ESCOLA DE TESTEMUNHOS MATERIAL DE ESTUDOS PARA ESCOLA DE AULAS-PERFORMANCE
TESTEMUNHOS 23 de agosto a 24 de novembro 2019
Material de estudos para aulas-performances
Sesc — Serviço Social do Comércio São Paulo / Brasil
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ARTE DO ARQUIVO
A disposição em indagar seus próprios meios expressivos e modos de inserção social distingue a arte de grande parte das práticas produtivas. Tal inclinação reflete uma atitude afeita à dúvida, ao não sabido, ao risco. No limite, à invenção. Através dela, os artistas se concentram não somente naquilo que pretendem investigar e comunicar, mas também em como fazê-lo, num movimento autocrítico. É nessa “dobra”, em que comunicar implica perguntar-se sobre a linguagem e seus processos, que a arte enseja outros enquadramentos para a percepção da realidade. Dotada de espessura histórica, a realidade pode ser figurada – em sentido arqueológico – como superfície sob a qual acumulam-se os estratos que o passado nos legou e que, por sua vez, seguem produzindo efeitos no presente. Num país como o Brasil, desafortunadamente habituado a negligenciar o passado e seu poder de definir nossos rumos, há que se lançar mão de instrumentos capazes de resistir à amnésia e, portanto, à perpetuação das injustiças que ela acarreta. Entre esses instrumentos, os arquivos ocupam posiçãochave – hábeis que são em reunir
documentos de uma história eivada pela barbárie, a qual só pode ser reconhecida e enfrentada como tal se dispusermos de testemunhos reveladores dos subsolos da nossa controversa trajetória civilizacional. A prática de constituição de arquivos tem sido adotada por artistas na contemporaneidade, com a vantagem de que, em seus experimentos com artefatos e registros documentais, eles procuram refletir sobre as escolhas inerentes às suas operações e, por conseguinte, acerca dos mecanismos subjacentes à produção da história em si. Meta-Arquivo: 1964-1985. Espaço de escuta e leitura de histórias da ditadura no Brasil desenvolve estratégias de reverberação de pesquisas artísticas que têm na composição de inventários contrahegemônicos um gesto propício a disputas narrativas de viés progressista. Com mais de setenta anos, o Sesc é parte constitutiva da história recente do país e, como instituição educativa, interage de forma crítica e propositiva com sua realidade sociopolítica. Acolher um projeto dedicado a pensar a natureza e a potencialidade dos arquivos corresponde a reiterar e atualizar tal compromisso. Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo
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ESCOLA DE TESTEMUNHOS – MATERIAL DE ESTUDOS PARA AULAS-PERFORMANCES
Escola de Testemunhos – material de Militar brasileira. Meta-Arquivo estudos para aulas-performances foi 1964-1985 culminou em uma publicado pelo Grupo Contrafilé, por exposição coletiva, em cartaz de ocasião do projeto Meta-Arquivo: agosto a novembro de 2019, no 1964-1985. Espaço de escuta e Sesc Belenzinho. Esse material de leitura de histórias da ditadura. O estudos é parte da obra Escola de projeto, desenvolvido pela curadora Testemunhos, criada pelo Grupo Ana Pato e realizado pelo Sesc-sp, Contrafilé para o projeto; uma em parceria com o Memorial da instalação composta por uma mesaResistência, teve como principal -lousa, na qual acontecem três metodologia a formação de grupos aulas-performances, criadas de trabalho em torno de arquivos no encontro entre pessoas que e acervos da Ditadura Civil testemunharam a ditadura e outras/ os convidadas/os.
CONTRAFILÉ Formado em São Paulo, Brasil, no ano 2000, o Grupo Contrafilé é um coletivo que desenvolve seu trabalho de arte-política-educação a partir de práticas e reflexões junto a pessoas, grupos e comunidades. Atualmente, fazem parte deste coletivo: Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi e Rafael Leona.
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AGRADECIMENTOS
A Ana Pato, Camila Ribeiro Leite, Carolina Junqueira, Daniel Guimarães, Denise Malta de Andrade, Flávia Mielnik, Gil Fuser, Graziela Kunsch, José Luiz Del Roio, Julio Kohl, Kauã Santana, Kric Cruz, Kwame Yonatan, Lucas Sanches, Lúcia Eid e Olaria Paulistana, Maria Meskelis, Rafael Moretti, Regina Stocklen, Roberta Estrela D’Alva, Vitor Cesar e Claudio Bueno (O grupo inteiro), Vitor Oliveira, Cedem – Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Clínica Pública de Psicanálise e Vila Itororó Canteiro Aberto; Grupo de Trabalho Meta-Arquivo, História da Disputa: Disputa da História, Margens Clínicas, à equipe do Memorial da Resistência, em especial a Marília Bonas, Camila Djurovic e Luiza Giandalia, que nos guiaram no Programa Coleta Regular de Testemunhos.
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↳ SUMÁRIO
GRUPO CONTRAFILÉ NO ARQUIVO O QUE A GENTE ENCONTRA QUANDO ENCONTRA UM ARQUIVO? Grupo Contrafilé com Ana Pato DEVOLVER AFETO À HISTÓRIA Encontro do Grupo Contrafilé com os grupos Clínica Pública de Psicanálise, Margens Clínicas e História da Disputa: Disputa da História A SAGA DO MC KRIC: DO CORPO MARGINAL AO CORPO POLÍTICO Aula-performance com Kric Cruz e Roberta Estrela D’Alva AOS QUE SE AVENTURAM
Do testemunho à aula-performance: o que e como aprendemos a partir dos arquivos
ESTATUTO DO TESTEMUNHO (encarte)
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GRUPO CONTRAFILÉ NO ARQUIVO
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Quando Ana Pato nos convidou para fazer parte da exposição Meta-Arquivo: 1964-1985. Espaço de escuta e leitura de histórias da ditadura, entrando em arquivos diversos tanto do poder quanto da resistência para tirar dali algum eixo de trabalho, um mundo se abriu diante de nós. A relação entre arte e arquivo não está completamente ausente neste coletivo; ela perpassa alguns momentos do nosso processo, que já dura vinte anos. Porém, nunca nomeamos os elementos que acionamos para produzir nossos trabalhos dessa forma; esta foi a primeira vez que fomos convocadas a essa espécie de “confronto” com tal matéria vasta e difundida quase como um objeto comum do nosso cotidiano (quem não tem um arquivo de algo ou vários arquivos em casa, no trabalho, na escola?), mas que tem também uma dimensão bastante hermética que, quando atravessada, nos leva a lugares tanto sombrios quanto luminosos. O Grupo Contrafilé, historicamente, trabalha com pessoas, corpos, narrativas e com a urbanidade como fundamento por excelência de seu processo artístico. O que desemboca, por sua vez, em modos de fazer e gestos que compõem todos os nossos trabalhos. Destacaremos, aqui, alguns que têm diretamente a ver com o projeto que agora apresentamos: o falar e o escutar como arte; a produção de evidências como arte; e a decisão coletiva como arte. Isso significa, resumidamente, que existe um esforço de tradução, de nossa parte, daquilo que nós (incluindo neste “nós” as pessoas e comunidades com as quais trabalhamos) estamos pensando e sentindo no contato com o que se passa no mundo e uma tentativa de transversão disso em arte. A premissa por trás dessa operação, por sua vez, é a de que cada ser é uma escola, portanto, de que possuímos sabedorias e sensibilidades próprias e profundas, que dizem de uma singularidade, ao mesmo tempo que falam dos processos sociais coletivos. Assim sendo, entendemos que, para uma compreensão mais precisa e não simplista daquilo que está acontecendo, é indispensável se ouvir e nos ouvir. No momento em que fomos convidadas a puxar algum fio dessa imensidão de arquivos e histórias da ditadura militar, como forma de traçar um entendimento mais multifacetado, complexo, não linear, através da arte, do nosso passado e, portanto, daquilo que estamos vivendo exatamente nos dias de hoje, quase que automaticamente o que nos chamou, como um canto de sereia, foram os testemunhos realizados no Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da Resistência. Nesse programa, a equipe de pesquisadores do Memorial coleta testemunhos de pessoas que lutaram contra o processo ditatorial brasileiro de 1964-1985 ou que, mesmo não lutando diretamente, estiveram nas prisões políticas, como por exemplo, no antigo DOPS (que agora abriga o Memorial), e, com isso, vai formando um grande acervo dessas histórias e memórias. Já no primeiro momento, entrar em contato com as pessoas falando daquilo que viveram nos pareceu algo bastante próximo de nosso interesse enquanto artistas: a escuta que se traduz em arte. A partir da escolha desse arquivo específico, muitas outras questões, conceitos e problemas começaram a surgir. Em primeiro lugar, entendemos que o testemunho poderia ser uma forma de refletir a respeito do arquivo como espaço, a princípio, dos “mortos”. Ou seja, no qual encontramos documentos que se materializam exatamente pela ausência de um corpo. Então, o primeiro
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problema com o qual nos deparamos foi “como enxergar, perceber, conectar-se com o corpo por trás dessa falta de corpo, como atribuir vida para o que parece morto?”. Tão logo começamos a assistir aos testemunhos a partir dessa premissa, fomos entendendo o quanto muito – senão tudo – do que é dito ali está muito vivo, porque reverbera na gente experiências, angústias e preocupações contemporâneas. Portanto, são experiências de fatos que não puderam ainda ser resolvidos socialmente. São tabus sociais, coisas das quais “não podemos falar”: por exemplo, o fato de que existe uma continuidade histórica entre as torturas sofridas pelos corpos negros e indígenas na época colonial e da escravidão, que sofre uma inflexão na última Ditadura Militar Brasileira, com a entrada, nesse contexto, de corpos brancos de classe média e elite intelectualizadas, e continua até hoje, de forma grave, com os genocídios indígena e negro. Ou de que Paulo Freire foi e ainda é perseguido por ter criado um modo de ensino-aprendizagem que, ao alfabetizar com sentido, com dignidade, com amor, devolvia às pessoas a capacidade de compreensão de seu papel ativo na história; diante do fatalismo que lhes/nos é imposto dia a dia – a uns muito mais que a outros. Não à toa, ouvimos, de Tatiana Nascimento, poeta, educadora, ativista lésbica negra, que a grande pedagogia do Brasil é a pedagogia do racismo, da escravidão; essa é a pedagogia que todos/ as nós aprendemos tão bem, que está incrustada em nossos corpos, mentes e memória social1. Em nossa subjetividade, em nossos gestos e pensamentos mais banais e cotidianos. Diante dessa Pedagogia do Opressor, que grita, se agita, se debate para não ir embora, não desencarnar, e em confronto com ela, Paulo Freire é pioneiro em praticar e conceituar a Pedagogia do Oprimido, aquela que dialeticamente produz possibilidades de fuga dessa mesma relação opressor-oprimido. Essas constatações e outras, que agora não cabe trazer detalhadamente, pois estarão explicitadas em nossa obra como um todo, levaram-nos a perceber e aprender, de forma mais contundente, quanto a produção da memória desse período sofreu uma apropriação determinada por fatores diversos, tais como raça, etnia, classe, sexo, gênero etc., de modo que o que aprendemos nas escolas, ou ao menos em algumas escolas mais progressistas, fala de uma resistência composta majoritariamente por uma classe média e elite intelectualizadas, mas nada ou quase nada de outros corpos. Enquanto aqueles eram considerados “corpos políticos”, inúmeros outros eram considerados não corpos, mercadoria descartável: a distinção tão presente em nosso imaginário coletivo entre o “preso político” e o “marginal comum”. O que leva a consequências seríssimas, por exemplo, na percepção do número de mortos e desaparecidos nesse período que, nas
1 → A fala de Tatiana Nascimento acima mencionada deu-se no contexto do “Workshop Privilégio Branco”, ministrado em São Paulo, em maio de 2019, por Tatiana e Magô Tonhon. O workshop foi um espaço para ativistas brancas refletirem sobre sua própria branquitude, a partir de incômodos e conflitos propostos pelas mediadoras. 9
contagens “oficiais”, até recentemente era dado como (por volta de) “500” – enquanto na vizinha Argentina a mesma contagem chega a 30 mil. É chocante confrontar-nos com essa produção de memória, com todos os valores que a sustentam e permeiam, ou seja, com a nossa própria memória enquanto filhas/filhos dessas/es mesmas/os guerrilheiras/os brancas/os de classe média. Como não ver algo tão escancaradamente óbvio? Que milhares de corpos negros, indígenas, periféricos, LGBTQ+ estavam sendo assassinados nesse período também, no interior do mesmo contexto racista, autoritário e colonizador de sempre e que, pelo fato de que os mesmos métodos estavam sendo aplicados em corpos brancos, podiam, a partir de então – mas apenas naquele contexto muito específico –, ser nomeados e reconhecidos como absurdos, inumanos, muito além do aceitável para uma sociedade “democrática”? Hoje, cada vez mais, os movimentos negros, feminismos negros, movimentos indígenas, transgêneros e de juventude, nos ensinam a pensar a partir de categorias que forçam a explosão e subversão dessa lógica, porque, se não falarmos daquilo que foi “esquecido” como substrato para a produção de evidências que nos fazem compreender a história de um modo mais realista, mais inserido no complexo colonial e escravocrata que nos constitui, não nos libertaremos juntas/os nunca. Por último, mas não menos importante, nos foi possível realmente entender, por experiência própria, que o testemunho é escola. Não à toa, nosso trabalho chama-se “Escola de Testemunhos” e tem a ver com tornar visível o processo de aprendizagem que estamos vivenciando a partir desse material: Como aprendemos a partir do testemunho? O que aprendemos? O que encontramos ao nos encontrarmos com esses arquivos? Como se dá o encontro entre nosso corpo e esse corpo cuja ausência se torna presença radical? Se o arquivo pode ser matéria-prima para a arte, para nós, tem sido, desde o momento em que começamos a transformar esse corpo a corpo diante dele em estratégias que mostram aquilo que se tornou impossível não falar, pensar, fazer e fazer circular, depois dele. É matéria-prima também quando nos permite acessar uma outra lógica de produção de memória: a curadora Ana Pato, estudiosa do assunto, ensinou-nos que a gente não procura algo específico: o que ocorre é que a gente encontra as coisas no arquivo, e isso nos surpreende a cada pequena descoberta, porque essas não são pequenas, na verdade, mas pontas de grandes icebergs. Provavelmente algo óbvio para quem mexe com isso; para nós, uma constatação que fez não só a perspectiva a respeito do arquivo mudar, mas também nosso interesse por ele aumentar: se não somos nós que procuramos as pessoas, narrativas, fatos, dados, evidências nos arquivos, mas eles que nos encontram e assoberbam, quando isso acontece, somos, então, convidadas a ir atrás das lacunas que vêm junto com tal interpelação, no sentido de tecer uma compreensão a respeito de determinada história não só a partir dos documentos, mas também com hipóteses que possamos construir para lidar com uma temporalidade e uma espacialidade outras e suas reverberações em nós. Nesse processo, tornamo-nos convictas de que essa deveria ser uma parte muito importante do nosso aprendizado social, algo que
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compusesse e transpassasse toda e qualquer “disciplina” na escola, porque, ao aprender e apreender estratégias e modos de produção de gestos, sentimentos e pensamentos a partir do encontro com dados, documentos, testemunhos e vestígios daquilo que aconteceu e daquilo que está acontecendo, acabamos por nos tornar muito mais críticos e conscientes de como a memória social é produzida e, com isso, podemos virar também produtores efetivos e criativos dela. Lembra bastante o que nos diz TC Silva, ativista quilombola da Rede Mocambos2, quando chama atenção para o fato de que todo mundo tem que aprender a programar computadores, a enfrentar a lógica dessa produção que está por trás dos programas, por trás daquilo que usamos, que é a programação da coisa em si, da mais simples à mais complexa. E que somos e seremos cada vez mais analfabetos funcionais se não aprendermos todas/os, e logo, a fazer isso. Essa é a lógica do hackeamento, que envolve o desenvolvimento de um saber para lidar com as infraestruturas e, com isso, enxergar como as coisas surgem e se movem pelo mundo. Lógica bem diferente daquela que nos convida apenas a pagar pelas mercadorias dispostas nas prateleiras físicas e/ou virtuais, e consumir sem parar para pensar o que, por que ou como. É assim que se esvazia a vida de sentido. TC, nos anos 2000, quando o conhecemos, pensava nos Quilombos e na composição dessa Rede que conecta quilombos de todo o Brasil através da internet, dos tambores e daquilo que ele nomeou como Baobáxia, uma floresta de baobás plantados ritualmente em cada um desses lugares autorreconhecidos e reconhecidos como territórios de liberdade e luta. Esses objetos e seres levados por ele e por seus coletivos de artistas, hackers, quilombolas urbanos e rurais, ativistas brasileiros, africanos e europeus, jovens estudantes, criam possiblidades de reconexões físicas, virtuais e simbólicas com a multiplicidade quilombola no presente, mas também no passado, portanto, com essa ancestralidade de luta, que leva a outras – especialmente a indígena, no Brasil. A preocupação do TC sempre foi de que essa reconexão não descambasse para um uso das tecnologias que fossem novos modos de dominação, de sujeição do corpo e do espírito, mas que, pelo contrário, nascesse dali a oportunidade de aprender a lidar com a produção e difusão dos dados “mais do nosso jeito”. Portanto, que ali se inventassem códigos (formas e conteúdos) expressivos desses encontros entre pessoas, grupos, pessoas-grupos-outros seres da natureza, pessoas-grupos-outros seres da natureza-tecnologia etc. Voltando ao nosso corpo a corpo com o Arquivo, tudo isso nos diz desse universo que se abriu: “Como eu nunca soube disso antes? Como nunca aprendi isso na escola?”. Acessar arquivos, mexer com eles, enfrentar os (des)encontros que proporcionam e ir entendendo, em ação, o que fazer com isso é o que todas/os nós deveríamos aprender desde sempre, não apenas receber (quaisquer) dados já processados. É assim que, para nós, aquele que testemunha passou a ser
2 → Rede Mocambos é uma rede de produção de conhecimento e comunicação entre comunidades quilombolas. Disponível em: http://www.mocambos.net.
