Escutar o Museu para Lembrar do Futuro, 2022

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ESCUTAR O MUSEU PARA LEMBRAR DO FUTURO

Grupo Contrafilé, MAOC, participantes e convidades curso de formação de educadories do MAOC
2022

SUMÁRIO

Apresentação

Metodologia e plano de trabalho

Educação nas encruzilhadas

Caderno de estratégias e percursos

A construção coletiva da memória

Caderno de registros

Como lidar com a memória da dor e do trauma?

A fuga: fazer roda em

Algumas referências

Ficha técnica

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torno da vida ............................... 90
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APRESENTAÇÃO

Querides educadories,

O Grupo Contrafilé é um coletivo de arte com vinte anos de existência. Surgiu em São Paulo no início dos anos 2000 mobilizado pelo desejo de pensar e tomar a cidade como campo de atuação artística. Integrando uma rede nacional e internacional de coletivos, entendemos que o nosso trabalho acontece na intersecção entre a arte, a política e a educação, sempre com uma perspectiva crítica e no encontro com diferentes pessoas, grupos, movimentos sociais e comunidades - que são fundamentos, por excelência, do nosso processo artístico. É a partir dessas relações que emergem modos de fazer, gestos e práticas que acabam por compor e atravessar todos os nossos trabalhos.

Concordamos com Grada Kilomba quando ela diz que a língua portuguesa “é extremamente problemática, e como todas as línguas coloniais e européias, é cheia, rica em patriarcados e racismos, uma língua extremamente hierarquizada, que constrói relações de poder e de violência e é importante começar a desmantelar isso” (KILOMBA, 2020, em live com o artista e músico Eugênio Lima). É deste esforço que optamos por trocar “educadores” por “educadories”, “todos” por “todes”, e por aí vai. Achamos importante pensar sobre isso e forçar a língua, experimentando-a de outros modos. Mesmo que não tenhamos conseguido radicalizar, estamos atentes.

que dela se expande para o mundo? Essas são perguntas que nos permitem experimentar a arte como um saber e um fazer que extrapola circuitos específicos; e também os conflitos sociais e urbanos como dimensõ es da vida que atravessam qualquer espaço, inclusive os espaços da arte. Temos, portanto, uma convicção cada vez maior de que a arte faz e deve fazer parte dos fluxos do mundo e de que nela e através dela e d os seus espaços e agentes, todos os conflitos, visibilidades e invisibil idades, violências, opressões e desigualdades estão completamente presentes (ou seja, mesmo quando existe um esforço para apagar os conflitos, e les estão lá, de uma forma ou de outra).

Para nós, a educação é um lugar fundamental na medida em que contribui para a transformação da sensibilidade coletiva. O grupo é composto por educadories que trabalham, já há muitos anos, através da arte e da formação política, em diferentes situações e espaços de aprendizagem: museus, centros culturais, escolas, movimentos sociais, redes de quilombos, movimentos artísticos. Enquanto artistas-educadories, tentamos criar espaços de intimidade para falar das urgências que se apresentam, tanto no agora, em nossos corpos e nos corpos das pessoas com as quais estamos em diálogo, quanto que se apresentaram em outros tempos, nos corpos de pessoas, artistas e coletivos dos quais agora apreciamos as obras e vestígios. Nessas situações, aprendemos como os afetos podem ser traduzidos em obras.

Esse exercício constantemente nos mostra e lembra que os dizeres, performances, intervenções, publicações etc., não são apenas resultados ou formas, mas sim potências capazes de mobilizar, desestabilizar e influenciar as pessoas e as coletividades. A prática calcada na educação pela arte, quando a ela retornamos, nos leva a perguntas como: Qual a matéria-prima de cada artista? O que lhes interessa no mundo? Em que contexto político-institucional tal exposição está inserida? Como ela reflete questões, urgências e contradições de seu tempo históric o e o

Essas são algumas das premissas, perguntas e reflexões que constantemente nos acompanham como artistas, educadories ou mesmo como público. Uma imagem que costumamos usar com frequência ao abordar esse campo de intersecções e encruzilhadas (entre a arte e a educação, entre a educação e a política, entre a política e a arte), é a da floresta: é necessário adentrar a mata, cada qual com as suas próprias “ferramentas”. Como dizia o mestre Paulo Freire, um educador que não se posiciona, não está sendo ético. O papel de educadories-artistas ou artistas-educadories, é, então, o de convidar seu público a percorrer a trilha que está abrindo, deixando explícito que essa é somente uma trilha entre infinitas possibilidades, pois somente assim cada pessoa se sentirá capaz de abrir os seus próprios caminhos. Não seria absurdo dizer que, em alguma medida, os percursos e perspectivas singulares que nascem na vida são obras de arte e que, ao constantemente escolher que trilha tomar diante das encruzilhadas, “somos todes curadoras e curadores”.

Por tudo isso, as atividades que compõem o plano de trabalho do curso que propusemos e realizamos de janeiro a março de 2022, por termos sido selecionades, com grande alegria, pelo “Edital de Credenciamento para

APRESENTAÇÃO
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a Realização de Formação de Educadores para o Museu de Arte Osório Cesar”, lançado pela Prefeitura de Franco da Rocha em setembro de 2021, se baseiam sobretudo na proposição de afetos e experiências. Mais do que “modelos a serem seguidos”, pretendem ser inspiração para que cada professor e cada professora, cada educadorie e cada estudante se sintam provocades a criar a sua própria forma de traduzir a relação que vai estabelecendo com o MAOC e seu acervo em práticas concretas a serem compartilhadas com estudantes e públicos.

sinônimo da possibilidade de superação daquilo que paralisa, se vivido apenas como trauma. Por fim, convivemos neste (per)curso com um grupo de jovens que nos enche de esperança. Os participantes do curso são funcionárias e funcionários do MAOC, estudantes de graduação (principalmente de história ou pedagogia), e professoras e professores já em atividade em escolas formais. Todes nascides e criades em Franco da Rocha ou em suas proximidades.

Ao fim e ao cabo, ao aprofundar a relação com esse museu tão inc rível, que nasce de uma demanda social e comunitária, naquele território, de retomada da memória da dor e do trauma causados pela existência por tantos anos de um manicômio ali (com as já conhecidas violências provocadas nos corpos individuais e coletivos por esse tipo de instituição), pudemos aprender ou re-aprender coletivamente não somente como abrir para o mundo e levantar a poeira desse acervo especí fico, mas como puxar os fios de qualquer acervo.

Puxar fios tornou-se, neste per(curso), uma forma de criar pensa mentos e práticas capazes de curar - em seu duplo sentido, de curar feridas e de tornar mais consciente a força política de determinação de um certo caminho, ao invés de outros -, ao produzir reconexão com potências que não deixam para trás, entretanto, a fala e a escuta dos nossos tabus, das nossas cicatrizes e das violências estruturais que marcam profundamente os corpos (alguns com mais intensidade que outros), qualquer território e qualquer instituição no Brasil. Também percebemos, no ato de puxar fios, não apenas uma forma de relação com a potê ncia de um acervo, ou desse acervo, capaz de produzir outras potências a partir disso, mas também uma forma de conectar os fios puxados com outr os objetos, vidas, histórias e processos, não necessariamente já presentes no acervo, mas que passam, então, também a compô-lo.

A cada encontro, escutamos, emocionades, os seus relatos sobre a influência que morar nas proximidades do hospital psiquiátrico t eve e tem em suas vidas, em suas subjetividades e naquela comunidade como um todo. A própria cidade cresceu ao redor do Juquery. Quase todo mundo tem alguém da família, ou uma pessoa conhecida, que trabalhou a vida inteira lá, ou que esteve internada. E as histórias que essas pessoas contam a respeito de outras pessoas, ou de como era o cotidiano ali dentro, não são poucas e são profundas, cheias de simbolismos e de uma conexão enorme com as difíceis questões brasileiras. Se, por um lado, ouvimos nos depoimentos desses participantes, orgulho por toda essa história, porque ali, apesar da violência, foram produzidos momentos de humanidade, cuidado, respeito e amizade, luta e resistência, por outro, também ouvimos a dificuldade que é ter crescido com o pes o do que se entende socialmente por loucura, aquilo que se quer esconder, com o encarceramento tão próximo, com a dor ali do lado.

Diante dessa encruzilhada, entre a dor e o amor que pôde existir ali, incorporada não apenas, mas também na existência de obras de arte, agora em exposição no MAOC, dá orgulho de ver essa geração levando à frente o projeto de tantas pessoas que vieram antes, de emancipar essa memória, de subverter a auto-imagem da loucura como algo apenas individual e que deve ser escondido, para colocar tudo isso pra rodar, para ser olhado e pensado por todes nós e especialmente para ser vivido e repensado pela perspectiva da potência da Arte.

Como produzir um arquivo, ou como produzir um acervo, a partir de qualquer e de todo território comunitário, passou a ser para nós

APRESENTAÇÃO
MAOC presente!
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METODOLOGIA E

PLANO DE TRABALHO

S obre o plano de trabalho, é importante dizer que ele foi inteiramente construído em cima de estratégias criadas pelo Grupo Contrafilé em contextos artísticos, como espaços-obras concebidos para mobilizar certos estados de atenção do corpo, nos quais somos capazes de falar sobre o que precisa ser dito e escutar aquilo que precisa ser escutado. A isso nomeamos “falar e escutar como arte” , uma atitude no mundo em que cada pessoa se implica no encontro com outres, se escutando enquanto escuta aquilo que está para além de si. O encontro se torna, então, uma costura de corpos, histórias, experiências e atravessamentos potencialmente existentes no corpo do mundo. Retornando ao ato de puxar fios, os fios puxados podem ser compreendidos como a incorporaçã o desse encontro, dessa costura que potencialmente escuta “tudo”: o entorno, os outros seres, o invisível, aquilo que foi quase, mas não totalmente apagado, um acervo, outras gentes etc.

pudemos experienciar um processo em que ora compartilhamos perspectivas no interior do próprio grupo, ora criamos um corte, no qual o grupo se abriu para receber um olhar considerado chave no processo. Nesses momentos, essa perspetiva singular se tornou, para nós, uma escola. Assim definimos cada uma dessas estratégias:

A dimensão educativa e política de tais dispositivos está na aprendizagem que essa mobilização pode provocar, pois aprendemos a encarnar e ver encarnadas não qualquer fala ou qualquer escuta, mas fluxos de palavras e pensamentos que colaboram para um avanço necessariamente coletivo, ao restabelecer certos pactos sociais: por exemplo, repactuar aquilo que precisa ser lembrado e o que pode, ou não, ser esquecido. E os porquês disso. Ou repactuar a própria compreensão da “loucura” em um país como o Brasil, atravessado pelo racismo, sexismo e LGBTfobia.

Assembleia pública de olhares

Assembleia Pública de Olhares: sf 1 Encontro de pessoas com o fi m de compartilhar o que as paralisa ou mobiliza; encontro de intimid ades; 2 Criação coletiva de perguntas; exercício de dar nome às urgênci as; lugar de aprendizagem; 3 Prática coletiva de escuta-ativa que leva à produção de conteúdos e/ou símbolos resultantes da consciência de uma experiência comum; 4 Invenção de tempo e espaço para o dissenso; afirmação d e singularidades co-criadoras de realidades; 5 Mobilidade interna ; disponibilidade para relacionar-se com inteireza; 6 Descondicio namento de padrões repetidos; mudança de hábito; 7 Espaço para relações proibidas; 8 Estado manifesto de criação.

As duas estratégias utilizadas de forma alternada foram a “Assembleia pública de olhares” e a “Escola de Testemunhos”. A primeira foi criada pelo Grupo Contrafilé em 2005 e, neste (per)curso foi ins taurada em momentos nos quais estávamos juntes formulando e compartilhando perguntas, dúvidas, aprofundando pensamentos, reflexões, leitura s, experimentando enunciados e criando vocabulários. A segunda, criada em 2019 no contexto da participação do Contrafilé na exposição “ MetaArquivo: 1964-1985 - espaço de escuta e leitura de histórias da ditadura” (Sesc Belenzinho e Memorial da Resistência de São Paulo), e que desde então já ganhou distintos formatos, foi instaurada em momentos nos quais tivemos conosco uma pessoa convidada a testemunhar algo importante para o nosso processo formativo. A partir dessas estratégias,

Escola de testemunhos

Escola de Testemunhos é um dispositivo artístico-educativo que parte da premissa de que cada pessoa é uma escola e, portanto, que as pessoas possuem sabedorias e sensibilidades próprias e profundas que as tornam singulares ao mesmo tempo em que expressam processos sociais e coletivos. Se o testemunho é uma escola, como aprender a partir dele? O que aprender? As aulas da Escola de Testemunhos são reuniões com uma pessoa convidada, para escutar e refletir a partir da presença d esse corpo-testemunho, que é a matéria que alimenta a aula.

METODOLOGIA E PLANO DE TRABALHO
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PLANEJAMENTO GERAL DO CURSO

Para educadories que porventura possam se interessar pelo planejamento geral do curso, sua espinha dorsal, abaixo a compartilhamos. Nas próximas páginas, essa linha será desdobrada nos diferentes momentos da publicação. Esperamos que possam aproveitar e aprender com a leitura dessas páginas, assim como nós aprendemos com as conversas e trocas estabelecidas.

ENCONTRO 1: Assembleia pública de olhares I

* O que são pedagogias radicais? Qual a experiência de cada participante nesse sentido?

* Como pensar uma pedagogia radical na relação escola, museu e cidade?

* Assembleias e Escolas de Testemunhos: estratégias de auto-escuta e escutas de outres.

ENCONTRO 2: Escola de Testemunhos I

* O arquivo como matéria viva - a importância e potência do acervo do MAOC.

Testemunhos de Ana Pato, diretora do Memorial da Resistência de São Paulo, e Daniele Senario, Elielton Ribeiro, Matheus Alves Vilela e Michelle Louise Guimarães, funcionáries do MAOC.

ENCONTRO 3: Assembleia pública de olhares II

* A tragédia em Franco da Rocha: Como falar da memória da dor e do trauma?

ENCONTRO 4: Escola de Testemunhos II

* Engrenagem colonial, adoecimento e espaços de aquilombamento.

Testemunho do psicólogo Lucas Veiga.

ENCONTRO 5: Assembleia pública de olhares III

* Educar como gesto de amor.

* Escutar os afetos das obras.

* Instaurar um percurso criador na exposição.

* Criar atividades de ateliê.

ENCONTRO 6: Escola de Testemunhos III

* Encruzilhada e encantamento: entre a arte e a educação, entre a educação e a política, entre a política e a arte.

Testemunho do pedagogo e professor Luiz Rufino.

ENCONTRO 7: Assembleia pública de olhares IV

* Fechamento do processo com as apresentações finais dos percursos dos participantes na exposição de longa duração do MAOC, “Há Luz Atrás dos Muros”, com curadoria de Hélio Menezes e Pedro Quintanilha.

METODOLOGIA E PLANO DE TRABALHO
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EDUCAÇÃO NAS ENCRUZILHADAS

EDUCAÇÃO NAS ENCRUZILHADAS

ESCOLA DE TESTEMUNHOS COM LUIZ RUFINO

Cibele Lucena - É uma alegria ter o Luiz aqui hoje! Obrigada por ter aceito o convite de estar com a gente nesse processo. Aproveito para relembrar que em nosso primeiro encontro, a primeira coisa que fizemos foi tentar entender o que é, pra esse grupo, uma pedagogia radical, ou seja, uma pedagogia viva, potente, tendo como ponto de partida esse trabalho educativo dentro do museu, neste caso nosso, dentro do MAOC. Começamos nos aproximando dessa ideia, definindo o que pod e ser isso, o que quer dizer, o que precisa, o que acontece, o que se produz quando pensamos a pedagogia a partir desse lugar vivo. E a gente volta aqui hoje, com o Luiz, para retomar essa perspectiva da educação. O Rufino tem trabalhado com práticas e pensamentos da educação que , com certeza, ajudam muito a seguir aprofundando o que estamos discutindo aqui. A ideia do encantamento, da pedagogia das encruzilhadas. E queria dizer que hoje o testemunho tá contigo, o testemunho como uma palavra incorporada de experiência e de troca, muito livre, não é uma palestra, é essa ideia de estarmos aqui juntes, em torno da tua experiência. A Joana talvez queira trazer algumas coisas.

Luiz Rufino - Primeiro, queria agradecer a oportunidade dessa conversa, desse encontro. É uma alegria, me sinto honrado pelo convite, principalmente por ser uma proposta que tem como foco uma liberdade para o encontro, num momento onde a gente tem muitas sanções diante da nossa experiência de liberdade. Tudo o que eu tenho feito está vinculado estritamente à experiência do Brasil, à experiência de ser brasileiro. E eu acho que a condição de ser brasileiro é extremamente atravessada por um elemento que é uma chave mestra para destravar a nossa condição, que é a reflexão acerca da violência.

A violência anda como uma categoria fundante na reflexão que eu faço, principalmente no que tange à reflexão acerca da educação. A gen te hoje está num dia histórico, acordou com a notícia da guerra [se referindo à Guerra entre Rússia e Ucrânia]. E a guerra é um ponto chave no meu trabalho. Não a guerra como ela hoje se manifesta no noticiário, mas uma guerra que está fundamentalmente vinculada à dominação, ao encarceramento existencial. Que pra gente aqui vai bater muito com a nossa história a partir do chamado descobrimento.

Joana Zatz Mussi – Talvez apenas dizer que no Grupo Contrafilé a gente sempre se entendeu, tanto no coletivo, como individualmente, como corpos de fronteira. Sempre nos sentimos de alguma forma assim. Uma outra coisa que para nós sempre foi muito forte é a relação com a rua. Essa sabedoria da rua, esse corpo a corpo, essa dimensão do pé na experiência e do corpo no mundo, de alguma forma é de onde a gente partiu pra pensar, pra produzir. E acho que talvez esses sejam alguns dos motivos que nos fizeram nos identificar tanto com o trabalho do Luiz Rufino. As suas ideias, Rufino, pegam a gente num lugar que, claro, é também teórico, mas antes é no corpo, essas ideias da encruzilhada, do encantamento, nos pegam num lugar muito profundo. Então estamos aqui como “mestres ignorantes”, pra aprender, pra escutar, nos conectar de alguma forma com esse testemunho. A gente passa então a palavra pro Luiz!

A narrativa da nossa condição no mundo a partir dessa ideia de Brasil cravada como esse acontecimento de guerra colonial, que tem vários imperativos contratuais para que de uma certa forma essa empresa de terror possa funcionar, ela nos forja até os dias de hoje. É fato. E a minha reflexão, a minha crítica, não é somente a constatação disso e a defesa de que isso permanece, mas é a tentativa de tramar uma espécie de jogo, em que esse jogo não é inocente. É uma espécie de capoeiragem, não é um jogo de vida e morte, é um jogo onde você caça saídas e soluções, mesmo que precárias, mesmo que provisórias, mas em prol da vida.

Então essa é a grande discussão. Um sistema de terror, um sistema antivida, como eu tenho pensado, que de uma certa forma é a porta que me faz incursionar todo o projeto de sociedade, o projeto político vigente, ele às vezes nos faz até confundir de fato essa dimensão do que seria

Luiz Rufino é professor da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Programa de pós-graduação em Educação, Cultura, Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC). Desenvolve pesquisas sobre culturas populares, diáspora africana, corporeidade, crítica ao colonialismo e filosofia do conhecimento. Tem oito livros publicados, entre eles “Pedagogia das Encruzilhadas” (Mórula, 2019) e “Vence-Demanda, educação e descolonização” (Mórula, 2021).
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EDUCAÇÃO

a vida em si. Eu acho que é muito nesse sentido que vai a reflex ão do encantamento que mais à frente eu vou falar um pouco mais. Mas eu acho que dentro do campo em que eu estou situado, que é a educação, existe uma defesa irrestrita de que a educação é fundamentalmente um radical da vida. Esse é um ponto que eu estou colocando pra vocês.

Pensar educação, sentir educação é, de uma certa forma, exercitar e experimentar esse processo educativo, esse fenômeno educativo, essa forma de constituição de existência e de política cotidiana fundamentalmente como algo vinculado à vida, seja em defesa da vida em toda a sua força, em toda a sua potência, em toda a sua plenitude, em toda a sua diversidade, seja em defesa de uma restrição do que é, na verdade, um simulacro de vida.

