A Farsa como Escola - material educativo, 2020

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Na perspectiva de expandir as potencialidades da arte e da educação — arcabouços de permanente aprendizado para os saberes necessários ao longo da vida —, o Sesc São Paulo propõe iniciativas que estimulam diálogos entre educadores, estudantes, curadores e artistas. Essa iniciativa vislumbra uma sociedade que construa, a partir das práticas transformadoras da educação, caminhos para acolher, difundir e valorizar as experiências simbólicas da arte. Tais encontros mobilizam ideias, utopias e sonhos.

Por meio de estratégias de resistência e de experimentação, artistas traçam escolhas na construção de suas poéticas. Ao serem expostas, suas criações convocam o público à contemplação, dilatando se em sentidos e significados. Em um processo que não se esgota, compartilhamos os mais diversos modos de existir. Assim, a educação acolhe oposições, transformando afetos e ideais, e estabelecendo

novos pactos sociais que propiciam a horizontalidade das relações e a construção coletiva de saberes.

Entre setembro de 2020 e janeiro de 2021, o Sesc Pompeia apresenta a exposição coletiva FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil–Portugal, com curadoria de Marta Mestre e curadoria adjunta de Pollyana Quintella. Com cerca de 160 obras históricas e contemporâneas de autoria de mais de quarenta artistas, a mostra propõe reflexões sobre as inter­relações da língua portuguesa com a linguagem, a arte, a política, o gênero, por meio de instalações, pinturas, objetos, fotografias, vídeos e performances produzidos em países lusófonos.

Como um convite aos professores, estudantes e demais interessados, este material se dispõe a colaborar para que os conteúdos dessa exposição sejam trabalhados em salas de aula ou onde quer que ações educativas possam ocorrer.

Material educativo
“A Farsa como escola”, por Grupo Contrafilé
Estratégia: A voz poética da memória Foto: Sérgio Silva

Carta às

Cadeira-corpo Grupo Contrafilé

A mesa-lousa Grupo Contrafilé

aos professores

Entrevista: a curadoria como invenção

Contrafilé, Marta Mestre e Pollyana Quintella

Práticas desobedientes como práticas de liberdade Tarcísio Almeida

Palavras mastigadas, engasgadas, engolidas...

Grupo Contrafilé

Cartas para B. Paula Chieffi

A voz poética da memória Roberta Estrela D’Alva

Sobre os autores

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professoras e
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Grupo
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CARTA ÀS PROFESSORAS E AOS PROFESSORES

O Grupo Contrafilé reúne artistas que acreditam na educação como ambiente fundamental de criação e inspiração, na medida em que contribui para a transformação da sensibilidade coletiva. Tendo acumulado longa experiência com museus, o grupo passou a criar espaços de intimidade e troca para falar de urgências — daquilo que pede passagem, que já é vivido como real, mas não encontra representação na realidade —, passando a traduzir os afetos em obras. A partir desses exercícios de criação, notamos que é possível inventar, coletivamente, diferentes formas de se estar no mundo, de pensar, de nos relacionar. E que os dizeres, performances, intervenções, publicações etc. que criamos, não são apenas imagens instaladas nas ruas ou em um espaço expositivo qualquer, mas toda a potencialidade que cada ação é capaz de mobilizar, isto é, o grau de desestabilização disparado em nós e sua influência em outros corpos.

Essa prática, impulso micropolítico, poético, ético e (auto) educativo, foi o que nos interessou significar e alargar no encontro com a educação em museus, com exposições e obras de outros/as artistas e educadores artistas, a fim de responder às perguntas: qual a matéria­prima do artista?; o que o interessa no mundo?; em que contexto político­institucional a exposição está inserida?; como ela reflete questões, urgências e contradições de seu tempo histórico, e o que dela se expande para o mundo?

Um exemplo de atividade que desenvolvemos para tentar responder a essas perguntas foi a criação de trajetos pela rua, que tinham por objetivo reconhecer, em um primeiro momento, os corpos ali presentes e suas relações e conflitos com a cidade, como foi o caso da atividade 1: Cadeira-corpo (pp. 6 7), para em um segundo momento, ao entrar nas mostras, os estudantes poderem reconhecer

tudo aquilo que foi visto também ali, nas obras expostas. Isso permite experimentar a arte como um saber e um fazer que extrapola circuitos específicos, e ainda, reconhecer os conflitos sociais e urbanos como dimensões da vida que atravessam qualquer espaço, inclusive espaços teoricamente assépticos como aqueles da arte. Temos, portanto, a convicção cada vez maior de que o museu, as exposições e a arte fazem parte dos fluxos do mundo, e de que neles, todos os conflitos, visibilidades e invisibilidades, violências, opressões e desigualdades estão completamente presentes.

Essas são, assim, algumas das premissas, questionamentos e reflexões que constantemente nos acompanham ao nos depararmos com exposições das quais participamos como artistas, educadoras ou público. E por isso, não à toa, começamos esta carta afirmando que uma mostra nunca está isolada. Ao contrário, ao estudar uma exposição é importante, em primeiro lugar, saber que ela aciona diversos campos de forças, e que, precisamente por isso, as obras não devem ser vistas de modo fragmentado.

Além disso, uma exposição é uma obra realizada por muitas mãos, que comporta um “pensamento curatorial”: o curador ou curadora é aquele ou aquela que define uma ideia ou um campo de ideias a partir do qual trabalhar,

de acordo com escolhas políticas, conceituais, problemáticas do tempo presente, formulando hipóteses a respeito da vida — do passado, do presente ou do futuro —, das relações humanas e com a natureza, e também a respeito da arte e da história da arte. Esse campo de ideias acionado pelo pensamento curatorial pode partir de muitos lados: por exemplo, ele pode ser provocado pelo percurso ou obra de uma artista; ou, pode surgir de uma inquietação ou pesquisa pessoal da curadoria; pode ainda partir de um recorte histórico ou espacial — construir formas de ver, sentir, ouvir, falar a partir de trabalhos produzidos num determinado espaço e/ou tempo. Compreender esse pensamento, para promover conexões entre as obras, é, para nós, o primeiro movimento para explorar o território efêmero inaugurado por cada exposição. Primeiro porque nessa metodologia pressupõe se que a arte não está isolada do mundo, mas faz parte de urgências pessoais, históricas, sociais e poéticas. Isso nos leva ao segundo motivo para compreender o pensamento curatorial: ao “olhar o olhar do outro” acabamos também por “olhar o nosso próprio olhar”, e então somos mais capazes de desenvolver um percurso criador. E o saber fazer na arte tem muito a ver com isso: com uma urgência que vai se desenvolvendo e tomando forma de um

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A primeira vez que expe rimentamos esta atividade foi em 2007, em um processo criativo e colaborativo desenvolvido no Bom Retiro, bairro central da cidade de São Paulo.

O processo durou alguns meses. Foram vários exercícios de investigação ­ação: quando o estudar e o investigar se fazem em ação, com os corpos em risco, no encontro com a cidade, corpos ativos na escala da experiência cotidiana.

Para nós, esse modo ativo de investigar é também um modo de ensinar e aprender, de instaurar processos de educação nos quais nossos corpos e experiências estão intimamente implicados. Portanto, não se trata de estudar um território enquanto “objeto de pesquisa separado de nós”, mas, ao contrário, de impulsionar escutas e mapeamentos que nos atravessam no trânsito entre o território urbano

e o território do nosso corpo. Porque nosso corpo também é experimentado e escutado enquanto território.

Fizemos diversos mapeamentos das ques tões vividas pelos/as participantes no encontro com o Bom Retiro, que poderiam se tornar chaves de investigação coletiva: o medo, o tempo, os fluxos, os constrangimentos...

Depois dessa primeira coleta, saímos pelas ruas, cada um/a com uma cadeira em mãos, buscando situações reveladoras para essas chaves de investigação. Onde e como as urgências que mapeamos de cada um se expressam nas ruas, nas pessoas, nos gestos, no mobiliário urbano, na natureza ainda presente na cidade etc. etc. etc.? Cada vez que alguém do grupo reconhecia uma urgência espelhada no espaço, fazia o convite para que todo o restante posicionasse ali sua cadeira, criando

uma “pequena assembleia nômade”. Neste exercício, ao mesmo tempo em que as cadeiras se acumulam em determinado lugar, movimentando e mobilizando todo o corpo, gerando tensão, atrito, dando passagem à uma performatização dos afetos de cada participante e do grupo, uma intervenção urbana acontece.