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professor/a; e nós, alunos dessas aulas surpreendentes, não lineares e angustiantes, porque nos ensinam a enxergar essa eterna luta para o alargamento do mundo, para seu não estreitamento. Por sua vez, essa perspectiva de uma ocupação corporal-material dos dados e arquivos permite a passagem da lógica da “prova” como dispositivo autoevidente, ou seja, algo isolado, encerrado em si mesmo e objeto de acesso e entendimento apenas dos especialistas; para a concepção da prova como produto de um processo social muito mais complexo e que, a partir de si, pode desembocar em outros processos sociais, seja para desconstruí-la, aprofundá-la ou desdobrá-la, e por aí vai. De qualquer modo, enquanto um dispositivo que serve ao debate e à reflexão coletiva e social, e não o contrário. Como diz o arquiteto e urbanista israelense Eyal Weizman, um dos fundadores do grupo de pesquisa Forensic Architecture – um projeto de investigação do “Centre for Research Architecture da Goldsmiths University of London” – se, etimologicamente, o termo forense vem de fórum, isso significa que estava na origem daquele saber humano a possibilidade de conversar sobre as evidências, os rastros, vestígios, testemunhos e provas daquilo que aconteceu e daquilo que acontece, tanto ao produzi-los, mas, sobretudo, ao encontrá-los, no intuito de mobilizar nossas inteligências e não desmobilizá-las, de nos fazer compreender enquanto coletividade o que é justiça, para não odiarmos a justiça. Por tudo isso, certamente faz parte do nosso Estatuto do Testemunho a premissa de que é preciso aprender e ensinar, cotidianamente, a confrontar as fontes de conhecimento presentes aqui e agora – oriundas dos arquivos ocidentais, mas também de outras cosmologias arquivísticas – e a processá-las de modos diversos para, assim, construir categorias nascidas da riqueza da dimensão mais cotidiana, mais concreta, mais realista e ao mesmo tempo mais ampla, que abarque todos os corpos, não apenas alguns, permitindo-nos compor uma história outra, de reconexão micropolítica desses corpos pelo afeto. Quem sabe assim seremos capazes de compreender mais nitidamente as histórias das resistências no Brasil e, consequentemente, ter mais noção de suas possibilidades.
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Para falar e escutar como arte. Instalação criada pelo Grupo Contrafilé, MASP, 2016. Foto: Julio Cardoso. Acervo Grupo Contrafilé
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O QUE A GENTE ENCONTRA QUANDO ENCONTRA UM ARQUIVO? Grupo Contrafilé com Ana Pato
Disparadores para a conversa Fizemos esta conversa a partir de três eixos que se encontram mais ou menos sobrepostos ao longo dela. O primeiro mobiliza nossas próprias dúvidas, percepções e descobertas ao lidar com arquivos, no intuito de que possam ser úteis tanto para professores/estudantes interessados em trabalhar com isso, quanto para qualquer outro público que queira se aproximar do assunto. O segundo, por sua vez, aproxima os problemas que surgem do trabalho com arquivos do campo no qual estamos inseridas, e nos perguntamos, a partir disso, algo como: “Por que, afinal, hoje, diversos artistas, curadores, críticos, trabalham com uma multiplicidade de arquivos através de pensamentos, estratégias, práticas, linguagens e questões da arte?” E, finalmente, o terceiro é uma tentativa de compreender como todas essas discussões e práticas ganham relevância no mundo contemporâneo, neste tempo histórico em que vivemos.
O que é um arquivo? Grupo Contrafilé (Joana Zatz Mussi) Queremos propor um primeiro momento mais de definição daquilo que é o arquivo, de qual é seu valor, até pensando que esse material é também um material educativo. Queremos ouvir isso de você, como pesquisadora, curadora, criadora, sem a pretensão de que daqui saia qualquer tipo de conhecimento absoluto. Ana Pato Se pensamos na história do arquivo contemporâneo, nesses arquivos com os quais estamos trabalhando, que são, em sua maioria, arquivos públicos, eles nascem atrelados à formação dos Estados-Nação. Então, eles estão muito ligados à ideia de poder, de arquivar e controlar tudo que se constitui, tudo que se produz, vamos dizer, nas vilas e províncias do Império no período colonial… Antes, quando alguém nascia, era registrada/o na paróquia. Tudo isso de que a igreja dava conta, de que o cartório dava conta, de que os portos davam conta quando entrava alguém no território, ficava disperso nessas pequenas unidades representantes daquilo que se entendia pela lei. Quando se formam os Estados-Nação, institui-se, também, a noção de que não era possível a existência de um país sem poder sobre esses registros. No caso do Brasil, o Arquivo Público do Império, hoje Arquivo Nacional, é criado no Rio de Janeiro em 1838, e sua fundação está relacionada à vinda da Corte Portuguesa, alguns anos antes. O Arquivo Público do Estado da Bahia, o segundo arquivo mais importante do país, é criado em 1890, no ano seguinte ao da constituição da República. Eles são constituídos por decretos e leis que exigiam que todos esses documentos que estavam dispersos passassem a ficar sob o controle do Estado. Isso está presente nos arquivos com os quais estamos trabalhando, muitos dos quais são ligados à administração pública, ao poder. Se olharmos do ponto de vista do cidadão, o arquivo é um lugar de direito, de acesso à informação. Para que se
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busca um arquivo? A gente busca um arquivo, por exemplo, quando quer comprovar a nacionalidade: você tem um bisavô que entrou no Brasil no Porto de Santos, então você quer comprovar. Esses registros se encontram nos arquivos. Ou se queremos comprovar que nosso bisavô nasceu na Itália, então temos que ir lá no arquivo local. Do mesmo jeito em relação à terra, o arquivo é o lugar fundamental para buscarmos documentos sobre a ocupação do território, para a declaração de que aquela terra é sua, para o registro de posse e demarcação de terras indígenas. Essa é uma outra questão importante dos arquivos. É lei que tudo que seja produzido pela administração pública seja destinado ao arquivo legal, por isso existem fundos e coleções que organizam conjuntos de documentos que dizem respeito a uma instituição específica, ou seja, que são provenientes de um mesmo lugar ou foram produzidos por um órgão ou reunidos por uma pessoa, família ou pela sociedade civil. Você tem os arquivos ligados ao Serviço de Proteção ao Índio e à Fundação Nacional do Índio, que trazem a estrutura e o funcionamento desses órgãos. Você tem os arquivos ligados à estrutura administrativa e repressiva, ou seja, toda a gestão dos governos vai parar em arquivos e permanece lá, mesmo depois de esses governos serem extintos. Em linhas bem gerais, o arquivo está fundamentalmente atrelado à ideia de controle e poder do Estado, mas sempre ligado também ao direito. A maior parte dos arquivos com os quais trabalhamos na exposição Meta-Arquivo pertence à chamada Secretaria de Segurança Pública, à Comissão Nacional da Verdade e às Assessorias de Segurança e Informação, como também a coleções privadas ligadas aos movimentos de resistência. O que acontece? Por que os arquivos da Secretaria de Segurança Pública são tão importantes? Porque é no arquivo que encontramos, muitas vezes, a história daquelas/es que perderam as guerras ou que foram presos. Você tem pesquisadoras/os que, por exemplo, vão estudar a escravidão a partir desses arquivos, porque é lá que encontram as resistências, os registros de prisão, os processos de compra e venda, a emissão de passaportes, o controle aduaneiro. O Rui Barbosa ficou famoso por ter mandado queimar os documentos das repartições públicas relacionados à escravidão. A intenção era dar fim aos comprovantes fiscais que pudessem ser usados pelos ex-senhores de escravos para reivindicar alguma indenização do governo durante a República. Só que foi uma intenção bem complexa, porque ele destruiu uma série de documentos superimportantes para que pudéssemos entender melhor essa história. Outra coisa do valor do arquivo é a quantidade. São volumes enormes! Você está pesquisando um determinado tipo de inquérito para alguma coisa, e são milhares de inquéritos. Vocês estão trabalhando com um arquivo pequeno, uma coleta de testemunhos, mas, mesmo assim, estão vendo como é um mundo, né? Demora horas… GC (Joana) E por que pensar o arquivo como ação? E, nesse mesmo sentido, o que é importante ao pensarmos o arquivo através da arte? Ana Eu acho esse lugar da arte muito potente, justamente porque estamos falando de uma relação de poder. E, ao tomarmos contato com essa documentação e ampliarmos a capacidade de trans17 missão dela, estamos colocando-a em ação, o que desafia
essa relação. Quando trabalhamos em um arquivo, seja no acervo de um museu ou em um arquivo público, fica muito claro que nossa ação de preservação está ligada a essa ação de mexer, de vasculhar, que é uma ação do corpo mesmo. Cada vez que alguém vai lá e procura um negócio, isso levanta poeira, chacoalha, e aquilo entra em movimento. A chance de um material que ninguém mexe, que fica ali parado, ir se perdendo é muito maior. Então, a cópia é, vamos dizer assim, a grande força do arquivo, do meu ponto de vista. A cópia, a reprodução, a transcrição, a leitura em voz alta, todas essas ações são fundamentais. GC (Joana) É muito interessante, porque, a princípio, a gente achava que sabia o que era um arquivo, mas, quando começamos a entrar em contato com esse mundo de estudo, de pesquisa, de ação, fomos percebendo que isso não era verdade. Eu acho que eu tinha algo como uma imagem meio estática, no meu pensamento, como se o arquivo fosse apenas “a história oficial”. Nesse processo, pudemos confirmar que, sim, há, no arquivo, essa representação de uma certa história, que desemboca, consequentemente, em uma enorme parcela de faltas de dados e histórias que não estão lá por serem invisíveis, periféricas, entendidas como não dados pelo olhar ocidental. Mas isso se complexifica com o que você está falando, porque, pelo que estou entendendo, apesar de haver, sim, ausências e lacunas nos arquivos oficiais, há uma dimensão que é uma imensidão de dados e vestígios que estão nos arquivos, mas simplesmente não se “oficializam” enquanto história. Então, na verdade, é muito pouco aquilo que é “tirado” do arquivo para virar o que conhecemos como a história oficial. Ana É um recorte. GC (Joana) Exatamente. Aí faz muito sentido aquilo que você falou para nós uma vez, que o arquivo não é a memória, é o substrato para a produção da memória. Isso significa que ali também há muito da sombra, do não dito, de uma história que não é contada etc. Ana Tem muito a ver, também, com a história dos mortos e dos vencidos. Existem mil regras tanto para entrar num arquivo, quanto para aquilo que pode ser mostrado. Estamos trabalhando com um arquivo recente, pensando no recorte temporal escolhido para este projeto, por conta da Comissão Nacional da Verdade, mas, teoricamente, se fôssemos seguir os procedimentos de gestão de documentos da arquivística, talvez não tivéssemos acesso a arquivos de processos tão recentes. GC (Joana) Não? Ana Não, porque há toda uma questão sobre a preservação e a lei de acesso à informação. Há uma série de práticas da arquivologia que não entendo muito bem, com a finalidade tanto de impedir o acúmulo e a destruição de documentos, como também de determinar prazos para o recolhimento e a transferência de suportes dos documentos. Quer dizer, o que você pode acessar e o que não pode acessar… os arquivos estão ligados a uma série de questões de uso da informação. Eu, por exemplo, não conhecia a história do Brasil
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nunca mais1. Num momento em que era ilegal falar, mexer, divulgar os relatos sobre a tortura que estava acontecendo nos porões da ditadura, eles, como eram advogados, conseguiram reproduzir, em segredo, mais de setecentos processos judiciais do extinto Superior Tribunal Militar, acessando processos que não tinham ido parar nos arquivos e ainda estavam tramitando em tribunais. E o que faziam com isso? Retiravam esses inquéritos, copiavam e devolviam para os tribunais. Com isso, foram acumulando essa documentação e, quando veio a abertura, publicaram. É um trabalho lindo de investigação, impressionante, que a gente desconhece. São estruturas e brechas no fundo do próprio Estado, com as quais temos contato no mesmo momento em que entramos em um arquivo. Grupo Contrafilé (Cibele Lucena) Fiquei pensando aqui quão complexo é esse paradoxo da história oficial ou não oficial, daquilo e daqueles que entram, ou não, no arquivo. Vendo o arquivo como o Estado e o Poder, existe uma lacuna que tem a ver com a questão do acesso mesmo. Se pensarmos, por exemplo, no problema fundiário no Brasil, nos povos e comunidades que brigam eternamente para ter o título de suas terras e para que esse documento entre nos arquivos… Ana Eu acho que, na verdade, esse acesso, ou não, termina sendo justificado pela própria lógica do arquivo. Pensando do ponto de vista dos dados, por que a referência ao genocídio dos povos indígenas durante a ditadura, vai aparecer somente em 2014, no relatório final da Comissão Nacional da Verdade? Se, por um lado, existe a violência histórica contra os povos originários, uma guerra ininterrupta, por outro, existe uma questão que se explica pela burocracia: quem não tem RG, quem não tem carteira de trabalho, quem não tem escritura da terra não entra nos relatórios e nos registros oficiais da administração pública. Esses registros, esses números, são a base do pensamento arquivístico: indexação, classificação, numeração. Nomenclaturas que dizem pouco para quem está de fora. O que acontece com o arquivo é que ele é impessoal, duro; entrar nele é um trabalho árduo, exige tempo de pesquisa. E qual é o tempo que temos para isso? Qual o uso, por exemplo, que as escolas fazem do seu tempo para isso? Fora que você vai no Arquivo Público, hoje, do Estado, e ele tem a estética de presídio, sabe? Mas não acho que ele seja exatamente fechado, os funcionários dos arquivos, por exemplo, em sua maioria, são historiadoras e historiadores, gente politizada. Mas certamente ele representa um mundo burocrático, acadêmico, com o qual muitos de nós não têm familiaridade. Além disso, aqueles milhares de nomes, aquela quantidade enorme de documentos, assusta, por isso é preciso devolver voz e alma a esses dados, a esses milhares de papéis, o que tem tudo a ver com a discussão sobre o testemunho como documento. Senão, se o arquivo é inviável, no sentido do acesso, ele fica invisível.
1 → Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em 15 de junho de 2019.
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GC (Joana) Mas eu acho que talvez a gente esteja falando de duas coisas diferentes. Se pensarmos nas Madres de la Plaza de Mayo2, lá da Argentina, assim como nos movimentos sociais que nasceram a partir delas, como o HIJOS3 e grupos de artistas associados4, por exemplo, entendemos que eles souberam, muito melhor que nós, como usar os arquivos5. E não só. Como usar e produzir novos arquivos a partir disso. Mas por quê? Porque isso é exatamente um saber. Você falou: “ah, os arquivistas geralmente são historiadoras e historiadores, politizados, têm uma abertura, você pode entrar lá…” e tal. Mas as pessoas não sabem disso. Não sabem nem que pode ou que não pode entrar, nem como e nem para quê. Na Argentina, acho que uma coisa que eles souberam fazer é transformar esse saber em um trabalho público e comunitário de inteligência. E como eles fizeram isso? Colocando o arquivo em ação coletivamente. Foi assim que as pessoas começaram a saber como lidar com os dados e a ver o sentido disso a partir de resultados concretos na realidade6. Isso, por um lado, tem a ver com esse “saber 2 → Mães dos presos, exilados e desaparecidos políticos da última ditadura militar argentina, que desde 1970 lutam por justiça. 3 → Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio. Segundo definição presente em seu site: “H.I.J.O.S. é um agrupamento independente e horizontal de direitos humanos, formado, em princípio, por filhos de desaparecidos, ex-detentos e exilados da última ditadura militar argentina. H.I.J.O.S. luta pela justiça e punição aos repressores da ditadura militar, impulsiona investigações, juízos e ações contra os repressores. Junto à luta de outras organizações, H.I.J.O.S. inscreveu conceitos como os de justiça social, memória ativa e continuidade histórica. Cria, em meados dos anos 1990, a prática do escrache (da palavra escrachar)”. Sobre o escrache, ver notas 5 e 6. Fonte: http://www. hijos.org.ar, acesso em março de 2012. 4 → Como o Grupo de Arte Callejero (GAC), por exemplo. Para saber mais, consultar: GAC. GAC (Pensamientos, Practicas, Acciones). Buenos Aires: Tinta Limón, 2009. 5 → Uma das ações recorrentes desse movimento nos anos 1990-2000, por exemplo, era pesquisar onde os torturadores viviam nas diferentes cidades da Argentina. Assim como no Brasil, militares ativos durante a ditadura militar continuavam tendo altos cargos, seja no governo, seja fora dele. A partir desse banco de dados, o movimento criou o que denominaram de escrache. Este se iniciava com um processo de conscientização da comunidade do entorno onde vivia o “genocida” (forma como nomeiam os torturadores da época da ditadura), contando para todos o que ele fez, onde atuava, quem matou etc. Depois disso, em um dia e horário marcado, uma marcha era feita por centenas de pessoas até a casa do genocida, ao longo da qual diversas ações artísticas e políticas aconteciam. No início, isso se dava de forma bastante silenciosa, já que era um processo perigoso e que ainda não tinha o apoio da sociedade e do próprio Estado. Aos poucos, foi se tornando uma prática legitimada socialmente. 6 → A partir de ações como os escraches, o Estado argentino passou a rever as políticas de aplicação da justiça no caso dos torturadores e ex-militares, muitos dos quais foram punidos e presos na era Kirchnerista.