Então, é muito curioso quando a gente fala de educação, eu costumo falar disso com estudantes da graduação com quem eu trabalho, principalmente no curso de Pedagogia, se você conversa com qualquer pessoa na rua, pode pegar alguém dentro de casa e perguntar assim: Vem cá, o que que você pensa sobre educação? As palavras que vão vir vão ser as mais bonitas, esperançosas, do ponto de vista de uma crença de que a educação é um lugar de bem-estar comum, de solução comum, que é um lugar de superação, de civilidade e por aí vai. Eu acho que isso diz muito de como a gente projetou a educação não como esse radical da vida, numa esfera ecológica, diversa, plena, inconclusa, mas como regulação dessas forças vitais. Então, quando as pessoas falam isso, a gente remete quase sempre ao lar, à família, à escola, às instituições, alguns parâmetros de sociabilidade, de controle social.

Isso diz muito acerca do que nós plantamos aqui como um projeto-mundo que perpassa por uma escolarização, também por uma pedagogia. Então, veja bem, a educação não está livre de uma crítica que confronte a violência que é, de uma certa forma, instauradora, reguladora e mantenedora deste mundo em que a gente tá lançado. Então, falar em educação, ao contrário do que muita gente pensa, porque de boas intenções o inferno está cheio (risos), não garante absolutamente nada porque a educação pode ser pavimentada diante de um projeto extremamente conservador, limitador... descaso de experiência, produtor de esquecimento, contrário à liberdade desses corpos, contrário às experiências comunitárias e por aí vai.

É fundamental que a gente reivindique essa noção de educação vinculada a uma dimensão de liberdade, a uma prática de liberdade, mas também a um ideal de libertação que ainda está em jogo, ainda está em disputa a meu ver. Então, diante daquilo que eu chamei a atenção como uma primeira chave de leitura, de debate pra gente, a educação estando diretamente vinculada à vida como radical, a defesa que eu vou fazer aqui, é que o principal papel da educação, no mundo que cá estamos é batalhar em prol dessa vida. Batalhar em prol dessa vida, a meu ver, implica a gente pensar a educação como prática de descolonização. Quando eu digo colonização, vocês podem tramar essa noção de colonização não como um evento datado, mas como uma espiritualidade mesmo, como uma motricidade, como uma engrenagem, uma lógica que está fundamentada em contratualidades de dominação racial, de gênero, antropocenas, que se fundamenta, de uma certa forma, na experiência da intervenção militar, na experiência da catequese, na experiência da plantation , todo o projeto-mundo em que a gente está lançado.

O Brasil de hoje não é diferente de nada disso que eu estou falando. E isso que eu estou falando é, de certa forma, a instalação do projeto do novo mundo, da empresa colonial por aqui. Então, é fundamental que a gente reconheça que o “agro é pop” desde 1500, que a bancada evangélica, a bancada ideológico-política, a bancada da bala têm as suas raízes plantadas nesse edifício colonial, que precisa ser sacudido, precisa ser implodido. E que, na verdade, o que nós temos ao longo de mais de cinco séculos, só pegando esse recorte do Brasil, não é uma experiência de submissão a isso, é uma experiência de batalha. Então é fundamental a ênfase na batalha. É nesse sentido que a educação, a meu ver, é um lugar chave para pensar isso.

Porque a educação, de uma certa forma, e aí pegando um pouco de um investimento filosófico para pensar a educação, é o que ergue os seres, é o que forja os seres, é o que fundamenta a existência desses seres. Não esses seres datados, linkados meramente como uma materialidade ou como algo da ordem de um funcionamento biológico. Mas os seres como força de inscrição no tempo. Então a educação, de uma certa forma, é aquilo que nos possibilita vir a ser.

Tenho convicção de que a nossa condição perpassa por um investimento em educação, mas nos moldes de uma escolarização, de uma catequese, de

NAS ENCRUZILHADAS
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EDUCAÇÃO

uma espécie de aprisionamento existencial que não nos permite, talvez, ou que despotencializa, ou que, de certa forma, aquebranta essa força libertadora da educação como radical de vida.

O que eu estou querendo chamar a atenção é que isso que a gente chama de educação não precisa ser lido numa perspectiva maniqueísta de bem e mal, sendo algo bom, sendo algo ruim. Precisa ser lido como algo que está em disputa para a existência. E tendo em vista que essas existências serão lançadas num campo de batalha, que elas estão num campo de batalha, estão performando uma guerra, essa educação vai ser chave. A tese que eu venho constituindo, e que está muito presente em um livro que foi lançado no final do ano passado chamado “Vence-Demanda: educação e descolonização”, é a seguinte: a educação é uma folha, uma folha mesmo, pensem num vegetal, e aí eu vou dialogar um pouco com a poética e com a cosmogonia das experiências negro-africanas na diáspora, com a cultura dos terreiros, ela é uma folha que precisa ser cantada, ela precisa ter a sua espiritualidade invocada através da força da palavra, do efó, pra que essa folha seja encantada ou como remédio ou como veneno.

Então, é fundamental que a gente entenda a força de cantar essa folha, ou seja, cantar a educação, para que a gente possa tramá-la, praticála como cura, como trato dos nossos traumas, dos nossos problemas, das nossas dificuldades, dos nossos atravessamentos, mas que a gente possa também entender que ela é esse duplo e que esse veneno não pode ser usado contra nós, ele precisa ser soprado contra aqueles que, de uma certa forma, nos assombram.

Então vocês vejam que eu não tenho nenhuma leitura romântica acerca disso. Quando eu chamo a atenção que essa educação precisa ser soprada como veneno, eu estou chamando a atenção que a educação tem uma tarefa radical que talvez possa ser lida por nós em algumas esferas, eu falo isso no livro, como deseducação. Talvez a principal tarefa dela seja deseducar. Aí vocês vão me perguntar, porque eu sou um pedagogo de formação, que deseducar seja talvez uma contradição fenomenológica no processo educativo. Porque, como é que você desaprende? Uma criança me perguntou isso. Pô, eu não tenho como desaprender! Essa desaprendizagem opera como uma reivindicação política. Ela tem uma força política, uma força poética também. Quando eu digo desaprender, deseducar, eu não estou querendo anular uma experiência, não estou querendo

voltar atrás, não estou falando de um ponto de partida essencial. Eu estou falando que nós temos uma tarefa educativa diante da defesa da vida que vem sendo atacada historicamente, essa vida como esfera da diversidade, como esfera ecológica e que nós precisamos pensar a educação como uma espécie de drible, como uma espécie de desautorização e de reposicionamento do cânone. Daquelas narrativas, daquelas presenças, daqueles esforços e daquela crença e investimento na área do conhecimento que se quer como única saída.

Então é fundamental que isso que a gente vê até mesmo como o fim do mundo, vou parafrasear aqui o Ailton Krenak, que a gente vê como um desabamento do céu, fazendo menção também ao grande xamã Davi Kopenawa, na verdade parte de uma incapacidade nossa de pensar que esse mundo é inconcluso, é inacabado e que isso que a gente entende como crise, nos demanda uma resposta responsável, um compromisso ético, nos demanda um fazer. É como a reivindicação que o Paulo Freire fazia e que é muito conhecida, está presente no livro “Pedagogia da Esperança”, no qual ele faz uma crítica àqueles que o julgam um romântico, uma espécie de sonhador e de calçar essa esperança na ideia de algo que não se realiza. E ele fala: aqueles que me julgam querem desautorizar a minha força política, a minha capacidade de esperançar, porque eles são tão políticos quanto eu no esforço de fechar as possibilidades de intervenção no mundo. E aí ele diz: o mundo não é, o mundo está sendo. E esse “está sendo” implica na nossa capacidade de nos colocarmos nesse exercício de ser. E eu retorno ao diálogo com o Ailton Krenak, porque a gente precisa pensar esse lugar, esse ser-estar, esse exercitar o mundo não como algo meramente utilitário, mas como uma forma ecológica, uma forma de relação onde a vida possa prevalecer.

Para que a vida prevaleça é fundamental que a gente exercite um refazimento dessa condição de encarceramento existencial a que a gente está fadado, que vai desde essa hipertrofia de um certo humanism o, antropoceno que perpassa pelas contratualidades da raça, do racismo, do gênero, que passa por uma produção profunda do esquecimento dessas memórias, dessas tecnologias ancestrais que, de uma certa forma, nos permitem exercitar, sentir, porque o que estou falando aqui não está no campo da crença, está no campo sensorial, no campo da percepção corporal, de que o mundo é muito mais do que isso que está dado, do que isso que está posto.

NAS ENCRUZILHADAS
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EDUCAÇÃO NAS ENCRUZILHADAS

Então, a minha primeira fala com vocês vai muito nesse sentido de pensarmos a educação, de credibilizarmos a educação como algo que se lança como um duplo, e eu vou chamar esse duplo aqui de remédio-veneno, onde talvez ela tenha a função de cura. E essa função de cura tem muito a ver com uma lógica de confrontar e talvez despachar esse assombro, esse carrego colonial, que é uma categoria que eu vou trabalhar tanto no “Vence-Demanda” quanto no livro que eu fiz em parceria com o Luiz Antônio Simas, chamado “Flecha no tempo”. De uma certa forma, desobstruir essa condição aquebrantada em que estamos lançados. Então ela não é uma cura plena, ela é uma cura constante, ela perpassa por uma cura que é quase uma sabedoria xamânica, onde a cura demanda um mergulho profundo no trauma, demanda um reconhecimento profundo disso que está perfurado, disso que, de uma certa forma, foi alterado. E não retorna. O papo reto é esse: não retorna, não se refaz. A gente não volta a antes de 1500. Quem acha que a descolonização é viver como antes dos colonizadores chegarem está equivocado.

Mobilizada pelas reflexões produzidas coletivamente no curso de formação, Michelle Louise Guimarães fez o exercício de se aproximar das obras do acervo a partir delas. Este exercício estará presente ao longo de toda a publicação, sempre organizado no mesmo formato.

A descolonização não é um passe de mágica. A descolonização é um exercício contínuo de cissura dessa sangria desatada, dessa ferida aberta que não vai, não tenham ilusões, apagar a cicatriz. Não existe o destraumatizar. Não existe. O que existe é gerenciar isso, dar trato a isso, exercitar um cuidado. A cura vem no sentido do cuidado. Remanejar essa força vital existente nos nossos corpos, no nosso chão, nesses chãos profundos que nós pisamos na nossa terra, que refazem lugares de contingência, aldeia, de comunidade, enfim, daqueles que ainda e stão aqui conosco, circulando nesse tempo que não é linear, ele é espiralado.

E é fundamental que a gente entenda esse lugar da educação como um campo de batalha, como um veneno que a gente vira e mexe precisa soprar. Isso eu falo de cara com os meus estudantes do primeiro e segundo períodos, que é fundamental que a gente despache esse ideal salvacionista, de uma certa noção de milagre, chegada aos reinos dos céus, que a educação nos planta. A educação tem uma função de batalha cotidiana. Não é à toa que ela vai ser o lugar mais investido de blindagem, de despotencialização.

No dia em que nos encontramos com Luiz Rufino, a guerra entre Rússia e Ucrânia havia acabado de começar. O tema da guerra foi amplamente abordado por Rufino, não apenas a guerra militar, como também a guerra enquanto batalha cotidiana pela defesa da vida. Na obra de Csibak encontramos a mensagem escrita “Guerra não. Paz”. E é interessante que ele use formas abstratas, especialmente as circulares, para retratar esse “pedido”. Csibak nasceu na Hungria, um país próximo à Ucrânia e que já sofreu com muitos conflitos no século passado.

Istvan Csibak , Guerra não. Paz, 1995. Óleo sobre tela, 30 x 50 cm
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EDUCAÇÃO

Por isso que tem escola sem partido, tem lei da mordaça, por isso que tem criminalização de conteúdo, de pensamento livre. Tudo mistificado numa ideia de controle, de apaziguação, de regulação de parâmetro moral que, a rigor, faz com que a marcha esteja a favor de uma minoria desse país.

Então, a educação é esse lugar desse confronto, desse conflito. Que não necessariamente precisa ser um conflito de dominação. Aí que está o drible, o nó da questão. Como diria o Noel Rosa, o x do problema. É algo que se fundamenta no campo da responsabilidade para com o mundo. Isso eu acho que é fundamental. Isso está no cerne do problema filosófico da educação. A educação nos coloca o seguinte desafio: como eu r espondo ao outro com a minha própria vida? Diante de um contexto de guerra, de dominação, guerra colonial, onde a matança, a mortandade é uma lógica, essa mortandade não é só física, a questão vai se desdobrar, ela vai ser lançada da seguinte maneira: como eu respondo a um projeto de morte com vida? Então, vejam bem, a tarefa implica uma certa ação de guerrilha, um espírito de batalha, mas ela nos provoca uma atitude, uma utopia fundamentalmente amorosa, fundamentalmente banhada na ternura e na responsabilidade para com o outro.

Ou seja, educar é algo que se fundamenta na ética e nessa estética que compreende a existência humana e não humana, vamos chamar até mais que humana, essa é uma outra defesa que eu tenho feito, a educação se espraia, ela está além do humano, o que nos coloca num lugar de responsabilidade para com a vida. O que nós precisamos entender e é crucial de todo projeto educativo, seja escolar ou não, mas que perpassa a existência e que nesse mundo chamamos muitas vezes de cidadania, é o seguinte: de que maneira você responde? Como você responde ao ser interpelado dessa forma? Definitivamente, muita gente responde d e maneira não responsável. Porque você está fadado a responder. Não tem essa de não respondo, eu estou neutro, eu me omito. Não tem. Não rola. Responde. Você está condenado a responder ao outro com a sua própria vida. Agora, como você responde? De maneira responsável, ou não?

lá no início. Porque a pedagogia como uma ciência da educação, como uma filosofia da educação, como um exercício da prática educativa ela está implicada com esses atos. O lugar da pedagogia é, de fato, o lugar das ações pedagógicas, das ações educativas, das intervenções educativas, desse sentir-fazer-pensar, em cruzado, que tem como finalidade um ato responsável para com o outro. E esse ato responsável é sempre inconcluso, é sempre inacabado. Ele está se tecendo, ele não pára nunca. Essa é a cachaça da educação. Você não termina! Não tem essa de fazer, superei, resolvi. Não tem. Isso é caô. Isso é neurose judaico-cristã que quer um lugar de tranquilidade no reino do céu. Não existe. É exercício contínuo, vai até o fim da vida e depois desse ciclo, se a gente parte do princípio que as inúmeras experiências sociais interagem em diferentes planos, em diferentes tempos-espaços.

Isso está presente em tudo, em tudo. É de fato o manejo do ciclo vital. A educação emerge como pauta fundante da vida não meramente por um propósito de civilidade, mas por um propósito de condição existencial, de relação da vida. Então você vai pegar diferentes comunidades, por exemplo, os povos Huni Kuin do alto Rio Negro, a educação emerge para eles como uma esfera de relação entre as existências, entre a ecologia. Eles têm como escola, a floresta, como professoras, as plantas. Isso é fantástico, porque você tem as plantas professoras que ensinam aos humanos, aos ditos humanos, no nosso olhar e também às outras plantas, aos outros animais. Então ali o que existe é uma relação pró vida. Essa tomada da educação como uma experiência pró vida, aquilo que nos possibilita viver e tendo a vida como uma condição complexa mesmo, conflituosa, ambivalente, a educação é o que nos possibilita ess es arremates na condução da vida em relação com tantos outros.

Então, nós precisamos considerar que ao longo dos últimos tempos, dos últimos séculos, das últimas décadas, nós temos um projeto que reivindica a educação num lugar completamente irresponsável para com a vida enquanto diversidade. E talvez essa seja um pouco dessa força e dessa implicação de uma pedagogia que se quer radical, que é um termo que vocês usaram

Então quando a gente percebe que tem uma educação que é plasmada, enfocada, celebrada como um projeto pessoal de cada um, como um projeto individual, de formação, de inserção no mercado, a gente percebe o quão distantes nós estamos desse mundo e dessa vibração cósmica de algo que está fundamentalmente vinculado à vida na sua radicalidade. Essa reflexão que eu estou fazendo aqui, ela emerge no campo teórico, mas isso se concretiza na vida comum. É na vida comum, é no cotidiano que isso se expressa.

E daí eu acho que vem grande parte desses investimentos que estão

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presentes na reflexão acerca do encantamento, que está presente na reflexão acerca das encruzilhadas. A noção de encantamento como sendo de fato uma política que contraria esse sistema produtor de escassez, de esquecimento, de perda de potência, que nós vamos chamar de desencante, sistema de desencantamento de mundo. É curioso, vocês devem estar acompanhando o acontecimento que se deu aqui na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro 1 . Um acontecimento que implica inúmeros debates acerca do racismo ambiental, inúmeros debates acerca da saúde, dessa relação de vida, de bio interação, como diria Antônio Bispo dos Santos. Eu estava conversando ontem com um rapaz, um repórter que estava trabalhando na cobertura dessa tragédia e a gente comentava que lá no livro do Davi Kopenawa Yanomami, “A queda do céu”, ele traz uma imagem da cosmogonia yanomami que é essa capacidade que nós temos de abrir buracos no chão, de cavar, de quebrar as coisas. E quando a gente faz isso, às vezes a gente causa um efeito que é de desordenação, de desequilíbrio daquilo que de uma certa forma está em relação, não vou colocar que é ideal, mas está numa relação. Quando nós alteramos, isso tende a se desequilibrar. E essas forças que estão mobilizadas pra manter essa relação, elas se dispersam, elas podem provocar outras coisas.

Tem um diálogo muito interessante entre o Davi Kopenawa e o Ailton Krenak em que o Davi Kopenawa pergunta pro Ailton: os brancos são muitos? E o Ailton Krenak tem muita dificuldade em responder por que na cosmo-percepção dos yanomamis, qualquer coisa que não caiba na mão é muito. Aí o Ailton fala: são muitos. E o Davi pergunta: eles cabem na mão? Aí o Ailton fala assim: olha pro céu, você está vendo a quantidade de estrelas que tem? Eles estão tendo essa visão na aldeia yanomami.

E ele diz: os brancos são tantos quanto as estrelas no céu. E o Davi olha assustado e pergunta: e o que que eles comem? E o Ailton diz: eles comem tudo. Tudo? E o Ailton responde: tudo, comem montanhas, comem árvores, comem terra, comem rio, comem gente, comem bicho, comem tudo. Ou seja, é um esforço poético, para alcançar essa força de consumo.

E o Davi, assustado, pergunta assim: e onde que eles cagam? Onde eles defecam? Então, veja bem que essa conversa que chega num ponto que parece até curioso pra gente, mostra o desequilíbrio dessa dimensão de

1 Aqui, Rufino se refere à tragédia ocorrida em Petrópolis no dia 15 de fevereiro de 2022 causada pela grande quantidade de chuvas, na qual mais de 200 pessoas morreram, ao menos quatro ainda estão desaparecidas e mais de 1000 encontram-se desabrigadas.

condução, de trato da vida que, para nós, deveria estar implicado a uma responsabilidade. E a uma responsabilidade que perpassa um conhecimento profundo da existência que esbarra nessa diferença.

Então eu recorri aqui a um diálogo entre um krenak e um yanomami pra confrontar um pouco essa leitura de mundo que nós temos, essa centralidade de entendimento do mundo que nós temos. E que precisa ser confrontada. Precisa ser confrontada, por exemplo, por um conceito, por uma categoria como o encantamento que está presente em inúmeras cosmogonias, inúmeras culturas praticadas no Brasil, que formam uma grande esfera produtora de contracultura, de uma contranarrativa a essa dominação moderna ocidental que se quer monológica, que se quer linear, monoracional.

Então hoje o meu trabalho na educação, principalmente o meu trabalho como pesquisador, como alguém que tem produzido alguma coisa escrita e tem falado muito disso, tem sido basicamente pensar essa educação como uma esfera do vivo e como uma esfera do vivo que precisa ser cruzada por tantas outras referências de conhecimento para que, de uma certa forma, a gente possa produzir esse desencadeiramento do cânone, essa desaprendizagem que, na verdade, é o alargamento de outras experiências de aprendizagem. E que, de fato, a gente possa se comprometer com isso que vocês chamaram de uma pedagogia radical, eu acho bacana o nome, que no fundo, no fundo, pra mim, ela tem uma função principal.

A educação, a pedagogia, eu acredito que ela tem uma principal função aqui no mundo em que estamos, que é praticar uma descolonização. Essa descolonização não como sendo uma superação, uma ruptura, eu durmo colonizado, eu acordo descolonizado. Mas ela imprimir cotidianamente uma política pró vida. Essa política pró vida implica discutirmos o que é a vida. A vida que a gente está vivendo de fato é a vida que nós podemos experimentar? Então, eu acho que esse é o escopo que organiza, num primeiro momento, o que eu queria falar com vocês e aí acho que podemos partir para um bate bola, para uma troca, uma conversa e entrar nos assuntos que vocês tiverem interesse. Eu agradeço a oportunidade de fala e de escuta, de diálogo e me coloco à disposição para qualquer questão.

