Trafalgar - As Grandes Batalhas Navais Jean-Yves Delitte

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Império Francês, Saint‑Cloud, 26 de Abril de 1806.

O homem não se deixava matar, mas já tomei as minhas disposições com a Polícia para que tudo seja registado como um suicídio!

O cadáver será enterrado no maior segredo!

Pretende informar...

Hum, Hum... A coisa está feita...

Não parece satisfeito!?

Já sei, senhor, já fui informado...

Seis facadas! Seis facadas no coração! Há de convir que tudo isso é excessivo e pode levantar suspeitas!

O Imperador? Não, existem outras preocupações... Tudo isso pertence ao passado!

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Andaluzia, Cádis, 29 de Setembro de 1805.

... as nossas guarnições desmo‑ ralizam‑se. Há mais de seis semanas que estamos fundeados!

Temos de agir!

Mas nós temos as ordens! Ainda não é demasiado tarde para chegar ao canal da Mancha e ajudar no plano de invasão da Inglaterra! Toda a frota do Poente* deve estar à nossa espera!

* Frota do Poente: Esquadra do Atlântico.

Senhor De Villeneuve...

Almirante, imploro‑vos, nós não podemos ficar aqui eternamente...

Agir? Para ir para onde, para fazer o quê?

O plano naufragou, senhor Lucas...

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Foi tudo em vão... Não está nenhuma frota à nossa espera, senhor, estão confinadas nos seus portos!

Isso é porque nos faltou a audácia!

Como ousais falar assim, Capitão? Esqueceis com quem falais! Eu sou o comandante da frota!

Eu fui nomeado pelo Imperador!

Estou apenas a repetir as palavras atribuídas ao Imperador...

Os ingleses não se deixam enganar. O bloqueio dos nossos portos do Atlântico não foi levantado e isso não é por falta de tentativa de os atrair às Antilhas. Repito‑vos, o plano encalhou, senhor Lucas...

O Imperador! Ele está longe daqui e ignora tudo sobre a nossa situação. A crítica dele é‑me indiferente!

Nada é menos certo, senhor Lucas! Haveis esquecido que além, para lá do horizonte, está uma frota à espreita... pronta a atacar‑nos!

Este longo périplo às Antilhas esgotou‑nos a todos... Já não estamos em condições de fazer a guerra! Ousaríeis negá‑lo, Capitão?

Napoleão sonha invadir a Inglaterra, seio‑o, mas pela minha parte, recuso‑me a deixar‑me levar por um arrebatamento ridículo e causar a perda da minha esquadra! Os nossos navios estão desgastados...

Almirante, se nós já não estamos em condições de fazer a guerra, os ingleses não estão melhor!

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Os ingleses! com o devido respeito, Almirante, nós não sabemos onde se encontram.

Não quer dizer que nos tenha vindo espiar e menos ainda que seria o aviso de esquadra de uma frota, Almirante.

Basta,

Já ouvi o suficiente. Deixe‑me, estou a ficar cansado...

E esse cúter avistado há dois dias? Tinha a bandeira inglesa desfraldada, Capitão!

senhor Lucas! Senhor Lucas!!
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Então, meu amigo?

Então o quê, senhor Deniéport? Esperava um milagre? Ele não se mexe! Ele recusa‑se a aparelhar os navios!

Nós podemos todos, à vez, desfi‑ lar à sua frente, que ele terá sempre o mesmo discurso!

Há seis meses, largámos de Toulon com a convicção de levar a cabo uma grande missão... E olhe‑se para nós agora! Refugiados num porto que nem sequer é francês!

Nós seremos convocados se necessário, para retomar os seus propósitos! Para o resto, temos que nos contentar com as reuniões habituais do Estado‑Maior!

E isso é tudo?

As reuniões do Estado‑Maior! Mas aí não se fala sobre nada que não sejam problemas ridículos de logística. Da última vez, passá‑ mos todo o nosso tempo a debater sobre as rações diárias de água e de vinho...

... quando não é, como há uma semana, sobre a farinha infestada de vermes! Conheço como a palma da minha mão as histórias de galinhas, ovos e porcos! Ou ainda histórias sobre as carnes curadas, as favas e o sal que vão escasseando...

... mas quanto a travar uma guerra!...

Não compreendo porque é que o Imperador acedeu a confiar esta missão a De Villeneuve!...

A morte do Conde de Tréville apanhou todos de surpresa. O seu coração sucum‑ biu ainda ele não tinha 60 anos!

Eu sei, mas substituí‑lo por De Villeneuve!

O Almirante Latouche‑ ‑Tréville esteve em todas as guerras e em todas as expedições!

Ainda recordo as suas façanhas durante a guerra de indepen‑ dência dos Estados da América...

Latouche‑Tréville brilhava pela sua audácia enquanto que De Villeneuve brilha apenas pela sua cobardia!

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Senhor Montalembert!

Não há fumo sem fogo! Não assobiemos para o lado, De Villeneuve é um poltrão.