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entrar no arquivo”. Por outro lado, acho que é algo um pouco diferente, que é mais ou menos assim: esses corpos que não entram. Daí estamos falando da produção do dado primário mesmo. Acho que são duas coisas distintas: como acessar e colocar em movimento um dado já produzido e, daí, quem sabe, até produzir novos dados, dados insurgentes, a partir daí; ou como conseguir que aquilo que nunca entrou, que não entra de jeito nenhum nos arquivos, finalmente entre. GC (Cibele) Era disso que eu estava falando. De você simplesmente não ser arquivado. GC (Joana) Então, só colocando mais lenha na fogueira, agora fiquei com uma questão sobre isso. Para mim, mudou um pouco essa concepção. Será que não foi arquivado? Porque, pelo que a Ana falou, talvez não tenha sido, em muitos casos, não, mas talvez tenha sido e esteja lá em algum lugar. A Ana falou dessa história da sombra, desse monte de coisa que fica lá no fundo, mas nunca é acessado. GC (Cibele) A Ana falou, por exemplo, do arquivo como lugar fundamental para se declarar a posse de terra. Mas assentamentos, quilombos, comunidades, quando não têm titulação de terra, nem chegam nesse arquivo. Não viram dado, porque não lhes é garantido o direito à titulação. Então, se o arquivo também é um lugar onde o Estado controla as declarações de posse, existe uma série de terras que não são declaradas, porque vivem há quinhentos anos numa negociação com o próprio Estado, que não regula essas terras. É nesse sentido que estou falando. E em outros mais. Que há quinhentos anos essas terras – e todos os modos de produzir e se relacionar com a terra associados a elas – não viram dados nesse arquivo. Grupo Contrafilé (Rafael Leona) Quando a gente trabalhou com a Rede Mocambos, estudamos bastante como aconteciam os processos de titulação de terras dessas comunidades. E descobrimos que elas montavam arquivos enormes de material socioantropológico para provar que aquela terra era sua, e a luta era como fazer esse arquivo entrar nesse outro arquivo do Estado-Nação, que é o que a Cibele está falando. Mas não conseguia entrar. A gente abria a planilha que compilava dados desse mapeamento de quatrocentas comunidades quilombolas, mostrando tudo o que estavam fazendo e onde, no processo, estava cada uma, e só uma, no Brasil inteiro, tinha chegado ao final, ou seja, tinha conseguido entrar no arquivo do Estado com seu arquivo e somado, lá dentro, uma inscrição histórica como uma comunidade com posse de sua terra titulada. Ana Aí entra o lugar da própria história oral, quer dizer, se a gente precisa instaurar “lugares de memória”, é justamente porque a gente perdeu esses lugares comuns de escuta. Por que eu preciso de um lugar para arquivar essas histórias? Cemitérios, arquivos, museus, datas comemorativas? Porque com o Estado-Nação se constituindo e assumindo esse lugar de poder falar “isso é verdade”, “isso não é verdade”, “isso é permitido”, “isso não é permitido”, desapareceu 21 esse lugar da memória coletiva espontânea.
Imagens de trabalhos e ações do Grupo de Arte Callejero (gac/Argentina), a maioria das quais realizadas durante escraches. Buenos Aires, Argentina, 2002–2007. Fonte: acervo gac.
GC (Cibele) “Aqui você guarda isso”, “ali você guarda aquilo”. Ana Exatamente. Por outro lado, quando você vai ler os documentos de posse de terra do período colonial, é lindo! São dez passos atrás da macieira, cinco na frente do rio, quer dizer, apesar de tudo isso que estamos falando, ainda assim, é possível ver, pelo próprio arquivo, a passagem do tempo de uma perspectiva humana, comunitária. Por isso essas ações com artistas em arquivos, porque vocês têm um olhar com uma outra lógica. O/a historiador/a, o/a arquivista, essas pessoas que estão nesse meio, ainda sacralizam muito o arquivo, enquanto, na arte, trabalhamos mais na linha da cópia, do corromper, do mudar a ordem. Não importa tanto o dado, mas o potencial de transmissibilidade dele. Não importa tanto a coleção, em si, mas como você faz uso dela, dá vida, coloca em movimento, enfim. GC (Joana) Mas fico com uma dúvida sobre isso. Pensando nas comunidades indígenas, quilombolas, nesses corpos, nessas vidas e existências que não viram dado em certos arquivos e, por não virarem dado, não são reconhecidas. Uma vez você até falou alguma coisa do tipo “só existe o que é arquivado”, “só existe o que é classificado”, portanto, no mundo em que a gente vive, a existência está ligada à classificação. Por um lado, sou total “arquivo em fuga”, porque, nossa, a existência que a gente acredita e, cada vez mais, tem muito a ver com esses modos de existência não hegemônicos, dissidentes. Mas, por outro, dá um pouco aquela sensação de que a gente nem chegou no direito ao arquivo, sabe, e vamos abrir mão dele? Sei lá, eu fiquei um pouco com isso na cabeça. Ana Eu acho que essa é uma questão superimportante de se falar, porque temos que tomar muito cuidado com o que está acontecendo hoje. A gente não pode simplesmente jogar fora os arquivos, eles são fundamentais, têm a ver com o direito, sim, de todo mundo. Por isso acredito que temos que dar conta, ocupar essas instituições do século 19. Temos que ter em mente que, primeiro, precisamos ocupá-las e que ainda estamos muito distantes disso. Se você vai conversar com pesquisadores que trabalham, por exemplo, sobre temáticas da história da escravidão, da questão da terra, da resistência dos povos indígenas, o arquivo é fundamental. Lembro-me do livro do historiador baiano João José Reis7, sobre Domingos Sodré, que acompanha a trajetória desse pai de santo na Bahia, a partir da documentação policial. Ele segue os registros oficiais, as passagens de Sodré pela polícia, as batidas no seu terreiro e, com isso, conta uma história que não conseguiria, de outro modo. GC (Cibele) Quando você fala sobre a reconstituição da história de um pai de santo a partir do arquivo policial, isso me faz lembrar de um trabalho nosso chamado A rebelião das crianças8. É um trabalho longo, 7 → Reis, João José. Domingos Sodré um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 8 → Para ver a publicação de uma das partes deste processo, acesse:
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que continua até hoje. Bem no começo dele, em 2005, 2006, quando a gente se encontrou com uma associação de mães9 contra a tortura na Febem, atual Fundação Casa, o grande trabalho delas tinha a ver com os arquivos, porque a maior dificuldade das famílias dos meninos e meninas que estavam presos era justamente ter acesso ao processo judicial de cada um deles, para entender e acompanhar quanto tempo iriam ficar lá, qual era a penalidade, qual não era. Então, era um direito ao arquivo, no sentido de poder acompanhar, de perto, aquele processo. Eles não sabiam nem do que eram acusados e, dependendo disso, a pena poderia variar entre cinco, dez e quinze anos. Aquilo se perdia, o Estado não dava nenhuma satisfação, não respondia às famílias. E elas ficavam totalmente perdidas; de repente, o filho roubou um relógio, era para ter ficado cinco meses, passavam dez anos e o moleque ainda estava lá, apanhando. Isso tem muito a ver, para mim, com esse “pegar o arquivo na mão”, fazer um uso político dele. GC (Joana) A fuga do arquivo pode também estar aí, né? Não no abandono, mas no dar a volta nele. Ana Sim, tem a ver com esse “como usar”. É o caso, por exemplo, da “Coleta Regular de Testemunhos”, com a qual vocês estão trabalhando. Por que alguém está coletando essas vozes? Qual é o uso disso? Só quando você começa a ouvir é que você entende por que, para fazer sentido, o arquivo precisa ser vivido, escutado. GC (Joana) Eu fico com vontade de pensar mais sobre esse paradoxo do arquivo, que fomos nomeando, ao longo desta conversa, de diferentes formas. Por um lado, essa obsessão arquivista, do acúmulo de cada momento da vida, que vivemos ainda mais radicalmente nos dias de hoje; e, por outro, a possibilidade de estabelecer uma relação mais comunitária, mais corporal, mais poética, mais oral e com mais sentido até político com esses registros. Talvez o ponto seja: como aproveitar esse acúmulo fazendo um uso mais saudável dele – mais poético etc. –, sem precisar, por sua vez, acumular mais e mais? Ana Toda vez que falo sobre esses assuntos publicamente, as pessoas ligadas a alguma comunidade me perguntam: “ah, mas a gente queria construir um arquivo nosso aqui, do nosso jeito…”. E já disse isso algumas vezes, que acho importante construir o seu arquivo, mas também acho que a gente tem que se apropriar desse Arquivo Público primeiro. Na verdade, não é que eu seja contra as pessoas fazerem seus arquivos, eu acho importantíssimo; mas, por outro lado, acho que a gente não precisa reproduzir esse modelo. Uma coisa é entender como ele funciona para se apropriar dele – até porque esses arquivos públicos estão sempre de alguma forma ameaçados e ainda há muitas caixas por abrir. Eu gostaria que a gente fizesse esse trabalho de entender como ocupar essas instituições que vieram de um modelo https://issuu.com/grupocontrafile/docs/a_rebeliao_das_crianc__as/14. 9 → AMAR – Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescente em Risco. 25
de pensamento colonial. Claro que isso é complicadíssimo; no campo da arte, a gente vai lá e faz nossas pílulas, porque o pessoal que trabalha nos arquivos está entendendo que a gente realmente ativa e comunica quando traz outros usos e, por isso, nos dá uma certa liberdade. Mas eu tenho pensado sobre isso. Por exemplo, se uma comunidade quer organizar um arquivo, eu diria para eles: “Está certo. Então, vamos lá no Arquivo do Estado tentar descobrir o que tinha nessa rua, nesse lugar onde vocês moram, quem comprou essa terra primeiro, quem morou aqui, quem construiu. O que a gente consegue achar, descobrir desse lugar, olhando o que existe no arquivo público?” E, a partir daí, a gente começa. Até para ver se é isso que se quer mesmo. Hoje virou essa coisa, fala-se muito “ah, todo mundo tem que ter um arquivo”, mas, então, vamos olhar o que já existe. Esse é o meu ponto. Eu acho que a gente tem que entrar na estrutura. GC (Rafael) Você diz, para criar um embate entre arquivos? Ana Também. Mas, para isso, é preciso entrar nas instituições, olhar para elas e entender que elas são nossas. Então, vamos lá ver aonde conseguimos chegar. Esse é um embate dificílimo. E a gente tem uma descrença, de fato, uma descrença no Estado. Mas, bem ou mal, o que fica no final é a política pública. Quando falo em ocupar essas instituições, é nesse sentido, de a gente entender que aquilo ali é o substrato, então, vamos olhar para ele como nosso e, daí, a gente vê o que faz. GC (Cibele) Eu fiquei parada no batalhar pelo arquivo no sentido do direito, para que realmente seja um processo democrático o “ser arquivado” e o “caber tudo no arquivo”. De não ser indigente, mas estar no arquivo, de você não ser enterrado abandonado, mas estar no arquivo, daquele tipo de uso da terra estar no arquivo, essa coisa do que existe e do que não existe aos olhos do Estado. Ana Por isso a gente tem que ocupar. Tem que ocupar nesse sentido de pertencimento mesmo. GC (Joana) E isso tem a ver com existir, com nomear. Pois algo que não existe, não some, não desaparece, que é o que aconteceu e ainda acontece muito no Brasil. É a batalha para transformar um assassinado pelo Estado em um “desaparecido”, por exemplo. GC (Cibele) E, hoje, para transformar os executados pelo Estado em pessoas, com histórias, pessoas vivas e que, portanto, foram mortas. Porque quem não é reconhecido como pessoa, não morre, como diz nosso amigo Eugênio Lima10. GC (Rafael) Quando a gente não nomeia, tudo vira um enorme não saber, algo invisível, disforme, consequentemente, a gente não 10 → Eugênio Lima é ator, diretor de teatro, coreógrafo, DJ e pesquisador. É membro fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da Frente 3 de Fevereiro e do Coletivo Legítima Defesa.
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vasculha, porque nem sabe o que vasculhar. E, então, não ritualiza, não simboliza, uma coisa está ligada a outra.
Que ferramentas são necessárias para lidar com o arquivo? GC (Rafael) Eu estava pensando sobre aquela pergunta que tentamos formular a respeito das ferramentas necessárias para acessar um arquivo ou produzir um e percebo que você falou uma coisa bem importante, que é “o tempo”. Você falou também sobre a capacidade de escutar o que está no arquivo para poder ativá-lo. O que mais? Ana Eu acho que, na verdade, o arquivo está muito mais ligado com encontrar do que com procurar. Mas para que essa mágica aconteça, você precisa ter tempo. Eu acompanhei isso na Bienal da Bahia11, quando professores queriam levar os alunos para estudar o que era a Sabinada, uma daquelas revoltas populares. Aí, havia lá uma pastinha, uma caixinha preparada pelo arquivo, sobre a Sabinada. Aquilo ali, já preparado, me incomodava um pouco, porque eu acho que a grande mágica é você ter tempo para olhar aquilo e aparecer uma coisa que você não esperava. O inesperado é a coisa mais incrível, e acho que a gente está violentando isso hoje, essa curiosidade própria ao processo de pesquisa, que nasce do ato de pesquisar livremente. Porque é assim que você descobre uma coisa, que leva a outra, e tira você um pouco de uma procura por palavras exatas. Claro que você pode ir com algo que guie você minimamente, mas eu falaria, por exemplo, em leituras de documentos cruzados, em buscas por aquilo que mobiliza cada um, em disponibilizar coisas que despertam a curiosidade… Porque, como se cria esse tipo de cultura? GC (Joana) A gente aprende e ensina muito a partir de coisas já processadas. Parece a discussão, tão atual, sobre a necessidade de comermos menos alimentos processados… Ana É o mal da pedagogização. Tipo, você não lê poesia, você lê a interpretação da poesia. GC (Joana) Exatamente! Lembra, inversamente, a lógica hacker, que é exatamente o contrário, é você aprender o código, senão, hoje, você é analfabeto, o que somos, a maioria de nós. Pensar nesse ensinar e aprender, que não é só da escola, da criança, é de todos nós, é pensar nesse aprendizado de construir as palavras-chaves e não chegar com elas já prontas; de formular perguntas que nos interessam e, a partir daí, criar modos de disponibilidade para ter tempo para respondê-las, encontrando alguma coisa que você não esperava… E essas são posturas, procedimentos, que é possível ensinar e aprender. 11 → Ana Pato foi uma das curadoras da 3ª Bienal da Bahia, organizada pelo Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM/BA), Salvador, em 2014. 27
Ana A Arlette Farge, historiadora francesa que escreveu O sabor do arquivo12, um livro lindo, fica horas contando da monotonia do arquivo. Ela conta que havia uma pesquisadora que ia no arquivo cheia de anéis e ficava batendo o dedo, e que só o barulho dos anéis podia distraí-la. Eu sempre gostei disso, você está ali fora do tempo, em um tempo que não é esse. Talvez essa seja uma questão da arte em relação ao olhar do/a historiador/a, porque, para nós, não passa impune, quando entramos num arquivo, o olhar para o nosso entorno. E se pensamos nesse/a historiador/a que está escrevendo a partir dos documentos, parece que ele/a consegue abstrair aquele contexto, que muitas vezes é cheio de regras. Não sei, acho que a arte é mais incomodada com essas dificuldades do entrar, do acesso, com aquilo que está faltando. Não estou dizendo que o/a historiador/a não seja; ele/a é, em relação aos dados, enquanto nós olhamos o ambiente também, é um olhar um pouco diferente, e acho que estamos discutindo isso, a rachadura na parede, a goteira, e isso contamina o próprio trabalho, de alguma forma. Não sei, é uma impressão que eu tenho.
Arquivo e arte GC (Joana) Vamos falar um pouco mais sobre a relação entre arquivo e arte? Por que trabalhar arquivos através da arte? Arquivo: realidade ou ficção? A pesquisa sobre arquivo e ficção é também uma forma de criar memória? Qual a diferença entre arquivo e memória? Ana A diferença entre arquivo e memória é isso que a gente falou, quer dizer, a memória é um processo de construção. O que estamos fazendo, nesta exposição, eu entendo que é um processo coletivo de criação de memória. A documentação está lá, guardada, arquivada, cinquenta, cem, duzentos, trezentos anos… Imagina que é um gesto de poder enorme você decidir em qual pasta você vai guardar determinado documento. Ou você simplesmente tirar um documento do lugar, e isso nunca mais ser encontrado, como numa biblioteca, se você tirar um livro do lugar, corre o risco de ele nunca mais ser achado. Da mesma forma, para que algo ali se torne, de fato, memória, tem que passar por uma série de operações que acontecem no campo da história, da arte, das ciências humanas… Essa contradição presente no arquivo, da visibilidade e invisibilidade, é fascinante! A ideia dessa relação entre “arquivo e ficção” vem de uma vontade de pensar um modelo de ação curatorial com arquivos que estejam em situação de risco, não necessariamente no sentido físico, mas nesse sentido da falta de visibilidade, portanto, de acesso. A partir disso, identifico artistas que tenham interesse por essa temática, então, essa ação é, sim, uma forma de criar memória. Eu diria que é um programa de ação curatorial para pensar a construção da memória, coletivamente.
12 → Farge, Arlette. O sabor do arquivo. Tradução de Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2009.