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Michelle Louise Guimarães – Pensando aqui a partir da perspectiva do
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MAOC, do Juquery de fato, porque o nosso acervo pertence ao Juquery e sua história, estamos muito mais próximos dessas instituições totais que podem dialogar com as escolas no sentido de regulação, de restrição desse elemento da vida das pessoas que estiveram aqui. O MAOC, ao mesmo tempo em que testemunha isso pelas obras, também fala muito de ampliação, até porque há também aqui uma história da escola, mas no sentido de escola de arte, de ateliê, aprendizagem de arte. Então eu

acho que a arte entra com esse papel.

Mesmo a arte, dependendo da forma como ela é colocada, pode ser usada apenas para dizer que um artista tem um sintoma, o que também é um caminho muito complicado de se ir. Mas mesmo assim, mesmo independente da visão desses médicos que estavam em volta dessas obras, a gente percebe a arte como uma forma de ampliação das possibilidades. E essa responsabilidade com a vida a gente também percebe nas relações das pessoas aqui dentro. Dos funcionários, dos pacientes. Essas relações são bem complexas e têm uma tensão, não são tão fáceis de se definir, de se explicar. Eu anotei aqui uma frase que o Rufino falou, acho que foi “seres como força de inscrição no tempo”. E me remete muito aos nossos artistas aqui. Como eles marcam esse tempo com as obras e com tudo que está presente nelas. Mesmo os internos que não produziram obras, a gente sabe que as marcas, que os vestígios dessas pessoas estão em tudo. Inclusive nas paredes desse hospital, tinha essa mão dos próprios internos na história do Juquery como espaço físico. Eu penso muito nisso, me remeteu às pessoas que estiveram aqui.

Rufino discorreu sobre a ideia da educação como restrição e regulação, e como libertação dos corpos e da vida. A artista Masayo retrata nesta obra uma escola, mas pelo lado externo, colocando-a próxima de uma grande árvore, o que pode dialogar com a ideia de “reconhecimento dos vestígios da vida”, apresentada por Rufino. Ubirajara representa prisões e outros

tipos de enclausuramento em suas obras. Mas, simultaneamente, também representa a liberdade através da imagem de um pássaro. As grades e os pássaros são símbolos que conversam com os temas apontados no encontro. Nesta obra ele desenha um grande pássaro com pequenos passarinhos embaixo de seu corpo, parecendo filhotes. Esta composição dialoga com a ideia de proteção e também de passagem contínua do tempo.

Luiz – E tem uma coisa Michelle, nisso da inscrição no tempo, que quando eu falo de escolarização, essa escolarização antecede o advento da escola na sociedade como a gente tem. Essa escolarização perpassa um projeto-mundo que implica uma dominação do ser, da existência e para dominar o ser, vai investir muitos esforços na dominação do saber e, principalmente, da linguagem. Então, veja bem, o projeto colonial, como um projeto de dominação não somente do território, mas dessas existências, não vai conseguir ser bem sucedido se não tiver um projeto escolarizante. E esse projeto escolarizante vai trabalhar em diferentes frentes. Em uma frente de violência material, corporal, mas vai trabalhar também em uma esfera de violência simbólica profunda, que vai desde a humilhação e que perpassa

Masayo Seta , Escola, 1989. Grafite e guache sobre papel, 45,9 x 61,8 cm Ubirajara Ferreira Braga, Liberdade, 1997. Acrílica, óleo e tinta de tecido sobre tela, 40 x 60 cm
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pela catequização. Catequizar é muito perverso do ponto de vista da existência, porque você catequiza e ensina uma língua com outro princípio explicativo de mundo. Te acessa a um entendimento do que é Deus e do que é o mundo e do que são os seres. Então, por exemplo, eu falei lá atrás do inferno, mas o inferno é uma categoria que às vezes não serve, dependendo da cultura, como não serve o pecado, mas os caras instauraram isso aqui e isso regula a nossa vida.

Então eu acho que é fundamental que a gente considere que esse projeto escolarizante, que é um projeto de dominação do ser-saber, vai, de uma certa maneira, alcançar esse domínio produzindo esquecimento. Porque só matar não resolve a questão. Não estou aqui diminuindo a esfera crime, do assassinato e a gente tá aqui falando de um mundo que se constituiu, como diria Aimé Césaire, num banco de almas. O que forjou o novo mundo, o que forjou a Europa como centro é a penhora de alma. É a aniquilação existencial. Você transformou a existência viva em moeda. O mundo como nós temos hoje foi financiado com uma moeda da existência. E não é só existência material, de transformar uma outra pessoa em objeto. Isso já é muito caro num projeto que se ergue no parâmetro da racialização, da escravidão moderna, que é o maior holocausto da história da humanidade. Mas isso é mais profundo porque está implicado em você capturar e aniquilar a existência. E você só consegue fazer isso produzindo esquecimento. Então tem que investir em esquecimento, tem que investir em destruição de mundo a um ponto que a gente desconhece profundamente.

popular, porque ninguém morre de quebranto. Dificilmente você va i encontrar alguém que morreu de quebranto. Mas o quebranto ele te míngua, ele te paralisa, ele te cristaliza. Ele faz com que você fique n uma cama, ele te tira a força vital. O quebranto é esse estado de perda de força, anestesia. O que é o contrário disso? Uma força estética profunda que remonte a inscrição desse ser no tempo. Isso vai ser feito, plasmado no plano estético obviamente, via arte, via inúmeras formas de produção.

Mas essas formas de produção são formas, no meu entendimento, de batalha. É o que eu falo lá na “Pedagogia das Encruzilhadas”: você está andando numa rua do Rio de Janeiro ou qualquer outro lugar do Brasil, tem numa esquina uma vela acesa, uma cachaça arriada, é sinal de que a guerra está se dando. Aí você fala: olha, uma manifestação de fé. É uma manifestação de fé. E o que mais? O que mais essa intervenção pode nos dizer? É uma guerra de mundos. É uma guerra de racionalidades. Quem pratica a encruzilhada de fato está atravessado por uma outra perspectiva-mundo que é completamente contrária a esse mundo linear que a gente tem, esse mundo em linha reta. Isso está posto o tempo todo. Esse contexto de guerra colonial está posto até os dias de hoje. Mesmo a gente sendo independente, sendo um Estado, isso está penetrado na nossa subjetividade, nas nossas esferas existenciais mais sensíveis, nos nossos corpos mais sensíveis.

Por exemplo, eu sou do Rio de Janeiro, sou natural daqui, a região que eu tô aqui é uma terra Tupinambá. Os tupinambás são povos que têm a guerra como uma forma de ritualização de vida. São povos que têm toda uma forma de explicação do mundo, outras relações com as coisas. Eu vou descer aqui, no pé do rio Maracanã e vou perguntar quem eram os tupinambás e dificilmente as pessoas vão saber me responder. Eu vou falar: isso aqui é um chão tupinambá, os caras saíam no pau com os tupiniquins e as pessoas não vão saber me responder. Mas eventualmente se você vai numa macumba e baixa o caboclo tupinambá, isso é como uma inscrição do ser no tempo. É uma forma de trazer de novo esse conflito. Eu morri, mas não morri, eu me refaço, eu reconto, eu retrato, reconstituo essa dimensão da batalha, porque a esfera do esquecimento é a aniquilação. É por isso que eu usei a ideia do quebranto, o conceito do quebranto. O quebranto, a rigor, é uma doença presente na gramática

Eu acho honestamente que o problema não está só com a instituição escolar como a gente tem. Porque essa instituição escolar vai ser cotidianamente tensionada com esses corpos. Com o corpo que vai para a encruzilhada. Com o corpo que viu o caboclo tupinambá dançando, ou com um corpo que está numa crença de promessa e tal. O conflito está dentro e fora. A questão está muito mais num campo existencial, num plano corporal, num plano performático como um plano dessas inscrições. E isso é incontrolável, porque você pode regular da forma que for, que isso vai explodir, vai vazar. Seja numa instituição de saúde, numa instituição educativa, seja num hospital, numa creche, num presídio, seja onde for. Seja no seio da própria família, na rua, isso vai explodir em algum canto. A questão é: o que que a gente faz com isso? Como que a gente lê isso? Essa sua fala, Michelle, nos convoca para uma reflexão mais profunda, essa é a questão, partindo do local, da concretude dessa experiência que você traz, você nos coloca diante de uma experiência mais profunda. Talvez essa experiência sirva pra gente pensar São Paulo, Brasil, tudo né?

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Michelle – Eu pensei um pouco assim… que na reforma psiquiátrica tem a questão da desinstitucionalização, que é uma temática muito presente e tem a ver com a história do Juquery. No Juquery mesmo, no ano passado saíram os últimos internos de longa duração que estavam internados compulsoriamente, então não tem mais esse tipo de internação aqui. E essa desinstitucionalização muitas vezes é vista por algumas pessoas como o fim do manicômio, que também passa por essa questão de não regular os corpos das pessoas em hospitais, inclusive pela vida inteira, que é isso que acontecia aqui. Mas o Paulo Amarante, que fala muito da reforma, de meios de entender a psiquiatria nesse contexto, ele trata muito sobre como também, na verdade, é uma desinstitucionalização do saber. Ele vai muito mais para a questão epistemológica. Do saber médico, que já é todo condicionado por ideias muito voltadas ao positivismo e que mesmo com a desinstitucionalização no sentido mais físico, ainda é muito forte. Então ele fala de que precisa de um passo além, trazer as questões desse saber médico, desse conhecimento médico, de como ele é formado. Então vai pra uma questão mais epistemológica.

E eu creio que nós percebemos, pelas obras dos artistas aqui, muito essa questão. São obras que analisam o mundo, a construção do mundo. Tanto que nós temos artistas que pensam muito sobre o cosmos, sobre o universo, retratam isso nas suas obras, mas de um ponto de vista, para algumas pessoas, muito sem lógica, apenas fruto de uma loucura. Mas eu acho que a gente já chegou num momento de ir além dessas dicotomias loucura-sanidade, razão-desrazão porque as coisas são muito mais um conflito. E a gente percebe isso, de como os nossos artistas fal am sobre o mundo ao redor deles, independentemente de falar de questões de saúde mental ou não. Eles falam sobre o mundo físico. A gente tem um artista, o Ubirajara, que inclusive discute as questões que muitas pessoas colocam como a arte dos loucos. Então ele fala da arte dos esquizofrênicos do ponto de vista dele, o que seria a arte dos esquizofrênicos. Já que muitos dizem que é arte patológica, arte bruta, ele está também pensando sobre esses termos que outros utilizam para as obras dele e faz a própria leitura disso. Então são exemplos daqui, principalmente para as outras pessoas que estão fazendo o curso e que talvez não conheçam tanto o nosso acervo do Juquery.

Joana – Eu fiquei com vontade de falar mais sobre essa questão da responsabilidade. A gente está aqui neste lugar, que é o MAOC, o Museu de Arte Osório César, que tem uma história fundamentada num hospital psiquiátrico. É dentro desse hospital que surge esse espaço, que é o espaço da arte, ou seja, ali existia uma responsabilidade e essa responsabilidade foi exercida, o que permitiu sair de uma certa relação que estava prevista. E eu fico me perguntando quais são as formas de captura dessas dimensões das relações, porque elas não estão nos prontuários, por exemplo. Isso é uma coisa que me interessa, tanto a produção da evidência de que a encruzilhada está acontecendo, de que ela está sendo exercida, quanto o lugar do reconhecimento do vestígio, que são dois lugares, claro que complementares, só que diferentes. E a gente pode exercer as duas coisas, claro, na nossa vida e como responsabilidade existencial. Tanto de produzir ou colaborar para a produção da evidência, quanto de reconhecer onde esses vestígios estão no mundo. O MAOC, eu acho que é um exemplo de como essas duas coisas estão sendo permanentemente exercidas. A produção da evidência, e o reconhecimento, porque senão o MAOC nem existiria, que é uma coisa que a gente conversou também, que ele é fruto dessa batalha, Luiz. É fruto desse exercício, do cuidado com esse acervo ao longo da história, e aqui a gente tem algumas pessoas que hoje são as guardiâs do acervo, a Michelle por exemplo, o Eli, a Dandara, o Matheus, a Dani, enfim, essa galera que está trabalhando hoje no MAOC e reconhecendo a importância do vestígio da vida que estava ali. Isso é uma super responsabilidade! É a história de onde a vida está sendo batalhada. É o que você está dizendo, que temos que ser guardiâs dessas constelações. E esse é um treinamento, porque é um treino, é uma aprendizagem desse lugar de como a gente aprende e ensina tanto a produzir a evidência, quanto a reconhecer os vestígios. E essa é definitivamente uma forma de pedagogia radical.

Luiz - Tem uma coisa que vou trazer Joana, pra gente pensar um pouco na questão da encruzilhada. A encruzilhada tem sido debatida na literatura brasileira, principalmente nas Ciências Humanas, como conceito, tem a professora Leila Maria Martins que trabalha com a ideia de encruzilhada muito vinculada à dinâmica da cultura afro-brasileira. E como eu trabalho, eu recorro ao conceito da encruzilhada na cosmogonia iorubá, que está presente no Brasil, nesse translado negro-africano, muito na cultura dos terreiros, do candomblé, do que se chama de poética de Ifá,

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que está plasmada no cotidiano. E há uma interação com essa ideia da encruzilhada, por exemplo, nas umbandas, no samba, nessa dimensão do corpo, da rua, do cotidiano. Porque a rigor, a encruzilhada, do ponto de vista da sua materialidade, ela é um entroncamento de caminho. Não é necessariamente aquela cruz, mas é toda esquina, toda curvatura, todo entroncamento de caminho.

Tem um mito, tem uma narrativa mítica que diz como o Exu ganha o poder das encruzilhadas. Entre uma das qualidades, das faces do Exu, tem uma que se chama obaoritamitá, o senhor da encruzilhada de três caminhos ou o senhor do terceiro caminho. A narrativa conta como Exu ganhou esse poder. Basicamente, resumindo, diz que Exu foi um dia na casa de Obatalá que estava muito implicado, fazendo os humanos, forjando Adjalá, o senhor que faz a cabeça, molda a cabeça dos humanos. E na casa de Obatalá ia muita gente e toda hora ele era interrompido e ele queria trabalhar, ele precisava fazer essas cabeças. E o povo toda hora enchendo o saco dele lá. E Exu chegou como aquela visita que não atrapalha. Ficou ali quieto, não deu trabalho, observou, observou, observou e começou a organizar as coisas. As pessoas vinham à casa de Obatalá e Exu ia e falava: Não, ele não está podendo atender agora, deixa ali o que você trouxe, depois eu converso. E Obatalá um dia começou a perceber que aquela dimensão de organização estava sendo muito proveitosa pra ele.

Esse é um ponto caro, abrindo um parêntese aqui. Por exemplo, na nossa narrativa, na nossa leitura de mundo brasileira, afro-brasileira, afrolatinoamericana, podemos chamar assim também, Exu aparece muito como um princípio da transgressão. Transgressão porque aqui a ordenação é imposta por um sistema anti Exu. A lógica de dominação é posta por um sistema anti Exu. Então Exu aparece muito como um princípio da transgressão. Mas Exu é um princípio duplo. Ele é a ordem-desordem, a desordem-ordem. Na cosmogonia iorubá, ele está muito ligado a um princípio da regulação. Tanto que Exu é responsável por fiscaliz ar as relações. Então Exu, para os iorubás, fundamenta uma ética. Então, veja bem, esse cara que vai ser transgressor aqui, ele é porque você tem um mundo que está sendo solapado. Os caras falam assim: só isso aqui que cabe. É um padrão monológico, linear. Aí ele fala: então eu vou transgredir, vou fazer outro caminho. E é por isso que ele vai ser demonizado. Porque ele é esse cara que instaura essa dimensão ética

da relação, que a gente chamaria de uma ética responsiva na filo sofia, porém ele traz um ponto que é fundamental pra gente. Ele fala assim: nada está acabado, nada está concluído. As relações são aquilo que vão determinar a continuidade, o a seguir. Então Exu coloca pra nós, isso é muito presente na nossa condição, o poder de realização das coisas, seja para o que for bom, ou o que for ruim. E com o poder de realização, também o poder de nos responsabilizarmos pelas coisas. Essa é uma discussão que eu adorava fazer com os meus estudantes quando eu dava aula de filosofia da educação. Tem muita gente que pensa responsa bilidade como cumprimento de regra, como obrigação. Responsabilidade não é isso. Eu pegava estudantes muito jovens que achavam que responsabilidade era ele ter que arrumar a cama, ele ter que pagar a própria passagem dele, ter que trabalhar e estudar. Não é isso. Responsabilidade é algo que está vinculado à sua relação com o outro. Então é uma via dupla. É um trato cotidiano. É algo que se mensura na dimensão do cuidado, mas é um cuidado extremamente conflituoso.

Voltando ao mito de Exu, Obatalá vê que Exu organiza ali a parada e diz: Cara, eu vou te dar então um presente. Eu reconheço a ajuda que você me deu e vou te dar um lugar pra você morar, você vai morar na encruzilhada, que estava posta na entrada do palácio de Obatalá. E tudo o que o povo vier trazer pra mim, você pode tirar parte pra você. São os ebós. Então Exu vai cumprindo faces que vão interagindo o tempo todo. Ele também é o carreiro do ebó. Exuelebó, aquele que carrega o ebó, que tira o ebó pra si, como o grande dinamizador das coisas. Esse mito é interessante porque Exu, o tempo que ele fica na casa de Obata lá, ele aprende de tudo, ele conhece de tudo, ele observa tudo.

Então a encruzilhada, a rigor, é esse lugar onde nós estamos vinculados a uma condenação da relação, do vir a ser, do devir, mas é também um lugar onde tudo pode acontecer, tudo pode se passar. E tudo potencialmente se transforma porque a encruzilhada é um lugar da alteração. É a alteridade na sua radicalidade, na sua força maior. Então quando eu vou à encruzilhada, eu não vou buscando algo que eu quero, porque o que eu quero está vinculado diretamente com a relação com o outro. Então, o que eu quero pode ser mudado. A encruzilhada, a rigor, é a abertura de caminho. É onde, na verdade, você está disponível para o imprevisível. Aquilo que o filósofo Heráclito chamou a atenção, é o que o Exu está chamando a atenção. Esperar o inesperado, é o que se dá na encruzilhada.

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Agora, veja bem, esse conceito, “exuzíaco”, é muito difícil para um mundo que tem muita dificuldade em trabalhar com o imprevisível, com o inesperado, com o múltiplo, com a relação com o diferente. Tudo isso que Exu está ensinando é contrário ao projeto do novo mundo, o projeto moderno, ocidental, colonial. Por isso que Exu vai ser demonizado. Eu tenho defendido uma tese que é a seguinte: Exu não é transformado em demônio por ignorância. Talvez a ignorância seja uma parcela mínima. Mas pelo contrário, é por uma noção sofisticadíssima de como ele contraria aquele projeto que se quer único. Agora, as pessoas que entendem Exu, que praticam Exu na sua integralidade, elas compreendem isso e vão falar: cara, eu tô lascado, eu tô ferrado, mas é ali que eu vou recorrer. Então essa dimensão mais precária, também mais inventiva do cotidiano, ela é transformadora. É aquele que tá fora: é o louco, é a criança, é o ladrão, é a puta. Vou usar as palavras do imaginário. É o mendigo, o andarilho, é o vagabundo, é o malandro, é o que joga o corpo pra jogo, é o que é deseducado, é imoral. Tudo isso, de uma certa forma, no Brasil, é redimensionado nesse signo. Agora, se juntar esse povo da rua, que é o termo, a categoria guarda-chuva que entende Exu, principalmente nas umbandas, nas macumbas, o que que ele está querendo nos dizer?

É isso o que a Michelle estava chamando a atenção. Tem um problema de ordem político-epistemológica. Eu acho que o grande perigo é você trabalhar com a encruzilhada como um signo, uma metáfora pra diversidade somente, para uma espécie de inclusão. É um problema. Como uma espécie de multiculturalismo. A encruzilhada traz esse conflito político epistemológico. Porque a razão que nos governa, a Michelle falou muito bem sobre a questão da medicina, do positivismo, é cartesiana, é monolinear. Ela está prometendo o progresso, o futuro. Ninguém olha para a contradição, a ambivalência. Ninguém quer se relacionar com aquilo que é indesejável, mesmo sabendo que aquilo vai existir e vai permanecer existindo. E isso faz com que, por exemplo, a rua seja um lugar muito atrativo, porque nos coloca nesse lugar de desregra mesmo, vou sair um pouco dessa amarra do domicílio, do privado, vou pro carnaval, aí dá até um certo tesão, corporal mesmo, caraca, eu vou ali comprar um cigarro e vou voltar daqui a três dias, sei lá como (risos), em que condições. Agora, o que é esse diabo rodopiando no meio da rua, como diria o Noel Rosa, que faz com que as coisas se redimensionem?