CADEIRA-CORPO

Criar um processo de escuta do grupo. Mapear questões importantes para cada um/a, que podem ser agrupadas, aproximadas, compondo um mapa do grupo e de seus interesses e afetos;

Ler em voz alta esses campos de interesse, essas questões que foram levantadas e reconhecidas pelo grupo;

Sair da sala de aula (a atividade pode também acontecer dentro da escola, se ela for um importante território de investigação para o grupo) carregando cadeiras ou bancos;

É importante que nessa saída o grupo não recorra à fala ou à conversa enquanto caminha. Caminhar em silêncio. Cada um/a procurando perceber, a partir da escuta das sensações que advêm do próprio corpo, e do olhar atento à paisagem, de onde e de como as urgências se manifestam;

Todos devem propor ao menos uma pausa. Ou seja: cada vez que um/a participante do grupo encontra na cidade (ou na escola) uma situação potente/reveladora, ele/ela convida o restante do grupo para sentar e observar aquilo que foi percebido. Neste momento, o grupo sai do estado de concentração e silêncio e se estabelece uma conversa, uma troca;

O percurso dura o tempo que for preciso. Pode ser determinado à priori pelo/a professor/a ou pode ser medido pelas próprias necessidades do grupo. O importante é que todos os/as participantes tenham a oportunidade de exercitar a conexão entre uma urgência e sua expressão em uma cena/objeto/situação da realidade.

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pensamento, um olhar, escritos, ideias, assim como de produções materiais e simbólicas, encontros entre pessoas, inscrições no espaço, performances com o corpo etc. etc. É efetivamente o fazer conceitual e criativo que permite nascer um “corpo”, uma obra, seja ela artística ou educativa: fazer fazendo, pensar pensando, criar criando.

Uma imagem que costumamos usar com frequência ao abordar uma exposição é a de uma floresta: é necessário entrar nessa mata, cada um/a com suas próprias “ferramentas”. O papel de um educador é, portanto, o de convidar seus alunos/as ou público a percorrer, juntos, a trilha que ele abrirá naquela mata, pois somente assim eles/as se sentirão capazes de abrir seus próprios caminhos. Não seria absurdo dizer que, em alguma medida, “somos todas e todos curadoras e curadores”, e que os percursos singulares que nascem de uma exposição, os percursos das educadoras e educadores e dos públicos, são eles também obras de arte.

Na mostra FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil–Portugal, com curadoria de Marta Mestre e curadoria adjunta de Pollyana Quintella, o pensamento curatorial nos parece ter partido de inquietações conectadas a uma sensibilidade coletiva sobre o presente. A relação entre artistas contemporâneas e artistas atuantes

nas décadas de 1960 e 1970, no Brasil, em Portugal, é feita para responder a uma perspectiva mais arqueológica do que histórica: a partir de problemas que o presente nos coloca, as curadoras procuram vestígios, pistas, evidências, segredos e sussurros do passado para confrontá los com o agora.

Pollyana Quintella nos relatou que houve um processo lúdico ao criar relações, e que as obras selecionadas brincavam com a língua e a linguagem. Fazer arte é brincar de criar fatos (artefatos!), modos de ser, corpos e tudo mais que for necessário. Brincar de perguntar: o que emerge desta exposição? Se você ou seu grupo entra no espaço expositivo em silêncio, quais são os primeiros questionamentos que surgem? Por que não realizar trilhas dentro da exposição a partir dessas perguntas que surgiram espontaneamente? Como dizia o mestre Paulo Freire, um educador que não se posiciona, não está sendo ético. Por isso, é importante mostrar os porquês do caminho que nós, como educadoras e educadores, descortinamos na floresta que é o mundo, ou na mata que é uma exposição, porque somente assim aqueles que conduzimos, ao acessarem os mecanismos de produção de um pensamento e de uma prática, podem formular seus próprios pensamentos e práticas.

A atividade 2: A mesa-lousa (pp. 10 11) é uma sugestão para estimular, no dia a dia, essas descobertas. Dedicamos este caderno, produzido a partir de indagações sobre o pensamento curatorial e provocações que emergiram do contato com as obras da exposição, às educadoras e aos educadores, professoras e professores. No decorrer destas páginas, é possível encontrar alguns destaques, comentários, sugestões e referências que extrapolam o corpo do texto, como camadas que se acumulam evidenciando dimensões simultâneas que acontecem quando estudamos situações complexas. Há também outras atividades, além das já citadas, desenvolvidas por três artistas e educadores/as convidados/as a compartilhar atividades­obras com quem lerá este material.

O intuito das atividades desenvolvidas por Tarcísio Almeida (pp. 18 19), Paula Chieffi (p. 35) e Roberta Estrela D’Alva (pp. 38 39) é mostrar, partindo do mesmo princípio norteador desta publicação, que cada percurso singular abre uma imensidão de possibilidades que podem desdobrar se na invenção de práticas não descoladas das teorias e do pensamento, porque são precisamente formas de refletir através do corpo e do movimento, da performação daquilo que está

sendo apreendido.

As atividades aqui propostas não são receitas, mas proposições de afetos e experiências. Mais que “modelos a serem seguidos”, pretendem ser inspiração para que cada um/a se sinta provocado/a a criar sua própria forma de traduzir aquilo que estão pensan do, sentindo e vivendo em seu embate com o mundo, em práticas concretas para serem posteriormente compartilhadas com seus alunos/as.

Este caderno é, em si, uma cartografia da prática de entrar em contato com uma exposição e ao mesmo tempo um convite: sejamos todas e todos educadoras curadoras e educadores­curadores! Sejamos todas e todos, também, artistas!

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MESA-LOUSA

Pensamos e praticamos “o falar e o escutar como arte”, que tem a ver com entender o lugar de fala e de escuta como obra. Assim, propomos produzir um espaço de conversa que torne visível algo necessário. O encontro neste espaço possibilita que as sensações e percepções circulem e se tornem comuns, que se conquiste, assim, uma dimensão ainda mais coletiva e compartilhada.

Assim, a ideia central é cartografar urgências, desejos, questões importan tes, aquilo que está sendo pensado, dito e sentido por um determinado gru po ou coletivo, transfor mando essas urgências em perguntas. A atividade é criar perguntas para serem lançadas em uma mesa lou sa (uma mesa que é lousa, uma lousa que é de todos); perguntas que nasçam do embate que vocês profes sores e seus alunos/as tive ram com a exposição Farsa, que se desvencilhem da

ideia de olhar a exposição apenas como um acúmulo de “conteúdos que é preciso dar conta” para, ao contrário, expressar o que a mostra produziu em vocês como grupo, como os afetou, de quais mo dos criou conexões com seus corpos, interesses, momentos, experiências e existências.

A mesa lousa é um dispositivo de encontro criado em 2016 pelo Grupo Contrafilé a partir do contato com os secundaristas de luta, que, ao ocupar suas escolas e tratar a educação como campo vivo, subverteram seus espaços, objetos e usos. Objetivamente, tratase de uma mesa pintada com tinta de lousa, sobre a qual o giz, o direito de escrever o que se pensa, ensina e aprende, se encontra disponível a todos que se sentam ao seu redor.

Segundo o educador José Cavalheiro:

Para ocuparmos a mesa ­lousa com essa escrita inventada, não havia como nos colocarmos de costas para o mundo, como geralmente se faz em uma lousa tradicional e fixada na parede.

A lousa deixou sua costumeira verticalidade e se horizontalizou. Seus contornos transformaram se em bordas que permitiam a entrada de todos e por todos os lados.1

1 Trecho do texto “A Mesa lousa não é Mesma Lousa… será?”, de José Cavalheiro, publicado no livro A batalha do vivo, realizado pelo Grupo Contrafilé em parceria com o movimento dos estudantes secundaristas de São Paulo e convidados, no contexto da exposição Playgrounds (em cartaz de março a julho de 2016 no MASP). Disponível para download em: https://issuu. com/grupocontrafile/docs/a_ batalha_do_vivo.