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GC (Joana) Quando participamos da 31ª Bienal de São Paulo (2014), o vetor dos curadores eram os “agenciamentos”, então eles diziam: “ah, a gente vai juntar vocês com vocês, vocês com vocês e ver o que acontece”. E parece que, no seu caso, é um agenciamento entre os artistas e os arquivos, como se o arquivo fosse uma pessoa. “Eu quero que você se encontre com ele para ver o que acontece”, sabe? Ana Ver se pega e o que pega, né? Por isso eu trabalho com essa ideia de que vocês são meio chaves mágicas para mim, porque o que pega para um, não pega para o outro. E isso realmente tem muito a ver com as práticas de cada grupo, de cada artista. E o olhar daquilo que vocês escolhem ou como vocês experimentam aquilo diz muito da própria prática de cada um. Para mim, é um “criar memória”, mas também está muito ligado a uma forma de pesquisa em arte. Eu sempre ficava um pouco agoniada com o arquivo, porque parecia que eu tinha que saber o que queria, quando ia lá, e eu nunca sabia o que queria. Então, como é que se entra no arquivo pelo olhar de outra pessoa? E esse olhar de outra pessoa, para mim, foi sendo o olhar dos artistas. GC (Joana) Isso me faz voltar a algo que me chamou muito atenção quando você falou, que é a relação entre o “mexer nos arquivos” e a preservação. Sempre, na minha cabeça, a preservação era uma coisa meio parada, um “ter que preservar”, e você trouxe uma ideia totalmente diferente, exatamente o contrário daquilo que se incute no nosso imaginário. Você fala do preservar como movimento, de que as coisas são preservadas quando as manuseamos, usamos, mexemos com elas. E é isso que inaugura um círculo virtuoso, porque quanto mais mexemos, mais isso nos faz querer preservar, já que preservamos o que continua fazendo sentido. Ana Isso tem muito a ver com duas coisas. Primeiro, com o digital, porque o digital parado, se você não copiar para o novo formato, novo software, isso acaba. Agora isso tem a ver também com todos os estudos sobre a memória, que estão ligados ao século 20, à memória do trauma, quando se demandou muito o acesso aos arquivos. Os/as historiadores/as, as/os psicanalistas, as/os teóricas/os que vão estudar a história do trauma no século 20, que vão estudar o holocausto, começam a exigir, a demandar que esses arquivos forneçam material. Então, o que se discute muito, hoje, é que a vocação do arquivo muda; hoje, cada vez mais, preservar deve ter a ver com acessar. O arquivista deixa de ser apenas um “guardião”. Ele/a guarda, mas para poder dar acesso. Nessa mesma linha, está se discutindo muito sobre a vocação do arquivo, no sentido de deixar de ser uma vocação para o Estado e passar a ser uma vocação para a história. GC (Joana) E, nessa vocação para a história, para a criação de memória, fico pensando na responsabilidade grande que temos enquanto artistas, de trabalhar cada vez mais com as dimensões do direito e da justiça. Ou seja, por que é importante olhar para os arquivos, para a memória, hoje, com tudo o que está acontecendo? Fake news, estudos e fatos históricos sendo questionados, revisionismo… Um 29 mundo ao contrário, no qual, talvez, a arte possa mostrar
coisas que muitos estejam se recusando a ver. E a arte tem mesmo cumprido essa função, de evidenciar dados, provas e documentos, exatamente por saber lidar com a lógica do absurdo e expressá-la. E daí a gente também fica se perguntando o porquê de todos os artistas da exposição, de uma forma ou de outra, estarem encarando esse corpo a corpo com os arquivos com os quais estão trabalhando, como um “estar em aula”, o que se traduz nas obras como um ensinar e aprender que aparece como algo importante, inspirador. Ana O que eu vejo conversando com cada um é que está todo mundo aprendendo. Isso me surpreende e me anima. Quer dizer, são vários artistas, uns mais obsessivos, outros menos, descobrindo um monte de coisas de que a gente não fazia ideia, a partir dessa documentação. Fora o que estamos ouvindo das nossas próprias famílias, de amigos, porque, quando começamos a contar sobre essas descobertas, vêm à tona várias histórias que não conhecíamos. E como tivemos um processo muito curto de produção de trabalhos, muitos artistas se sentem assim, nesse processo, tipo: será que vou conseguir sair desse estado de “estar aprendendo” e transformar tudo isso numa obra? GC (Cibele) Que configura esse “estar em aula” de que você falou. Não perturbe, estamos em aula! Ana Eu acho. É um “não acabou”, né? É como se não tivesse dado tempo de sedimentar, então, ainda está ali em ebulição. E há uma outra coisa, porque, de alguma forma, nós assumimos um compromisso entre nós, de não falarmos só para nós mesmas/os, de conseguirmos falar não somente para nossos pares, e isso nos obriga, de alguma forma, a nos colocarmos como “mestres ignorantes”13. GC (Rafael) A falar sobre isso que não sabemos… Ana Sobre o que não se sabe e com quem é diferente de você. Acho que estamos todos e todas nessa.
13 → Rancière, Jacques. O mestre ignorante – Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução Lílian do Vale. São Paulo: Editora Autêntica, 2004.
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DEVOLVER AFETO À HISTÓRIA
Encontro do Grupo Contrafilé com os grupos Clínica Pública de Psicanálise, Margens Clínicas e História da Disputa: Disputa da História
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Tecendo a manhã João Cabral de Melo Neto Um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro: de outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzam os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã, desde uma tela tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão [poema compartilhado por Kwame Yonatan, por trazer, como ele nos contou, “a importância do testemunho”]
Devolver afeto à história Ao longo deste nosso processo de pesquisa, conforme adentramos o vasto mundo dos arquivos pela via dos testemunhos do Memorial da Resistência, fomos sentindo desejo de aprofundar nossa própria compreensão acerca do testemunho como produção de pensamento, de memória e de prova; gesto vivo, político, clínico e educativo de construção da história. Por isso, convidamos para um bate-papo alguns coletivos que trabalham ativando testemunhos tanto do passado, quanto do presente, fazendo-os, inclusive, convergirem em muitos sentidos. A conversa aconteceu em maio de 2019, na salinha da Clínica Pública de Psicanálise, no canteiro aberto da Vila Itororó, e teve participação de Graziela Kunsch e Kauã Santana, pela Clínica Pública; de Kwame Yonatan, pelo coletivo Margens Clínicas; e de Lucas Sanches, pelo projeto História da Disputa: Disputa da História.
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Uma definição de testemunho Grupo Contrafilé Sabemos que a Clínica Pública, o Margens Clínicas e o História da Disputa: Disputa da História são grupos que têm um trabalho com a escuta, com a fala, com o testemunho; e, a partir de suas experiências e percursos, queremos pensar o testemunho como um lugar educativo, para reconhecer, nele, o que a gente aprende, o que o testemunho ensina, por isso estamos aqui juntas/os… Graziela Kunsch Queria pedir uma coisa antes, que pode ser um exercício legal para todos/as nós. Uma vez que toda a discussão vai ser sobre testemunho, como explicar essa palavra para o Kauã? O que é testemunho? Kauã, elas estavam explicando que são artistas e estão fazendo uma pesquisa em um arquivo que tem depoimentos de pessoas que, de alguma forma, foram vítimas da ditadura no Brasil – a época em que o país foi governado por militares e muitas/os foram presas/os, torturadas/os e/ ou assassinadas/os. Elas, do Grupo Contrafilé, estão pensando esse processo desde a ditadura até hoje e, por isso, há aqui nesta conversa pessoas que trabalham com vítimas da ditadura e da violência de Estado também no presente. Não é só sobre quem, por exemplo, foi assassinado lá atrás. Tudo o que aconteceu nesse período tem consequências também nos que sobreviveram e em novas gerações, filhos, netos, outras pessoas das famílias… E uma das formas de a gente saber o que se passou e o que ainda se passa é escutar a história dessas pessoas… e isso vai ter relação com testemunho… mas eu preferia que alguém explicasse, talvez o Kwame, uma vez que o Margens trabalha bastante com a ideia de testemunho.
Kwame Yonatan É, usamos bastante essa palavra. Testemunho é uma história que você conta. Testemunho é essa tentativa de dar sentido àquilo que você passou. Então, o testemunho tem duas direções: para quem escuta e para quem está falando. E quando damos o testemunho de alguma coisa, também nos escutamos falando, contando a história, repensando sobre aquilo e como aquilo nos afetou. Graziela Ao falar a partir da nossa memória, a gente pode perceber o que aconteceu com a gente, tomar consciência daquilo que viveu. E ver que a nossa história individual é também, muitas vezes, uma história coletiva. Kauã, achei fundamental sua presença aqui hoje, por estarmos na Vila Itororó, que foi, e ainda é, um lugar de disputa. Você conhece essa história melhor que todo mundo aqui. Eu conheci o Kauã bebê, em 2006, quando ele tinha um ano, aqui na Vila. E quando nos reencontramos, pouco antes de o canteiro de restauro da Vila abrir para a cidade, em março de 2015, o Kauã estava aqui com uma de suas tias e com sua avó, e muito curioso com tudo, por que tiveram que ir embora em 2011. Aos poucos, você foi construindo um testemunho a partir de sua memória. E de seus desejos também. Você não deixou essa história só no passado; você sempre me fala que queria poder voltar a morar aqui… Kauã Santana Aqui é muito melhor que morar num apartamento, porque aqui existe espaço. O apartamento é fechado, não tem tanto espaço, tanto lazer como a gente tinha quando morava aqui. Aqui havia show, festa, já houve até filme feito aqui… Kwame Kauã, a Grazi acabou de dar um testemunho sobre você. A partir da Vila Itororó, ela fez um testemunho sobre você. É isso. Isso 33 é o testemunho, de uma
forma sintética. Essa palavra, testemunho, é muito ligada ao policialesco… Da polícia, e parece uma palavra meio neutra, meio morta, sem afeto. E o processo é exatamente o contrário. O testemunho traz, de novo, o afeto para a história. Esse é o problema do arquivo morto, é uma coisa distante, mas quando vemos o testemunho, nos encontramos com as pessoas, é muito diferente, existe um traço vivo.
falar e do escutar – inclusive o falar e o escutar como “arte”. E, em nossa prática, vamos percebendo o quanto a história oral é um saber ancestral, que vem de várias origens culturais, com suas diferentes cosmologias e particularidades. Pensando nisso: por que vocês estão trabalhando com isso? Por que esse lugar mobiliza cada um de vocês?
Grupo Contrafilé Isso é muito importante. Você pode falar um pouco mais para a gente sobre o afeto do testemunho?
Graziela Vou contar sobre a origem da Clínica Pública de Psicanálise e como pensamos testemunho, e é importante dizer que eu e o Dani (Daniel Guimarães, psicanalista cofundador da Clínica) preparamos esta fala juntos, mesmo que ele não esteja aqui de corpo presente. A Clínica Pública nasceu em 2016, aqui no canteiro aberto da Vila Itororó, onde continua existindo. Foi imaginada como uma forma de não esquecimento da violência que se deu nesse contexto – a retirada forçada de moradores para a construção de um centro cultural. Ainda que moradores tenham assinado um acordo e recebido apartamentos parcialmente subsidiados pelo governo do estado e pela prefeitura, não puderam escolher permanecer aqui; não couberam no projeto de Cultura da prefeitura, o que, para nós, caracteriza uma violência. A Vila Itororó tem uma história de moradia, luta e resistência, na área central da cidade, que não pode ser esquecida. E esse não esquecimento se dá tanto através do testemunho direto dos portadores dessa história – os ex-moradores – para integrantes da Clínica, como na percepção, por parte daqueles, de que sua história é legitimada e reconhecida socialmente. Os exmoradores são o motivo, a razão de existência da Clínica nesse contexto, e não em outro, mas a ideia é que não fiquem presos a essa história.
Kwame O testemunho tem uma particularidade, é uma narrativa que consegue, de alguma forma, atualizar o presente. O testemunho sobre a ditadura militar, para nós, do Margens Clínicas, ressoa como uma forma de mobilizar um afeto que vem do silêncio, da gestão da invisibilidade, desse governar para fazer desaparecer, para produzir desaparecimento. Nesse sentido, acho que o testemunho só faz sentido quando ele toca, quando consegue, de alguma forma, transmitir mais que o conteúdo, então ele tem essa funcionalidade de produzir laço quando ajuda a nomear alguns afetos. A gente fez uma conversa, por exemplo, com trabalhadores de políticas públicas, sobre qual a relação da precarização dessas políticas, hoje, com o que aconteceu na ditadura, e conseguimos lembrar que, na ditadura, a primeira política pública precarizada foi a educação. E fomos conversando sobre como isso reverbera hoje. O testemunho trata, então, de você não guardar aquela história, mas deixá-la reverberar, tanto em quem escuta, quanto em quem conta. Grupo Contrafilé A gente tem pensado muito nessa dimensão do
A clínica pública de psicanálise
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Que possam, através do testemunho, um dia, tornarem-se “ex-exmoradores”, se assim desejarem. A Clínica faz essa mediação. Mesmo tendo uma maioria de analisandos que vêm de diferentes cantos da cidade (e não apenas ex-moradores), em todas as nossas aparições públicas (falas, textos, materiais permanentes), fazemos questão de reforçar essa origem, o sentido desse contexto específico de atuação. E os ex-moradores acabam sendo, de certo modo, coterapeutas na cidade. Porque a história deles é também a história de muitas outras pessoas e de muitos outros lugares, todos consequências das disputas espaciais desejadas pelo mercado e mediadas, autorizadas, executadas pelo Estado. O não esquecimento dessa história e sua legitimação tornam possível que essa parte da vida dessas pessoas seja integrada a sua vida psíquica. A coisa não dita, não elaborada ou, pior, silenciada, caracterizaria um não acontecimento, geraria uma lacuna. Lacuna, vazio capaz de produzir sofrimento, dúvida, culpabilização própria e uma série de outros efeitos imprevisíveis. Não falar sobre, não existir história sobre, produz efeitos psíquicos. Nesse caso, inclusive, efeitos intergeracionais, porque se trata de famílias, de pessoas que nasceram, cresceram e continuarão uma linhagem familiar com essa parte de sua história, agora, talvez, integrada, podendo ser contada, e não voltando como sintoma, no futuro. Sintoma no sentido de não compreensão da própria história, não só pelo sujeito que a viveu, mas, ainda mais grave, por aqueles que ainda virão. Grupo Contrafilé Você falou sobre a lacuna, é muito interessante, isso me fez entender essa lacuna que a mudança violenta da paisagem provoca, em todos nós, produzida por
uma série de decisões autoritárias do Estado e do mercado. Graziela O sentimento nem sempre claro de impotência, de não pertencimento… O testemunho é importante justamente para produzir sentido. Sem o testemunho, ou seja, se essa história não é elaborada através da fala, se ela não é reconhecida e legitimada através da escuta, isso gera uma lacuna no próprio indivíduo que não pôde elaborar sobre essa história. É uma lacuna psíquica, vamos dizer assim, um vazio, que pode ser inconsciente. E esse inconsciente é tanto individual como social. A coisa vai para outra escala. A gente pode pensar desde o indivíduo até a sociedade, a cidade, tendo sua história apagada. A história da história Lucas Sanches Eu sou historiador, faço parte do coletivo História da Disputa: Disputa da História, que é uma proposta de história pública, de compartilhamento de memórias. O principal trabalho do coletivo, neste momento, tem a ver com os testemunhos do Memorial da Resistência, como vocês já devem estar a par. Sobre a oralidade, sobre o testemunho, eu acho que, como historiador, conto a história da história. No pensamento ocidental, muita gente diz que o primeiro historiador foi Heródoto, porque concatenou, pela primeira vez, ao menos do que se tem notícias, em palavras escritas, o fluxo dos acontecimentos do homem no tempo. A história que a gente pratica hoje é bem diferente daquela, e ela tem relação com o fim do século 19; nesse período, pensava-se que a história só poderia ser contada tal como aconteceu. E essa narrativa se baseava nos grandes monumentos e nos documentos escritos; então, a história 35 dedicou boa parte de seu
tempo a investigar esses escritos, por exemplo, se eram verdadeiros ou não ou quais palavras se repetem de um documento para outro. No começo do século 20, essa ideia da história foi mudando, mas o grande ponto de transição foi a guerra, a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial. No entreguerras, já havia uma crise acontecendo, que produziria mudanças. E, a partir da Segunda Guerra Mundial, quando a Europa viveu um trauma enorme – e o trauma tem esse potencial de ter que ser exposto, ter que ser falado como testemunho –, os historiadores começaram a pensar em quanto vale o testemunho, uma vez que, por exemplo, os papéis dos nazistas não diziam que eles matavam gente em campo de concentração, depois os documentos vieram à tona, mas as pessoas falavam sobre isso antes de os documentos estarem visíveis. E qual a importância disso? Aonde eu quero chegar? A gente começou a dar mais valor para os testemunhos, os historiadores começaram a dar mais valor para a história oral. Enfim, muito tempo se passou, estamos agora no século 21, e ainda continua essa ideia de que o testemunho, a memória das pessoas, falada, contribui muito, tanto quanto a memória escrita sobre determinado objeto. Essa perspectiva, para nossos fins, da História da Disputa, é mais próxima à história pública, ou seja, é uma história que pode ser compartilhada por todos e é composta por todos; acho que é importante pensar no testemunho como algo extremamente plural. O testemunho nunca se repete; na minha opinião, a palavra escrita pode se repetir, mas o testemunho nunca se repete. Se você perguntar para uma pessoa, hoje, ela vai falar uma coisa e, amanhã, vai falar de outra forma. Então, por isso é interessante comparar os testemunhos, comparar o que as pessoas
falam sobre o mesmo tema, até porque acho que a posição que se toma no presente define a concepção que se tem do passado. De qualquer forma, para mim, não se pode, enquanto historiador/a, abdicar de uma busca por algo próximo de “verdades”, mesmo se estas não forem convenientes ao nosso discurso presente. E essa busca acontece a partir de testes às provas do passado, que são os documentos em sua variedade, sejam quais forem eles. O testemunho como construção de memória Kwame A partir do que vocês foram falando, eu me lembrei de um vídeo do Mateus Aleluia, não sei se todo mundo conhece, um cantor fantástico, negro, velhinho… Nesse vídeo, ele descreve como nasceu a arte: nasceu do homem nas cavernas vendo aquela beleza toda e desejando testemunhar aquilo que via. Fiquei aqui pensando nisso, que não é o tempo que passa por nós, a gente é que passa pelo tempo. A gente vai construindo uma perspectiva sobre o tempo e, nessa perspectiva, dando sentido às coisas, significado, direção, sensibilidade para isso. O testemunho vai construindo nossa realidade também. O Eduardo Galeano fala que não somos feitos de átomos, somos feitos de histórias. A história que a gente conta sobre nós mesmos, como a Grazi fez agora há pouco com o Kauã, a história que a gente escuta de nós, “quando você era pequeno, você era assim…”, então, o testemunho tem essa função quase existencial, ele dá preenchimento a nós, a como enxergamos o mundo. Pensando na Clínica, isso traz algumas questões importantes: como a gente conta nossa história e como a gente é contado pela história? Eu vou dar um exemplo que atravessa a mim e ao Kauã: dia 13
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de maio de 2019, a abolição fez 131 anos, mas esse é um jeito de contar a história da abolição, que confronta com o dia 20 de novembro, que é outro jeito de contar essa mesma história. Por quê? Dia 13 de maio carrega a história de que alguém veio e concedeu a liberdade aos escravizados, uma pessoa branca veio e assinou nossa liberdade. E não foi isso. A maior parte das pessoas escravizadas na abolição já estava livre. Isso muda a história do Brasil. Se você for pensar, para que, então, serviu a abolição da escravatura? Para contar a história de um jeito, para testemunhar de um jeito. E, como contraponto, o 20 de novembro carrega a história da resistência. O dia 20 de novembro marca uma conquista do movimento negro, foi uma reivindicação: “a nossa história é dia 20 de novembro, com Zumbi, não fomos passivos”. Por que estou contando essa história, dando um testemunho sobre nossa abolição? Porque o período pós-abolição tem muito a ver com a maneira como a gente conta nossa história coletiva, que é uma história muito violenta, mas também de muita resistência. E se a gente não coloca a ditadura militar dentro desse escopo de violência, a gente não entende por que a polícia continua militarizada e por que ela continuou atuando do mesmo jeito depois de terminar a ditadura. O Brasil, entre os países da América Latina, foi o único que teve a polícia militarizada. Isso tem um sentido na nossa história. A gente faz política com a polícia e vice-versa. O testemunho, a memória, por assim dizer, tem uma via muito perigosa, que é a via do ressentimento, de ressentir a história, que é um pouco o 13 de maio, nesse sentido de: “Você é só isso, você não é nada além dessa história”. E quando a gente pensa na Lei 10.639, uma lei de 2003 que obriga
todas as escolas brasileiras, todo o ensino público, a ensinar a história da África, a história afro-brasileira e indígena, e que até hoje não foi implementada?! Por quê? Porque olhar para a história desde outras perspectivas muda o nosso imaginário sobre nós mesmos/as. Se a gente for pensar, muda completamente a história do Brasil e de como a nossa atualidade foi se compondo, por exemplo, todas/os poderiam ter acesso à história da luta dos escravizados para não morrer de banzo – essa patologia, esse efeito da colonização, do trauma da escravidão, que tem a ver com a tentativa de apagamento, de afirmar que não havia uma história do lugar de onde viemos, de reafirmar que não havia nada, nem ao menos um lugar de onde viemos. Muda também a aceitação do mito da “democracia racial”, o mito de que todos somos iguais, de que há, no Brasil, uma harmonia entre as raças – porque as pessoas passam a não aceitar mais essa versão da história. Graziela Kwame, você estava falando sobre esse processo histórico que trouxe várias consequências para o presente, uma delas, a polícia militarizada. Kauã, você não deve ter estudado ainda a ditadura militar na escola, mas uma coisa que você conhece, na prática, é como a polícia atua. Kauã Sim. Um dia eu estava voltando da casa da minha tia, eu tinha ido deixar as crianças lá, porque elas iam jogar bola, e simplesmente fui parado, perguntaram se eu estava com o RG, falei que não e, por eu não estar com o RG, levei um tapa. Depois disso, o policial entrou no carro e foi embora. Foi do nada. Aí eu fiquei pensando sobre isso… Grupo Contrafilé Um tapa na cara?
