu estava em Marselha, a investigar o gangue Sarfotti, os traficantes de cigarros.
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É possível. Um bom drama burguês é uma lufada de ar fresco no meio de tantas histórias de gangsters. Sabe-se porque é que o gajo se matou?
Eu cá não faço a mínima... Mas vi a fotografia da criatura: tinha um olhar de alucinado.
Sim... Todos esses inventores são um bocado birutas. Esse biruta era engenheiro, não inventor. Não foi isso que me disseram. Um inventor sem invenção, aliás, tanto quanto se sabe.
Tenho dois fulanos na pista para aprofundar esse aspeto... O inventor no desemprego e subsequente drama... Drama que poderia explicar o suicídio...
E a criadinha, sabe o que é feito dela?
Deixei a Mariette a salvo na casa duma amiga que andava à procura de empregada. Ler as notícias é o melhor que posso fazer.
Sei lá, deve ter voltado para o cu de judas onde nasceu. Passe bem, Covet, tenho imenso que fazer.
Esta frase contém duas proposições falsas.
Alô, senhor Nestor Burma? Daqui fala Labouchère, o pai da Jeanne Désiris.
Posso, posso. Quando é que lhe convém?
Gostaria de lhe fazer umas perguntas. Será que pode vir ter comigo?
Quanto mais depressa, melhor. Eu moro na Avenida da Grande-Armée.
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Ah!... Sim... sim... Bom dia. O que é que posso fazer por si?
Isso agora já não tem importância nenhuma, porque o processo judicial está em banho-maria. Mas é da minha filha que se trata, apesar de tudo...
Porque é que ela o contratou?
Contratar não é a palavra adequada. Aliás, não sei propriamente o que ela me queria. Imagino que a atitude do marido a preocupava. Talvez pretendesse uma espécie de proteção. O senhor conhecia o Désiris. Ele não era um bocado biruta? Eu não diria isso, não. Calculista, interesseiro, certamente... Eu fui contra o casamento, mas não houve maneira de a dissuadir...
A idiota amava o sujeito! Um homem da idade dele!... E o sujeito arranjou maneira de a engravidar. Mas de mim não levou nada, nem um tostão furado!
Mas o sujeito teve de continuar a labutar para a casa Dugat, em Levallois... Os automóveis Dugat... Pelo menos até há coisa duns meses.
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Deixei-lhes a mansão da Rua Alphonse-de-Neuville, ponto parágrafo. Não ia deixar uma filha minha na rua... Também pagava a criada dela e as roupas que ela comprava...
Pois, disseram-me que ele era inventor, que investigava...