A

No centro de uma mesa­lousa, escreva a pergunta a ser trabalhada pelo grupo. Essa pergunta deve estar baseada em algo que precisa ser pensado pelo grupo, uma urgência, um desejo, um projeto;

O/A professor/a, como condutor/a, lê a pergunta em voz alta e convida todos/as os/as participantes a pensar, por alguns minutos, naquilo que eles/as gostariam de testemunhar a respeito do que foi perguntado. É importante que o/a professor/a frise que esta rodada será de testemunhos, de falas pessoais, íntimas. Ninguém precisa se preocupar em acertar respostas com verdades prontas. A mesa lousa é lugar para a troca de incertezas, vivências, conflitos e histórias. Assim, não existe certo ou errado. A pergunta não é sequer algo que precisa ser respondido, mas uma abertura de um campo de produção comum de conhecimento;

Inicia­se uma rodada de respostas. Todos/as respondem à pergunta e todos escutam as respostas. Os que escutam não falam, mas registram sobre a mesa as ideias, sensações e aprendizagens que cada testemunho suscita, usando o giz disponível;

Ao final, todos/as levantam e leem os registros gráficos produzidos pelo coletivo. Pode se tirar daí eixos, vetores e novas perguntas. Pode se abrir uma nova conversa. Pode se pensar em ações, projetos e novas atividades. Abre se sobre a mesa um campo de possibilidades. Existem muitos modos de realizar mesas lousas, muitos motivos pelos quais realizá las e muitos nomes que podemos atribuir a elas. Mais à frente, em outra atividade que nomeamos “Palavras engasgadas, mastigadas, engolidas...”, daremos um exemplo de mesa lousa mais detalhada, vivida a partir de um contexto específico.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE
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A CURADORIA COMO INVENÇÃO

GRUPO CONTRAFILÉ, MARTA MESTRE E POLLYANA QUINTELLA Pensando no que foi dito anteriormente sobre o pensamento curatorial e sobre os destinatários deste material, para iniciar os estudos da mostra FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil–Portugal, propomos como primeiro passo uma conversa com as curadoras a fim de compreender o trabalho, as ideias e as ações que as orientaram durante o processo.

GRUPO CONTRAFILÉ Marta Mestre e Pollyana Quintella, para vocês, o que define a curadoria? E como ela se deu em Farsa?

MARTA MESTRE O trabalho de curadoria é inventivo, estabelece conexões, propõe novos entendimentos para a arte. Da mesma forma que diretores de cinema escolhem para onde apontar a câmera e criam enredos para os

seus filmes, a curadoria também busca produzir narrativas renovadas sobre o que conhecemos.

Quando Marta nos diz que o trabalho de curadoria é inventivo, percebemos que o gesto e o desenho curatorial de uma mostra são também obra. Assim como o planejamento de um percurso de visita à exposição, criado por um educador ou educadora ou as próprias obras artísticas o são. Uma exposição carrega, portanto, diversas camadas criadoras que se conectam.

Para nós, uma das questões foi aproximar estes dois países [Brasil e Portugal] a partir de uma chave que não fosse a do pertencimento ou da irmandade, mas da fricção. Pessoalmente, enquanto portuguesa e curadora que trabalha nesses dois contextos, penso que é importante revisitar o passado, especialmente em suas leituras apaziguadoras sobre a hegemonia luso tropical, isto é, de um certo tipo de colonização mais dócil, menos violento. Esse tipo de formulação serviu ao poder e serve às políticas (da ditadura portuguesa até à ideia de “lusofonia”, que ainda hoje vigora). A curadoria de Farsa surge, então, de uma inquietação que tem a ver com mal entendidos, com lugares comuns, com farsas que informam o modo como enquadramos a nossa realidade.

ENTREVISTA

Marta explicita aqui as inquietações que moveram seu trabalho. Para nós, educadoras e educadores, mapear esse questionamento é um modo de adentrar nos campos de pensamento que a exposição nos apresenta e, a partir daí, poder habitá los e ampliá los.

A nossa história comum é impregnada de mal entendidos e de violência. Não são coisas que ficaram no passado, são coisas que estão no presente. Finda a colonização, Portugal e Brasil perfizeram caminhos distintos, mas ainda há um fundo comum em que a linguagem se institui na violência latente. Vejamos: a nossa história é feita de trocas surreais e de “escambo linguístico”, em que perpassa uma integração forçada entre sistemas de mundo distintos: o europeu, o indígena e o africano que cria situações em que a linguagem não é precisa, ela muitas vezes é dúbia, a língua portuguesa é cheia de sutilezas, de equívocos.

Existe aqui um desejo de pensar a língua portuguesa não da perspectiva da unidade linguística, de algo que aproxima ex metrópole e ex colônia, mas da perspectiva da diferença. A língua com seus equívocos tradutórios, suas singularidades, uma matéria que escapa à herança colonial para se reinventar. Tomando a língua como

matéria viva e insubmissa, podemos olhar para nossos/as alunos/as, para seus modos de língua e linguagem, seus usos singulares e rebeldes da palavra, para criar, com eles/as, enlaces com esta Farsa.

Importa abordar essa inscrição histórica do ponto de vista do presente. A curadoria é sempre um trabalho a partir do presente, mesmo que trate de propostas artísticas antigas. Achamos que a ideia de “máquina” poderia ajudar nos a entender as engrenagens e ligações desse legado histórico, e, a partir daí, começamos a puxar alguns fios condutores. Por exemplo, todo o Núcleo 1, “Glu, Glu, Glu”, versa sobre a máquina: de deglutir, de mastigar, de misturar, de expelir, de subjugar. Uma outra ideia foi a de “desconstrução”, partindo das estratégias que os artistas utilizaram para desconstruir a língua e a linguagem, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. É um momento de ruptura de gênero, ruptura social, o fim das ideologias autoritárias, movimentos de reivindicação e descolonização, é um momento importante de reorganização do contrato social. Essa energia latente no passado está presente em muitos trabalhos de artistas atuantes hoje, as décadas “quentes” do século XX relacionam se a processos que ainda perduram no presente. Fizemos uma pesquisa

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Estratégia: A mesa lousa Foto: Julio Kohl

intensa em arquivos, junto aos artistas, relacionando política, arte e movimentos sociais e de gênero, buscando a riqueza de trabalhos que nunca foram vistos no Brasil, tanto de artistas portugueses, como de brasileiros.

Em termos de roteiro desta exposição, do início ao fim, várias são as “emoções” que os trabalhos convocam: riso, tensão, informação, protesto, ficção, introspecção, multidão etc. Por exemplo, após o móbile gigante que abre a mostra (Farsa, Renata Lucas, 2019), entramos num ritmo divertido com A Comilona (Victor Gehrard, 1979). Mais à frente, começam a aparecer bocas, fragmentos de corpos, aberturas (Eat Me, Lygia Pape, 1975). Só depois passamos para algo mais conceitual, do registro, da letra… Enfim, existe uma dança de intensidades distintas. E só conseguimos criar uma primeira intensidade, calcada em uma ideia de festa, se existirem outros espaços de alguma saturação ou até de algum esvaziamento. É uma exposição baseada em contrastes, conexões, respiros, pausas, propriedades sonoras, táteis, estritamente visuais ou discursivas; a curadoria é uma modulação do tempo, sempre.

É possível, junto com os/as alunos/as, mapear essa dança sugerida por Marta Mestre a partir dos afetos produzidos em nossos corpos visitantes em cada espaço

da exposição, em cada conjunto de obras ou mesmo ao ver cada obra em sua singularidade?

POLLYANA QUINTELLA Há várias curadorias, muitos modos de curar, modos quase científicos, debruçados sobre um recorte específico, modos mais históricos… E há modos mais contaminados com a própria prática artística. No caso de Farsa, a curadoria está muito empenhada em pensar uma promoção de encontros; então, não é uma exposição coletiva que tem uma hipótese histórica, como: “temos dois países, duas décadas e disso tiramos uma conclusão analítica”; mas uma curadoria que se realiza em conjunto com os trabalhos.

Esse exercício curatorial de “pensar com as obras”, de adentrar os campos éticos e poéticos que elas abrem e revirá los, ter novas ideias a partir delas, pode se estender a nós, educadoras e educadores. Como um/a educador/a pensa com as obras? Como convida seus/suas alunos/as a pensar com as obras? Como elas ampliam conversas e experiências já desenvolvidas, tanto na escola, como fora dela?

Falando sobre o percurso de pesquisa, ele foi se construindo de modo criativo. No início, por exemplo, a obra da Anna Maria Maiolino, Glu Glu Glu (escultura, 1967), nos

apontou para questões de língua e linguagem, máquinas digestivas, que eram questões que nos interessavam. E por vários meses esse trabalho foi quase protagonista da exposição. Mas as coisas mudam. Essa obra específica, por exemplo, não pôde ser emprestada pelo MAM Rio para ser exposta no Sesc Pompeia, então ela foi uma primeira provocação que acabou gerando outras costuras e reflexões. A pesquisa se desenvolveu de maneira a querer produzir esses encontros sem uma preocupação com um encadeamento lógico, os trabalhos poderiam inclusive ser rearrumados de dois, três ou quatro modos distintos na exposição.

Quais outros arranjos entre trabalhos podemos fazer? Quais outros núcleos seriam possíveis?