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Kauã Um tapa na cabeça… Eu meio que esqueci, não me liguei muito, mas, mesmo assim, não gostaria de passar novamente por nenhuma experiência assim. Eu era ainda mais novo, foi no ano passado. Foi uma única vez e espero que não se repita. Kwame É triste, Kauã, ouvir isso, porque você tinha doze anos, você tem treze agora, estamos em 2019. A gente fica pensando: até quando vamos ouvir histórias de pessoas tão novas, histórias tão parecidas, por conta da cor da pele? Por conta do racismo? Essa é uma herança do processo escravocrata, é a continuidade da mesma lógica. E é interessante você ter falado nisso, porque eu trabalhei com jovens que cometeram alguma infração e cumprem medidas socioeducativas. Eles faziam seus testemunhos e contavam histórias muito parecidas com a sua, com alguns requintes de crueldade. Houve um menino de quem o policial ameaçou tirar um dente com alicate. Quem é historiador sabe de onde vem essa história. De tortura, da ditadura militar. Se a gente for olhar nosso processo de redemocratização, a anistia geral para todos – processo muito diferente do que aconteceu na Argentina, onde torturadores foram julgados e presos – trouxe consequências para a nossa história, os torturadores continuam soltos, muitos no poder, e essa mesma lógica chega em você, chega em mim, chega em todos, de formas diferentes, lógico. É aí que entendemos que o mito de que todo mundo é igual não é nem de perto verdade, porque nem todo mundo vai ter essa experiência que você teve, e menos ainda com doze anos! Por que eu estou tocando nisso? Porque, no processo de as pessoas testemunharem a ditadura, houve um apagamento da atuação dos movimentos negros, que foram muito fortes e ameaçavam esse
mito. Como os militares entendiam? “A galera do movimento negro vai vir com essas coisas dos Estados Unidos, vai trazer uma ideologia de racialização.” Soa parecido com alguma coisa que a gente conhece hoje, né? De que o racismo é coisa rara, não existe, de que essas histórias não são comuns, são apenas um detalhe da nossa história. E não. É só a ponta do iceberg, desse iceberg, desse mito que é o modo como nos socializamos, como nos entendemos. O efeito disso é que as reivindicações que existiam no movimento negro, a luta do movimento negro não entrou também como uma luta contra a ditadura, ficou à parte. E existe toda uma história do movimento negro que era também uma história de luta contra a ditadura. Então, esses testemunhos do movimento negro têm que vir à tona, porque, de fato, eles podem produzir efeitos na realidade. A forma como a gente conta a história influencia na forma como a gente vive, influencia na forma como a gente produz políticas públicas, produz nossa clínica, produz entendimento e perspectivas a respeito do nosso contexto. E, só para fechar, para finalizar essa questão da importância do testemunho, de entender que ele tem um efeito transformador na realidade, penso que algumas coisas, ideias, práticas, alguns mitos vão se perpetuar se a gente não disputar as narrativas, ou seja, como a história vai ser contada: “Espera aí! Não foi assim a ditadura, não foi só isso que aconteceu”. Terapia-arte Grupo Contrafilé Grazi, você pode falar um pouco para a gente sobre a relação entre arte e clínica, ou arte e testemunho? Graziela É uma pergunta ampla para mim, eu teria que pensar mais para
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escolher um caminho para responder… mas uma coisa que sempre gosto de dizer sobre a arte da Clínica Pública vou tentar elaborar aqui, é assim: para mim, nos meus processos como artista e como educadora, é muito importante que esses processos sejam suficientemente abertos ou radicalmente abertos, a ponto de engajar pessoas, e essas pessoas transformarem os processos. Então, ao propor algo, tenho que ter uma abertura para respostas, as mais inesperadas. Não é uma proposição predefinida para alguém participar de diferentes formas, mas uma proposição incompleta, em pleno processo, em plena construção. Tão inacabada, a ponto de ser recusada, ou repensada, ou transformada por quem nela se engajar. E a Clínica Pública tem isso como premissa também. Por que ela chama Clínica Pública de Psicanálise? Ela não é uma clínica estatal (ela acontece em um espaço da prefeitura, mas não é subsidiada pela prefeitura). Ela é pública porque acontece no espaço público, é pública porque é gratuita, e é pública – aí entra isso que eu disse antes – porque é cotidianamente transformada por quem faz parte dela, aí incluídos seus usuários. Então, não são só os psicanalistas e artistas integrantes da Clínica determinando como a Clínica existe, como vão se dar os processos das conversas e tudo o mais, mas também as próprias pessoas que usam colaboram nessa construção. E estou insistindo nisso, porque existem outros projetos de clínica psicanalítica gratuita na cidade, que nasceram depois do nosso, e funcionam de outra forma. Ali, o setting – um termo técnico na psicanálise, o arranjo, a forma como os atendimentos acontecem –, esse setting é predeterminado por um psicanalista ou por um grupo de psicanalistas. Eles vão dizer: “aqui funciona da seguinte forma”; e não
pode ser de outra forma. Então, por exemplo, há casos em que a pessoa vai a um plantão, é atendida por alguém e, na outra vez que voltar, necessariamente, vai passar com outro analista e a cada vez com um analista diferente. Esse revezamento é um setting predefinido, como uma forma fechada. Aqui, a gente prioriza a continuidade, a formação de vínculo, e há diferentes formas abertas de esse trabalho acontecer, algumas delas instituídas pelos usuários. As coisas surgem pelo próprio trabalho, através de escuta verdadeira, de abertura a respostas inesperadas. Grupo Contrafilé O que tem muito a ver com a arte. Graziela Ao menos com a maneira como eu imagino e desejo a arte, com essa abertura radical necessária para se fazer uma obra verdadeiramente pública. Então, a principal relação que eu faço com a arte é essa. Existem outras. O fato de a Clínica acontecer em pleno canteiro aberto, que é um lugar onde a própria ideia de cultura está em construção ou em disputa… onde a gente entende o próprio morar como cultura, com gente cozinhando, comendo, dormindo e tomando banho, em meio a crianças brincando, cachorros correndo, pessoas ensaiando teatro, dança e circo, fazendo música… A pessoa que vem para cá é o tempo todo atravessada por essa vida do canteiro aberto, o que é muito diferente de um consultório privado ou de um hospital. A Clínica é inserida na cultura cotidiana e atravessada por ela, atravessada pela cidade. Ela se torna testemunho vivo das transformações e dos apagamentos em curso na cidade. Bastam duas pessoas para a coisa acontecer, ou duas cadeirinhas.
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Desenho de Deborah Salles com a Clínica Pública de Psicanálise, 2019.
Desenho de Daniel Guimarães.
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→ Graziela Kunsch é artista socialmente engajada. Como responsável pela formação de público da Vila Itororó Canteiro Aberto, defendeu que o alegado “interesse público” da área não excluísse ex-moradores da Vila Itororó e realizou ações contra o apagamento dessas pessoas e da memória da Vila como lugar de moradia. Entre suas proposições no contexto – em diálogo com o psicanalista Daniel Guimarães, interessado em uma psicanálise popular, não elitista – está a Clínica Pública de Psicanálise, formada por psicanalistas e artistas que defendem a importância dos cuidados com a saúde psíquica, acessível a todas e todos, e sua relação com a cultura e a ampliação dos espaços públicos. A Clínica existe desde 2016 e realiza cerca de 390 sessões terapêuticas gratuitas por mês, “indivi-duais” e coletivas, entre outras ações, artísticas e clínicas. O grupo da Clínica hoje é formado por Ana Carolina Santos, Breno Zúnica, Camila Bassi, Camila Kfouri, Dafne Melo, Daniel Guimarães, Daniel Modós, Fernando Pena, Frederico Tell Ventura, George Amaral, Graziela Kunsch, Isabel Drummond, Manuela Ferreira, Maria Aguilera, Naira Morgado e Veridiana Dirienzo, e tem como supervisoras dos atendimentos Heidi Tabacof, Maria Silvia Bolguese, Marta Azzolini e Maurício Porto. Com um processo permanente para entrada de novos membros, a Clínica vem se configurando, também, como um espaço de formação. Mais informações em: fb.com/ clinicapublicadepsicanalise. → Kauã Santana nasceu e viveu na Vila Itororó até os seis anos de idade (2011) e, desde 2016, integra a Clínica Pública de Psicanálise, como analisando.
→ Kwame Yonatan é psicólogo formado pela Universidade Estadual Paulista – campus de Assis, com mestrado na mesma instituição na área de psicologia e sociedade. Participou de pesquisas acadêmicas na área de atenção básica e atenção psicossocial. Possui três livros publicados. Em 2018, ganhou o prêmio “Jonathas Salathiel”, promovido pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, por seu artigo sobre psicologia e relações raciais. Tem experiência profissional em assistência social, atuando como psicólogo no Centro de Referência da Assistência Social e no Serviço de Medida Socioeducativa – regime aberto. É membro do coletivo Margens Clínicas, grupo de psicanalistas e psicólogos que atuam no enfrentamento da violência de Estado. Foi supervisor institucional, pelo Margens Clínicas, de um grupo transdisciplinar (com profissionais do Sus e do Suas) em um projeto do Centro de Estudos em Reparação Psíquica, financiado pelo Newton Fund. Atende na clínica há quase dez anos, trabalhando, prioritariamente, com a população vítima da violência de Estado. Atualmente, cursa o doutorado no Núcleo de Subjetividade do Programa de Pós-Graduação de Psicologia Clínica da PUC-SP. “Considerando-se o estado de exceção permanente experienciado por grande parcela da população, o Margens Clínicas, coletivo formado por psicanalistas, psicólogas e afins, tem se dedicado a pensar as interfaces do sofrimento psíquico com as patologias do social, elaborando, a partir da escuta clínica, insumos para o enfrentamento à violência de Estado. Atualmente, temos como eixo central de trabalho o desenvolvimento de dispositivos clínicos comunitários que visam a recuperação de memórias e o fortaleci41 mento de laços de cuidado
e solidariedade, deslocando a noção de saúde mental de uma perspectiva individualizada e psicopatologizante, para uma perspectiva cultural, desde sua interface política, histórica, territorial e social.” In: https://www. margensclinicas.org, última consulta em 13 de junho de 2019. → Lucas Sanches é historiador em formação e participante do coletivo História da Disputa: Disputa da História desde 2018. História da Disputa: Disputa da História é um coletivo formado por historiadores, dedicado à pesquisa, produção e difusão de conteúdo historiográfico e orientado a partir da história dos vencidos, ou seja, a partir de documentos, testemunhos, memórias e dinâmicas produzidas por atores sociais geralmente ignorados pela história tradicional. Para isso, a metodologia inclui a ocupação dos espaços públicos com a finalidade de propor um debate com as pessoas participantes que abarque suas experiências afetivas e conhecimentos relacionados a esses espaços, buscando, através dessa partilha, interferir ativamente nos usos e construções dos mesmos, e disputar a narrativa hegemônica que os define.
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A SAGA DO MC KRIC: DO CORPO MARGINAL AO CORPO POLÍTICO
Aula-performance com Kric Cruz e Roberta Estrela D’Alva 43
Estávamos procurando entender a história da resistência à última Ditadura Civil Militar brasileira por outros ângulos, quando o testemunho de Kric Cruz, MC Kric, parte do arquivo do Memorial da Resistência, nos foi apresentado pelas pesquisadoras do Museu, e assim foi que eles, o testemunho e a pessoa, nos encontraram. Como nosso foco estava em perceber o testemunho como aula, conforme ouvíamos Kric, ensinamentos e mais ensinamentos jorravam de sua presença, ainda em vídeo e materializada em palavras. Com ele, pudemos entender a diferença feita até hoje entre o marginal comum e o preso político. Também com ele, vimos como o sistema racista no qual vivemos aprisiona muitos desde bebês, como foi seu caso. “Eu tenho 62 anos (acho) e calculo umas quatro décadas de cárceres e falsa abolição”, ele nos disse. E também nos contou que, embora fisicamente em liberdade, viveu na condição de “fugitivo por muitos anos”. Um corpo que sente dores até hoje, mas que se politizou no encontro com pessoas, livros e arte, e que elabora o trauma ensinando, por um lado, como o extermínio de algumas formas de vida pelo Estado brasileiro se dá enquanto estratégia de pensamento e ação desde sempre; e, por outro, como, no meio do pior dos mundos, um corpo considerado descartável pôde encontrar saídas. Em relação especificamente ao período da ditadura, Kric ensina, com todas as letras, que certamente não é quinhentos o número de desaparecidos – o que nos leva a pensar, extrapolando esse período, em quantos desaparecidos não deve haver ainda hoje. Muitos foram mortos pelo estado policial e “sumiram”, mas somente alguns foram categorizados como desaparecidos, aqueles considerados “presos políticos”. Também pudemos ver, com tristeza, que o que conecta a história do passado e presente do nosso país é a violência e o racismo institucionalizados e naturalizados socialmente. Tudo isso é denso e difícil de encarar. Mas como é evidente na própria figura de Kric, algumas coisas só são possíveis pela arte. Nós o chamamos, então, para uma conversa conosco, do Grupo Contrafilé, e com Roberta Estrela D’Alva, atriz-MC do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, expoente das batalhas de poesia no Brasil (também conhecidas como Slam, do inglês Poetry Slam) e, tão importante quanto tudo isso, nossa amiga e parceira de trabalho. Todo o trabalho da Roberta perpassa questões relacionadas a justiça racial, reflexões sobre o racismo no Brasil e formas de encontrar palavras para fazer essas vozes serem ouvidas. Roberta e Kric se encontram na palavra, na poesia, na negritude e também no teatro. Nesta conversa, fomos apresentando aquilo que aprendemos com o testemunho de Kric, e a ideia era que os dois, Roberta e ele, reagissem àquilo que íamos colocando. Que fosse um primeiro encontro, a partir do qual pudemos entender melhor o que levar, como parte de nossa obra na exposição, para a aula-performance que os dois ministrarão juntos.
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A palavra testemunha os acontecimentos
Kric A gente estava imitando você lá no Carandiru!
Grupo Contrafilé A exposição Meta-Arquivo, de modo geral, traz a ideia do trabalho com arquivo, esse lugar encerrado, a que muita gente não tem acesso. Mas como “no arquivo não vamos para procurar, mas para nos encontrar com as coisas”, com aquilo que nos surpreende e interpela, encontramos você e passamos a entender o testemunho como uma aula, o corpo falando, um modo humano de documento.
Roberta Vocês faziam teatro lá também?