Esse lugar da encruzilhada, eu acho ele fantástico porque, por exemplo, para os desvalidos da sorte, os precarizados do mundo, os marginais, existe também um lugar de reivindicação de inscrição nesse chão de memórias e gramáticas que estão sendo reguladas sob o esquecimento. Então, por exemplo, você pega a produção do Bispo do Rosário, ela é uma produção de invocação espiritual, quero dizer que tem a invocação de outras narrativas ali, que vão dialogar com uma porrada de coisas, inclusive com um pensamento complexo acerca de outros referenciais cosmológicos. Teve uma escola de samba aqui no Rio, a Unidos do Cubango que fez um enredo sobre o Bispo do Rosário e depois fez um enredo sobre os objetos, sobre a espiritualidade 2 dos objetos, os dois enredos dialogam muito bem, é isso, que manto é esse, que é encarnado de força, de vibração, que não precisa nem ter um corpo pra se sustentar porque está dotado de coisas que baixam, que são imantadas. Se você for na cultura dos Xikrins, na própria cultura iorubá, é uma porrada de experiência-mundo que dialoga com isso, você fala pô, esse cara de maluco não tem nada, ele está escarafunchando a gramática, mas não cabe, não cabe. Então, é importante, eu acho, essa sensibilidade de que esses elementos, no fundo, estão nos convocando a um grande giro enunciativo.

Eu acho que essa é a questão, voltando à questão que a Michelle trouxe, da inscrição do ser no tempo. São essas várias possibilidades de discursar, de narrar acerca de si, do outro e desses mundos que estão em desabamento, mas eles não deixaram de existir, eles estão aí.

Elielton Ribeiro – Durante a graduação de História da Arte na Unifesp, eu tive uma professora, a Carolin Overhoff Ferreira, que estudou muito o Bispo pensando o terceiro espaço na História da Arte, que seria esse caminho do meio, seria como pensar essa produção não só dentro da história da arte, não só dentro da área da saúde, mas a partir de um pensamento decolonial. Por isso que ela explorou um pouco a capa de Exu para entender o Bispo para além desses espaços. Essas obras são vestígios de algo que não era esperado num hospital psiquiátrico, é uma arte que vai sendo criada e se torna uma resistência ao ambiente.

2 Aqui Rufino se refere aos mantos-obras produzidos por Bispo do Rosário.

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EDUCAÇÃO

Luiz – Eu não sei se essa professora trabalha com essa referência, mas tem um cara que trabalha inclusive com um debate sobre a arte, sobre a literatura, que é um pensador indiano chamado Homi Bhabha, ele conceitua a noção de terceiro espaço e de entrelugar. Que é de fato um não lugar, é um não ajuste. É curioso, que se a gente pega Exu, ele se manifesta na sua força cósmica como o mais um. Tanto que o número de excelência de Exu é três. Porque esse três, na verdade, configura a ideia do mais um, é sempre aquele que pode se somar a algo. Na medida em que ele se soma, ele torna esse negócio inconcluso, porque Exu dá o acabamento das coisas. Exu, na cosmogonia iorubá, ele é o princípio dinâmico de tudo. Não existe nenhuma possibilidade de que algo aconteça, venha a acontecer ou se desfazer, sem que exista Exu. É tão complexo que Exu, por exemplo, fala na boca do presidente do Brasil. Como está falando na minha boca agora. Fala na boca de todo mundo. Exu está em tudo. O grande problema é que, de fato, ele coloca esse grande poder de realização nesse poder de auto responsabilidade.

Lá na “Pedagogia das Encruzilhadas”, tem o conceito de cruzo, como algo mais vinculado a uma noção de rasura, de zona de limite. Em um mundo como o nosso, que é um mundo obcecado na dicotomia, no binarismo, isso é muito difícil. É muito difícil aceitar esse elemento terceiro que faz com que as coisas se transformem, que faz com que a gente invente um monte de coisa, invente formas de terapia, formas de cura, formas de trato da vida, de festividade. O samba, por exemplo, é um elemento que está sendo evidenciado nesse terceiro lugar, na síncope. Por isso as pessoas não sabem sambar. Porque é uma inteligência advinda dessa experiência corporal de ocupação do vazio. Só se ocupa o vazio com o corpo livre para criar. Esse corpo regulado vai ter dificuldade, vai ficar sempre num tom ou num outro. Para criar no vazio, tem que ter esse corpo explodindo. Então é esse corpo do Bispo, da Estamira, é o corpo do capoeira, é o corpo da mulher, é o corpo da criança, que inventa, que brinca, que traz essa dimensão inventiva e lúdica pra vida que é tão escassa.

para continuar essa conversa com vocês, seja por esse formato, seja por um formato de contato mesmo, por email, por rede social, o que vocês acharem interessante. Basicamente, tudo o que eu falei aqui tá produzido, tá escrito também, vocês têm acesso. Então fiquem à v ontade. Eu fiquei muito feliz com esse encontro, com essa manhã.

Na verdade, uma vida como a nossa, no fundo, no fundo, ela é escassa de poesia. Esse sistema mundo anti Exu, contra esse elemento terceiro, é completamente anti poesia. Bem, eu tô com as minhas crianças aqui, meus Exus, que precisam ir pra escola e eu preciso arrumá-las. Eu queria dizer que agradeço muito essa oportunidade de conversa, realmente o tempo voa, é muito assunto, é muita prosa e eu me coloco disponível

NAS ENCRUZILHADAS
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CADERNO DE ESTRATÉGIAS E PERCURSOS

Este caderno reúne algumas estratégias criadas pelo Grupo Contrafilé em sua trajetória dentro e fora de museus e espaços culturais, assim como os percursos elaborados em duplas ou trios, pelas pessoas que participaram do Curso de Formação de Educadories do MAOC. Sistematizando-as nessa publicação, objetiva-se não criar modelos a serem seguidos, mas inspirar educadories de museus, escolas ou de outros espaços de educação não formal a trabalharem de forma integrada com o campo da arte, da cultura e das questões que atravessam cotidianamente a todes nós.

CADEIRA-CORPO

Por Grupo Contrafilé Foto: Cibele Lucena / acervo Gupo Contrafilé

A primeira vez que experimentamos esta atividade foi em 2005, em um processo criativo e colaborativo desenvolvido em Campinas. O processo durou alguns meses. Foram vários exercícios de investigação -ação: quando o estudar e o investigar se fazem em ação, com os corpos em risco no encontro com a cidade.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.

Criar um processo de escuta no e do grupo. Mapear questões importantes para cada participante, que podem ser agrupadas, aproximadas, compondo uma cartografia do grupo e de seus interesses e afetos;

Para nós, esse modo ativo de investigar é também um modo de ensinar e aprender, de instaurar processos educativos nos quais nos implicamos verdadeiramente. Portanto, não se trata de estudar um território enquanto “objeto de pesquisa separado de nós” mas, ao contrário, de impulsionar escutas e mapeamentos no trânsito entre o território urbano e o território do nosso corpo. Porque nosso corpo também é experimentado e escutado enquanto território. Nessa estratégia, mapeamos questões vividas pelas pessoas que participam de um processo conosco em seu encontro cotidiano com a cidade, e essas questões tornam-se chaves para uma investigação coletiva: os medos, o tempo, os fluxos, as tensões…

2.

Ler em voz alta esses campos de interesse, as questões que foram levantadas e reconhecidas;

3.

Depois dessa primeira coleta, saímos pelas ruas, cada participante com uma cadeira em mãos, buscando situações reveladoras dessas chaves de investigação: onde e como as urgências que mapeamos se expressam nas ruas, nos corpos, nos gestos, no mobiliário urbano, na natureza ainda presente na cidade etc.? Cada vez que alguém do grupo reconhece uma urgência espelhada no espaço, faz o convite para que todo o restante posicione ali a sua cadeira, criando uma pequena intervenção-assembleia-nômade.

4.

Sair da sala de aula (a atividade pode também acontecer dentro da escola ou instituição de referência, se ela for um importante território de investigação para o grupo) carregando cadeiras ou bancos;

É importante que nessa saída o grupo não recorra à fala ou à conversa enquanto caminha. Caminhar em silêncio. Cada pessoa procurando perceber, a partir da escuta das sensações que advêm do próprio corpo, e do olhar atento à paisagem, onde e como as urgências se manifestam;

5.

Nesse exercício, portanto, ao mesmo tempo em que as cadeiras se acumulam em determinado lugar, movimentando e mobilizando todo o corpo, gerando tensão, atrito, dando passagem à performatização dos afetos, uma intervenção urbana acontece.

6.

Cada participante deve propor ao menos uma pausa. Ou seja: cada vez que alguém do grupo encontra na cidade (ou na escola, ou na instituição de referência para o grupo) uma situação potente ou reveladora, convida o restante do grupo para sentar e observar aquilo que foi percebido. Neste momento, o grupo sai do estado de concentração e silêncio e estabelece uma conversa, uma troca, um debate;

O percurso dura o tempo que for preciso. Pode tanto ser determinado à priori, como ser medido pelas próprias necessidades do grupo. O importante é que cada uma e cada um, tenha a oportunidade de exercitar a conexão entre uma urgência e sua expressão em uma cena/objeto/situação da realidade.

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A MESA-LOUSA

Foto: Julio Kohl

Temos pensado bastante nos últimos tempos e tentado praticar “o falar e o escutar como arte”, que tem a ver com entender o lugar de fala e de escuta como obra. A partir disso, propomos produzir espaços-dispositivos de conversa que tornem visível a possibilidade do encontro de sensações e percepções.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.

A atividade consiste, então, em lançar graficamente em uma mesa- lousa coletiva (uma mesa que é lousa, uma lousa que é de todas as pessoas) os pensamentos e perguntas que nascem das relações estabelecidas a partir do encontro, seja com um testemunho, ou com uma exposição visitada, ou com qualquer situação estudada pelo grupo em questão. A mesa-lousa se torna um espaço no qual é possível ritualizar a fala e a escuta a partir da anotação em tempo real daquilo que está sendo descoberto e ficando mais forte para cada participante. O que resulta disso é uma anotação que imageticamente quer corresponder a um grande caderno-cérebro coletivo.

2.

No centro de uma mesa- lousa, escreva a pergunta a ser trabalhada pelo grupo, a partir do encontro com uma pessoa-testemunho, com uma situação, com uma exposição etc. Essa pergunta deve estar baseada em algo que precisa ser pensado coletivamente a partir desse encontro;

A educadora ou educador, lê a pergunta em voz alta e convida o grupo a pensar sobre ela por alguns minutos. A mesa- lousa é lugar para a troca de incertezas, vivências, conflitos e histórias. Assim, não existe certo ou errado. Uma pergunta colocada no centro dela não é sequer algo que precisa ser respondido, mas sim a abertura de um campo de produção comum de conhecimento;

A mesa- lousa é um dispositivo de encontro criado em 2016 pelo Grupo Contrafilé a partir do contato com estudantes secundaristas de luta que, ao ocupar as suas escolas e tratar a educação como campo vivo, subverteram as relações, os espaços, os objetos e seus usos. Objetivamente, trata-se de uma mesa pintada com tinta de lousa, sobre a qual o giz e o direito de escrever o que se pensa, o que se ensina e aprende, se encontra disponível a qualquer pessoa que senta ao seu redor.

3.

Inicia-se uma rodada de escuta e/ou de encontro com uma determinada situação. Enquanto uma pessoa fala, todas as outras escutam. As que escutam não falam, mas registram sobre a mesa as ideias, sensações e aprendizagens que cada testemunho suscita, usando o giz disponível. Se o encontro com uma determinada situação e a rodada de escuta dos testemunhos de um grupo, a partir disso, não couberem em um mesmo dia, é possível dividir em dois momentos, ou realizar com o grupo apenas um dos momentos.

4.

Ao final, o grupo levanta e lê os registros gráficos produzidos pelo coletivo. Pode -se tirar daí eixos, vetores e novas perguntas. Pode- se abrir uma nova conversa. Pode- se pensar em ações, projetos e novas atividades. Abre-se sobre a mesa um campo de possibilidades. Existem muitos modos de realizar mesas- lousas, muitos motivos pelos quais realizá-las e muitos nomes que podemos atribuir a elas. A seguir, na atividade que nomeamos “Palavras engasgadas, mastigadas, engolidas...”, damos um exemplo de uma mesa- lousa mais detalhada, vivida a partir de um contexto específico.

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PALAVRAS MASTIGADAS, ENGASGADAS, ENGOLIDAS…

Foto: Camila Piccolo

Criada em 2005 pelo Grupo Contrafilé, a Assembleia Pública de Olhares é uma prática estético- político- pedagógica em que se abrem, de maneira performática e pública, problemas sociais que nos atravessam e perturbam. Para nós, é importante usar a palavra “assembleia” para nos referir a essas ações, já que esse importante lugar de representação política, é muitas vezes tomado por palavras vazias e desconectadas tanto dos corpos que as ouvem, quanto dos corpos que as pronunciam.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.

Embora a atividade possa ter muitas formas, aqui propomos uma delas, que acontece como um banquete 1 . Uma mesa deve ser forrada com papel kraft e posta para receber, ao mesmo tempo, uma refeição e registros de uma conversa: canetões, pratos, talheres, tudo junto e misturado.

Prepare o ambiente de trabalho: forre uma mesa com papel kraft e disponha sobre ela pratos, talheres e canetões; em uma outra mesa, disponha alguns alimentos que servirão de recheio para tapiocas ou sanduíches – abacates, cenouras, alfaces etc.; se tiver a oportunidade de usar uma frigideira e um fogão, opte por tapiocas. Se não, podem ser usados pães de forma frios;

2.

Em outra mesa são dispostos ingredientes para serem manipulados. Enquanto os alimentos são preparados, inicia-se uma conversa sobre a urgência de pronunciar certas palavras, sobre esvaziamentos de sentido atuais e históricos, apagamentos, distorções, afonias, rouquidões.

O grupo é convidado a preparar os recheios (lavar e cortar frutas, verduras e legumes) e, simultaneamente, a pensar em palavras e ações que gostaria de fazer com elas, e por quê. Por exemplo: “mastigar a palavra resistência”; “engolir a palavra corpo” etc;

3.

Nossa provocação visa que cada participante descubra as palavras que, naquele momento, precisa mastigar, triturar, mascar, engolir, vomitar, eliminar, engasgar etc. Servimos a mesa e sentamos juntes para comer palavras, ouvir sabores, regurgitar horrores, e por aí afora.

4.

Um subgrupo pode se responsabilizar pela produção da tinta vermelha de beterraba: bater as beterrabas descascadas no liquidificador com água, espremer o líquido em um pano e depois coar;

O gesto compartilhado de manusear alimentos e palavras cria um tempo e uma intimidade importantes para que a conversa aconteça com inteireza e profundidade. Cada participante pode escutar diversas histórias por trás das palavras e, ao mesmo tempo, estabelecer coletivamente relações entre elas.

Com a tinta pronta e os alimentos picados, cada pessoa vai montar sua refeição, escrevendo com a tinta vermelha na parte externa da tapioca (ou do pão) a palavra escolhida;

5.

À mesa forrada com kraft, o grupo senta para comer. As canetas ficam disponíveis. Cada participante fala qual palavra e ação escolheu e seus “porquês”, enquanto as pessoas que escutam fazem suas anotações no papel kraft. Os depoimentos inspiram, então, uma conversa crítica sobre as palavras, os sentidos, ausências, enquanto elas vão sendo devoradas.

1 Essa atividade foi realizada em 2016 na Casa do Povo, São Paulo, no contexto do programa Performando Oposições e em conjunto com as artistas- cozinheiras Joseane Jorge e Silvia Herval, integrantes da dupla Cozinha Kombinada.
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DENTRO E FORA DO MUSEU

Foto: Cibele Lucena / acervo Gupo Contrafilé

Durante alguns anos conduzimos um curso de formação no Museu de Arte Moderna de São Paulo em parceria com a Derdic 2 , uma escola bilíngue para pessoas surdas. A escola fica localizada próxima ao Parque do Ibirapuera e era muito comum que estudantes frequentassem espontaneamente o museu, mesmo que ainda não existissem educadories fluentes em língua brasileira de sinais para lhes receber. Foi essa juventude surda, no exercício de seu direito à cidade que, ao entrar no museu, foi a maior responsável pela criação do curso Aprender para Ensinar . Em linhas gerais, o curso tinha como objetivo formar jovens surdes para receber o público surde nas exposições em cartaz no MAM. E nós aceitamos o desafio de dar corpo ao projeto, elaborando um curso destinado inicialmente à Derdic e posteriormente aberto à comunidade surda de modo geral. Durante os seus oito anos de existência (2002–2010) o curso foi um laboratório para a criação de estratégias de mediação, intervenções e mobilizações na escola, na comunidade, no museu e na cidade, operando a partir do que denominamos potência surda. Dentro e fora do museu foi uma das estratégias criadas nesse contexto, na qual fazíamos o percurso escola-museu com o grupo, carregando papéis, lápis e outras ferramentas de observação e registro. A caminhada podia ser, então, experimentada de modo lento e criativo: observar, desenhar, conversar. O percurso se tornava uma forma de encontrar no mundo os elementos que interessavam a cada participante e ao grupo.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.

Na escola: organizar o grupo em subgrupos. Distribuir um conjunto de materiais de registro: papéis acima de 100g e pranchetas ou cadernos de desenho, lápis 6B, carvão, canetas com diferentes pontas, lápis de cor, lupas, entre muitos outros possíveis; desafiar os participantes a caminhar devagar e em silêncio, observando atentamente o trajeto até o museu;

2.

No percurso: ir fazendo paradas, lançando perguntas mobilizadoras, estimulando a observação da cidade com “outros olhos”, a “olhar o próprio olhar”, a olhar para baixo, para cima, para detalhes, fluxos, movimentos, para o grande e o pequeno, para as sensações corporais e impressões etc. Dar tempo para que, em grupos, possam conversar, trocar e registrar (com desenhos, palavras e mapas) o que lhes chamou a atenção;

3.

No museu: adentrar a exposição procurando identificar livremente nas obras aquilo que do mundo interessou cada artista. O que as obras contam sobre o mundo e, com isso, sobre as escolhas e percursos de artistas?

4.

Fechamento: em roda, com o grupo todo reunido, conversar sobre as relações que podem ser estabelecidas entre a experiência vivida na cidade e as obras da exposição. De que modos o mundo entra nas obras? O museu como parte do mundo e não um cubo branco…

Ao chegar no museu, tínhamos o corpo aquecido e o olhar atento. E o desafio passava a ser observar as obras expostas e encontrar nelas o que do mundo interessava a cada artista, à luz do que havíamos observado no percurso escola-museu. E na exposição, o que cada artista transforma em obra? Existe, então, nesta atividade, uma investigação dos gestos e percursos artísticos.

2 A Derdic (Escola Especial da Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação) é uma unidade mantida pela Fundação São Paulo e vinculada academicamente à PUC-SP que atua na educação de surdos e no atendimento clínico a pessoas com alterações de audição, voz e linguagem. Sem fins lucrativos, o trabalho institucional prioriza famílias economicamente desfavorecidas e beneficia pessoas de todas as faixas etárias.

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A ARTE DE FAZER PERGUNTAS

Essa estratégia, de um modo muito simples, encoraja o grupo participante a não ter medo das suas verdadeiras dúvidas e curiosidades diante das obras de uma exposição. Permitir-se a dúvida e autorizar-se perguntar dentro do espaço do museu, esse lugar muitas vezes imponente e distante da experiência cotidiana - onde muitas vezes não podemos tocar em nada, correr, falar alto ou brincar - é algo fundamental para que ele se torne um espaço mais democrático e público.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.

Acolhimento: receber o grupo (dentro ou fora do museu) e estabelecer uma primeira conversa de apresentação do museu (que museu é esse?), do grupo (de onde vem, que percurso fez até o museu?) e educadories;

2.

Separar o grupo em duplas e entregar para cada uma delas alguns canetões e um conjunto de cartolinas cortadas em formato de tarjetas;

3.

Convidar as duplas a andar livremente pela exposição e a partir do que chamar atenção, criarem perguntas. A regra é: pode-se criar qualquer pergunta, todas são bem vindas, até as que pareçam muito simples, óbvias ou que aparentemente “não tenham nada a ver”. Determinar um tempo para essa fruição;

4.

Depois de criadas as perguntas, as duplas devem procurar as respostas - para isso, podem conversar com qualquer pessoa que estiver no museu, visitando ou trabalhando, adulta ou criança;

5.