Os núcleos que criamos não são estanques. São, claro, estratégias para organizarmos o percurso, mas poderíamos tê­los feito de muitas maneiras. Então [curar] é menos criar um olhar único e mais delirar junto com as obras. E parece que esse é um processo interminável, é uma ginástica que poderia acontecer para sempre. Discutimos muito ao longo deste trabalho que se esta é uma exposição sobre linguagem, teríamos que testar linguagens no próprio processo da mostra. Por exemplo, a ideia de trazer poetas para falar das

obras; esta e outras estratégias que criamos não são muito usuais no campo da curadoria, mas acompanham nosso desejo conceitual de tentar fazer algo mais delirante, levar o brincar para além da infância, experimentar a linguagem que é, afinal, uma experimentação da própria vida.

GC Ao entrar em contato com os materiais desta exposição, mapeamos uma série de noções e vetores que a atravessam: língua e linguagem; colonialidade e anticolonialidade; palavra; corpo; identidade; gênero; raça; ficção; novas galáxias; excreção; dobra e farsa. A partir disso, nos pareceu importante perguntar: por que acionar tais noções nos dias de hoje?

PQ Antes de tudo, pensamos a língua como um instrumento de poder por excelência, como principal ferramenta de colonização. Basta olhar as ex­colônias que em geral falam todas as línguas de suas ex matrizes. Isso nos leva a entender que existe um dilema na experimentação da linguagem. Aquilo que é ferramenta de poder também é o que nos permite nos expressar subjetivamente, inventar um outro mundo para além deste que está posto por uma língua oficial. A língua é elástica e, embora possa ter uma gramática opressora e um vocabulário restrito, que

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PRÁTICAS DESOBE DIEN TES COMO PRÁTICAS DE LIBERDADE

POR TARCÍSIO ALMEIDA

Como pessoas inseridas nas diversas categorias de opressão e subalternidade podem experimentar modos de liberação cognitiva em torno de sua própria atuação no mundo?

Essa talvez seja a questão central que nos mobiliza hoje aqui em Cachoeira, cidade do recôncavo baiano e base do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Perguntas como essa são incorporadas ao nosso cotidiano quando passamos a nos interrogar sobre os bloqueios produzidos pelas normas histórico e político sociais instaladas em nossas experiências. Esse contexto trouxe para as Práticas Desobedientes o caráter de um programa de pesquisa e extensão composto por jovens artistas e estudantes que investigam, atualmente, estratégias de liberação cognitiva através de procedimentos artísticos.

Afinal, como driblar os predicativos condicionados por certo tipo de mundo, a respeito da manifestação de nossos corpos?

O pensamento artístico, dentro do que discutimos, tem proporcionado possibilidades de desprogramação de hábitos e traços codificados, bem como ampliado os territórios de nossa compreensão e atuação artísticas. No último ano, elaboramos uma série de exercícios voltados ao pensamento da abstração como meio de expansão desses limites, experimentando formas de comunicação através da pintura, do desenho, das experiências performativas na fotografia e no vídeo e da articulação de ações coletivas junto à comunidade em que estamos inseridas/os. Esse planejamento de estratégias se dá, muitas vezes, em movimentos sutis quando, por exemplo, convocamos uma (des) aprendizagem da repre­

sentação figurativa facilmente acessada em nossa expressão.

Essa experimentação visa gerar modos de expressão para que o circuito da “performance das violências esperadas” seja também contornado, já que a consciência material produzida muitas vezes por linhas, borrões e manchas nos permite reconhecer habilidades de negociação de outras geografias mais compatíveis com o presente das nossas urgências. O ato de projetar expressões que priorizam liberações cognitivas pode se tornar, portanto, uma forma de pensamento estético e político.

Há, nessa tentativa, condições possíveis de apresentação de outras línguas e também de aparecimento de linguagens que abram espaço não somente para uma (re) imaginação do mundo, mas também para a aplicação de ferramentas que transformam radicalmente o próprio sentido de mundo regimentado pelos parâmetros de “história, verdade e universalidade”.

VOLTANDO A DESENHAR COM OS COTOVELOS PLANEJANDO ESTRATÉGIAS PARA CORPOS DESOBEDIENTES OBJETIVO INICIAL Experimentar estratégias de emancipação através do desenho abstrato; produzir coletivamente experiências artísticas fora da representação/figuração;

ESPAÇO Um lugar comum em que o grupo possa estabelecer rela ções de confiança e alteridade;

MEDIAÇÃO INICIAL Aqui utiliza mos processos coreográficos, músicas, estados de respiração... partimos, sobretudo, dos conhe cimentos e técnicas já presentes no repertório das pessoas envolvidas nas experiências. A partir desse estado expressivo, apresentamos os materiais;

MATERIAIS SUGERIDOS Papéis em tamanhos variados ou mesmo uma superfície comum (rolo grande de papel), fita crepe, carvão, lápis, giz de cera ou qualquer material gráfico e sólido que o grupo possua interesse e/ou afinidade;

EXPERIMENTAÇÃO Com os ma teriais apresentados, cada um/a do grupo deve construir com o próprio corpo uma ferramenta

de expressão. Ombros, cotovelos, joelhos, pés, rostos... todas as partes do corpo são um potencial ponto de ligação. Com o auxílio de fita crepe, construímos “pincéis corporais” e sugerimos que cada integrante produza o seu próprio “autorretrato”. Para o exercício, é necessário conforto e confiança para que diferentes estados de imaginação, ficção e emancipação possam encontrar um ambiente propício e fértil;

ESCUTA E PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Propor uma escuta “(anti) interpretativa” é basilar nesse tipo de processo. Essa escuta estimula falas baseadas no percurso, em seus desafios e sensações e naquilo que o grupo está vendo no material elaborado. É pela atenção individual e coletiva para os diversos aspectos da prática que se chega em palavras­conceitos que servirão como mediadores de futuras leituras, pesquisas e para o aprimoramento dos próprios exercícios.

Em 2019, Práticas Desobedien tes foi composto pelos artistas e estudantes: Allan da Silva, André Luís, Ari Frost, Eduarda Gama, George Telles, Jamile Cazumbá, Kaick Rodrigues, Larissa Neres, Lorena Leão, Marcos da Matta, Michele Nascimento, Rafael Santos e Vinny Nepomuceno.

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nos obriga a dizer de maneira específica, como sugere Roland Barthes quando disserta sobre o “fascismo da língua”.1 Estamos sempre diante deste dilema: numa ponta, a língua que oprime e, na outra, a língua que nos permite reinventar e reescrever a nós mesmas, sofisticar nossa subjetividade e por aí vai. Essas questões sempre estiveram à frente de nossa pesquisa para esta exposição. E dentro disso, alguns desdobramentos que fizemos, como trabalhar com as ideias de “galáxias” e “ficções”, surgem como elementos afirmativos, que apontam possibilidades propositivas da língua. A ficção é o que nos permite escapar da realidade, ou refazê­la. Depois que desconstruímos a ideia de verdade, esse mito de “uma verdade”, sem aqui querer com isso afirmar o universo das fake news, mas no momento em que essa verdade unilateral não existe mais, entendemos que todos ficcionamos nossas próprias vidas. E que versão de ficção é essa que queremos adotar? Que ficções elegemos

para nós mesmas? E, também, que ficções íntimas construímos para nossos corpos, desejos, para nosso erotismo? Essa capacidade de ficcionalizar se dá em todas as escalas, no micro e no macro. E entendo que Farsa buscou isso, desde a palavra na rua, o cartaz com a palavra escrita, uma palavra que busca vazão, um novo território para contar outra história, outra versão desta história. Assim como a palavra extraplanetária, que cria ficções científicas, essa palavra que escapa ou, mais do que escapa, que repensa uma coletividade possível através da experimentação da língua.

GC Então a noção mais forte em Farsa é a de língua dissociada da linguagem?

PQ Sim, a exposição tem como interesse central a investigação da linguagem. E deste epicentro, saem diversas derivações.

1 “Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é a linguagem — ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. (...) Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua.” Roland Barthes, Aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França (07 01 1977). São Paulo: Cultrix, 2004.

GC E a importância de pensar isso hoje está em compreendermos como se dão as relações de poder, por um lado, e, por outro, as inúmeras possibilidades dos movimentos sociais e artísticos, de refazer o mundo a partir da linguagem. A exposição traz essa conexão entre anos 1960 e 1970 e o agora neste sentido dos usos da língua e das possibilidades de sua subversão?

PQ Procuramos tratar essa relação histórica de um modo cuidadoso. Se, por um lado, queremos fazer essa correlação, por outro existe uma grande nostalgia em comparar o momento presente com os anos 1960 e 1970. Há uma série de similaridades históricas, sim, mas não queremos nos engessar em uma correlação muito literal por que, afinal de contas, também temos questões no presente que são singulares, que não necessariamente estavam lá atrás.