MC Kric Eu tenho muito disso, de o corpo falar, porque meus raps são o que eu vivo, o que eu faço, o conteúdo deles é carcerário e fala também um pouco da periferia, das origens. Grupo Contrafilé A gente pensou em fazer este encontro entre você e a Roberta Estrela D’Alva por conta disso, porque a Roberta tem um trabalho já há muito tempo com a palavra. Roberta Estrela D’Alva E com depoimento também. Eu sou do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, coletivo que junta teatro e hip-hop, uma pesquisa pioneira no Brasil que começou em 2000, assim: a Cláudia Schapira, que é a fundadora, chamou o Eugênio Lima, que era DJ na época, um dançarino machucado que virou DJ, que nem gostava de teatro, para participar, porque ela queria a pulsação da cidade; ela já pesquisava a cidade. E aí o MC cantava, o dançarino dançava, o ator atuava e ela escrevia. E, com o tempo, por exemplo, eu, que tenho formação de atriz, comecei a fazer rap e a cantar; a Luaa Gabanini, que era atriz, começou a discotecar; o Eugênio, que era DJ, começou a atuar. A cultura hip-hop começou a entrar dentro do teatro épico.
Kric Era a minha função. Eu comecei no teatro lá dentro, trabalhei no Teatro da Vertigem, participei da peça Apocalipse. A gente estava fazendo tudo isso há tempos, mas a cultura parece que era pouco mostrada. “Caramba, lá no fundão, na periferia do Carandiru, vocês estão fazendo teatro?” “É, estamos”. Fiquei um ano no Pavilhão 8 e fiz uma placa igual a outra que vi numa revista, na qual empresas colocavam “tantos dias sem acidente”. Fiz uma versão “tantos dias sem morte”. E no Pavilhão 8 ficamos um ano sem ninguém morrer. Era uma coisa incrível, porque morria no 9, no 7, mas não morria no 8. As facas estavam guardadas, estava dando resultado por conta da cultura. E eles resolveram fazer sabe o quê? Acabar com o Carandiru e fazer vários CDPs (Centros de Detenção Provisória). Não levaram cultura, não levaram escola, não levaram nada, só pessoas andando para lá e para cá, maquinando com a mente: “Quando eu sair daqui, alguém vai pagar por isso”. Roberta O Teatro da Vertigem é um grupo irmão nosso, é da mesma época do Bartolomeu. E, assim como o Apocalipse foi feito por presidiários para presidiários, o teatro do Bertolt Brecht, que afirmou o teatro épico, era de trabalhadores para trabalhadores. Então, era para romper com a ideia do drama burguês, de a gente ir ao teatro para olhar uma atriz com uma dor terrível que faz a gente se esquecer do mundo. Não! No teatro do Brecht, era explícito que a atriz estava ali pensando sobre as coisas, não era para ninguém se esquecer da vida, era para refletir 45 sobre a vida, para lembrar.
Roberta Estrela D’Alva como Segismundo em Acordei que sonhava, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, 2003. Foto: Gisele Rocha / Arquivo Núcleo Bartolomeu.
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Dentro do Núcleo Bartolomeu, fomos caminhando nessa pesquisa e chegamos a uma célula, que é o depoimento. Por exemplo, começamos um processo agora chamado “Terror e miséria no terceiro milênio”, baseado na ascensão do fascismo. E qual é a primeira coisa que fazemos entre os atores? Sentamo-nos numa cadeira, todo mundo em volta, e o ator ou a atriz faz um depoimento que apresenta quem ele ou ela é, agora. Uns levam algo de casa, outros desenham no chão, há quem faça uma cena dançando, você tem que se colocar, trazer seu ponto de vista. E, na peça, isso também acontece, as pessoas se trazem. Assim, o ator-MC não é um ator que canta rap, necessariamente, mas um ator que olha o mundo ao redor, faz uma elaboração poética e a devolve para a comunidade, para a sociedade. No meu livro1, escrevo sobre o Segismundo, um personagem que surgiu quando eu trabalhava com moleques em liberdade assistida em Heliópolis e no Jardim Ângela. Vários morreram no caminho… Eu juntei muitas vozes desses moleques e outras coisas que eu estudava, e fiz esse personagem para que essas vozes pudessem ser ouvidas. Eu tenho mudado meu vocabulário, não falo mais “dar voz”, “o personagem que dava voz aos moleques”, porque não damos voz para ninguém. E quando pensamos que “fazemos vozes serem ouvidas”, tudo muda, porque implica a escuta. O fato de ter voz não garante necessariamente ser ouvido. Ter voz é uma coisa; que ela seja ouvida é outra. Todo mundo tem voz, mas para que seja ouvida, precisa existir alguém que ouça, precisa de relação, estou estudando isso.
1 → D’Alva, Roberta Estrela. Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC. São Paulo: Perspectiva, 2014.
Grupo Contrafilé Alguém que reconheça aquilo que está sendo falado… Roberta E há a ideia de “o menino”… eu lembro que, quando eu dava aula para uns meninos em liberdade assistida em um projeto do governo do estado, nas reuniões, o pessoal dizia “o menino… O menino…”. Eu tive um chilique: “Não! O menino não, ele chama Jaderson!”. Porque tratam como um contingente, uma massa, um menino sem nome. Grupo Contrafilé Os marginais… Parece bastante com o nosso trabalho A rebelião das crianças, que começou em 2005, a partir de várias rebeliões nas antigas Febem (hoje Fundação Casa), quando víamos um monte de adolescentes, moleques, crianças, serem rotulados apenas de “marginais” e “internos”. Nosso trabalho, primeiro mais conceitual, era a leitura de jornais e a troca desses termos pela palavra “criança”. Dava um curto-circuito enorme, porque revelava, pela lógica do absurdo, o que realmente estava em jogo ali. Depois, fomos pesquisar quem eram essas pessoas, de fato, esses internos, para nós, crianças, e quem eram outras personagens associadas a eles. Por exemplo, descobrimos que o que a mídia estava chamando de “agentes externos incitadores de rebeliões” eram, na verdade, as mães organizadas pelos direitos de seus filhos, contra a tortura, por sua segurança etc. Enfim, isso mostra, por um lado, exatamente a falta de escuta total, como você dizia, e, por outro, uma escuta possível, quando há interesse por entender o que está, de fato, acontecendo.
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Preso político x marginal comum Grupo Contrafilé Kric, nós aprendemos muito com sua reflexão sobre a diferença entre o “preso comum”, como se este não fosse político, e o “preso político”, os militantes presos e torturados no DOPS2. Você ficou preso 49 anos, atravessou a ditadura preso como “marginal comum”, como você mesmo conta em seu testemunho ao Memorial da Resistência; e foi assim que foi tendo contato com os presos políticos. Você conta também que não sabia, naquele momento, o que era ditadura e o que era democracia; como “marginal comum”, você não tinha acesso ao que estava acontecendo e foi entendendo ao longo do tempo. Foi muito impactante para nós ouvir você dizendo que levavam você encapuzado para o DOPS e torturavam você na frente dos presos políticos, como cobaia de tortura. Ouvindo isso, fomos aprendendo quanto havia, e ainda há, de corpos que não valem nada para o
2→ O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 30 de dezembro de 1924, foi um órgão do governo brasileiro utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde na Ditadura Civil Militar brasileira. O órgão tinha a função de assegurar e disciplinar a ordem militar no país. Em São Paulo, foi extinto em 4 de março de 1983. Em alguns outros estados permaneceram, todavia, as Delegacias Especializadas de Ordem Política e Social (DEOPS). Fonte: Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/ wiki/Departamento_de_Ordem_ Pol%C3%ADtica_e_Social. Acesso em 14 de junho de 2019. Hoje, o prédio que abrigava o DOPS é ocupado pelo Memorial da Resistência. Segundo consta em
Estado e corpos que, mesmo que de forma perversa e distorcida, valem. E você conta que foi nessa situação de encapuzamento e tortura diante do preso político que pôde ir entendendo que existia um outro tipo de preso ali, diferente de você. No testemunho, você fala que, no começo, achava que eles eram da máfia ou que havia alguma coisa estranha, porque eles tinham um linguajar diferente. Então, que preso é esse que não fala igual a gente? Algum tipo muito perigoso, terroristas, talvez, e, de repente, você foi entendendo a história toda da ditadura. Essa diferença entre os corpos que você descreve nos diz muito sobre o Brasil, nos diz muito da estrutura colonial e racista de nosso país. Os corpos politizados, pessoas que vinham da política, quando criminalizados, eram chamados de subversivos. E, no caso de a pessoa sumir, ganhava caráter de desaparecido. Desaparecido é o preso político. E, na outra ponta, havia uma massa enorme de pessoas entendidas
seu site: “O Memorial da Resistência de São Paulo, uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo por meio de sua Secretaria da Cultura, é uma instituição dedicada à preservação de referências das memórias da resistência e da repressão políticas do Brasil republicano (1889 à atualidade) por meio da musealização de parte do edifício que foi sede, durante o período de 1940 a 1983, do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – DEOPS – SP, uma das polícias políticas mais truculentas do país, principalmente durante o regime militar”. Disponível em: http://www. memorialdaresistenciasp.org.br/ memorial/default.aspx, acesso em 14 de junho de 2019.
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Estudo e leitura performática de matérias de jornais acerca de rebeliões na Febem (atual Fundação Casa), substituindo as palavras “internos”, “marginais”, “rebelados” por “crianças”; e “agentes externos” por “mães”. Reprodução fotográfica: Gil Fuser. Fonte: Arquivo Grupo Contrafilé.
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simplesmente como marginais. E nesse esvaziamento do entendimento político de sua condição, a culpa transforma-se em algo completamente pessoal: são criminosos porque escolheram esse caminho, porque erraram, porque tiveram amigos ruins. Este se torna, então, um corpo descartável; se ele morre, não vai ser um desaparecido. E se a gente vai ver os dados da ditadura, temos quinhentos desaparecidos, mortos desaparecidos, mas qual é o número que a ditadura matou realmente durante esse processo? É gigantesco… Kric O tema que vocês estão trabalhando, a ditadura, tem tudo a ver comigo, porque eu ainda era criança quando fui torturado no DOPS. Grupo Contrafilé Ainda criança? Kric É, eu era criança, tinha catorze anos. Para mim, isso é criança. Eu fui encapuzado e torturado até de madrugada no DOPS com essa idade. Bom, tenho que começar desde o começo para vocês entenderem esse processo… Eu não fui criado com meus pais; eu fui criado dentro de um lar onde era culpado de tudo, o “negrinho culpado de tudo”. Qualquer coisa era motivo de pancada. Eu tinha vontade de conhecer o mundo lá fora e só existia um meio. Ninguém iria me buscar, não ia vir pai nem mãe. E tinha a história de que a gente só saía do Juizado de Menores com 21 anos. Então, com dez anos, eu fugi e fui para a rua. Mas na rua as coisas estavam acontecendo… a polícia perseguindo todo mundo, prendendo até trabalhador, por causa da lei da vadiagem. Naquela época, se você estivesse dormindo numa calçada na rua, o Juizado prendia e levava para o Recolhimento Provisório de Menores (RPM), de novo. O “lar” em que eu morava, por exemplo, era comandado pela Polícia Militar, na base
da truculência, da violência. Não tínhamos afeto de ninguém, nunca apareceu uma assistente social para conversar, como nos dias de hoje. Era tudo na base da fila e da porrada. Eu olhava para o muro e pensava: “um dia eu vou pular esse muro!”. E a “turma da política” nos deu uma lição: eles assaltavam banco para angariar fundos para a luta. E a gente pensava: “vamos assaltar banco também, cara! Vamos assaltar joalheria também! Vamos ‘se’ armar!”. Nós, moleques, com dez, onze, doze anos… Perdi muitos amigos no caminho. E a gente não entendia mesmo o que estava acontecendo, era uma loucura, víamos a cavalaria a todo momento na rua, perseguições. Havia homens de preto que eram da polícia, do DOPS, e havia o pessoal clandestino: o que hoje é chamado de miliciano, na época era o Esquadrão da Morte. Eles estavam matando gente, jogando pessoas em outro lugar. “Antes de morrer, vamos nos defender.” E como se defender? As armas estavam nas mãos dos guardas-noturnos, das baratinhas – as baratinhas eram os PMs que andavam de Fusquinha. “Vamos assaltar esses caras, vamos ‘se’ armar.” A gente sabia que precisava se defender, mas não sabia o que estava acontecendo politicamente. E começamos a nos armar mesmo. Mas nós não vivíamos muito tempo na rua, não demorava muito estávamos presos de novo, respondendo por diversas coisas, pelo que fizemos e pelo que não fizemos, na maioria das vezes pelo que não fizemos. Tudo vinha para cima da gente: “Esse aí está pedindo há muito tempo. Esse negrinho aí é o culpado”. Eu nasci culpado, cresci culpado e, naquele momento [no DOPS], eu estava sendo culpado de coisas que eu não entendia. Eles queriam coisas que eu não poderia contar, porque eu não sabia! Imagina um escravo no tronco com um montão
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de gente vendo… Eles me algemavam a perna, me penduravam num gancho lá em cima, me batiam até de madrugada com fio. Como eu ia responder alguma coisa? E eu não podia entregar ninguém, mesmo porque, se eu entregasse alguém, morria como “cagueta”. Um preso político não entende o que é caguetagem, tanto que hoje em dia existe a delação premiada. Agora, “preso comum” tem delação premiada? Ele morre na cadeia, não pode fazer isso. Então, nós éramos como produtos pendurados na parede, servindo de exemplo para os presos políticos. E as conversas daquelas pessoas… Elas conversavam de uma forma que pareciam “doutores”, muitas vezes a gente não entendia. Eu me lembro de uma pessoa que cuidou de mim, conversou comigo, eu era uma criança, estava machucado. Roberta Fala de novo, quantos anos você tinha, pelo amor de Deus? Kric Eu estava com catorze para quinze anos. Roberta Imaginar um adulto já é horrível, mas pode ser ainda pior… Você era uma criança! Kric O Cesinha, por exemplo, tinha doze anos, apanhou bastante… Arrancaram dois dentes dele. Eles quebraram todo este lado do meu rosto, não uso prótese porque não consigo… A tortura servia como sadismo, eles eram sádicos. Bebiam a pinga deles, comemoravam, festejavam. E, ali, a gente estava servindo a isso, para que os presos políticos vissem e se perguntassem: se eles estão fazendo isso com aquele moleque, o que vão fazer comigo? E existia um movimento muito forte, de outros países, de denúncia daquilo que estava acontecendo no país, então, a polícia também entendia que “esses daqui [marginais
comuns] podem ser torturados até de madrugada, a gente mata e joga em qualquer lugar que ninguém vai reclamar por eles”. Grupo Contrafilé Os desaparecidos por trás dos desaparecidos… Kric Eu sei que havia gente ali, assistindo a tudo isso, que tinha formação, as ideias deles não tinham nada a ver com as nossas gírias. E muitos deles poderiam estar aqui para contar o que viram acontecer comigo, eles estavam ali presentes, eles viram. Grupo Contrafilé Esses que a polícia colocava para assistir vocês sendo torturados eram os presos políticos que já estavam no DOPS, quando vocês [presos comuns] chegavam encapuzados? Kric Sim, já estavam no DOPS. Eles traziam uma fileira de presos para assistir ao espetáculo. Vamos entrar que o teatro vai abrir as cortinas, agora vocês vão ver um espetáculo interessante. Para os atores da tortura, podia ser interessante; para quem estava sendo torturado, era um massacre; e para os que assistiam, era tortura psicológica. Difícil de entender a mente do torturador… e a nossa mente marginal suportando tudo aquilo. Eu poderia ter entregado alguém, marginais comuns, mas eu não sobreviveria, não estaria nesta mesa com vocês hoje. Era mais fácil eu me calar, mesmo porque estavam me fazendo propositalmente perguntas que eu não podia responder, as perguntas que me faziam não eram para mim… Roberta Uma isca… Kric “Próximo! Quem é o próximo?” Já aparecia um dedinho levantado ali. E levavam a pessoa 53 para uma sala onde ela
Diário feito no cárcere pelo coletivo Comunidade Carcerária. Imagens gentilmente cedidas por Kric Cruz. Reprodução fotográfica: Júlio Kohl.