Mais baixo, meu amigo, ouvidos indiscretos podem escutar as tuas palavras e repeti‑las depois. Vejo aqui e ali oficiais próximos de De Villeneuve e que não partilham o nosso entusiasmo em fazer guerra aos ingleses.

Bem, que fazemos, meus amigos?

Estou errado naquilo que digo? De Villeneuve fugiu ao combate em Aboukir*, deixando a nossa frota ser destroçada pelos ingleses!

Tentemos falar com Federico Carlos Gravina sobre o assunto. poderá ajudar‑nos a convencer De Villeneuve.

Isso são apenas rumores, nós não estávamos lá...

Vá lá, não sejam maldizentes. Ele acompanhou‑nos às Antilhas, foi testemunha de tudo...

Os espanhóis gostam de troçar de De Villeneuve, mas não significa que devamos esperar um apoio oficial.

Intrometer esse Almirante espanhol nos nossos assun‑ tos?

Ele é nosso aliado...

Ele é nosso aliado porque o nosso exército ocupa os seus territórios...

Mas amanhã, se lhe dessem oportu‑ nidade...

Podemos informar o ministro...

Informar Decrès?

Esquecem‑se que foi ele quem propôs ao Imperador o nome de De Villeneuve para o comando da Esquadra? Não o vejo a repudiar um comandante que ele, ontem, apoiava!

Seja, mas temos que agir, as nossas equipagens consomem‑se e impacientam‑se com esta lentidão.

Eu não teria tanta certeza... tenho a bordo alguns marinheiros encantados com o decurso dos acontecimentos.

* Batalha do Nilo ou Batalha da baía de Aboukir, de 1 a 2 de Agosto de 1798.

ei, Rela, estás chateado?

Estou a pensar, Luisão!

Ah! Por‑ que o senhor pensa!? Não tem mais de palmo e meio de altura, não é mais velho que o decénio, e pensa.

Pois! Talvez? Não sabes a tua idade?

E tu, conheces a tua? Analfabeto!

Pois! Rela, devíamos ter‑te chamado Macaco, dada a facilidade que tens em cabriolar na mastreação!

Tenho bem mais de dez anos e talvez até o dobro!

Pffttt...

Eu teria dito Macaca, visto que o cavalheiro é íntimo do nosso primeiro mes‑ tre.

Por Deus, Luisão, vais retirar o que disseste!

ei, pequeno, vamos ter calma! Se me queres fazer ameaças com a tua espicha é melhor que ganhes alguns quilos e músculo!

Pois! É verdade, aplica‑te mais, faz‑nos belas costuras, Rela!

Dá‑te por feliz, Rela! Aqui, ao menos, estamos abrigados das balas inglesas!

Isso é porque nunca entraste numa batalha!

Pois! Os ingleses são perversos! adoram ver correr o nosso sangue! disparam contra o costado com os seus canhões de 32 ou apontam aos nossos castelos* com os seus «es‑ magadores»** carregados de metralha!

é sempre uma carnificina!

Exceto que o nosso belo navio, com o seu espesso casco de carvalho e as suas 78 peças, nada tem a recear!

Pff... é a milésima vez que nos mandam refazer estas malditas cos‑ turas!

* Castelos: estruturas do navio acima do convés, à popa e/ou à proa. (N. do T.)

´Tás a ouvir, João? A nossa Rela ainda acredita que as balas inglesas vão ressaltar no nosso casco!

Eu não receio os ingleses!

Tudo isto porque o noss’Comandante não sabe mais como nos manter ocupados!

Pois! Infeliz, as balas trespassam todos os navios! Sejam eles ingleses ou franceses!

O João e eu... nós estivémos em Aboukir, em Agosto de 1798, a bordo da fragata Diane

Posso dizer‑te, Rela: as balas inglesas não se ralaram com por‑ menores!

** Caronada: um novo modelo de canhão desenvolvido por uma fundição escocesa em 1779 que era comummente denominado «esmagador».

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Pois!

Me’m’o noss’grande navio almirante, com os seus 120 canhões, se desfez em fumo, volatilizou‑se!

no entanto, aquele navio soberbo tinha o casco com mais de dois pés* de espessura!

Foi uma visão horrível, o mar estava coberto de destroços e de corpos atrozmente mutilados... um mar de tripas a boiar!!

Assim, ´tás a ver, Rela, em vez de regressar ao país, a mim, fazer e refazer costuras já não me incomoda...

Até te digo mais: dá‑me prazer!

Catrapum, fez o navio, o Orient!

E se alguém se estrebucha, só tem qu’ir pro mar!

foi uma festa... Esses trastes regalavam‑se perante a água que tinha ficado toda vermelha.

Dizem que os ingleses estão além, depois do horizonte, prontos para a batalha!

* 1 pé = +/‑ 30,5 cm 12

Impressionante, queres dizer! Esteve presente em todos os combates e em todas as vitórias!

Há 46 anos que a sua proa fende as águas de todos os mares e de todos os oceanos.

É a primeira vez que me é dada a possibilidade de subir a bordo!

Oceano Atlântico, 30 de Setembro de 1805. O HMS Victory! Magnífico!
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