GC Marta afirma que é preciso “desenterrar futuros no passado”. Muitas coisas vão sendo mesmo enterradas pela linguagem, pelo pensamento, pelos modos ideológicos do poder, de produção do poder que tornam invisíveis forças e acontecimentos. Nesse sentido, essas conexões podem ser muito potentes.

PQ No Brasil, temos um sério problema com a memória. Ou transformamos todo mundo em grandes mitos, cânones, e temos dificuldade de colocar as obras em tensões, em fazer rebatimentos críticos ou históricos em relação às obras, ou simplesmente enterramos um acontecimento, o esquecemos.

GC Uma pergunta que podemos nos fazer olhando para artistas do passado, mas mantendo o pé no presente, é: o que mais podemos

aprender com esses artistas e essas obras? Talvez essa pergunta nos coloque num lugar de mais simetria e menos nostalgia em relação a eles, em um lugar de aprendizagem sem nos engessarmos no lugar canônico, sempre bastante controlado. Existe aí, claro, uma relação de poder e de controle da memória. Como vocês dizem no texto de abertura da mostra: “Como mensagens em garrafas, a exposição é concebida como um jogo de perguntas lançadas ao futuro e respostas tiradas do presente, tensionando a ideia de história em aberto. Como alinhavar aquilo que está dividido e fragmentado?”

PQ Sim. Temos, por exemplo, a artista Helena Almeida, portuguesa da década de 1970, junto de Linn da Quebrada, artista brasileira jovem que emergiu no século XXI. Este é um exercício de tirar os trabalhos mais históricos de um lugar muito resguardado e colocálos em tensão junto a respostas mais contemporâneas. Daí podemos nos perguntar: o que a Helena Almeida aprende com a Linn da Quebrada e vice versa?

Podemos extrair desse trecho um exercício prático poético interessante para ser feito na exposição: imaginar mensagens que uma obra ou uma artista envia à outra. Que perguntas e mensagens são trocadas

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Estratégia: Voltando a desenhar com os cotovelos Fotos: George Telles e Rafael Santos

entre elas? Se, como visitantes, fôssemos responsáveis por enviar em garrafas as mensagens de Helena Almeida para Linn da Quebrada, e vice versa, quais seriam elas? Se pudéssemos escolher uma ou mais obras para enviar mensagens para os/as jovens de hoje, que obras e que mensagens seriam essas?

É possível refazer este exercício de muitas maneiras distintas.

OS NÚCLEOS DA EXPOSIÇÃO

A exposição Farsa se organiza em três núcleos. A seguir, apresentaremos as relações e conceitos estabelecidos em cada um deles. Para isso, utilizamos trechos de conversas que tivemos com a curadoria e materiais da exposição, como textos sobre os núcleos e legendas escritas por poetas brasileiros e portugueses para determinadas obras ou duplas de obras.

A estratégia de dissertar poeticamente sobre uma ou mais obras, ou de justapor e compará las, é uma metodologia que pode ser experimentada de muitos modos ao visitar a exposição. É possível criar relações entre obras de um mesmo núcleo ou de núcleos diferentes, pedindo para que um/a educador/a conte a respeito das relações que vê entre elas, e escrever textos poéticos

a partir de conexões entre elas. Uma atividade interessante para fazer com grupos é pedir para que os/as integrantes usem um barbante ou fio de lã para conectar, por exemplo, três obras que poderiam ser conectadas por algum motivo. Depois, cada grupo conta para os demais quais os critérios e motivos lhes levaram a unir os trabalhos.

NÚCLEO 1 GLU, GLU, GLU

“[...] em referência ao trabalho homônimo de Anna Maria Maiolino (1967), [este núcleo] carrega um tom propositadamente escatológico. Línguas que deliram, bocas que regurgitam, ânus que falam, gritos e letras que testam os limites da linguagem e exploram os seus avessos estão presentes em trabalhos como Eat Me, Ouve­me (Helena Almeida, 1979), A Comilona, Primeiras palavras (Sara Nunes Fernandes, 2020), Merda (Alexandre Estrela, 2006), Blá Blá Blá (Andrea Tonacci, 1968) ou Verarschung (Pêdra Costa, 2013). A recorrência escatológica desse núcleo se relaciona com situações de opressão e censura nas artes, em ambos os países.

[...] A ideia de língua e de linguagem enquanto máquina de desconstrução, mecanismo voraz de deglutição e excreção dos significados (Mariana Portela Echeverri), a paródia ao falocentrismo (Clara Menéres)

e à religião (Túlia Saldanha), a interrupção entre o plano da representação e o plano da “realidade” (Helena Almeida), a reordenação das palavras e dos corpos (Neide Sá, Salette Tavares, Francisca Carvalho), retalhados pelo cinema, pela fotografia, pela montagem, pela poesia visual (E. M. de Melo e Castro, Von Calhau!), perpassam esse núcleo.”

RELAÇÃO ENTRE AS OBRAS DESTE NÚCLEO

GC Neste núcleo, se tomamos duas obras, Farsa e Eat Me, quais relações podemos estabelecer entre elas? Como conversam? Que mensagens enviam uma à outra?

PQ Farsa, o primeiro trabalho da exposição, é um grande móbile de cortinas suspensas. O público o acessa ao entrar um pouco na confusão de uma cena, porque atravessa um cenário teatral. Ele também é interessante porque, quando uma pessoa o atravessa, se você estiver de um lado ou de outro, você vê pedaços daquela outra pessoa, o corpo fica fragmentado. Então, é como se certa ideia total ou linear de acessar a obra fosse destruída. Você acessa a obra por pedaços, diferente do teatro, onde não conseguimos ver o que está do outro lado, atrás do palco, o bastidor, e tudo que está escondido para preparar

a cena. No trabalho da Renata, podemos circundar toda a cena, atravessamos, voltamos, damos a volta. E tem aí a ideia de acessar uma realidade mais direta, a obra traz esse exercício. Logo depois de atravessar a cortina, nos deparamos com Eat Me, vídeo histórico da artista Lygia Pape. São planos que intercalam a boca de uma mulher com a boca de um homem, bocas eróticas e primitivas, uma câmera bem próxima, bocas que chupam e lambem. A obra traz um uso da boca que antecede a linguagem, um conhecimento não necessariamente pelas palavras, mas pelo tato, paladar, toque, experimentação direta com o corpo. Surge aí então um contraponto fundamental. Diante de Farsa, é como se lidássemos com um estado sofisticado da linguagem, entre ficção e realidade, cenas, versões da realidade. Já diante de Eat Me, lidamos com essa experimentação do corpo, de uma linguagem mais próxima do desejo e quase anterior a essa relação palavra enunciado discurso.

Cada elemento é representação. Cada elemento está representado. Cada elemento representado aparecerá apenas uma vez.

As relações entre os elementos representados aparecerão apenas uma vez. As relações entre os elementos representados são conexões. As conexões das

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Criada em 2005 pelo Grupo Contrafilé, a Assembleia Pública de Olhares é uma prática estético político pedagógica em que se abrem, de maneira performática e pública, problemas sociais que nos atravessam e perturbam. Para nós, é importante usar a palavra “assembleia” para nos referir a essas ações, já que são estes lugares máximos da representação política, hoje tão esvaziados.

ASSEMBLEIA PÚBLICA DE OLHARES

1. Encontro de pessoas a fim de compartilhar o que as paralisa ou mobiliza; encontro de intimidades; 2. Criação coletiva de perguntas e exercício de dar nome às urgências; lugar de aprender e ensinar; 3. Prática coletiva de escuta ativa que leva à produção de imagens resultantes de uma experiência na qual o comum se faz possível; 4. Invenção de

tempo e espaço para o dissenso; afirmação de singularidades cocriadoras de realidade; 5. Mobilidade interna; disponibilidade para relacionar se com inteireza; 6. Descondicionamento de padrões repetidos; mudança de hábito; 7. Movimento de desatar os laços sociais previstos pelo estado de confinamento, espaço para relações proibidas; 8. Estado manifesto de criação; 9. Um refúgio para devires revolucionários. Embora a atividade possa ter muitas formas, aqui propomos uma delas, que acontece em um banquete.1

Uma mesa deve ser forrada com papel kraft e posta para receber, ao mesmo tempo, uma

1 Este formato foi realizado em 2016 na Casa do Povo, em São Paulo, em conjunto com as artistas cozinheiras Joseane Jorge e Silvia Herval, integrantes da dupla Cozinha Kombinada.

refeição e registros de uma conversa: canetões, pratos, talheres, tudo junto e misturado.

Noutra mesa são dispostos ingredientes para serem manipulados pelos/as participantes. Enquanto os alimentos são preparados, inicia­se uma conversa sobre a urgência de certas palavras, seus esvaziamentos atuais e históricos, seus apagamentos, afonias, rouquidões.