Abrir uma roda com todo o grupo, dispor no centro da roda todas as tarjetas para que as perguntas fiquem visíveis, e conversar sobre as perguntas formuladas e as respostas encontradas. Neste momento, é importante fazer uma amarração da experiência que as duplas tiveram, perceber aproximações e conexões entre as dúvidas e curiosidades que apareceram, comentar as respostas encontradas e avaliar coletivamente os aprendizados que a vivência produziu.

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MEMÓRIA E INFÂNCIA - CHEIROS E SABORES, BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS

Camila Costa - professora do fundamental 2 e ensino médio; Cíntia Barbosa - professora de educação infantil; Daniele Senarioeducadora do MAOC. O percurso aqui apresentado surgiu em uma visita que nós, Camila e Cíntia, fizemos ao museu, quando fomos recebidas por Daniele. A partir da experiência de fruição que tivemos na exposição de longa duração do MAOC, Há luz atrás dos muros, com curadoria de Pedro Quintanilha e Hélio Menezes, o fio puxado foi o da memória, temática muito presente no acervo, em especial nos trabalhos de artistas japoneses.

Por Camila Costa, Cíntia Barbosa e Daniele Senario

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

Ioitiro Akaba , Joaquin Soe (sem data), óleo sobre papel, 32,2 x 46,3 cm.

Algumas obras do acervo remetem especificamente a memórias de infância, como esta pintura de Ioitiro Akaba, que participou da primeira fase de produção artística do Juquery, durante a existência da ELAP (Escola Livre de Artes Plásticas) que funcionou mais ou menos entre 1940 e 1970. A imagem da família ao redor da mesa nos leva a pensar na comida como uma prática afetiva e cultural, que marca nossas infâncias. E esse resgate da infância expresso nas obras, nos mostra a potência do tema para trabalhar com grupos de crianças e adultos.

Pergunta provocadora:

1.
Qual prato não pode
ou não podia
faltar
no almoço de domingo?
33

2.

Etuko Matuda tem no acervo dois trabalhos nos quais apresenta elementos da culinária. As obras nos lembram cartas, listas de compras ou possíveis receitas tradicionais do Japão. Em uma delas vemos detalhes, como a marca do sal, a lata de óleo, que nos remetem ao modo de preparo de uma comida importante, registrado cuidadosamente para ser passado adiante.

Etuko Matuda , sem título (1987),
grafite e hidrocor sobre papel, 32,5 x 44,9 cm
Etuko Matuda, sem título (1987), grafite, hidrocor e lápis de cor sobre papel, 32,5 x
44,9
cm
Pergunta provocadora: Tem algum cheiro ou sabor de que gosta muito ou que marcou a sua infância? 34

3.

Em Masayo Seta a memória é um eixo, seja na representação da figura de seu pai ou em recorrentes releituras que ela faz de suas próprias obras. Na obra escolhida para este percurso aparece uma figura, possivelmente um autorretrato, fazendo passos de dança, como uma coreografia, em meio a grafismos japoneses que registram a canção infantil Yuyake Koyake , muito popular do Japão, que fala sobre voltar para casa:

O pôr do sol é o fim do dia

O sino do templo da montanha toca

De mãos dadas vamos voltar para casa junto com os corvos

Depois que as crianças estão de volta em casa

Uma lua grande e redonda brilha Quando os pássaros sonham

O brilho das estrelas enche o céu.

Pergunta
provocadora:
Tem
alguma cantiga de que você gosta ou gostava?
Masayo Seta, sem título (sem data), grafite e óleo sobre papel, 46,5 x 34,9 cm 35

Esta última obra do percurso também faz conexão com a infância. Ioitiro representa, de modo pouco convencional, elementos que parecem brinquedos. Em sua grafia, escreve Bringedo.

4.
Pergunta provocadora: Qual brincadeira era/é diversão garantida? Ioitiro Akaba , Bringedo (sem data), óleo sobre papel, 33,4 x 48,1 cm 36

5.

ATIVIDADE DE ATELIÊ Construção de Brinquedos Japoneses

Algumas Referências:

https://myjapanguide.com/culture/yuyake-koyake-song-children-finishing-schoo

https://www.nippo.com.br/especial/n227.php

https://www.japanhousesp.com.br/artigo/oficina-de-kendama/l

A proposta é que o percurso se encerre com uma atividade prática de ateliê, na qual confeccionamos um ou mais brinquedos tradicionais japoneses. Alguns exemplos escolhidos:

a. Ohajiki: jogo que lembra bolinhas de gude, feito de conchas, pedrinhas, vidro, cerâmica ou plástico. Pode ser feito com materiais como tampinhas de garrafas.

b. Otedama: popularizado após a Segunda Guerra Mundial, quando as crianças não tinham muitas opções de brinquedos e não podiam sair de casa, é um jogo confeccionado com pedacinhos de tecido com grãos dentro. Lembra o Jogo das Cinco Marias.

c. Kendama: jogo de encaixe que nasceu na Europa e se popularizou no Japão no século XVIII, inclusive entre pessoas adultas. Pode ser uma interessante oficina de encerramento do percurso, a partir do uso de materiais reciclados e acessíveis.

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LOUCURA COMO ESPETÁCULO

Após um encontro que nós, Elielton e Lucas, tivemos no museu, chegamos ao tema “loucura como espetáculo”, que percebemos ser muito interessante, já que a própria exposição Há luz atrás dos muros pode ser vista como um espetáculo - existiu um trabalho de luminotécnica para iluminar cada obra, a expografia, são vários os elementos que fazem parte de uma construção cênica. E neste cenário, puderam ir refletindo também sobre como a loucura muitas vezes é tratada como espetáculo, curiosidade ou exotização.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.Introdução:

O primeiro ponto deste percurso lança mão de estudos do livro “História da Loucura”, de Michel Foucault, filósofo que desenvolveu uma teoria crítica da sociedade moderna e de suas instituições. Ele nos mostra o surgimento do conceito de loucura, que é construído e reconstruído ao longo da história. Por exemplo, a Idade Média é muito marcada pelas epidemias, pela peste bubônica, chamada de peste negra, que deu origem aos leprosários, onde pessoas doentes eram confinadas, excluídas do convívio social. E depois do ápice da doença, esses espaços, já esvaziados, foram ocupados por pessoas pobres, criminosas, pessoas que se dizia terem desvios morais e também pela figura do alienado, do louco. Isso mostra como o início do manicômio está ligado à figura de um outro que é exótico, mas não através de uma abordagem de cura ou cuidado, e sim de exclusão. Essa história pode abrir uma série de reflexões, nos permitindo puxar fios importantes: quem são as pessoas consideradas loucas? Como isso muda ao longo do tempo?

presentes não apenas como neurodivergentes: quantos e quantas não estiveram no manicômio por serem homossexuais, alcoólatras, prostitutas? Quais as razões do Juquery ter tido períodos com superlotação? O Complexo Hospitalar Juquery, fundado em 18 de maio de 1898, em Franco da Rocha - SP, funcionou por 123 anos e chegou a ter 16 mil moradores entre 1960 e 1970.

A própria história do Juquery, no século XIX, é intimamente ligada ao processo de higienização pelo qual a cidade de São Paulo passou. A limpeza do centro urbano levou à criação de um hospital psiquiátrico distante da cidade. E quais eram os motivos das internações na época? Qual era a compreensão de loucura no final do século XIX, no início do século XX, e qual a compreensão de loucura que temos hoje? Para nós, tornou-se importante começar a visita olhando para os e as artistas

Olhando para dentro da exposição Há luz atrás dos muros a partir dessas reflexões iniciais, novas perguntas, também importantes, podem ser levantadas: como expor objetos íntimos? Como fazer leituras dessas criações enquanto obras de arte? De quais modos as obras falam também sobre espetáculos e encenações? A própria história do circo, elemento que aparece em algumas obras, relaciona-se com a ideia do exótico, do freak show , assim como a medicina e suas performances. Estas são questõeschaves que gostaríamos de aprofundar coletivamente.

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2.

Ubirajara Ferreira Braga , Acrobata, 1987. Hidrocor e pastel seco sobre papel. 32,5 x 45,8 cm.

A dupla decidiu iniciar o percurso na sala 3, com esta imagem nomeada Acrobata que faz alusão ao circo. A obra de Ubirajara chamou a atenção pela relação entre a figura humana, caminhando em uma corda bamba, e a platéia ao fundo. A figura central é disforme, destoante, e, sob a vigilância de uma série de pessoas, parece tentar equilibrar o corpo e a cabeça.

3.

Nesta obra de Conceição, ao contrário da anterior, que representa uma plateia uniforme e uma figura que destoa, aparece um conjunto de figuras distintas - nenhuma segue um padrão, todas diferem entre si. Como se relacionar com a imagem de um coletivo de seres dissonantes? O que isso nos faz pensar?

Conceição , sem título, 1988. Hidrocor e grafite sobre papel. 32 x 47 cm.

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4.

Conceição , sem título, 1989. Hidrocor e grafite sobre papel. 44,9 x 32,5 cm.

Nesta obra, Conceição traz a figura do palhaço com uma expressão muito triste. O que será que este palhaço representa? Podemos relacionar esta figura com a figura da primeira obra do percurso?

Aqui vemos também a representação de um conjunto, são vários palhaços, que relações podem ser feitas com a coletividade nas obras de Conceição?

5.

Esta obra, com a representação do eletrochoque, faz pensar na própria medicina e seus tratamentos como um modo de espetáculo. O eletrochoque foi, na sua época, apresentado socialmente como uma grande novidade em tratamento médico, o que aqui, na pintura de Lourdes, contrasta com o próprio exercício da arte pensado como tratamento e cura no ateliê do Juquery. Interessante também observar que a obra não “fecha”, ela deixa um espaço vazio que convida a entrar e testemunhar tanto a cena criada pela artista, quanto a própria prática médica.

Lourdes da Costa Justino , sem título, 1955. Óleo e grafite sobre papel. 32,4 x 50 cm.
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Esta figura em baixo relevo nos remeteu à ideia de exorcismo, o que é muito simbólico, porque os transtornos psiquiátricos sempre estiveram ligados à ideia de espírito, afirmando a dualidade sagrado x profano. Retomamos aqui uma noção desenvolvida por Foucault, que é o “duplo exorcismo”: individualmente, o louco é considerado como possuído e precisa de exorcismo, e no âmbito coletivo, quando isolamos um conjunto de pessoas loucas, fazemos um exorcismo social, retirando o que é impróprio e “limpando” a sociedade.

6.
Sebastião Gomes da Silva , São Rombaut curando um possesso, 1954. Baixo relevo em
gesso. 34 x 33,5 x 5 cm
42

Ubirajara Ferreira Braga, Juqueri - Junta Psiquiátrica, 1994. Acrílica sobre tela. 50 x 60,2 cm.

Em Junta Psiquiátrica , Ubirajara mostra como essas pessoas faziam parte de uma narrativa construída, uma encenação da medicina. Este trabalho está ao lado de O mundo esquizôfrenico 3 , que mostra uma movimentação, um agrupamento mais desorganizado. Enquanto a Junta Psiquiátrica parece bastante organizada, O mundo esquizôfrenico é a imagem do descontrole.

7.
Ubirajara Ferreira Braga , O mundo esquizofrênico, 1995. Acrílica sobre tela. 30 x 50 cm. 3 Os educadores optaram por manter a acentuação na palavra “esquizofrênico” como feita pelo autor da obra.
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8.
Com Antônio Sérgio de Oliveira, a questão médica aparece na cena de um parto. São muitos médicos dispostos ao redor da cama, sem rosto, usando as mãos para segurar a mulher em sua cabeça, sua boca, em partes de seu corpo, assim como segurando o próprio bebê. Pensando no contexto do Juquery, como será que aconteceu esta gravidez? Antônio Sérgio de Oliveira , sem título, 1974. Óleo sobre papel. 33 x 48 cm.
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9.

Ubirajara Ferreira Braga , Juquery - Resgate de vidas passadas, 1994. Óleo sobre tela. 40 x 50 cm.

Para finalizar, escolhemos a obra de Ubirajara na qual ele traz um universo mais espiritual, falando de vidas passadas. O trabalho remete também às próprias vidas que passaram pelo Juquery, esse coletivo. Na imagem, observa-se que as pessoas parecem padronizadas e, no alto, surge uma figura de controle.

10.

ATIVIDADE DE ATELIÊ leitura de imagem

Convidar o grupo para voltar à exposição, escolher uma imagem que tenha relação com a ideia de espetáculo trabalhada na visita e fazer uma leitura da imagem: o que há de espetáculo na imagem? Qual construção te atravessou?

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OS LABIRINTOS DO JUQUERY

Partimos da ideia de labirinto que entendemos ser um interessante fio para puxar a partir de algumas obras do acervo do MAOC. Abaixo, é apresentada uma ideia geral daquilo que construímos, porém, cada mediador e mediadora, ao entrar em contato com esse percurso, pode fazer a sua própria seleção de obras, considerando as singularidades do grupo com o qual irá trabalhar.

O espaço expositivo do MAOC é pequeno e a expografia, por não seguir uma cronologia específica e incorporar diferentes tempos numa mesma sala, cria muitas possibilidades de caminhos. Pudemos perceber, com isso, uma estrutura labiríntica nesse museu. O percurso Os Labirintos do Juquery parte do tema de cada sala proposto pela curadoria, da sua estrutura expográfica (como as obras se organizam na sala) e do conteúdo temático que a mediação pode fazer a partir dessas relações.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.

Acolhimento no entorno do museu

a. Feche os olhos e perceba suas sensações, os sons que você reconhece;

b.

Quais as sensações que você tem ao estar em contato com a natureza?

2.

c. Olhando à sua volta, você sente que o ambiente te permite maior liberdade ou redução dos movimentos?

No interior do MAOC

Introdução ao conceito de labirinto:

Segundo a mitologia grega, um labirinto foi construído na ilha de Creta para aprisionar o Minotauro, uma figura com cabeça de touro e corpo de homem. Uma vez que entrasse no labirinto, a fuga seria impossível e o enfrentamento com Minotauro, fatal. Somente um rapaz chamado Teseu teve sucesso, graças ao auxílio de um novelo que lhe foi dado por Ariadne, sua grande paixão. O novelo foi desenrolado, demarcando os caminhos pelos quais passou, evitando que se perdesse. Teseu lutou com o Minotauro e conseguiu sair vitorioso do labirinto.

d. O Juquery tem muros? Discutir com o grupo as ideias de contração e expansão do corpo na relação com o manicômio.

Os labirintos são estruturas muito usadas na história da arte, em processos terapêuticos e meditativos e é comum também encontrar esta estrutura nos hospitais psiquiátricos, como é o caso do Juquery. Para aprofundar um pouco mais, lembramos que existem dois tipos de labirintos:

UNICURSAL - no qual se entra e sai pelo mesmo lugar. O desafio, então, é chegar ao centro e depois voltar.

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MULTICURSAL - pode ter uma entrada e uma saída em pontos distintos ou mais de uma entrada e uma saída. Este é um labirinto que não tem centro, o desafio é conseguir sair dele.

A obra de Waldemar, localizada na sala 2 do museu, é uma potente imagem disparadora do conceito de labirinto, que norteia todo este percurso.

Waldemar Lúcio Raymond , sem título, 1988, guache e hidrocor sobre papel, 33,4 x 50,3cm
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Iniciar uma apreciação na sala 1: observar sua estrutura expográfica circular, trabalhar questões como arte e saúde mental, os ciclos do próprio Juquery, suas permanências e transformações, relembrar algumas histórias (como o incêndio de 2005, principal motivo para o fechamento do Ateliê de Arte e do Museu Osório César). Observar as questões ligadas à medicina e à psiquiatria apresentadas nas obras centrais da sala, assim como também representações da colônia e de fora dela, nas obras laterais.

3.
Obra atribuída a Tarsila do Amaral, Osório César, sem data, molde de cerâmica, 19,5
x 13 x 15,5 cm
Ubirajara Ferreira Braga, Incêndio do Museu Dr. Osório César - Um sonho, 1999, óleo sobre tela, 70 x 50 cm Ioitiro Akaba , O Paraíso, 1934, grafite e óleo sobre papel, 33 x 48 cm Antônio Magon , 1a Colônia, sem data, guache e nanquim sobre papel, 18,8 x 29,5 cm
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Na sala 2: seguir um percurso multicursal observando temas como religião, sexualidade e inconsciente. Se imaginamos as obras como “espelhos”, o que vemos através delas? O que há por trás das imagens? Curioso observar que a obra de Istvan Csibak traz grafada a palavra “espelho meu” e a obra de João Rubens tem, literalmente, imagens dos dois lados da tela - frente e verso. Neste ponto do percurso sugerimos usar pequenos espelhos para ativar no grupo a experiência de olhar através.

4.
João Rubens Neves Garcia, sem título, 1958, grafite e óleo sobre papel, 33,5 x 48,5 cm João Rubens Neves Garcia, sem título, 1958, grafite e óleo sobre papel, 33,5 x 48,5 cm Istvan Csibak, Espelho Mágico, 1994, óleo sobre tela, 40,3 x 60,5 cm José Lourenço C., sem título, 1954, óleo sobre papel, 33,6 x 41,5 cm
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Na sala 4: desenrolar os “fios de Ariadne” para fazer aproximações entre obras, formando “duplas de artistas”. Trazemos aqui um exemplo deste exercício, com a relação entre Aurora Cursino dos Santos e João Rubens Garcia. Suas histórias pessoais tão distintas, ela foi prostituta e ele militar, nos fez pensar: de que outro modo este encontro teria se dado, se não fosse no Juquery? Outro elemento interessante de aproximação é que em muitos momentos ambos trazem a palavra como parte da construção imagética. Neste ponto do percurso, sugerimos então que o grupo use fios coloridos para marcar no espaço expositivo as conexões feitas entre duplas de obras e artistas.

João Rubens Garcia, sem título, sem data, grafite, nanquim e óleo sobre papel, 49,8 x 70,6 cm

5.
Aurora Cursino dos Santos, sem título, sem data, óleo sobre papel, 50 x 34,5 cm.
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Na sala 5: refletir sobre referências externas e conectar as obras com o mundo atual. Neste ponto do percurso, quando inicia-se a saída do labirinto, sugerimos oferecer ao grupo alguns cartões com poemas, pequenos textos, frases, palavras, fotos, manchetes de jornal, memes, para que as pessoas criem conexões com as obras da sala.

6.
Maria Aparecida Dias, sem título, 1989, grafite e guache sobre papel, 32,5 x 44,9 cm José Otaviano Rafael (Otaviano), Mulher com o filho no colo, 1994, acrílica e óleo sobre tela, 70 x 50 cm.
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7.

Almir D’Ávila, O sanhaço comendo goiaba, 1993, grafite e guache sobre papel, 50,9 x 66,5 cm

Atividade de ateliê desenhar uma imagem labiríntica

Diante do percurso realizado, desenhe uma estrutura labiríntica e reflita sobre sua jornada interior. Escreva ou desenhe o que você encontrou no centro do seu labirinto e que levará consigo. Deixe algo no museu (uma sensação, sentimento, aprendizado), lembrando que o que você deixar será usado por outros grupos para encontrar a saída.

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O FIO NIPÔNICO DA EXPOSIÇÃO

A partir de uma visita ao MAOC criamos um percurso compreendendo artistas internos imigrantes, em especial do Japão, comunidade mais presente no Juquery. Assim, o percurso foi nomeado “O fio nipônico da exposição”.

Um dos vetores que escolhemos para trabalhar foi a bagagem cultural e material, os hábitos, costumes, que imigrantes japoneses trouxeram consigo. Para contar a história desses pacientes não é possível utilizar como fonte apenas os seus prontuários médicos, já que estes registram apenas uma pequena parte, que não contempla suas vidas antes e depois da passagem pelo hospital. Assim, o que pretendemos ressaltar com a construção deste percurso, foram as bagagens culturais contidas nas histórias das pessoas, tentando, com isso, criar outros acessos a essas histórias para ampliá-las.

PASSO A PASSO DA ATIVIDADE

1.Escolhemos Turiko Sahata para aprofundar algumas questões deste percurso, mas cada educadora e educador que porventura se interessar por este fio, pode acrescentar em seu percurso outros e outras artistas desta cartografia.

As obras de Sahata presentes na exposição parecem versar sobre um mesmo motivo: o processo de imigração para o Brasil. Nesta obra com dois lados (frente e verso), há a presença do barco, principal meio de transporte da chegada dos imigrantes, aparentemente atracado na costa brasileira, já que é possível ver a bandeira do Brasil, e no fundo uma igreja, montanhas e uma plantação. E do outro lado da mesma obra, um girassol, mudas de roupas, a figura de uma mulher ao lado de uma mala e dois pares de chinelos. O vaso de flor e os pares de chinelos de tiras com cores diferentes são elementos comuns nas obras de Sahata. Os chinelos, especialmente recorrentes, tornaram-se quase uma assinatura gráfica de suas produções.