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contava o que sabia e o que não sabia, porque não queria ser torturada. Hoje penso que aquelas pessoas que estavam ali poderiam ter denunciado tudo isso depois da Anistia. Mas acredito que muitas morreram mesmo, calaram as vozes dessas pessoas. Grupo Contrafilé É interessante a gente se perguntar por que muitos desses presos políticos nunca denunciaram o que acontecia com pessoas com histórias como a sua. Em nosso trabalho, estamos buscando, no Memorial da Resistência, testemunhos que tragam exatamente essas outras conexões com a história da ditadura. Então, deparamo-nos com testemunhos de pessoas do movimento negro, do movimento de mulheres, LGBTQ+, que trazem relações e fatos muito importantes, e geralmente ficam invisíveis, apagados. Ouvindo você, aprendemos muito sobre quanto a história da ditadura é, na verdade, uma história que está dentro da nossa história maior, que é a da escravidão. É uma tortura que não para, que vem de antes e continua. A vida como isca Kric Entre as pessoas presas que estavam ali assistindo à tortura, a uma distância assim, de um metro e meio de mim, pendurado, não havia um negro! Não havia um negro. O negro estava pendurado. Roberta Gente, essa imagem… Kric E entre os que estavam me torturando, havia negros. Negro torturando negro. Havia um mala, enorme, o mais sádico. Ele era do DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais), mas tinha uma associação com o DOPS. Eles tinham uma casa de tortura, que não era ali, as pessoas levadas para essa
casa depois sumiam. Os sádicos, não podemos dizer que eram todos brancos. As pessoas perseguidas, sim, eram brancas. Não havia um negro para ser torturado entre os presos políticos, mesmo porque era impossível o negro entrar numa faculdade. Hoje eu entendo, não entendia na época, por que não havia nenhum preto sentado entre os presos políticos. Grupo Contrafilé Vai ficando explícito, ouvindo os testemunhos, o quanto a gente não sabe fazer conexões entre as coisas para entender a história de um modo complexo. Isso que você traz, que agora se torna uma imagem, de vários presos políticos sentados, encostados na parede, assustados, em sua maioria brancos, vendo um marginal comum, negro, sendo torturado para dar o exemplo, é algo que fez parte da ditadura e não é pensado, dito, denunciado. Quando falamos da ditadura, não fazemos relações com a escravidão, existe um processo histórico que fica apartado. A resistência contra a violência de Estado na ditadura, algo que ficou inscrito de forma importante em nosso imaginário, aparece circunscrita a um grupo e a um período específico, porque a história é contada apenas a partir desse grupo. Kric Tenho 62 anos. Acredito que a maioria daqueles que assistiam a mim sendo torturado tenha mais de oitenta hoje, porque não havia ninguém com a minha idade ou com a idade do Cezinha. A maioria ali já tinha 21, 22, 23 anos. Roberta Não, gente, catorze, doze anos! Eu parei aí. Neste processo atual do Núcleo Bartolomeu, metade do elenco é negro, metade é branco. E, nas cenas do Brecht, vem sempre uma questão, que é: em que medida os campos de concentração podem, ou não, ser comparados
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com a escravidão, com o que está acontecendo, com a ditadura e com esse extermínio? O negro é o novo judeu? Ou não? A gente tem uns paus… e penso que não há como comparar. Quando você fala do torturado, do preso político, penso na “Necropolítica”, do Achille Mbembe, professor camaronês, e no conceito de “vida nua”, do Agamben, que é a vida matável. Existe uma coisa que está ainda abaixo dessa vida matável, então, existe uma vida que importa menos e existe uma que importa menos ainda, que é a isca. A guerra, afinal, é tanto um meio de alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar. Se consideramos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou morto)? Como eles estão inscritos na ordem de poder?3 No mesmo passo em que se afirma a biopolítica, assiste-se, de fato, a um deslocamento e a um progressivo alargamento, para além dos limites do estado de exceção, da decisão sobre a vida nua na qual consistia a soberania. Se, em todo Estado moderno, existe uma linha que assinala o ponto em que a decisão sobre a vida torna-se decisão sobre a morte, e a
3 → Mbembe, Achille. “Necropolítica”. Arte e Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA – UFRJ, nº 32, 2016, pp. 123-124. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ ae/article/view/8993/7169. Acesso em 14 de junho de 2019.
biopolítica pode deste modo converter-se em tanatopolítica, tal linha não mais se apresenta hoje como um confim fixo a dividir duas zonas claramente distintas; ela é, ao contrário, uma linha em movimento que se desloca para zonas sempre mais amplas da vida social, nas quais o soberano entra em simbiose cada vez mais íntima não só com o jurista, mas também com o médico, com o cientista, com o perito, com o sacerdote4. E quando uma pessoa negra testemunha que é a isca, volta a escravidão, é racial. Mesmo que pensemos “havia um negro torturando”, esse é o negro do filme Django livre, do Tarantino, é o Samuel L. Jackson, é uma exceção. É o capitão do mato, que às vezes era negro. Não dá para pensar nada no Brasil por fora da questão racial, os quatrocentos anos de escravidão perpassam toda a história, vivemos seus resquícios. E como afirma Vera Malaguti na entrevista para a Frente 3 de Fevereiro que está no documentário Zumbi somos nós, do qual eu e a Cibele (do Grupo Contrafilé) somos também autoras, “Quando a polícia brasileira foi criada, sua função primordial era controlar escravos, reprimir quilombos e ajuntamentos e açoitar escravos em locais públicos. No primeiro presídio, 95% dos presos eram escravos”. O Haiti é aqui… A gente sabe como se tratam os presos. Haiti, a música
4 → Agamben. Giorgio. O poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 128.
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que Gil e Caetano cantam, é sobre o Carandiru, “Diante da chacina/111 presos indefesos, mas presos são quase/Todos pretos/Ou quase pretos/ou quase brancos quase/ pretos de tão pobres/E pobres são como podres e todos sabem/ como se tratam os pretos”. Quem está encarcerado, hoje, no Brasil? E esse escalão que vale menos ainda serve para alguma coisa, ainda, na necropolítica, porque há uma vida que não serve para nada e… BUM! É apagada. A isca precisa existir para ser a isca, precisa estar lá, viva, mesmo que seja para ser torturada. São escalas de desumanidade: isso é coisa, isso é mais coisa e isso é nada, porque é matável. Mas até isso é parte, porque, para matar, você precisa de arma, é uma existência que justifica comprar armas, justifica a Taurus. Tudo muito perverso e análogo à escravidão. E Kric, sua clareza… você poder falar, hoje, de tudo isso que viveu… você é um documento vivo, memória viva num corpo, uma voz que fala sobre um corpo que viveu tudo isso. Obrigada! É muita coragem mesmo. Por isso se tira a história da África das escolas, não se cumpre a Lei 10.639 porque a relação é direta. Se damos essa “arma” nas escolas, é impossível que os estudantes não façam essa relação. E mesmo diante de tudo isso, ainda existe, no Brasil, um modo de justificar, “se o menino estivesse na escola, isso não teria acontecido”. Mas em que escola? Kric É preciso entender por que eu não estava na escola. No lar onde cresci, existia a opção de ir para a escola. Mas íamos para a escola levando tapa. Eu passava em um lugar, tomava um tapa, passava em outro, outro tapa. Apanhava a todo segundo. Eu esperava na fila para tomar um café, “entra na fila aí, moleque”, outro tapa que derrubava o café. Eu ia para a escola para fazer
o quê? A gente vai passar a vida justificando o injustificável. Roberta É o injustificável! E isso não vale para o filho do bacana. Não vale para o filho do Eike Batista, que matou gente, não vale para todos, então, é sobre “o filho dos outros”. Existe uma página no Facebook que chama “O filho dos outros”. Imagina se fosse um menino de catorze anos, branco, rico que tivesse passado o que você passou e que muitos ainda passam, que escândalo seria… É muito tétrico. Essa vida, essa isca, essa imagem… Você pendurado! Kric É uma coisa que não me sai da memória. Roberta E as pessoas brancas sempre querendo encaixar, de novo, o corpo branco no seu lugar, é a imagem do Brasil, da história brasileira, sempre restabelecendo a ordem, voltando para a condição de branco na relação. Há um depoimento da escritora caribenha-estadunidense Audre Lorde sobre “os usos da raiva” que discute a ideia de as mulheres negras serem vistas como “raivosas”. “Você pode falar, mas fala com calma, não precisa falar desse jeito, com raiva.” Lorde fala a partir das micropolíticas. Por exemplo, ela descreve uma cena quando está no supermercado, e há ali uma mulher negra com uma nenê negra, e uma menina branca fala, excitadíssima: “Mãe, olha, uma empregada bebê!”. E a mulher branca não fala nada! Para Audre Lorde, essa mulher branca que não fala nada produz ódio, uma violência muito grande para a mãe e a criança negras. E eu vivi algo parecido em um supermercado de São Paulo! Chamei a mulher branca de “velha racista”. Deu um quiproquó… Uma criança negra estava pegando uma vassoura e a velha disse: “Ah, ela
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leva jeito já, olha que bonitinha! Ela leva jeito!”. Ela poderia ser apenas uma branca inocente falando que a menina leva jeito para arrumar a casa. Podemos entender apenas como uma questão de machismo. Mas não! A menina era preta e a mulher era branca, ela viu a “empregada bebê”. No Brasil, o racismo está diluído na vida cotidiana, por isso é tão difícil, a escravidão conseguiu se desdobrar nos mais sofisticados graus do capitalismo, transformar a vida humana em coisa, em isca. As mulheres respondem ao racismo. Minha resposta ao racismo é raiva. Eu vivi boa parte da minha vida com essa raiva, ignorando-a, me alimentando dela, aprendendo a usar antes que jogasse minhas visões no lixo. Uma vez fiz isso em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva não me ensinou nada. O seu medo dessa raiva também não vai te ensinar nada (…). Toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoais e institucionais, que fez com que aquela raiva existisse. Focadas com precisão elas podem se tornar poderosas fontes de energia servindo ao progresso e mudança. E quando eu falo de mudança, eu não quero dizer a simples mudança de posições ou uma diminuição temporária das tensões, ou a habilidade de sorrir e se sentir bem. Eu estou falando da alteração básica e radical dessas presunções que sublinham as nossas vidas. Mas raiva expressa e traduzida em ação a serviço da nossa visão e do nosso futuro é um ato de iluminação da libertação e empoderamento, porque é
no processo doloroso desta tradução que identificamos quem são os nossos aliados, com quem nós temos sérias diferenças e quem são nossos inimigos genuínos5. Kric Vou dar um exemplo: eu estava saindo da PUC-SP recentemente, fui dar uma entrevista sobre encarceramento em massa. Quando eu estava saindo, a polícia passou duas vezes por mim, e outras pessoas estavam saindo também. Sou uma pessoa comum, ando de trem, ônibus… E na terceira vez que passaram por mim, eles me jogaram no chão: “Pro chão, pro chão, vai, vai, vai, vagabundo”. Não me pediram documento, já foram me jogando no chão. Dali a pouco, passou um pessoal: “Ele estava ali com a gente na PUC!” Eu falei: “Tira a mão de mim”. E a polícia: “Mas você tem que ver qual é o local que você está andando”, como se isso fosse uma justificativa. “Por quê? Eu tenho um local para andar? Eu sei por que, eu mesmo vou responder, por causa dessa cor de pele. Passou tanta gente, por que logo eu? É porque essa pele chama, eu sou um alvo muito fácil.” E eles: “Não, não é nada disso…”. Existe uma tese que diz que, na periferia, a polícia para as pessoas dessa maneira e que, num bairro nobre, param com “por favor”. Mas se eu estiver passeando nesse bairro nobre, sou jogado no chão. E se um carrão muito grande estiver passando na
5 → Lorde, Audre. “Os usos da raiva: mulheres respondendo ao racismo”, Connecticut, 1981. Disponível em Feminismos radicais – traduções e arquivos: https://radfeminismo. noblogs.org/post/2015/02/21/ audre-lorde-os-usos-da-raivamulheres-respondendoao-racismo/. 61
periferia, “Por favor, pare, seus documentos”. Dependendo da pessoa que estiver dentro do carro, eles não vão nem parar. Agora, se eu estiver na periferia de carrão grande, eles vão me parar, vão me jogar, vão atirar primeiro, como aconteceu no Rio de Janeiro este ano, com os oitenta tiros do exército no carro de uma família que ia a um chá de bebê, foi “sem querer”. A tortura, a “democradura” de hoje, o genocídio, vivemos a cada momento. Grupo Contrafilé Por tudo isso foi tão impactante encontrar seu depoimento entre os outros depoimentos do Memorial da Resistência, para que a gente pudesse pensar com toda essa complexidade, porque a gente não encontra isso facilmente nos papéis, nos arquivos mortos, e se a gente vai reproduzindo a narrativa da ditadura oficial, com as mesmas histórias, a partir das mesmas perspectivas… não saímos do lugar. E no seu depoimento, o racismo estrutural se desvela de cara. Está posto. E a gente já começa pensando desde outro lugar. Kric Sempre me perguntei: “Por que não apareceu ninguém que estava ali sentado para falar disso, mesmo depois de velhinho?”. Nunca apareceu nem uma pessoa para falar “Eu lembro”. Acho interessante que não haja quem possa contar sobre essa história. Mesmo nas histórias da escravidão, muitas delas alguém contou, alguém registrou para a gente poder estudar e escrever muito mais. Por que isso não acontece na história da ditadura? Grupo Contrafilé Por quê? Essa é uma pergunta muito importante para pensarmos! Roberta A verdade é uma luz que ilumina as trevas. Uma vez em contato com a verdade, não há como
voltar. E é essa verdade que não se quer tocar, porque uma frestinha dessa luz desarma toda uma estrutura gigantesca, caem mitos, discursos, práticas. Kric Às vezes me perguntam se eu não tenho medo de morrer com todo esse trabalho que eu faço sobre encarceramento, falando sobre essas coisas. Eu fiz um plano para viver até os 150 anos e sei que não vou mais ser preso pelas minhas ações, pelos meus atos. Mas sei que podem me forjar. Então, estou deixando algo escrito, porque se amanhã ou depois me prendem de novo, dá para saber que não foi pelas minhas ações. E a Comunidade Carcerária [grupo de rap de Kric] não canta nos grandes centros, a gente canta na periferia, nós falamos sobre isso na periferia. Eu não subo no palco só para cantar, eu falo de tudo isso, alertamos a juventude. Tenho alunos que não podem mais nem ir à escola, porque são parados quando voltam para casa. Eles trabalham de dia e vão estudar à noite. São parados, humilhados, quando vão para casa. É a mesma situação de ser torturado sem ter respostas: você está sendo torturado, mas não pode falar nada que vá tirar você dali. Não estão querendo uma resposta. Roberta Atitude suspeita, suspeito cor padrão. Fenótipo… BUM! A cor da pele determina e acabou. Não há mistério. O outro não faz parte, o outro não tem a ver comigo. Como aconteceu quando fiz uma fala em uma escola particular aqui de São Paulo, progressista, construtivista e tal, e me posicionei contra a redução da maioridade penal. Uma senhora esbravejou: “Isso é um absurdo, crianças são joias e têm que ser bem tratadas”. “Mas, minha senhora, eu estou exatamente falando não à redução da maioridade penal. Se as crianças são joias, todas elas
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têm que ser bem tratadas e não só seu filho e os amigos brancos dele, é incoerente a senhora achar que crianças são joias e achar legal o menino de doze anos ser torturado ou ter um fuzil na mão.” Mas é o que falávamos: um é gente e o outro não; o outro é o outro. Grupo Contrafilé Para entender isso, temos que topar abrir mão de muitos privilégios, inclusive privilégios no modo de pensar. Roberta Nesse processo que estamos vivendo no Bartolomeu, com metade do elenco branco e metade negro, estamos passando por esse embate racial. Os atores brancos estão prontos para fazer uma menor quantidade de papéis? Fazer menos papéis numa peça e assistir mais às cenas? Porque se trata disso, de desocupar espaços para se ter mais igualdade. Eu, como negra mestiça, estou pronta para abrir espaço para outra negra com a pele mais escura que a minha? Entende? A perda de privilégios significa isso. E acredito que o entendimento profundo disso traz dor, vergonha. Importante passar vergonha para começar a transformar. Kric Fico imaginando, por exemplo, um juiz branco julgando uma mulher negra. Os juízes fizeram um estudo muito profundo para chegarem a ser juízes. Eles estudam a lei, aplicam a lei, mas fazem tudo a partir de uma mente racista. O racismo e a discriminação estão implantados dentro deles. É a partir do racismo que ele vai julgar uma mulher negra. Ao ser julgada, ela já está condenada, por conta de sua cor. E eles não têm vergonha do que fazem, apesar de saberem o que estão fazendo. Num debate, uma vez, havia um promotor sentado à mesa, eu perguntei para ele se ele já tinha acompanhado, alguma vez, a pessoa que ele julgou
e mandou para a cadeia, se ele procurou saber como foi a vida dele dali para a frente. Ele mesmo respondeu: “Isso vindo de um ex-presidiário é muito forte, porque realmente eu nunca fiz isso”. Mas eles conseguem saber o que aconteceu com o político que está na delação premiada, como é a vivência dele dali para a frente. Ele consegue atender um recurso daquele político com muito mais urgência. Mas o preso comum, quando vai para uma cadeia comum, é esquecido. E aqueles que julgam não têm vergonha. Grupo Contrafilé Quando estudamos, na pedagogia, o desenvolvimento cognitivo, a vergonha é o que constitui a moral. Você conseguir se constituir e virar um sujeito moral, em sociedade – que é assim que você faz o salto para se relacionar com os outros –, só acontece quando a criança, que está chegando já na adolescência, mais ou menos entre os nove e os doze anos, começa a ter vergonha dos seus atos. E a vergonha constitui a moral. É superinteressante essa questão da vergonha. Roberta Agora me veio uma cena: “Em memória do Coronel Brilhante Ustra…”. Há pessoas que não têm vergonha, o presidente do Brasil, em rede nacional, não tem a menor vergonha. Kric Não tenho vergonha do meu passado, porque foi um passado construído ao longo dos tempos. Eu poderia ter vergonha se eu tivesse passado pelo Carandiru e saído de lá pior. Mas eu aproveitei o local que eu estava. Uma pessoa, o Seu João, me adotou como professor e eu abracei: “Eu quero aprender, eu quero aprender”. Eu tinha curiosidade. Quando comecei a aprender, não parei mais. Hoje eu entro na penitenciária do Butantã, onde estão as meninas, para fazer uma leitura, e me 63 perguntam: “Como é que
você conseguiu?”. Eu falo: “Os livros, cara! Os estudos. Não vá à escola só por causa da redução de pena”. Processos de Cura Kric Eu me esqueci de contar que do DOPS fui levado para o Presídio do Hipódromo. Os policiais falaram: “Vamos levar esses caras daqui e depois os requisitamos de novo”. Chegando no Hipódromo, havia uma fuga preparada, e eu fui nela. Eles me levaram no colo, não aguentava andar, estava com as pernas muito machucadas. Cheguei na rua ferido e revoltado. E pensava: “Agora, sociedade, você me paga!”. Demorou para a minha perna sarar e, por isso, fiquei um bom tempo escondido em um morro do Rio de Janeiro. Minha perna ficou muito grande, mas, por estar foragido, eu não podia ir ao médico ou ao hospital. Fui tratado com remédio do mato no morro. E naquele tempo que eu fiquei ali, só fiquei maquinando: “Quando eu sarar, vocês vão me pagar, vocês vão ver!”. Minha perna demorou quase um ano para sarar, parecia até que eu ia perder as pernas. E as tias lá do morro colocavam remédio do mato e me diziam: “Vai sarar a sua perna, eu tenho certeza, você vai sarar, meu filho, você vai sarar”. Grupo Contrafilé Conta mais dessas tias para nós, essas “erveiras”!? Kric Nós fomos num caminhão, escondidos. Eu fui para o morro do Leme. Lá havia as tias benzedeiras. Cheguei lá daquele jeito, e elas falaram: “Precisa cuidar desse menino, porque aqui você vai perder a perna”. Mas eu dizia para elas: “Hospital não, prefiro ficar sem perna e morrer aqui, mas para o hospital eu não vou”. Então, elas acabaram aceitando: “Tá bom, menino, nós temos um tratamento, você tem muita força, vamos curar!” Eu sempre tive vontade de
viver. As pessoas falavam: “Você não vai conseguir”. E eu pensava que sim, que eu ia conseguir. E quando sarei, já tinha quatro armas do meu lado e meus companheiros me dizendo: “Escolhe aí qual você quer”. Ninguém me disse: “Agora eu vou levar você para a escola, agora vou adotar você, vou levar você para casa, vou levar você para viver”. Não, o que chegou para mim foram as armas. Grupo Contrafilé Quantos anos você tinha? Kric Ali eu estava com quase dezesseis anos. Aconteceu bastante coisa até os dezesseis anos! E eu sempre fui baixo, pequeno. Com doze, parecia que tinha oito. Com catorze, parecia que tinha dez. Eu sempre aparentava menor do que era. Roberta Bom, gente, então quem estava pendurado era uma criança de dez anos… Grupo Contrafilé Você falou bastante dessa experiência de só receber tortura desde sempre, não receber amor, carinho, não receber nada, só ódio, ódio, ódio. De já nascer culpado e só receber porrada a vida inteira. E você conta de um funcionário do Carandiru que, de repente, expressa um interesse mínimo por você e pelas outras pessoas, os outros presos, e que ali se abre uma pequena brecha de compreensão mútua, o que leva ao início de um processo de cura. E, agora, você falando das ervas, fica ainda mais forte essa dimensão da cura no seu processo. E pensando em tudo o que você contou e nas personagens que vão aparecendo na sua narrativa, me vem uma pergunta mais ou menos assim: Qual é a cura de cada pessoa? Qual a cura de quem é torturado? Qual a cura do cara que estava sentado, olhando você ser torturado? Qual a cura do torturador?