Nossa provocação visa que cada participante descubra as palavras que, naquele momento, ela/ ele precisa mastigar, triturar, mascar, engolir, vomitar, eliminar, engasgar etc. Servimos a mesa e sentamos juntos para comer palavras, ouvir sabores, regurgitar horrores, e por aí afora.

O gesto compartilhado de manusear alimentos e palavras cria um tempo e uma intimidade importantes para que a conversa aconteça com inteireza e profundidade. Cada participante pode escutar diversas histórias por trás das palavras e, ao mesmo tempo, estabelecer coletivamente relações entre elas.

PALAVRAS MASTIGADAS, ENGASGADAS, ENGOLIDAS...

Prepare o ambiente de trabalho: forre uma mesa com papel kraft e disponha sobre ela pratos, talheres e canetões; em uma outra mesa, disponha alguns alimentos que servirão de recheio para tapiocas ou sanduíches – abacates, cenouras, alfaces etc.; se tiver a oportunidade de usar uma frigideira e um fogão, opte por tapiocas. Se não, podem ser usados pães de forma frios;

O grupo é convidado a preparar os recheios (lavar e cortar frutas, verduras e legumes) e, simultaneamente, a pensar em palavras e ações que gostaria de fazer com elas, e porquê. Por exemplo: “mastigar a palavra resistência”; “engolir a palavra corpo” etc;

Um subgrupo pode se responsabilizar pela produção da tinta vermelha de beterraba: bater as beterrabas descascadas no liquidificador com água, espremer o líquido em um pano e depois coar;

Com a tinta pronta e os alimentos picados, cada um/a vai montar sua refeição, escrevendo com a tinta vermelha na parte externa da tapioca (ou do pão) a palavra escolhida;

À mesa forrada com kraft, todos/as sentam para comer. As canetas ficam disponíveis para o grupo. Um/a por um/a, cada participante fala qual palavra e ação escolheu e seus “porquês”. Todos simultaneamente anotam no kraft o que os capta, o que toca, o que é forte em relação aos depoimentos dos colegas. Os depoimentos inspiram, então, uma conversa crítica sobre as palavras, seus sentidos, ausências, enquanto elas vão sendo devoradas.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE
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representações dos elementos formam o corpo. O corpo aparece. A percepção conduz o corpo para a consciência. Cada elemento conexo aparecerá apenas uma vez na percepção. A percepção da representação aparecerá não em cada um, mas em todos os elementos. A percepção torna se representação na consciência. A consciência transforma o corpo. A representação está agora em cada um dos elementos simultâneos da percepção. O corpo desaparece. A representação é a rotação dos elementos em conexão na consciência. A percepção está no corpo. O corpo na representação. A representação na consciência. Ambos estão em rotação. O corpo entra no tema, o corpo sai do tema. O corpo torna­se consciência.

Nascida em Lisboa, Raquel Nobre Guerra é poeta. No texto acima, a autora escreveu sobre a relação entre as obras de Lygia Pape e Renata Lucas.

NÚCLEO 2 OUTRAS GALÁXIAS

“[...] [este núcleo] é marcado por imagens do espaço sideral, de planetas longínquos, que fazem parte da série Yauti in Heavens (Regina Vater, 1988–89). No original, imagens de dimensões reduzidas, produzidas pela Nasa, estão pela primeira vez ampliadas, à escala do galpão do Sesc Pompeia. A escala cosmológica interrompe

o curso histórico, mais ou menos tangível da exposição, e permite agregar uma experiência de escape, de ficção e de distopia. [...] Na verdade, se as figuras do flâneur, do voyeur ou do viajante, em circulação livre pelas cidades do fim do séc. XIX e início do séc. XX, marcaram a experiência essencialmente masculina da modernidade ocidental, essa hegemonia passou a ser questionada pelo anúncio de muitos ‘fins’: fim do humanismo, fim dos grandes relatos, fim das utopias, fim da cultura ocidental. Abriu se, assim, espaço à configuração de experiências dos feminismos e dos movimentos negros [...]. Assim, nesse núcleo pensamos a extraordinária polissemia do verbo ‘partir’ que tanto pode significar ‘ir embora’, ‘escapar’, como também ‘quebrar’, ‘dividir’, ‘estilhaçar’. É dentro deste leque semântico que os trabalhos de ‘Outras galáxias’ sugerem o predomínio do exílio (Regina Vater), as galáxias longínquas, as possibilidades de ‘ir’ (Mumtazz), as palavras fósseis de não humanos (Rita Natálio) e as escutas imaginadas pela poesia e pela ficção científica (Denise Alves Rodrigues). Afinal, ainda é a linguagem aquilo que nos permite fabular outros mundos possíveis, produzir fugas, repensar o humano. O potencial destrutivo da humanidade e do planeta acima de tudo reforçou a urgência em ‘transicionar’: de vida, de gênero,

de subjetividade. Aqui imaginam se transpaisagens de um mundo em deslocamento.”

É interessante pensar em “transpaisagens”, em paisagens inventadas. Quais paisagens carregamos dentro de nós? Como a fição e a linguagem nos ajudam a escapar deste mundo?

Essas perguntas permitem desenhar, escrever, construir paisagens nunca antes vistas. Paisagens em fuga!

RELAÇÃO ENTRE AS OBRAS DESTE NÚCLEO

GC Se tomarmos duas obras, What are We Talking about, de Ana Pi, e Ocultação/Desocultação, de Ana Vieira, quais relações podem ser estabelecidas?

comunicam se é diferente do modo como nos comunicamos aqui. É uma comunicação feita de afetos, de desejos, de pôr no mundo palavras que não foram ditas.

É muito bacana pensar nas diferenças entre as formas de comunicação de artistas e como elas podem se tornar também uma forma de olhar o mundo a partir e através da exposição: que linguagens podemos inventar a partir de afetos, dos não ditos, dos segredos? Que palavras podemos criar, que ainda não foram ditas ou pensadas?

MM Há duas imagens importantes para trabalharmos no que diz respeito à relação entre as décadas de 1960 e 1970 e os dias de hoje. Uma é o “desenterrar”, uma imagem psicanalítica que evoca o pensamento de Suely Rolnik, no sentido de desenterrar algo que está no passado, mas que nos dá pistas para o momento presente. Este é um trabalho de escavação, de procura. Outra imagem que temos é a das “mensagens em garrafas” enviadas entre artistas. Artistas partilham linguagens idiossincráticas; o modo como

E é a partir da ideia de palavras que não foram ditas lá atrás e que hoje são reatualizadas que nós organizamos a exposição. Então, a relação entre os anos 1960 e 1970 e o momento presente não é à toa. Ela nos permite sair da noção linear da história e expandir possibilidades. A peça de Ana Vieira é constituída por dois momentos: o primeiro, em que a artista pensa uma cartografia da casa, do espaço doméstico reelaborado pelo desejo nominativo, e portanto ela indica em cada lugar da casa o que ela desejaria para aquele lugar, “des situando” o significado e o significante. Expressões como “aqui eu quero fugir” ou “aqui eu quero ler” são indicadas para diferentes espaços da casa.

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Estratégia: Palavras mastigadas, engasgadas, engolidas... Foto: Camila Picolo

É uma leitura do espaço a partir do desejo e da fuga. Ela abre uma brecha no espaço poético. No segundo momento, remete para a memória e para o ato de recordar. Um conjunto de móveis estão abaixo de um lençol, evocando­nos a casa das avós ou as casas abandonadas onde há objetos cobertos para que não fiquem empoeirados. Numa leitura mais aprofundada podemos apontar para a relação entre liberdade da linguagem e aprisionamento da linguagem (Ana Vieira viveu no período da ditadura em Portugal e na passagem para a democracia).

No caso de Ana Pi, estamos diante de um tom reivindicativo, um manifesto. Ela chama a atenção para certos lugares de fala condicionados, evocando um texto da Grada Kilomba sobre descolonização dos corpos, descolonização do conhecimento, chamando a atenção para a separação entre “nós” e “eles”, referindo se especialmente à supremacia de certos grupos sobre outros, e ao racismo. Portanto, há aqui também uma relação entre autorização e desautorização. São duas obras diferentes, mas que trabalham em uma chave da linguagem da ocultação e desocultação, ambas carregam essa dicotomia.