Turiko Sahata (Turiko Tuyshi), sem título, (sem data), grafite e giz de cera sobre papel, 31,4 x 21,4 cm

Turiko Sahata (Turiko Tuyshi), sem título, (sem data), grafite e giz de cera sobre papel, 31,4 x 21,4 cm
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Materiais de apoio

Separamos alguns textos e imagens que podem apoiar a mediação da visita, aprofundando o contexto histórico da imigração japonesa no Brasil:

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Navio Kasato Maru, primeira embarcação a trazer

781 imigrantes japoneses ao Brasil em 1908.

Distribuição dos imigrantes japoneses em São Paulo, mapa de 1913.

Famílias japonesas aguardam acomodação na Hospedaria dos Imigrantes, em 1930.

Cartaz de 1920 que incentiva a migração japonesa para o Brasil.

Monumento criado pela artista Tomie Ohtake, em homenagem aos 100 anos da imigração japonesa no Brasil.

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2.

No MAOC, existe uma sala dedicada à arte de motivo religioso com uma maioria de obras ligadas ao cristianismo católico e protestante, porém existe ali também uma coleção de Budas, um deles maior e outros três menores. Embora com autoria desconhecida, sabe-se que estas imagens fazem parte da bagagem cultural de pacientes imigrantes japoneses que passaram pelo Juquery, e com uma leitura de imagens um pouco mais detida e atenta, é possível identificar nessas esculturas alguns elementos de sincretismo entre o budismo japonês e o xintoísmo, religião primária do Japão, anterior à chegada do budismo no país. Como exemplo disso, na escultura maior é possível ver seios femininos, o que mostra, uma mescla estética da estrutura búdica com a estrutura de uma bodhisattva mulher, o que chama a atenção.

Buda, autoria desconhecida, sem data, cerâmica esmaltada, 12 x 9,8 x 10,5 cm

Buda, autoria desconhecida, sem data, cerâmica esmaltada, 30,5 x 27 x 19 cm

Buda, autoria desconhecida, sem data, cerâmica esmaltada, 12 x 9,8 x 10,5 cm

Buda, autoria desconhecida, sem data, cerâmica esmaltada, 13 x 10 x 11,3 cm

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Materiais de apoio:

Sugerimos algumas imagens que podem apoiar a conversa acerca da bagagem religiosa presente nestas obras: Mapa da expansão do budismo Buda Amida Nyorai em Kanagawa, Japão
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Algumas referências:

CHAMAS, F. C. Escultura Budista Japonesa: A Arte da Iluminação . 2006. 332 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Departamento de Letras Orientais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

FERRAZ, M. H. C. T. A Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri . 1989. 237 f. Tese (Doutorado) - Curso de Artes Plásticas, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil 500 anos. Razões da imigração japonesa . Disponível em: <https://brasil500anos.ibge. gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/japoneses/razoes-da-emigracaojaponesa> Acesso em: 08 de março de 2022.

MAKINO, R. As Relações Nipo-brasileiras (1895-1973): O Lugar da Imigração Japonesa. 2010. 197 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2010.

SAKURAI, C. Os Japoneses . São Paulo: Contexto, 2007.

Obrigado! ありがとう
Kannon Bosatsu, século XI
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A VIDA COMEÇA QUANDO É CARNAVAL

Como resposta ao desafio de produzir um percurso criador na exposição, optamos, enquanto artistas-educadoras, por realizar uma performance audiovisual no interior do MAOC. Na performance, aparecem Neusa (representada por Amara), uma mulher que trabalhou cerca de trinta anos como costureira no Hospital do Juquery e Dandara (representada por Alzira), uma das últimas internas moradoras do hospital, que desde 2021, quando o Juquery fechou a ala de internação permanente, vive em uma residência terapêutica. Misturamos textos documentais e ficcionais para expressar a relação de intimidade, afeto e cuidado, construída entre as duas mulheres, dentro do manicômio e apesar dele.

Parte I - Neusa

O trabalho, intitulado “A vida começa quando é carnaval”, tornou-se um material educativo para o museu, que poderá ser usado em diferentes atividades de mediação, ativando visitas de crianças, jovens ou adultos. Através deste material poético-educativo, as histórias e memórias dessas mulheres passam a compor também o acervo do MAOC, dialogando com ele e alargando-o.

Quando entrei para trabalhar na colônia, eu era costureira. A sala de costura era ampla, tinha quatro máquinas e eu fui me adaptando. Minha função era recuperar as roupas que vinham danificadas da lavanderia. Quanta coisa eu fiz, trabalhei que nem gente grande! Às vezes, chegavam blusas com mangas muito longas, eu cortava, com um decote muito grande e eu achava desconfortável, dava um jeitinho, colocava uma preguinha, um botãozinho em cima. Calças vinham com a barra larga, comprida, eu cortava, colocava punho, tudo de acordo com as necessidades deles. Eu inventava moda, eles nunca andavam de qualquer jeito.

Uma questão importante da formação, que ficou para nós, foi a ideia de puxar os fios das memórias, das memórias do lugar, desse território que segue tendo cruzamentos com nossas vivências atuais. Este trabalho, então, foi o modo que encontramos de costurar nossas conversas e aprendizados. Propositalmente colocamos a imagem de fios de lãs embaralhados, pois fomos puxando as cores que para nós brilhavam mais. A princípio, queríamos fazer uma cena para o grupo, mas como a pandemia da Covid-19 não permitiu, fizemos esta performance audiovisual.

Alzira era festa junina, carnaval, o mundo dela era dança, ela tinha samba no pé. Sete horas da manhã: “Dona Rosa, vamos dançar?”. Eu ligava a vitrola e era só alegria. Tinha uma vitrola perto de mim. Lá não tinha vinil, os discos eram todos meus. Ela me pedia: “eu quero um vestido vermelho!”. E eu levava de casa, fazia campanha com a vizinhança, depois arrumava, colocava babado para rodar, porque ela gostava de rodar…

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Parte II - Neusa e Alzira

Alzira, vem cá!

Ô Neusa…

Você viu que cores lindas chegaram? Neusa, que coisa linda…

Eu pedi para trazerem lá de São Paulo. Neusa, eu queria ser uma borboletinha para voar no meio desse carnaval…

Alzira, vem cá!

Ô Neusa…

Ouve esse samba, me lembrou você…

Alzira, vem cá!

Ô Neusa…

Alzira, você dança tão lindo, eu queria que todo mundo pudesse te ver dançar.

Aqui?

Aqui, e em todo lugar. Eu queria que todo mundo que escreve bonito pudesse ter alguém para ler, eu queria que todo mundo que dança bonito, pudesse ter alguém para aplaudir, e eu queria que todo mundo que pinta bonito tivesse alguém para ver. Mas aqui?

— Aqui. Em todo canto. Mas aqui seria melhor. Por que?

— Para honrar vocês. As estrelas do céu brilham E brilham

Eu também quero brilhar Fui ouvir uma cantiga Antiga Dancei muito sem parar Vi saída lá no fundo No fundo Vi um jeito de escapar

As estrelas do céu brilham E brilham E brilham

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Parte III - Alzira

Hoje é terça-feira de carnaval mas não tem festa. Este ano não teve carnaval, ano passado também não teve. O que é um ano sem carnaval? Dizem que o ano só começa depois dele. Mas se não tem carnaval, o ano começa mesmo assim? A vida começa? Às vezes eu sinto que a minha vida parou no tempo, quando tudo correu. Você se sente assim? Desde que eu entrei aqui, não teve carnaval. O carnaval não teve a mim, nem aos outros que moram aqui. Lá fora também não tem, lá fora todo mundo foge e tem medo, mas isso ainda não chegou aqui.

Eu tenho um segredo, um segredo que eu guardo aqui dentro, bem no fundo, e que ninguém sabe. Na verdade, só a Neusa sabe. O meu segredo, é que eu sei fazer carnaval, então, eu sei fazer a vida começar…

O texto da Parte I foi retirado do livro “O que não pode ser esquecido quando o Juquery fecha as portas?”, de Cibele Lucena e Flavia Mielnik, 2021.

Esse vídeo é o exercício final da formação de educadores do MAOC, ministrada pelo Grupo Contrafilé, em 2022.

Parte IV

O que significa ser daqui? Como honrar a história? O que aconteceu? Quem? Que fio é esse? Conseguimos cruzar essas vivências? Vamos honrar nossa liberdade? Quando a vida começa?

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Elenco Amara Hartmann como Neusa Dandara Luz como Alzira Roteiro Amara Hartmann Edição Dandara Luz Figurino Dandara Luz Preparação vocal Dan Marcon Produção Amara Hartmann Dandara Luz Apoio Romã Atômica Agradecimentos Grupo Contrafilé Gustavo Belschansky Dan Marcon Elielton Ribeiro
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A CONSTRUÇÃO COLETIVA DA MEMÓRIA

ESCOLA DE TESTEMUNHOS COM ANA PATO

Cibele Lucena - Bom dia para todes. Hoje vamos conversar sobre arquivo, mais especificamente sobre acervo, porque estamos no MAOC. O que é um arquivo, o que é um acervo? E como estamos no contexto de um curso de formação, conversaremos a partir da perspectiva de um trabalho educativo. Como nós, como educadories, olhamos para um acervo e pensamos em fios, em fios para puxar e a partir dos quais desenvolver um t rabalho de pedagogia radical?

Para compor este encontro, convidamos a Ana Pato e também a equipe do MAOC, Michelle, Elielton, Daniele e Matheus, pesquisadores desse acervo que tem uma singularidade e que conecta arte e saúde mental. Antes de escutar a Ana, pensamos que escutar a equipe pode nos dar um chão acerca do acervo de que estamos falando. E daí a Ana pode puxar também alguns fios. Passamos, então, a palavra para a Michelle.

MEMÓRIA

Michelle Louise Guimarães - Bom dia gente, estou muito feliz de estar aqui neste momento com vocês. Eu sou museóloga da instituição, estou aqui desde 2019, mas sempre tive muito carinho pela arte na área da saúde mental, é algo que pesquiso desde a graduação e depois fiz mestrado e estou fazendo doutorado pensando nessas relações. Por isso, me sinto tanto museóloga como uma pesquisadora da instituição; tenho muito apreço por esse campo do conhecimento. Pra mim é sempre um desafio fazer a introdução da história desse museu, porque são tantos personagens, são tantas pessoas que nem temos conhecimento e que participaram dessa história, que sempre parece um resumo muito simples. Mas eu vou tentar trazer um pouco do que acho importante, pelo menos para essa conversa inicial.

Nós não temos uma data exata, tipo a primeira obra de arte foi produzida em tal ano por tal artista. Não temos isso. O Juquery foi inaugurado em 1898 e há relatos de desenhos em paredes, desenhos que determinado

Ana Pato coordena o Memorial da Resistência de São Paulo. É doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e mestra em Artes Visuais pela Faculdade Santa Marcelina. Foi curadora das exposições Yona Friedman: Democracia (2021); Meta-Arquivo: 1964-1985. Espaço de escuta e leitura de histórias da ditadura (2019); 20º Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil (2017); Quanto Pesa uma Nuvem?, de Gisellle Beiguelman (2016); e curadora-chefe da 3ª Bienal da Bahia (2014). É autora do livro “Literatura Expandida: arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez-Foerster” (2012) e organizou o livro “Mabe Bethônico: documentos - arquivos e outros assuntos públicos” (2017). Em suas pesquisas, dedica-se às relações entre arte contemporânea, arquivo e memória.

paciente fazia e entregava para um psiquiatra que estava cuidando dele. Então, digamos que a arte deve existir aqui desde os seus primórdios, só que ela era muito descentralizada. E pequenas coleções foram surgindo, além de sempre existir também essa arte em que o sentido de preservação era mais efêmero, como os desenhos nas paredes. O próprio Osório César falava de pacientes que faziam esculturas com miolo de pão, por exemplo.

E uma coisa muito importante de entender no nosso contexto é que o Juquery nasce com duas ideias principais: ser uma colônia nos moldes europeus, ou seja, um hospital mais ligado à natureza, distante da capital, claro que com o trem, para poder criar uma locomoção, mas distante. Essa distância também tem a função de separar os que estavam à margem do povo brasileiro, que estaria a se desenvolver, então, tem uma visão bastante higienista também. E outro ponto é o uso do trabalho como forma de terapia, algo que Franco da Rocha defendia, ex-diretor do Juquery que dá nome à cidade onde fica o hospital. Por ser um am biente muito amplo, o Juquery tinha espaço para vários tipos de oficina s, como marcenaria, até para fazer sabão. E a arte começou a surgir nessas oficinas mais técnicas. Temos artistas que fazem desenhos ligado s à arquitetura, mas a gente já percebe ali uma qualidade artística, no sentido de que ele não quer apenas fazer um desenho para uma planta arquitetônica. Ele acaba representando médicos, figuras, mostran do o cotidiano do Juquery, então vai muito além só do interesse técnico.

Porém, a centralidade do espaço para fazer obras de arte ocorre entre a década de 1940 e 1950, com a seção de artes plásticas. Nesse espaço, eram entregues materiais adequados, tintas e telas, cerâmica. Esse espaço

A CONSTRUÇÃO COLETIVA DA
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começa com o nome Seção de Artes Plásticas , e depois vai ganhar o nome de Escola Livre de Artes Plásticas . O primeiro diretor dessa seção, que cuidou dessas atividades, foi o Mário Yahn, que era o psiquiatra daqui. Ele inclusive teve muito contato com a Maria Leontina, uma artista de fora do Juquery, que esteve aqui no espaço e dava aulas de conhecimentos básicos sobre arte para os internos desenvolverem suas habilidades. A Leontina foi importante para a organização do acervo, porque ela fez as primeiras seleções de obras que foram para exposições internacionais, e é importante pra gente pensar, talvez, na primeira prática museológica que tivemos aqui. Até no sentido de exposição, porque a Maria Leontina pegava as obras que eram realizadas pelos pacientes e colocava nas paredes logo que elas ficavam prontas, numa espécie de exposição automática. É possível perceber que tinha a questão do produzir, mas também do expor. E a nossa exposição atual tenta trazer um pouco desse espírito da Maria Leontina na colocação das obras nas paredes.

Outra figura muito importante é o Osório César, que dá nome ao MAOC. O Osório César foi um médico que estava aqui desde a década de 1920, 1930… Ele começou como estudante e sempre teve interesse nas relações entre as áreas de saúde e arte. Inclusive, ele mesmo tinha conhecimento artístico, tocava violino, então, estava inserido nos dois campos. Ele também escrevia sobre arte, colecionava obras de artistas daquele período e começou a criar uma das primeiras coleções de obras dos internos. Também começou a escrever sobre elas e a criar uma metodologia para classificálas, para fazer comparações com obras do mesmo período, com estilos artísticos diversos. Ele foi um dos primeiros a sistematizar uma espécie de forma de análise para elas, no sentido do estudo da imagem. Ele se torna diretor da Escola Livre de Artes Plásticas na década de 1950 e fica bastante tempo, até final dos anos 1960, quando se aposenta.

DA MEMÓRIA

Na década de 1970, por toda a situação que o país estava passando, uma ditadura militar, o Juquery chega numa situação muito complicada, com uma superlotação, então as condições aqui ficam precárias. Fala-se em 16 mil pessoas internadas na década de 1960. Foi se tornando um espaço muito difícil para ações, digamos, mais ligadas à humanização e dignidade dessas pessoas. E a arte foi perdendo o seu espaço. O próprio Osório César, que tinha também uma atuação política, se identificava com ideias comunistas, não era uma pessoa muito bem-vista naquele período e sofreu muita perseguição por isso. Então, o acervo não é mais produzido na

década de 1970, mas o que já existia é guardado por pessoas que percebem algum valor nessas obras. Muitas pessoas que a gente nem sabe o nome, mas que tiveram esse olhar: “Vou preservar isso, isso tem importância”.

Na década de 1980, começam a existir mais movimentos pela reforma psiquiátrica, mesmo que a lei só exista em 2001. E a ditadura também vai caminhando para o seu fim. Com isso, alguns pesquisadores e a própria Secretaria de Saúde do Estado têm contato com esse acervo, percebem a importância dele e começam a elaborar uma forma institucional de preservação. Só no ano de 1985, é que foi criado o Museu Osório César, ligado ao Estado, ao Juquery, que iria cuidar das obras feitas na década de 1940, 1950, até 1970, e também daria continuidade à produção de obras.

Naquele momento, junto com o museu, que fica em um prédio bem antigo da instituição, onde Franco da Rocha chegou a morar - porque os diretores, no início do Juquery, moravam aqui -, internos que tinham interesse em arte eram convidados a participar e a produzir mais obras. A primeira etapa deixou quase três mil obras pro acervo do museu e essa segunda etapa vai fazer a gente chegar em 8.300, 8.500 obr as catalogadas até agora.

O único problema é que, no início de 2000, no início deste século, o Juquery sofre um incêndio, que não atinge o museu, não atinge nenhuma obra artística, mas atinge o prédio central. Perdem-se muitos documentos e a gente não tem muita noção de tudo o que foi perdido. Parece que se perderam alguns prontuários, dados de médicos, muitos livros, e com a repercussão que teve esse incêndio, o Juquery decidiu fechar o museu para pensar realmente um programa de preservação, porque fica cl aro que existe o risco de perda do acervo. O museu é fechado e um núcleo para a preservação da memória é criado, não só do acervo artístico, mas do acervo imobiliário, dos livros.

Em torno de 2010 a prefeitura começa a pensar realmente em como esse acervo pode voltar ao público, porque estava preservado na reserva técnica, mas não estava fazendo a sua função social. E é um acervo que conta muito da história da própria cidade, porque Franco da Rocha, a cidade, só existe de fato por causa do hospital. Então começa a se pensar em vários projetos para tentar passar esse acervo para o

A CONSTRUÇÃO COLETIVA
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município e re-inaugurar o museu. Em 2014, acontece um fato muito importante para essas ações serem colocadas em prática, que é o museu ter sido contemplado pelo edital do FID, o Fundo de Interesses Difusos da Secretaria de Cidadania e Justiça do Estado de São Paulo. Com esse fundo, são feitas várias ações aqui, como restauro do prédio, restauro das obras que iriam para exposição, o que foi fundamental para o que estamos vivendo agora. Inclusive este curso, que também é financ iado pelo FID. Passamos por todos esses momentos até chegar à ideia de construção de uma equipe para o museu.

Eu tentei resumir um século, não sei se ficou confuso. Para final izar, o museu foi inaugurado em dezembro de 2020 e no primeiro ano de inauguração tivemos mais de 15 mil visitantes, mesmo numa pandemia.

DA MEMÓRIA

Elielton Ribeiro - Olá, bom dia! Eu vou começar trazendo algumas relações afetivas com o espaço. Eu sou morador da região do Juquery, moro em Francisco Morato desde 2012, quando comecei a ter contato com esse acervo e com esse museu e com o movimento cultural de Franco da Rocha. Entre 2015 e 2016 estudei o técnico em museologia na ETEC Parque da Juventude, quando entendi porque esse acervo é tão grandioso e importante pra Franco da Rocha e também entendi o contexto do Brasil do século 20.

Cursei História da Arte na Unifesp e na graduação continuei estudando e buscando entender o acervo que veio a ser, hoje, o MAOC. Desde 2018 eu atuo como técnico em museologia da Prefeitura de Franco da Rocha e no processo de abertura do MAOC, com a contratação pela prefeitura de dois curadores, o Hélio Menezes e o Pedro Quintanilha, pude vivenciar muitas trocas, porque com eles pensamos as relações entre museologia, história da arte, antropologia e o que poderia ser abordado nesse museu, o que poderia ser recuperado como memória.

Eu fiquei muito feliz quando o Grupo Contrafilé falou da sua participação, Ana Pato, pra pensar sobre arquivos, pois essa é uma questão muito delicada para a gente. Por exemplo, pouco temos acesso aos prontuários médicos, não podemos acessar porque não somos familiares dos pacientes. Então, são questões que se colocam para nós, tanto no que diz respeito a conseguir acesso a um documento como

esse, quanto a pensar e praticar outras fontes de informação, através da história oral, recuperar histórias com moradores da cidade, exfuncionários do Juquery, pessoas que trabalharam por trinta anos no hospital e têm muito a contribuir, que conviveram com os artistas que hoje compõem o acervo do museu. E um bom exemplo disso é o próprio Pedro Quintanilha, porque ele trabalhou durante muitos anos em Franco da Rocha e pôde conviver com artistas do acervo do museu, a exemplo do Ubirajara. Ele e o Hélio Menezes são os dois curadores que pensaram essa exposição de longa duração, que está em exibição no MAOC, com aproximadamente 280 obras do acervo do museu. As cinco salas da exposição apresentam um pouco da diversidade do acervo, pensando a história da própria cidade e do Juquery, a partir dele.