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Em alguns pontos, isso só pode ser coletivo, claro, pois essas dimensões são interdependentes, então elas se cruzam, elas se conectam. Mas, ao mesmo tempo, cada um tem que passar por suas próprias curas. Kric Eu sempre quis sair disso, eu não queria viver toda a vida armado, tendo poder sobre as pessoas. E, um dia, eu consegui. Tenho muita dor física ainda. Eu não escuto deste lado [aponta o lado esquerdo], porque deram muito “telefone”. Não era o celular, não, era o telefone, mesmo. [Kric se refere a uma técnica de tortura na qual o torturador, com as duas mãos em posição côncava, aplicava um golpe violento a um só tempo nos dois ouvidos da vítima. O impacto era tão violento, que rompia os tímpanos do torturado, fazendo-o perder a audição.] Tenho dores nas costas, minha coluna sobreviveu porque sou teimoso. A perna também sobreviveu porque sou teimoso. Eu ainda corro, jogo bola, mas as dores vêm. Acho que sobrevivi porque quero muito viver. Cada palavra dizendo “não”, e eu falando “sim” para mim mesmo; assim comecei a aprender a ler e a querer me envolver cada vez mais em cursos, tudo isso dentro da prisão. Tudo o que aparecia, eu estava ali. No começo, eu era encarregado da faxina, a faxina mandava na cadeia, comandava tudo. Mas eu larguei a faxina para ir para a cultura. Eu queria cultura, mas eu não sabia o que fazer. Tinha um setor onde só fazíamos tampinha e pregador, só trabalho escravo em troca de um baseadinho. Levei um projeto para esse setor: “Não quero pregador mais aqui no 8, não quero mais tampinha”. “Mas o que você vai fazer aqui?” “Vou fazer um espaço cultural. Aqui eu vou fazer teatro, música; aqui eu vou fazer isso, vou fazer aquilo”… “Endoidou, o Kric endoidou, está louco”, diziam. Escrevi um projeto e mandei
para a diretoria. Essa foi uma cura. E há muita gente precisando dela. Tem a cura física, do corpo, aquela que tomamos um remédio e somos curados, e há também aquela cura da mente. Eu nunca deixei as coisas me transformarem totalmente, eu sempre tive uma esperança de ser alguém. E o hip-hop teve seu papel. Existe aquele chavão: “O hip-hop salva vidas”… salvou a minha. Roberta O que você ouvia? Kric Havia a Chic Show, lá na Brasilândia, os bailes da Black Mad, eu curti muito isso. Mas do rap falado, cantava-se muito Racionais. Quando comecei com os projetos de cultura, alguns tinham a ideia de plantar o rap na prisão. Eu falei: “Não, só o rap não dá, mano. Tem gente que canta sertanejo, tem gente que quer sambar… Vamos fazer daqui um espaço para a música em geral. E tem mais: aqui ninguém vai cantar música dos outros, não. Aqui, vamos escrever nossas músicas!”. Este foi o plano que eu coloquei na minha mente. Punição, justiça Grupo Contrafilé Você tem alguma memória de infância de você brincando? Kric Com as lembranças de infância, eu choro muito. Não é de dor, é por tê-la perdido. Eu poderia estar brincando, e eu estava armado. Minha infância me obrigou a ser adulto rápido. Nunca consegui brincar, porque desde o Juizado de Menores, eu estava sempre maquinando um jeito de pular aquele muro. A gente estava sempre arrumando um jeito de um subir nas costas do outro para fugir. Grupo Contrafilé Você chegou no lar pequenininho?
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Balanço, ação realizada pelo Grupo Contrafilé no viaduto Okuhara Koei, avenida Paulista, São Paulo, 2005, parte do projeto “A rebelião das crianças”. Foto: Peetssa. Fonte: Arquivo Grupo Contrafilé.
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Kric Eu tinha meses. Lá no lar existia o berçário. E depois, com cinco, seis anos, havia o pátio. A gente ficava no pátio, andando para lá e para cá, articulando o próximo passo, arrumando um jeito de fugir. Aprendendo gíria e alguma coisa de quem já conhecia o mundo fora. Era uma miniprisão, uma prisão de menores. Grupo Contrafilé E eles não ensinavam a ler? Não havia escola no lar? Kric Lá no RPM havia uma escola, mas quem dava aulas era a PM, a Polícia Militar. O RPM era uma prisão para menores. E havia a triagem, para os menores com muitos crimes. Estes saíam com 21, 22 anos. Quando você é entregue no RPM, você não sai com dezoito, dezessete anos, a menos que tenha uma família para ir buscar você. E quem iria me buscar? E eu não ia viver 21 anos ali… “Vou arrumar um jeito de fugir.” Dali eles nos mandavam para Mogi Mirim, que também era uma prisão de menores no interior. Muitos conseguiam ir trabalhar na fazenda e fugiam. Nosso objetivo era ir para Mogi Mirim, mas, para isso, precisava ser menor infrator, e eu ainda não era, era um menor recém-saído do lar, colocado no pátio. E eu convivia com menores infratores. Ali fui aprendendo as coisas. Cometendo uma infração dentro desse sistema, automaticamente você vai preso. Mas, na verdade, já estamos presos, a infração significa ficar mais e mais tempo. A primeira e a segunda tentativas de fuga não deram certo, ficamos um tempo no castigo, um lugar de isolamento onde apanhamos muito, as consequências eram graves. Numa das tentativas, pulamos o muro e saímos. Ninguém aprende com pancada. Ninguém aprende apanhando. Você não vai ensinar o seu filho batendo. “Se você não aprender, você vai apanhar.” “Você não pode fazer xixi na cama que eu vou te bater.”
Já pensou um menor lá no Juizado amanhecer molhado? Aconteceu comigo muitas vezes. “Eu vou tirar o colchão, porque você molha. Você vai dormir em cima do estrado.” E eu pensava: “Se eu dormir, eu vou mijar e vou apanhar no outro dia”. Passava a noite sem dormir para não fazer xixi na cama. E, hoje em dia, na Fundação Casa, não é muito diferente. Na Fundação Casa de Taipas, são meninas lá, eu consegui entrar uma vez, encontramos diversas denúncias de violação de direitos, e algumas foram comprovadas, tanto que os funcionários foram tirados de lá. Eles não foram despedidos, simplesmente puseram em outro cargo. Elas eram tiradas da cela, de madrugada, tiravam suas roupas no pátio, entrava o Grupo de Intervenção Rápida, batia em todas elas, humilhavam. Meninas! Eu não estou falando dos meninos, não. Meninas! O GIR é um grupo que substituiu o Choque da PM. Eles se vestem como o Choque, entram com máscaras, são um grupo formado por ex-funcionários e eles invadem prisões… Na Fundação Casa, temos uma luta grande e, neste momento, há várias pessoas em frente às penitenciárias para ver o que as mães falam. Ainda há muito o que fazer, porque toda vez que uma mãe sai da penitenciária, sai com diversas denúncias, e a gente as colhe. Mas a Corte Interamericana de Direitos Humanos muitas vezes não leva adiante certas denúncias. Por exemplo, o país foi condenado por diversas violações de direito, mas essas condenações foram para quem? Quem foi indenizado? As mães deviam receber indenização e não sofrer a responsabilidade da culpa. “A culpa é da senhora, que pôs esse menino no mundo e ele virou bandido.” Roberta Eu queria ouvir você falar mais sobre punição e justiça, ainda voltando para a ditadura.
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Kric Eu cheguei no Carandiru em 1979, em meio à Anistia ampla, geral e irrestrita, que anistiou torturadores, pessoas que mataram aquele montão de gente, anistiou os presos políticos e as pessoas que estavam fora, mas o preso comum não foi envolvido. O Papa veio ao Brasil e deu o indulto natalino, mas só para preso político. E por que não para o “preso normal”? Porque esses presos não são considerados normais, são considerados anormais, marginais. Quer dizer, quando veio a Anistia, eu ainda não entendia muito as coisas. Muita gente foi solta na penitenciária, alguns que moravam no 4, que eram presos políticos no 4, mas não atingiu a periferia do Carandiru. Não se ouviu falar de nenhum preso “normal”/“anormal” que saiu. Eu só saí quando ganhei minha liberdade, não precisei passar por condicional, por nada disso, saí livre, graças aos meus trabalhos culturais. Por todo lugar que passei, fui fazendo um trabalho cultural. Mas Anistia… Serviu para quê? Para que nosso atual presidente possa falar, e com propriedade, que o Ustra ou outros iguais não têm culpa. “Eles foram anistiados, por que vocês ficam tocando nesse assunto? Eles já foram absolvidos, eles já foram anistiados, eles não têm culpa nenhuma.” A Lei da Anistia diz isso, “não é para tocar nesse assunto mais, não. Nesse assunto, não se fala”. Roberta É ainda pior o que o presidente fala: “Eu sou a favor do pau de arara, sou a favor da tortura. Se tiver que ir uns para o pau de arara, se tiver de morrer 10 mil para fazer uma limpeza e arrumar, não tem importância”. E aí corta, Kric com catorze anos no pau de arara. Esse é o elo que as pessoas perdem. É que nem quando dizem: “É só brincadeira falar macaco, vocês estão exagerando”. Só que, na outra ponta, a cada dezessete minutos… BUM! A cada
dezessete minutos… BUM! E pode ser seu filho. Principalmente se as armas forem liberadas. Se a paz não for para todes, ela não vai ser para ninguém. Kric Pois é, trazendo tudo isso para hoje, um juiz perguntar para uma mãe, por exemplo, por que o filho dela, que estudava e trabalhava, foi ver o amigo numa hora daquela, porque se ele não tivesse feito isso, não teria morrido, está condenando a mãe, de novo, a mãe é a culpada. “Por que ele não foi direto para casa? Por que ele tinha que passar naquele caminho àquela hora?” “A senhora não ensinou que ele não deveria ir para aquele lugar naquela hora?”. E por aí vai… Grupo Contrafilé É um “sistema de justiça” totalmente distorcido, que culpabiliza, captura ou extermina alguns por fazerem as coisas mais banais e humanas, tirando-lhes o direito de fazê-las. Assim, essa criança negra, abandonada, não pode fazer xixi na cama; aquele jovem, negro e periférico, não pode simplesmente visitar um amigo; o homem negro, ex-presidiário, que já cumpriu sua pena, não pode circular livremente pela cidade sem ser barrado, humilhado, sempre lembrado de sua condição. Por outro lado, tira de outros a culpa por fazerem as coisas mais perversas, como torturar, matar, fazer desaparecer, esbofetear uma criança na fila do café, atribuindo-lhes, portanto, o direito de fazê-las… Kric Eu vivo isso ainda nos dias de hoje. Por exemplo, eu criei um currículo aqui fora. Mas eu posso enviar esse currículo? Para onde? Roberta e Kric “Aí, moleque, me diz: então, cê qué o quê? A vaga tá lá esperando você. Pega todos 69 seus artigos importados.
Seu currículo no crime e limpa o rabo. A vida bandida é sem futuro. Sua cara fica branca desse lado do muro.” [Roberta declamando Racionais MC] Kric “E a pessoa que mais sofre é a mãe do cara? Na cilada, tem que segurar o BO, tem que pagar água e luz, só, a dificuldade sempre é maior, sem um pai de família, é pior.” [MC Kric recitando Código de Honra, um rap de sua autoria]
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Ação realizada pelo Grupo Contrafilé na praça da Sé, centro de São Paulo, como parte do projeto “A rebelião das crianças”, 2005. Foto: Peetssa. Fonte: Arquivo Grupo Contrafilé.
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AOS QUE SE AVENTURAM: DO ARQUIVO À AULA-PERFORMANCE
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Nesta última escrita, faremos uma recolha metodológica dos nossos aprendizados neste processo. Como saímos dos arquivos e chegamos a um trabalho de arte – ou em uma forma de proliferação daquilo que está nos documentos, portanto, de produção de memória? Para isso, destacaremos alguns passos que foram importantes para nós:
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A quantidade de desdobramentos produzidos no percurso mostrou quanto o arquivo é potente. E a potência de cada documento faz com que seja fácil se perder. Quando, no meio de muitos caminhos possíveis, pudemos entender qual era aquele que mais nos mobilizava (o testemunho), ainda assim hesitamos em “abandonar” todos os outros. Foi importante quando tivemos coragem de cortar, recortar, para trabalhar apenas com um arquivo e, dentro dele, com nove documentos.
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Foi necessário, como coletivo, ter perguntas iniciais acerca da importância dos arquivos. Assim, das primeiras perguntas – O que é um arquivo? O que encontramos no arquivo? –, passamos para outra: O que não está nos arquivos? Ou seja, quais são as narrativas invisibilizadas pela história oficial, que não estão constituídas como memória nos discursos comuns? E quais documentos podem nos ajudar a abrir essas discussões?
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Aprendemos que uma das questões mais importantes nessa aproximação é que parte do arquivo não está nos documentos, mas no que cada um lê, enxerga ou escuta neles, e deles.
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O arquivo de testemunhos criou, para nós, uma outra perspectiva: a do arquivo vivo, do documento como algo não reprodutível. O testemunho é um documento que não se repete, porque é presença e ação. Presença e ação que permitem outras ações de conexão daquelas histórias com o presente.
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O arquivo vivo, as lacunas de nossa memória social, a possibilidade de atribuir sentidos ao que estávamos escutando, tudo isso nos mobilizou para novas rodadas de escuta. Criar espaços para a escuta, participar dos espaços propostos por outras pessoas, procurar e ler textos, estar atentas aos discursos atuais, tudo isso faz parte de um trabalho vivido também como prática pedagógica. Auto-observar-nos, aprendendo: o que e como estamos aprendendo isso que estamos aprendendo? Educação radical.
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A partir desses aprendizados, criamos um espaço na exposição Meta-Arquivo, três aulas-performances e este material de estudos, que foram formas que encontramos para expressar nossas descobertas e publicá-las, fazendo-as circular entre outras pessoas.
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Nosso espaço na exposição será composto de uma mesa-lousa redonda. A partir das leituras de alguns testemunhos que escolhemos, baseadas no critério de serem testemunhos que trazem histórias dissidentes mesmo dentro da própria resistência, essa mesa-lousa será suporte para que, ao longo dos meses da exposição, possamos escrever pensamentos, frases, conceitos que forem surgindo no processo de escuta dos testemunhos, nas nossas conversas etc. Portanto, aos poucos, a mesa vai ganhando vida, transformando-se em portadora de palavra. Em volta, vinte cadeiras escolares serão também suporte para escritas. Nelas, usaremos formas de escrever características das escolas: marcando a madeira com estiletes ou com corretores líquidos.
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As três aulas-performances ativarão esse espaço. Essas serão construídas a partir, cada uma, de um testemunho, entre os nove que escolhemos para ser nosso “acervo”. A aula-performance possui esse nome porque tem como matéria o testemunho, retirando dali uma intensidade traduzida como linguagem, corpo, imagens e também palavras.
Esses são apenas modos de traduzir um arquivo em formas e processos compartilháveis. Às vezes, vemos coisas tão incríveis que queremos que isso chegue em outras pessoas, que isso possa intervir no mundo, fluir enquanto conhecimento, arte e pensamento. Entendemos que arquivos não merecem mofar ou morrer trancados, guardados, já que neles habitam potências enormes de intervenção na realidade. Mexer em arquivos pode mudar histórias, imaginários, curar feridas. Pode nos fazer avançar.
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Esta publicação está composta com as tipografias Whyte Inktrap e Atlas Grotesk. Foi impressa em papel Pólen na gráfica ______________ em agosto de 2019.
Publicação de distribuição gratuita, proibida sua comercialização. Todos os esforços foram feitos para identificar e contatar os proprietários de direitos autorais das reproduções desta publicação.