A seguir, o texto original de Grada Kilomba que Ana Pi performou:

“Quando elas/eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico; quando elas/eles falam é universal, quando nós falamos é específico; quando elas/ eles falam é objetivo, quando nós falamos é subjetivo; quando elas/ eles falam é neutro, quando nós falamos é pessoal; quando elas/ eles falam é racional, quando nós falamos é emocional; quando elas/ eles falam é imparcial, quando nós falamos é parcial; elas/eles tem fatos, nós temos opiniões; elas/eles têm conhecimento, nós temos experiências. Essas não são simples categorizações semânticas; elas possuem uma dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e preservam uma supremacia branca. Não estamos lidando aqui com uma ‘coexistência pacífica das palavras’, como Jacques Derrida (1981, p. 41) enfatiza, mas sim com uma hierarquia violenta que determina quem pode falar” [e “o que nós podemos falar sobre”, acrescenta Ana Pi em sua performance].

Grada Kilomba, Memórias da Plantação – episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, p. 52.

GC Essa relação entre autorização/ desautorização e ocultação/ desocultação é interessante, porque quando não somos autorizadas/os a algo, muitas coisas, muitos

conhecimentos, até em termos de linguagem, ficam escondidos, mas existem em algum lugar.

PQ Muitas vezes, quando há uma desautorização do enunciado, não significa que não existam outros modos de expressar aquilo que foi reprimido ou impedido de dizer. Podemos pensar linguagem não apenas como discurso, língua, mas como aquilo que se expressa no corpo. Há uma série de repertórios de linguagem.

Andar pela casa inteira: a ruína dança debaixo dos pés. Ficou tudo aberto, as janelas e portas escancaradas. Se quiser sair, saia, se quiser ficar, que fique.

A. deixou a maquete e algumas orientações. Mas, é a luz amarela que adianta o pó dos móveis, respiro fundo, descubro o pano das cadeiras, aqui lambo a quina da mesa. Quero a madeira debaixo dos meus dentes, inaugurar com os molares o fim da ordem, machucar as lascas com a minha língua. Descobrir o tecido das coisas.

São fios, cabos, os botões, caixas de som e luzes vermelhas. Uma sala colorida e quente. Eletricidade que corta. Aqui quero que A. fale comigo mais uma vez. Sua fala: agulha fincada no carretel de linha. Vibra o corpo preto que atravessa o mundo. Decolonizar: voltar para casa que, aos poucos, foi ocupada por eles. Cômodo por cômodo.

Tijolo por tijolo. Pegar de volta, desafiar o esquecimento, deixar tudo aberto. Lá, conseguir respirar.

Natasha Felix, jovem poeta brasileira, escreve aqui sobre a relação entre as obras de Ana Vieira e Ana Pi.

NÚCLEO 3 PALAVRAS MIL

“Palavras mil” é um núcleo em que poesia e revolução formam o binômio da imaginação de “madrugadas por vir”, criando disponibilidades coletivas para intervir na mudança da sociedade. Alude se também à Revolução de Abril, de 1974, em Portugal, que contou com o apoio de uma diversidade de intelectuais do Brasil (“foi bonita a festa, pá!”), em luta pelo fim da ditadura militar no seu próprio país, só conquistada alguns anos mais tarde. Esse movimento de rupturas só viria a completar­se com as independências dos países africanos, interrompendo séculos de colonização.

Nesse núcleo, o gesto político é simultaneamente íntimo e coletivo. Por meio do manifesto escrito e da visualidade das lutas sociais (Carla Filipe), da sonoridade desejante das ruas (Ana Hatherly), aprofundam se significados históricos com as urgências do momento presente (Grada Kilomba). Por outro lado, o corpo enfrenta dilemas íntimos, particulares, e, apesar do coletivo, os nossos desejos constroem o

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CARTAS PARA B.

MATERIAIS papeis de carta, papeis de qualquer tipo, lápis, caneta esferográfica, caneta hidrográfica colorida, envelopes, cartas de outros tempos.

Um dia, vivi a ilusão de que o presente bastaria – até a chegada de B., uma criança nascida em 2019, ou o ano que não acabou, que não acabará.

B. me fez experimentar o futuro de um modo rasteiro, corporal, epidérmico; não uma espécie de trem desgovernado que nos atropela, mas como trilhas abertas na noite escura com facas de luz.

Logo percebi: B. inventou uma máquina do tempo, me fez viajar ao passado e ao futuro na velocidade da escrita para me manter mais e mais presente, atenta e forte.

A perspectiva do nascimento de B. me fez desejar criar memórias do presente que ainda não se pode explicar, como a do trauma Brasil 2019, pois o tempo do traumático é sempre presente, embora sua elaboração esteja no futuro. Fez me, ainda, desejar contar a história do nosso futuro, este que já está aqui nos espreitando feito uma quadra de Drummond: o futuro que flerta com o presente que fita o passado do qual não escapa ninguém.

Convido você que me lê, que me tem em mãos como quem recebe uma carta, para viajar pelo tempo e imaginar o futuro. Podemos escrever cartas para B., uma criança qualquer, a criança que vem, e dizê la como cremos no mundo. Podemos contar lhe como foi que da farsa de 2019 chegamos às barricadas de 2021, às zonas autônomas de 2022 – lembra se? –, do navio pirata que atravessou o território nacional e durante treze anos acolheu mais de dois milhões de pessoas entoando o coro “o futuro não demora”. Dizer­lhe sobre o dia da conclusão da limpeza do rio Tietê em 2032 e da escrita da Constituição Pluralista dos Brasis, em meados de 2046. O que você contaria do mundo que vem para a criança que chega?

Escolha um papel e uma caneta qualquer. Use lápis, se preferir. Encontre cartas de outros tempos, dos tempos em que se escreviam cartas, cartas de amor, bilhetes, cartas do cárcere para se inspirar. O que elas dizem a você? Invente uma carta para uma criança que acabou de nascer ou que ainda nascerá. Conte para ela da memória do presente e crie futuros possíveis. Ou apenas apure o ouvido para escutar o futuro que já está aqui.

seu próprio vocabulário. A expressão íntima do político pode ser encontrada nas produções da artista Lúcia Prancha, inspirada na visceralidade da literatura de Hilda Hilst ou no projeto Ocultação/ Desocultação (Ana Vieira, 1978–79)2 que mapeia de forma políticoafetiva o espaço doméstico.

RELAÇÃO ENTRE AS OBRAS DESTE NÚCLEO

GC Neste terceiro núcleo tomamos as obras Amanhã não há arte, de Carla Filipe (2019), e Sem essa, Aranha e Copacabana Mon Amour (1970). Quais relações podemos estabelecer entre elas?

MM O título deste núcleo — “Palavras mil” — faz relação com a expressão portuguesa “abril, águas mil” (o equivalente no Brasil seria “águas de março”), que evoca o abril da revolução, mas também a possibilidade de falar mil coisas, de alterar os papéis sociais, de mudar o mundo. Essa dimensão de mudança está presente nas imagens do cinema onde Helena Ignez aparece e atua. Não é mais uma mulher objetificada, mas uma mulher que é protagonista da própria cena. Vê se que a figura de Ignez orienta a cena, e as imagens

que o corpo dela presentifica são imagens de grande fúria e liberdade, um deboche do status quo. Ela aparece como imagem dessa ruptura sexual, social e intelectual, onde o protagonismo feminino foi muito importante. Escolhemos Helena Ignez para figurar neste terceiro núcleo, como um grito, uma fúria, uma histeria.

Já o trabalho de Carla Filipe, todo ele sobre a visualidade dos movimentos sociais, traz também a memória dessa alegria de mudança que foi vivida com o fim da colonização (de Portugal em África) e com o início da democracia. Produzida por bandeiras, a instalação de Filipe tem um ar festivo e furioso, assim como os filmes com Ignez.

O colorido das bandeiras provém de uma pesquisa de Filipe sobre a iconografia das revoluções dos anos 1970, em Angola, Moçambique, Portugal. Na maioria das bandeiras a composição é abstrata, mas há a evocação a um sol, a um galo que canta de madrugada, a uma catana, uma espada… São símbolos heráldicos, das bandeiras destes países, relacionados a identidades.

O conjunto da instalação dá nos a sensação de estarmos em um ambiente imersivo, de festa e de renovação.

2 Esta obra pode também pertencer ao núcleo 2, uma vez que se encontra em um espaço transitório entre os núcleos.

GC Como uma sensação de levante mesmo, de que algo está acontecendo.

MM Precisamente, há essa sensação de levante. Há também algumas almofadas com textos que evocam os direitos dos artistas, linhas sobre os direitos fundamentais do trabalho artístico. Carla Filipe concebe o artista como parte atuante desse levante.