E acho importante pensar o MAOC como um museu de resistência também, pois partimos de uma temática aparentemente muito específica dos direitos humanos, que é o direito à saúde mental. E aqui faço um link com algo que a Cibele comentou no primeiro encontro. Ela disse que o Memorial da Resistência tem trabalhado muito na ampliação do pensamento sobre as resistências, pensando não só na resistência do período da ditadura militar, mas em outras resistências. Durante a pandemia, Ana, eu vi que vocês estavam com uma exposição sobre LGBTs na ditadura. Com isso, a gente vai pensando em resistências que são de um período, mas que se mantêm até hoje, porque precisam ainda galgar espaços, lutar muitas vezes pelos direitos mais básicos. Agora eu passo a palavra para a Daniele, educadora do MAOC.

Daniele Senário - Olá, bom dia, é um prazer estar aqui com vocês. Meu cargo aqui na Secretaria Adjunta de Cultura é de assistente cultural. Eu estou na prefeitura desde 2020 e no museu desde a inauguração. Atualmente trabalho na ação educativa, sou responsável por realizar os atendimentos dos grupos, fazer a mediação educativa do público com o acervo. A mediação geralmente tem acontecido com grupos das escolas municipais, algumas estaduais também, mas nós abrimos agendamento para grupos que não são de escolas, não são vinculados a instituições, então vem muitas famílias visitar o museu. E na nossa visita, trazemos informações sobre o acervo, claro, que é muito rico e importante, mas também procuramos ouvir as percepções do público sobre o que é visto. Temos priorizado muito que as pessoas tragam suas experiências e histórias também.

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A ARTE NO JUQUERY

PRIMEIRA FASE

* 1898 : Fundação da primeira colônia agrícola do Juquery; Francisco Franco da Rocha (1864-1933): primeiro diretor (1898-1923);

* 1923 : Inauguração do Laboratório de Análise Clínica e Patológica do Juquery; entrada de Osório Thaumaturgo Cesar (1895-1979) no hos pital;

1924 : Publicação do artigo A Arte Primitiva dos Alienados: Manifestação Escultórica com Caráter Simbólico Feiticista num Caso de Síndrome Paranóide;

1927 : Publicação do ensaio Contribuição ao Estudo do Simbolismo Místico nos Alienados: Um Caso de Demência Precoce Paranóide num Antigo Escultor;

1929 : Publicação do livro A Expressão Artística nos Alienados: Contribuição para o estudo dos símbolos na arte;

* 1933 : Obras de pacientes-artistas do Juquery são expostas na Semana dos Loucos e das Crianças no Clube dos Artistas Modernos (CAM) em São Paulo;

* 1943 : Criação da Oficina de Pintura do Juquery ;

* 1948 : I Exposição de Arte do Hospital do Juquery no Museu de Arte de São Paulo (MASP);

SEGUNDA FASE

* 1949 : Criação da Seção de Artes Plásticas do Juquery , posteriormente transformada em Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery (ELAP), em 1956; Mario Yahn (1908-1977), primeiro diretor (1949-1951) e Osório T. Cesar, segundo diretor (1952-1964);

1950-51: Maria Leontina passa a atuar na ELAP como professora;

1950: Ocorre a I Exposição Internacional de Arte Psicológica durante o I Congresso Internacional de Psiquiatria em Paris no Centre Psychiatrique Sainte-Anne;

1951: Ocorre a II Exposição de Artistas Alienados no Museu da Arte Moderna de São Paulo (MAM);

1953: Clelia Rocha da Silva passa a atuar na ELAP como professora;

De 1954-1960: Ocorrem mais dezoito exposições com trabalhos de pacientes-artista do Juquery: dentre elas:

1954: Ocorre a III Exposição dos Artistas Plásticos do Hospital de Juqueri , no Museu de Arte de São Paulo (MASP);

1955: Ocorre a V Exposição dos Artistas Plásticos do Hospital de Juqueri , no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM);

1956: Exposição sobre Arte Japonesa , no Instituto dos Arquitetos do Brasil;

1955: Moacyr Rocha passa a atuar na ELAP como professor;

A partir de 1957 os pacientes-artistas da ELAP serão orientados por funcionários do Hospital, não mais contando com professores;

* 1964 : Aposentadoria de Osório T. Cesar;

* década de 1970 : Fechamento da ELAP;

TERCEIRA FASE

* 1983 : O acervo da ELAP é redescoberto;

* 1984-85 : Período de recuperação da acervo da ELAP;

Em junho de 1985 ocorre a Exposição de Desenhos e Pinturas dos Pacientes-Artistas do Juqueri , no Centro de Exposições Rebouças em São Paulo; Em dezembro de 1985 o Museu Dr. Osório Cesar (MOC) é inaugurado;

* 1986 : Inauguração do Ateliê de Artes Plásticas do Juquery ;

* 1987 : Exposição Arte e Loucura - Limites do Imprevisível no Museu de Arte Contemporânea (MAC);

* 2005 : Incêndio atinge o prédio administrativo do Hospital do Juquery;

* 2006 : Fechamento do MOC e encerramento das atividades do Ateliê ;

* 2006-2021 : Período de desativação do Hospital Psiquiátrico do Juquery;

QUARTA FASE

* 2017-2020 : Período de recuperação e restauro do Museu Osório Cesar (MOC);

2018 : O Museu de Arte Osório Cesar (MAOC) é legalmente criado; Em dezembro de 2020 o MAOC é inaugurado;

* Em novembro de 2021 é inaugurada a exposição temporária O que não pode ser esquecido quando o Juquery fecha as portas? na mapoteca do MAOC;

* Em fevereiro de 2022 , obras do acervo do MAOC integram a exposição Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil , no Sesc São Paulo;

A CONSTRUÇÃO COLETIVA DA MEMÓRIA
Sistematização feita por Matheus Alves Vilela no contexto do Curso de Formação de Educadories do MAOC, 2022

Matheus Alves Vilela - Bom dia, a todos e a todas. Meu nome é Matheus, eu sou professor de história, e trabalho aqui no MAOC, no educativo. Eu costumo dizer que há duas formas da gente entender a história do Juquery. O Juquery pode ser pensado, muitas vezes, como uma masmorra medieval de tortura ou como um paraíso na Terra e, na verdade, se a gente for ver, essas visões são extremas e opostas, e a realidade não corresponde a nenhuma delas, está no meio disso. E o museu está no meio disso como um campo de disputa dessa memória. Do ponto de vista pedagógico, podemos dizer do museu, ou da exposição, que é um espaço de educação não formal, e que a nossa função aqui como educadores, como a Dani estava falando, é a de mediar as discussões que a exposição propõe, que ela permite que sejam feitas. Assim, do ponto de vista museológico, a ação educativa faz parte da comunicação do museu, da estratégia de comunicar sobre a exposição e sobre o museu. A ação de comunicação feita através das redes sociais, é uma estratégia, assim como a ação educativa.

DA MEMÓRIA

Joana Zatz Mussi - Dá vontade de começar a fazer um monte de perguntas! Mas agora, vamos apresentar a Ana pra gente continuar mergulhando nesse arquivo. A gente, como Grupo Contrafilé, conheceu a Ana quando f omos convidades por ela para participar da exposição “Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura”, que foi fruto de uma parceria entre a Ana, o Sesc Belenzinho e o Memorial da Resistência. E a proposta da Ana para essa exposição foi a de convidar artistas para que entrassem em contato com arquivos da época da última ditadura civil militar brasileira e, a partir disso, produzissem obras.

da resistência, em um primeiro momento começamos a nos perguntar: mas exatamente, o que é um arquivo? E essa se tornou a nossa primeira pergunta, tanto pra nós, quanto para a Ana como curadora da exposição. E que gestos podemos fazer para puxar fios de um arquivo, como s e faz isso? Essa foi uma segunda pergunta. E uma terceira: afinal, por que é importante que nós, como artistas, nesse sentido de nós como seres criativos e criadores, dentro dessa dimensão de um gesto criativo, por que é importante esse gesto de criação ou de invenção, de imaginação coletiva, estar em contato com os arquivos? Por que é importante estabelecer essa relação entre arquivo e ficção, como diz a Ana?

Essas foram, então, perguntas que fomos nos fazendo. E o encontro com a Ana nos ensinou, por exemplo, que o arquivo é um lugar ao mesmo tempo muito comum, porque todo mundo tem um arquivo de fotos, de documentos, mas é também um lugar que pode ser muito misterioso. Eu lembro que na semana passada alguém falou do Juquery como lugar do mistério, do tabu, mas ao mesmo tempo como um lugar totalmente cotidiano para quem mora em Franco da Rocha e na região, por ele ser tão parte da paisagem.

Uma outra coisa que a gente aprendeu quando começamos a entrar nos arquivos da ditadura efetivamente, e tem muito a ver com os dois lados sobre os quais o Matheus estava falando, é o quanto um arquivo é um lugar que pode ser muito sombrio, porque pode carregar muitas histórias de violência, mas ao mesmo tempo pode ser um substrato, uma matéria de muita libertação, porque existem ali muitas invisibilidades, coisas que fazem parte de mim ou de nós como coletividade, coisas que me d efinem e nos definem, mas eu ou nós não sabemos. Daí, quando a gente co meça a entrar em contato, é um susto, mas aquilo de alguma forma nos liberta.

Então, tinha muito a ver com essa conexão com arquivos a partir do lugar do artista. Não no sentido de que alguns são artistas e outros não, mas no sentido do gesto artístico, ou seja, de como podemos nos conectar com arquivos a partir de um modo de corpo, de pensamento, que tenha a ver com o gesto da arte, vamos dizer assim, que é algo que a gente está querendo conversar aqui.

Só que naquele momento não tínhamos um pensamento muito constituído sobre o que significa um artista em um arquivo. A gente não sabi a, na verdade, que já trabalhávamos com essa perspectiva. Quando a Ana nos chamou para trabalhar com arquivos da ditadura, tanto da opressão quanto

Cibele Lucena - Uma vez, a Ana trouxe, numa conversa, o quanto a preservação de um arquivo está ligada também com o corpo e com a gente mexer, vasculhar e sacudir o arquivo. Isso é uma coisa que ficou forte pra gente também, a ideia de tirar de um lugar só estrito à violência para abrir caminhos, inclusive para que a história não se repita. Então, a preservação não significa conservar a história do jeito que el a é, mas tem a ver com sacudir, mexer, entrar, tem a ver com esse movimento do próprio corpo no embate com o arquivo. E se a gente pensar nesse acervo

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e na história do MAOC, tem muito a ver com isso também. Preservar e tirar de lugares de tabu, mexendo, puxando fios, entrando, enfim.

COLETIVA DA MEMÓRIA

Joana - Isso pra gente foi chocante. Aprendemos que preservar tem a ver com movimento, com colocar em movimento. E aí, a arte entra.

Para nós, o arquivo em si era a memória. Mas fomos entendendo que o arquivo não é memória, ele é uma matéria-prima para produzir memória, e é esse o movimento, esse é exatamente o gesto, do corpo mesmo, de levantar poeira, de mexer. Isso é o que produz memória, o gesto individual e coletivo. Se estamos falando de memória pública, coletiva, então é o gesto coletivo que vai produzindo memória social, por isso que tem a ver com a relação entre arquivo e ficção, no sentido de algo que vai sendo produzido inclusive como intervenção no imaginário e como imaginação coletiva.

Entrando um pouco mais em como isso pode ser feito ou pensado no âmbito da pesquisa em arte, aprendemos que a gente não procura, na verdade a gente muito mais encontra alguma coisa no arquivo. Porque muitas vezes não sabemos direito nem o que procurar, pode ter um campo de trabalho, nesse caso, por exemplo, era a resistência à última ditadura militar, mas existe uma espécie de gesto ou atitude que tem muito a ver com a lógica do atravessamento, com aquilo que te interpela, que te c hoca; e com um certo tempo também, com um tempo para deixar com que as perguntas venham, com que um certo pensamento possa ir sendo constituído.

entendidas como inertes; mas que não são. Eu trouxe só algumas coisas, poderia trazer mais. Mas acho que a gente pode passar a palavra pra Ana. Ana Pato - Bom, gente. Obrigada! Muito legal ouvir vocês. Minha cabeça ficou a mil! Porque tem muitas relações que podem ser feitas. En tão, primeiro eu queria agradecer o convite, ao Grupo Contrafilé e a vocês, ao Elielton, à Michelle, e à toda a equipe.

Por onde começar? Primeiro, dizendo que eu iniciei a minha pesquisa acadêmica com arquivo a partir de uma experiência pessoal, profissional, trabalhando no acervo do Videobrasil1, num processo de organização de um arquivo audiovisual. Então, tinha uma questão física e também uma dimensão do tempo, que está muito ligada ao arquivo. Porque eu trabalhava como produtora, fui produtora e gestora cultural durante quinze anos, e entrar na reserva técnica, pra mim, era o momento em que eu podia fugir da produção e me abrigar num lugar silencioso, num outro tempo.

A Ana falava pra gente que o artista é como uma chavinha mágica. Porque existem milhares de arquivos, os arquivos são gigantes, eles são imensos. Como a gente vai puxar o fio? Que fios a gente puxa? E ela começou a entender os artistas, esse lugar da arte e de um gesto artístico como a possibilidade de desenvolver a pesquisa a partir de um atravessamento, ou seja, a pesquisa parte de um modo de estar que é singular, afinal isso é arte! É você fazer um gesto que, de al guma forma, singulariza, mas nessa singularidade você consegue enxergar alguma coisa que é coletiva, que tem a ver com todo mundo. E isso abre a possibilidade de entrar no arquivo pelo olhar do outro, nesse caso, dos artistas, o que vai criando sentidos individuais, mas também coletivos para a memória, sentidos para coisas que, a princípio, poderiam ser

Eu fui criando, com isso, o que o Derrida 2 chama de “Mal de Arquivo”. Acho que os historiadores sabem bem disso. Quando você vai desenvolver uma pesquisa em arquivo, você encontra essa dimensão, que tem a ver também com a biblioteca, que é esse lugar do silêncio, esse privilégio da pesquisa. Esse lugar de construção da história começou a me intrigar e, de quanto, por exemplo, do ponto de vista da história da arte, quem trabalha com essa dimensão de um acervo histórico em arte tem um poder muito grande. Na hora em que você define se um material é colage m ou se é cola sobre papel, é uma mudança radical no olhar que você tem sobre uma produção. Acho que vocês sabem muito bem disso, pelo quanto já mudou

1 Fundada por Solange Farkas em 1991, a Associação Cultural Videobrasil é fruto do desejo de acolher institucionalmente um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido desde a primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em 1983. Desde então, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte. http://site.videobrasil.org.br 2 Um importante filósofo do século XX, Jacques Derrida (1930-2004) nasceu em El-Biar, Argélia, antiga colônia francesa. Ao longo da carreira acadêmica, atuou como professor em diversas universidades, especialmente europeias e norte-americanas.

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a denominação sobre essa produção com a qual vocês trabalham e pela escolha de vocês em entender o MAOC claramente como um Museu de Arte. Então isso é algo pra gente pensar.

A partir dessa minha experiência, eu fui pro mestrado, pro doutorado e comecei a pensar o arquivo do ponto de vista conceitual, com o objetivo de repensar as instituições de memória. E não podemos nunca esquecer que quando a gente fala de arquivo, fala de museu, a gente está falando do Brasil colonial e da instauração de um modelo de nação fundamentado nas teorias raciais, do final do século dezenove, e nas teorias do conhecimento.

Hoje, eu trabalho num museu de história, num lugar de memória, e não posso esquecer que lugar de memória é um conceito colonial também, é um conceito justamente de nações que acabaram com a sua memória e precisaram recriar. Dia de aniversário: por que a gente precisa do dia de “não sei o quê”? É porque a gente não lembra mais. É porque perdemos essa memória coletiva, perdemos a praça, o lugar de encontro. Precisa criar o cemitério porque não existe mais a ação coletiva, em comunidade, de enterrar os mortos. Precisa ter a data, senão o nosso tempo nos atropela e a gente não consegue lembrar de mais nada.

Outra questão que é legal também lembrar é que tem aqui artistas, historiadores, cientistas sociais, museólogos, tem campos diferentes. Eu brinco que estou há dois anos trabalhando no Memorial da Resistência e até o momento eu era a única que não era historiadora. E quando olhamos para o arquivo do ponto de vista da arte é muito diferente do olhar do historiador e tem toda uma construção a ser feita junto. Esse é o meu trabalho mais específico com o arquivo como instituição, pensand o nessa instituição que está ligada ao estabelecimento dos estados-nação, à constituição das nações. Porque só se instaura uma república num país quando você instaura junto o arquivo. A república brasileira vem junto com a criação dos seus arquivos, o recolhimento da documentação das igrejas e hospitais e a organização dessa documentação num único lugar, então estamos falando de uma dimensão de poder. É desse lugar que a gente está falando.

Eu comecei esse trabalho mais específico em torno da instituição do arquivo em 2014, quando fui curadora da 3ª Bienal da Bahia e tr abalhei

dentro do Arquivo do Estado da Bahia com um museu etnográfico, q ue se tornou o objeto de pesquisa do meu doutorado. De novo, tem semelhanças com o que a gente está conversando aqui, porque eu trabalhei no Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima, em Salvador, que er a o chamado Museu da Polícia, como temos o Museu da Polícia em São Paulo. Foi a partir da pesquisa de um artista convidado para a Bienal, o Eustáquio Neves, que descobrimos o arquivo do Museu da Polícia, que estava dentro do Instituto Médico Legal e era um arquivo museológico, da história desse museu.

Seiscentas peças estavam guardadas durante dez anos dentro do Departamento de Polícia, quando o museu foi fechado em 2005. Vendo as datas que vocês foram trazendo sobre o MAOC parece que, no fundo, tudo é uma grande repetição. Dá vontade de juntar todas as instituições brasileiras para discutir colonialidade e formação das nossas instituições. Pensando o que o MAOC tem a ver com o Memorial da Resistência, por exemplo. Pode começar pelo nosso arquiteto, o Ramos de Azevedo. O que o Juquery tem em relação, por exemplo, com o Museu da Polícia? Justamente, as teorias higienistas que vão fundar o Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima, que é o antigo Museu Nina Rodrigues. Toda a história da eugenia brasileira vem a partir da história desse museu. Precisamos, então, de fato, encarar essa produção hoje com outro olhar. Por isso, gostei muito de ouvir o Matheus falando em comunicação.

Dentro do Memorial, trabalhamos o ano passado inteiro com a palavra comunicação. E, na verdade, olhar a produção artística no arquivo é também olhar a cadeia de transmissão de conhecimento de como se constrói uma memória. Isso que a Joana estava falando tem muito a ver com o que difere o olhar do artista do olhar do historiador ou do arquivista para um arquivo, que é que você mostra milhares de documentos para um artista e ele escolhe um. Um basta. A partir daí ele desenvolve o seu pensamento.

Mas algo importante que gostaria de dizer é que uma coisa que sempre me incomoda no discurso das instituições culturais é a memória estar aparentemente em primeiro lugar, mas quando você está dentro de uma instituição cultural, percebe que as áreas que menos recebem recurso são justamente aquelas que lidam com arquivo. Então, tem uma questão

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aí que a gente precisa olhar. Por que isso? O Achille Mbembe 3 é muito legal para pensar isso, porque ele vai dizer justamente que essa é a dualidade do arquivo. Que ao mesmo tempo em que o Estado precisa guardar o arquivo, ele está guardando ali as provas daquilo que um dia pode ser reivindicado. E é por isso que o arquivo é um lugar de direito, a gente tem que ter essa noção, que ele é, fundamentalmente, um lugar de direito, até nas suas lacunas, talvez justamente nas suas lacunas.

O Museu da Polícia com o qual trabalhamos na Bienal da Bahia ficou muito famoso nos anos 1980, porque deixou expostas por mais de vinte anos as cabeças mumificadas do bando do Lampião. E por isso passou por dois processos jurídicos importantes da história da museologia brasileira, que é justamente a luta da família do Corisco e da Maria Bonita para tirar a cabeça deles de exposição, e poder enterrar junto com os corpos. Essas cabeças ficaram expostas e nos anos 1980 esse era o museu mais visitado por escolas. A partir dessa história conseguimos entender como se constrói a criminalização de um povo.