Helena ensina nos a falar com mais demolição. “Saiba que meu nome é América”, diz em algum momento de Sem essa, Aranha. Mais adiante: “A véspera do fim do mundo foi o único dia que prestou”. O que limita com a poesia não é a luz, não é o silêncio — é o vômito. Helena engulha até nós de um mundo já acabado, nomeado como tal. Grande confusão corrente — se o mundo já acabou ou não. A instalação

Amanhã não há arte, de Carla Filipe, é um living para se estar em greve. Leva amanhã no nome, é alguma futuridade. Deitaria Helena, deitaria América, bem aqui, em meio a estas almofadas, sua trouxa de escatologias? Escatologia & escatologia: uma é o estudo das coisas últimas, das implicações teológicas do fim do mundo; a outra refere se ao gosto pelo obsceno, pelo excrementício. A mesma palavra, emanando de dois vocábulos gregos distintos, amalgama ao coração do Brasil. América arregaça a minissaia, rosna: “Faz tempo que não falamos a sério, de símbolo pra símbolo, continente pra continente”.

Ismar Tirelli Neto, jovem poeta brasileiro, escreve aqui a partir da relação entre a obra de Helena Ignez e Carla Filipe.

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A VOZ POÉTICA DA MEMÓRIA

Slam? Mas que raios é um slam?

Os poetry slams, ou simplesmente slams, são batalhas de poesia falada que surgiram na década de 1980, em Chicago, nos Estados Unidos, e hoje se estabeleceram como uma das mais democráticas formas de poesia performática em todo o mundo. Sua criação se deu como uma resposta à ideia elitista de que a poesia seria um gênero restrito a círculos acadêmicos, que pertenceria exclusivamente a um ou outro grupo social específico, ou mesmo que existiria somente como manifestação escrita. Assim como nos saraus de poesia que se espalharam pelas periferias do Brasil no começo dos anos 2000, a ideia presente no formato do poetry slam é a de democratizar os acessos à literatura e, mais especificamente, à poesia. Isso se dá a partir de um jogo cênico no qual, como em todo jogo, a torcida,

a emoção e o senso de participação fazem parte do encontro.

E quais são as regras?

Poemas próprios de no máximo três minutos, apresentados sem acompanhamento musical, adereços ou figurinos. Os jurados são escolhidos, em meio ao público, para atribuírem notas de 0 a 10 a poetas que performam diante de uma plateia que é vivamente incitada a participar.

E por que o slam é legal?

O poetry slam é um movimento social, cultural e artístico que cria espaços nos quais a manifestação da livre expressão poética, do livre pensamento, e a coexistência em meio às diferenças é experienciada como prática de cidadania. Desde 1986, ano de sua criação, foi convertendose em ágora, onde questões da atualidade são debatidas, em um

acontecimento com traços políticos marcantes ligados aos campos da literatura e da performance. Os slams são ferramentas para reunir comunidades e criar oportunidades de formação, educação, entretenimento e expressão intelectual e artística. A medida que surgem, têm se distinguido uns dos outros, sendo suas características definidas de acordo com a necessidade de cada grupo.

E o slam no Brasil?

O slam chegou em 2008, por meio do ZAP! – Zona Autônoma da Palavra, idealizado por mim e realizado pelo coletivo artístico Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Ao completar doze anos de existência no Brasil, o movimento cresce a passos largos. Atualmente existem mais de duzentas comunidades espalhadas por vinte estados. Desde 2014, o Brasil também conta com o SLAM BR: Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, que acontece anualmente na cidade de São Paulo. O campeonato recebe poetas campeões e campeãs de todo o país e o vencedor ou vencedora se torna o/a representante brasileiro/a na Copa do Mundo de Poesia Slam, anualmente realizada em Paris (França).

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE RODA DE MEMÓRIAS Evoca­se uma roda de histórias em volta do fogo e, inspirando­nos nos poemas dos slams, a partir do exercício de narrativas autobiográficas, os/as participantes entram em contato com o processo criativo da produção do texto poético. É necessário a presença de um/a professor/a que conduza e participe da atividade.

MATERIAIS papéis e caneta.

Todos/as se sentam em roda;

O/A professor/a explica que cada participante falará seu nome e, como alguém que edita um filme, editará um momento da sua vida para dividir com os/as demais em três minutos. O fato escolhido deve ser algo que influenciou quem ele/ela é hoje, que tenha marcado sua trajetória. Pode ser algo do passado ou que aconteceu há alguns minutos. Pode ser algo triste, feliz, engraçado, estranho...

O/A professor/a deve começar. A inteireza desse depoimento dará o tom aos demais, ou seja, é importante que seja algo verdadeiro. Uma pessoa é responsável por disparar o cronômetro quando cada

memória começa a ser falada.

Após três minutos, essa pessoa levanta o braço e todos/as da roda também, sinalizando que o tempo acabou. Parece pouco tempo, mas é bastante. O tempo pode ser ajustado dependendo do número de participantes;

Enquanto as histórias são partilhadas, o/a professor/a vai tomando nota (para não constranger ninguém, ele/ela explica que é parte do jogo), e cria títulos poéticos e instigantes para cada uma. Ao final da última história, os nomes dos/ das participantes e os respectivos títulos são revelados e eles/elas são convidados/as a escrever um poema a partir deste mote. Vale usar títulos e motes de outras pessoas também;

Cada um/a lê o seu texto. Aqui não vem ao caso dar notas aos poemas, muito embora, vídeos de slams possam ser exibidos para instigar os/as participantes a escrever e dizer seus textos em voz alta. Se acontecerem outros encontros, podem ser acrescentados novos temas e quem sabe, ser criado um slam na escola.

Dica: O filme SLAM: Voz de levante, que conta a história da chegada do slam no Brasil, está disponível para sessões coletivas em escolas, associações, cineclubes, ONGs etc., em: http:// www.taturanamobi.com.br

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Sesc – Serviço Social do Comércio Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda

Superintendentes

Técnico Social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio M. Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli

Gerentes

Artes Visuais e Tecnologia Juliana Braga De Mattos Estudos e Desenvolvimento Marta Raquel Colabone Artes Gráficas Hélcio Magalhães Assessoria de Relações Internacionais Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Sesc Pompeia Monica Carnieto FARSA. Língua, Fratura, Ficção: Brasil Portugal

Curadoria Marta Mestre Curadoria Adjunta Pollyana Quintella

Equipe Sesc Alcimar Frazão, Amanda Ghirotto, Barbara Rodrigues, Carolina Barmell, Dante Mikael, Dih Lemos, Érica Dias, Gabriela Borsoi, Guilherme Barreto, Heloísa Pisani, Helena Bartolomeu, Hugo Cabral Carneiro, Ilona Hertel, João Victor Guerrero, José Renato Alegreti Dias, Juliana Okuda Campaneli, Karina Musumeci, Kelly Santos, Leonardo Borges, Marcel Verrumo, Nilva Luz, Paulo Delgado, Rafael Della Gatta Soares, Raquel Lopes Py, Sergio Pinto, Silvio Basilio, Thays Cabette e Yuri Cumer

Material educativo – Sesc Pompeia “A Farsa como escola” desenvolvido para a mostra FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil–Portugal

Concepção do material educativo e ações formativas Grupo Contrafilé (Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi e Rafael Leona)

Ação educativa A contemporânea e Grupo Contrafilé (Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi e Rafael Leona)

Coordenação da ação educativa Juliana Biscalquin e Marcela Tiboni

Projeto gráfico Flávia Castanheira e Luciana Facchini

Coordenação editorial Eloah Pina

Assistente editorial Juliana Bitelli

PAULA CHIEFFI é psicóloga, mestre em Psicologia Clínica (PUC–SP) e doutora em Educação (USP). Investiga como a escuta engendrada na prática clínica pode se aliar aos múltiplos processos de criação e forjar palavras e gestos ancorados no desejo e no pulso vital.

ROBERTA ESTRELA D’ALVA é atriz Mc, diretora, pesquisadora e slammer. Membro fundadora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e do coletivo transdisciplinar Frente 3 de Fevereiro. Pioneira do poetry slam no Brasil. Ao lado de Tatiana Lohmmann, dirigiu o premiado documentário SLAM: Voz de levante

TARCÍSIO ALMEIDA é mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC–SP) e professor no Centro de Artes, Humanidades e Letras no curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), território onde desenvolve os programas de pesquisa e extensão Práticas Desobedientes e Elixir. Atualmente, dedica sua pesquisa e acompanhamentos artísticos baseados em modos de criação comprometidos com formas de liberação, liberdades e justiças cognitivas a partir do campo das artes visuais.

GRUPO CONTRAFILÉ

Atualmente, fazem parte do Grupo Contrafilé: Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi e Rafael Leona, professores, pesquisadores e artistas que entendem a educação como um lugar importante de criação e inspiração, na medida em que contribui para possíveis transformações na sensibilidade coletiva.

FONTE Sul Sans PAPEL papel Offset 56 g/m2 TIRAGEM xxxxxxxx GRÁFICA Pigma

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