Já no final dos anos 1990, início do ano 2000, o museu sofre um outro processo importante que foi a luta do movimento negro, ligado às religiões de matriz africana, para a retirada dos objetos sagrados que estavam expostos no museu, porque como era um museu da polícia, aquela antiga delegacia de jogos e costumes invadia os

3 Achille Mbembe é um filósofo, teórico político, historiador e professor universitário camaronês. Aqui, compartilhamos a tradução para português de seu texto O Poder do Arquivo e Seus Limites, que faz relação com a discussão presente nesta conversa: https://docplayer.com. br/196585022-O-poder-do-arquivo-e-seus-limites.html (último acesso em 06/04/22).

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No dia em que nos encontramos com Ana Pato, esta obra de Aurora Cursino foi apresentada para o grupo. Em um dado momento, conversamos sobre o fato do Juquery, e de todo o mecanismo manicomial, afetar não apenas as pessoas internadas no hospital, mas também as que ali trabalham, seus funcionários e funcionárias. Na obra, Aurora parece refletir sobre uma certa melancolia que atinge os funcionários, retratando enfermeiras literalmente com as mãos atadas (o que lembra uma camisa de força), impossibilitadas de fazer algo pela paciente, que é pequenina perante as funcionárias do Juquery.

Aurora Cursino dos Santos, Nocturno no Juqueri (s/d). Óleo sobre papel. 53,7 x 35,5 cm

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terreiros de Candomblé e apreendia as peças, e essas peças iam parar no Museu da Polícia como objetos para, justamente, a construção de um modelo de eugenia, a construção do que era deturpação, do que era um marginal, enfim, e por aí vai. Então, estudar a história desse m useu é fundamental para a gente entender muito sobre o Brasil e sobre as nossas instituições museológicas também.

Comecei a trabalhar com esse olhar para a arte, porque o artista que trabalha com arquivo coloca em movimento, justamente porque não tem tanto essa relação de preservação, no sentido da conservação do documento, muito mais a transmissão de conhecimento. Nesse contexto, é importante pensarmos que tem toda uma mudança na forma como olhamos os museus, os arquivos, ligada aos discursos da memória, que vêm depois da Segunda Guerra Mundial, aos direitos humanos, à necessidade de historiadores e sociedade terem acesso a esses arquivos da história traumática. A história do Holocausto, do apartheid na África do Sul, os arquivos das ditaduras na América Latina, todos esses episódios são referências para a importância de olhar a memória, de como podemos olhar o que aconteceu e repensar essa história.

O Brasil é muito tardio nisso, o Memorial da Resistência é de 2009 e vem a partir de uma demanda da sociedade civil em torno do fórum dos ex-presos políticos para que aquele prédio da Estação Pinacoteca, que é o antigo prédio do Deops, onde durante quarenta anos esteve uma das polícias mais truculentas do período republicano, fosse identificado como um lugar de memória. E tem nele a dimensão de uma memória em disputa também porque ali a gente convive com dois museus. A Pinacoteca, que é um espaço de arte e o Memorial, um museu em torno de um espaço carcerário.

Ficamos quase um ano fechados por causa da pandemia e os educadores tiveram tempo de produzir um material para dialogar e tratar desses temas que são tabus na nossa sociedade. Eu entrei no Memorial com essa questão da comunicação, que me parecia fundamental porque, por exemplo, era o único museu do Estado que não tinha um profission al de comunicação. Abrimos ontem a primeira vaga de comunicação do Memorial. É muito sintomático, se pensarmos que é um museu que não tem ninguém de comunicação. E por quê? Porque é um assunto que quase não deve ser falado. Então a gente vem trabalhando muito nessa direção, de dizer: olha, a gente pode falar desse assunto, é possível falar da tortura,

é possível falar da violência de Estado, sem ser uma ofensa. Temos que falar disso, temos que discutir esse assunto. E é um tema que eu tenho pensado como um desdobramento da ideia de arquivo, quer dizer, desdobramento dessa ideia de uma memória que precisa ser construída. Aí vem a comunicação museológica. A construção artística é fundamental nesse sentido e a produção de pesquisa também. Eu mandei pra vocês um livro, uma revista que eu fiz junto com uma professora da pedago gia da Unicamp para o Arquivo Nacional, em que estabelecemos um diálogo entre arte e pedagogia olhando pro arquivo, que é uma outra dimensão também.

Quando eu estava nessa experiência do Arquivo do Estado da Bahia, eles queriam muito trabalhar com as visitas das escolas. Mas o que me chamou muito a atenção é que eles deixavam a documentação pronta, então, por exemplo, um professor de história queria estudar a Sabinada e eles já tinham todos os documentos separados numa caixinha. O aluno vinha, pegava aquela caixinha, e aí a gente começou a fazer um trabalho de dizer: não, gente, estamos perdendo a dimensão do encontrar, que é uma dimensão que tem muito a ver com o processo de aprendizado, porque a experiência de aprender passa pelo procurar.

Elielton - Eu queria te fazer uma pergunta. Quando você falou sobre essa questão da comunicação, eu queria te perguntar se esse é um lugar de disputa do Memorial em relação à Pinacoteca.

Ana - A visão que eu tenho sobre isso, não como gestora, mas como uma pessoa que tem experiência nessa relação é que o fato do Memorial ter sido criado como um departamento da Pinacoteca diz muito sobre os tabus. Quando o Memorial foi criado, e aí estamos falando do processo de redemocratização, apesar do Estado dizer: “vamos criar o Memorial”, existia muito receio de se criar uma instituição desse tipo. E então ela é criada como um departamento da Pinacoteca.

Eu acho que é essa batalha em que a gente está hoje, e vocês também, de entender que falar de direitos humanos é falar do direito de todos, sair desse lugar que botou a caixinha dos direitos humanos num lugar

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complexo. Se pensarmos que a Comissão Nacional da Verdade foi em 2014 e dois anos depois tivemos um golpe… Quer dizer, precisamos realmente dar um passo atrás a partir daquele ponto de vista que estávamos falando, de que são instituições do período colonial, do período da ditadura. Nesse sentido, esse trabalho que vocês fazem de contextualização do acervo a partir da história das pessoas, é um trabalho incrível, porque traz essa outra dimensão para um acervo de arte.

DA MEMÓRIA

Elielton - Isso me fez pensar que outros museus do Estado passam por esse processo, como o Museu da Diversidade Sexual que foi criado só com uma sala, dentro de uma estação de metrô, ali na República, para depois se pensar no prédio na avenida Paulista, que ainda está em disputa. Então, são várias questões para o fortalecimento de uma instituição.

nunca poderem ter qualquer tipo de reconhecimento que vá além do hospital. E é muito curioso como o fato de não termos contato com esse prontuário, nos impede de ir além do próprio arquivo, porque muitas vezes não conseguimos contar uma história, fazer uma biografia. Esse prontuário pode dar informações que não abrangem a complexidade da vida dessas pessoas, e talvez a própria obra traga muito mais do que esse tipo de arquivo mas, mesmo assim, sentimos dificuldade de individualizar cada artista daqui.

Uma crítica que fazemos, muitas vezes, é o tipo de exposição que se faz com as obras que estão no nosso acervo. Nós sentimos que tem instituições que tendem a pegar essas obras e a colocar sempre “aqui está a parte dos artistas loucos, dos artistas do hospital”, e isso acaba se tornando uma amarra. Faz parte da vida dessas pessoas, óbvio, elas estiveram no Juquery, muitas passaram praticamente a vida inteira aqui. Tem gente que foi internada aqui desde criança. Mas, ao mesmo tempo, pela própria ideia de ser um museu de arte, não queremos que seja pensado só em suas possibilidades de relação com a saúde mental.

Ana - É isso que eu fico falando com a equipe, porque encontrei uma equipe muitas vezes chateada com essa situação. É um pouco dizer: gente, o Memorial tem um pouco mais de uma década, a gente está falando da Pinacoteca que tem 120 anos. O tempo de se pôr em prática o que se quer é o tempo do desenvolvimento institucional. A gente não tem muito como fugir disso, não adianta dizer: ah, mas está escrito no papel. Está, a nossa Constituição também foi escrita, ela é fundamental, não estou dizendo que ela não é fundamental, ela é essencial, mas tem uma dimensão prática, tem uma dimensão de fazer a coisa acontecer.

O Ubirajara, por exemplo, é um artista que fala de questões políticas. Ele retrata coisas que estavam acontecendo no cotidiano dele, notícias que estava vendo. Tinha vários questionamentos da realidade que iam além da questão da saúde e da saúde mental.

Elielton - É importante também entender que o arquivo, o prontuário, ele não é uma finalização, como a Michelle falou, mas um possível ca minho para acessar outras pessoas, outras “escolas de testemunhos”, outros familiares, que possam também nos conceder mais informações.

Michelle - Eu estou pensando em muitas coisas. No caso do MAOC, a gente percebe como não temos contato com esse arquivo clássico, que são os prontuários, até de funcionários, a gente não tem nenhum contato. Se alguém chegar pra mim e pedir uma informação muito específica de um artista, eu possivelmente não vou saber dizer nem o nome correto do artista. E isso gera a nossa grande discussão ética, que parte de uma premissa médica, que não parte do nada e que faz sentido, de que a pessoa tem direito a preservação do nome dela, os familiares têm direito de preservação do nome deles. Mas, por outro lado, percebemos como isso acaba apagando e condenando, entre aspas, os artistas que são do nosso acervo a

Ana - É uma questão super importante e complexa essa que vocês estão levantando. Pensando na situação brasileira hoje e no nosso papel como museu, entendo que o nosso papel é de fomento. Até de fomento à pesquisa. Hoje, por exemplo, lançamos um edital em que damos duas bolsas a jovens pesquisadores que estão estudando a temática ditadura e periferia. Que é um tema no qual não conseguimos chegar, porque a nossa equipe de pesquisa é muito pequena. O que eu quero dizer com isso? Que

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essa é justamente uma pesquisa ligada à história oral, uma coleta de testemunhos nos bairros, e a produção de conteúdo se dá a partir disso.

Talvez esse seja um caminho também para vocês, quer dizer, como olhar a memória, a história dessas pessoas, a partir, talvez, de iniciativas que já existam na região mesmo, porque senão não damos conta, ficamo s apenas com as lacunas. Essa é uma forma, como museu, de pontuar o que achamos que é importante. Quando eu fiz a exposição Meta-Arquivo, eu pro curei a Marília Bonas, que na época era coordenadora do Memorial da Resistência, e propus uma parceria, porque eu disse pra ela: olha, eu não consigo dar conta da pesquisa sobre ditadura, então eu me associo ao Memorial, que me dá as fontes de pesquisa, e nós fazemos o trabalho de comunicação artística, vou chamar assim, sendo mais radical. Mas acho que é esse lugar que precisamos pensar, essa posição de conhecimento em rede mesmo.

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Cibele - No encontro passado, falamos bastante disso, de que puxar fios tem a ver com as histórias. E percebemos o quanto esse grupo, para falar do MAOC, fala da própria história, da cidade, do território. Porque o MAOC tem a ver com a identidade do próprio território, dos bairros. Acho que podemos fazer uma pequena rodada aqui trazendo alguns fios q ue ficaram importantes das falas da Ana e do Eli, da Michelle, do Mateus, pra continuar aprofundando.

como provar basicamente nada do que aconteceu aqui.

E tem outras questões. Se formos pensar que tem um cemitério também… quem está enterrado lá? Aí, eu venho novamente com essa questão dos funcionários, de como essa cidade foi criada a partir desse lugar, porque antes do Juquery, Franco da Rocha não existia, era um grande matagal e a cidade foi crescendo por causa do hospital. E como registramos tudo isso? Fiquei pensando nisso e me lembrei dessa conversa entre mulheres em casa, fiquei matutando como pegar essas histór ias e o que pode ser feito com elas.

Amara Hartmann - Acho que pensar como manter essa memória está sendo muito discutido desde o encontro passado. O Juquery tem essa questão muito forte das obras artísticas, que graças ao MAOC estão aí, mas o Juquery também tem muitas outras histórias. Eu fico mais próxima da questão dos funcionários, por causa da minha avó que foi funcionária do Juquery.

Só para vocês terem uma noção, esse fim de semana veio gente em casa e começaram a falar do Juquery, uma moça contou que a mãe dela era assistente social lá e lembrou uma história que parece que a prima do Hitler veio parar aqui e quando essa idosa morreu vieram pessoas da Alemanha buscar o corpo dela. Não sei se é boato, não tenho nenhuma prova, até porque houve o incêndio no prédio administrativo e não temos

Michelle - Eu fiquei pensando sobre essa questão da ditadura, da prisão, essa relação hospício e prisão, as instituições totais. A história da Nise da Silveira, lá no Rio, é muito parecida com a história do Osório César, em alguns pontos é até curioso de tão parecida. É claro que acaba tendo as suas diferenças. Os dois eram nordestinos, estudaram aqui no Sudeste, foram muito importantes para coleções de arte e saúde mental. E os dois foram presos na Era Vargas, em períodos acho que até próximos. A Nise, inclusive, é uma das personagens do Memórias do Cárcere , do Graciliano Ramos, não está com o nome dela, mas é uma das pessoas citadas. Ela foi presa nesse momento e o Osório foi preso várias vezes. O próprio Eurípedes, que é um pesquisador do Museu de Imagens do Inconsciente, que conheceu a Nise e outros, fala que a experiência da Nise de ter sido presa, ela que já era uma mulher muito sensível às questões sociais, pode ter intensificado a sua reflexão sobre ess a questão do corpo aprisionado.

O próprio Juquery tem um manicômio judiciário, que é aquele tipo de instituição que está nos dois mundos, mas mesmo o manicômio que não é judiciário, ele sempre está com um pé na questão jurídica. O Paulo Amarante, que é muito importante pra reforma psiquiátrica, escreve muito sobre essas questões, fala bastante sobre essa relação médico-jurídica que existe em qualquer hospital psiquiátrico, e aí entra muito a questão do comportamento, da questão moral em relação ao outro, de o que é ser desviante. O Ubirajara, de umas poucas coisas que eu li, porque ele escrevia também, teve uma experiência de ter sido preso. Eu só não posso confirmar se foi na década de 1960, com a ditadura militar, ou s e foi na

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época do Vargas, mas foi preso por ter interesses e ideias comunistas. E ele fala muito dessa experiência traumática de ter sido preso. Muitas vezes, quando vemos algumas obras dele aqui, parece que ele está falando do Juquery, que é uma espécie de prisão, e na verdade ele também está falando dessa experiência que foi tão traumática quanto. Então, é muito interessante pensar o que é realmente a limitação do corpo.

é, de fato, cortado. Tudo o que vinha em um processo de crescimento, desenvolvimento, foi, enfim, acabado. Como a gente está vendo ho je. Na verdade, a gente está revendo e revivendo esse processo.

Ana - Eu fiquei pensando, a partir da fala de vocês, sobre a história do MAOC, sobre como temos até os anos 1950 um pensamento no Brasil que

Camila Costa - Fui ouvindo vocês e lembrando da minha experiência, que é dentro da sala de aula. No ano passado, eu levei uma turma para conhecer o MAOC. Como era nono ano, estudamos ditadura, discutimos muito o Brasil colônia. E uma coisa que eu vi foi um desconhecimento muito grande. E quando eles visitaram o MAOC foi um divisor de águas, porque estávamos

Ubirajara retrata muitas prisões com celas, e em algumas de suas obras é comum aparecerem formas que lembram grades. Há relatos de que o artista foi preso na ditadura por pintar/pichar paredes (não sabemos ao certo se na Era Vargas ou na ditadura militar). Este fato o marcou bastante, e suas obras demonstram que a experiência de encarceramento antecede sua passagem pelo Juquery. Ao ouvir Ana Pato, é possível relacionar as obras de Ubirajara com o trabalho desenvolvido no Memorial da Resistência de São Paulo.

A
Ubirajara Ferreira Braga, A Prisão do Sequestrado, 1995, pastel oleoso e guache sobre papel. 47,8 x 65,7 cm Ubirajara Ferreira Braga , Galo de Briga, 1990, guache e pastel oleoso sobre papel, 50 x 66,2 cm
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estudando sobre o Juquery, sobre a história de Franco da Rocha, e eles achavam que no Museu encontraríamos uma coisa antiga, morta, vazia e visitar as obras, entender sobre as obras, foi muito diferente, porque eles enxergaram que era muito maior do que aquilo que eles pensaram a vida inteira. Alguns alunos tinham até medo de ir ao Juquery. E eles abriram muito a mente, ficaram muito mais curiosos, perguntando: Por que nunca estudamos isso? Por que nunca entendemos isso? Foi isso que eu mais gostei nessa pesquisa sobre puxar fios. Porque puxamos um fiozinh o ali da roupa e, quando vemos, tem um carretel inteiro de coisa. É muito legal!

DA MEMÓRIA

Joana - Isso é uma coisa que eu penso muito também, uma coisa que me intriga. Quando você estava falando, Camila, fiquei lembrando qu ando eu e a Cibele, o Grupo Contrafilé, também junto com um outro coleti vo do qual fazíamos parte, o Política do Impossível, fizemos um trabal ho com quilombos. Eu lembro que uma coisa que perguntávamos muito era: por que nunca aprendemos sobre isso? E parece uma coisinha pequena isso de puxar um fio, mas transformamos essa na grande pergunta do trabalho co m os quilombos e quilombolas. A pergunta era exatamente essa: por que nunca aprendemos a história dos quilombos? Por que nunca tivemos antes essa percepção, que naquele momento pudemos ter, de que os quilombos e os quilombolas não estão longe e no passado? Porque o entendimento, que é o que geralmente aprendemos nas escolas, é de que quilombos e quilombolas estão muito distantes no tempo e no espaço e isso também tem a ver com essa mentalidade colonial sobre a qual estamos falando, que oprime certas existências, certas formas de estar no mundo. E, a partir disso, começamos a entender que os quilombolas e quilombos estão aqui, eles existem. Tanto existiram como existem ainda e isso continua operando e continua operando no presente, operando o presente.

Cíntia Barbosa - Depois do nosso encontro na semana passada, ficaram na cabeça muitas provocações e hoje não está sendo diferente. Me lembrei que quando eu era estudante, assistimos aquele filme Bicho de Sete Cabeças e para mim foi bastante emocionante. Fazendo um paralelo com a ideia do manicômio judicial e de como eram tratadas as pessoas que tinham um vício, de forma criminalizada, colocada em um espaço como aquele, no qual se misturava tudo, absolutamente todas as condições.

E na verdade, até hoje é assim. São muitos que são enquadrados dessa forma, como desajustados, e que vão parar em uma prisão.

E quando isso aconteceu, também foi uma abertura de mente muito grande pra nós. Acho muito importante o que você está falando, de você continuar puxando esse fio. E uma outra coisa também que fiquei com vontade de falar para a Ana, a Michelle, o Eli, a Dani e o Matheus, é que dá muita vontade de fazer uma avaliação de impacto do trabalho. Como o trabalho que vocês fazem nesse tipo de museu de resistência vai impactando mesmo, vai mudando certas concepções. E começar a entender qual é o impacto desse mexer, desse ativar arquivos na imaginação, na aprendizagem social.

Essa sensibilidade às questões sociais nunca passa, ela infelizmente só aumenta no contexto que estamos vivendo, político, econômico e social. E tudo isso cria um paralelo entre as questões sociais no capitalismo e sua relação com as doenças atuais da mente. Como comunicar sobre isso? A Ana Pato e o Matheus falaram dessa questão da comunicação, e me pergunto como podemos comunicar melhor no momento atual sobre questões de ordem psicológica e emocional que estão vindo à tona, como uma avalanche. Como é importante pensar nisso! E acho que o MAOC nesse momento faz isso muito bem, porque vai lá no passado e resgata essa temática, tão necessária. Cibele - Lembrei que escutei certa vez, da psicóloga Kely Kanazawa, que trabalha no Caps Itaim Bibi, que a luta e as práticas antimanicomiais precisam ser atualizadas e afirmadas o tempo inteiro, principalm ente porque as práticas manicomiais ainda existem, refletidas na idei a de que é preciso internar, de que o louco precisa estar fora da sociedade, enclausurado. A luta e as práticas antimanicomiais falam diretamente sobre o fechamento dos manicômios, mas também falam da possibilidade de tirar o manicômio e suas lógicas das relações, do nosso olhar. As práticas antimanicomiais são necessárias e urgentes, inclusive nos equipamentos de cuidado em liberdade.

Michelle - Sobre o que a Cibele está falando, diante disso, precisamos realmente pensar qual o papel desse Museu nesse momento. No ano passado, saíram os últimos internos nesse sistema mais compulsório aqui do Juquery, internos que estavam aqui há anos. Mas a questão é que a reforma vai além da área da saúde mental, que é como reformular a

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sociedade em si, para que essas pessoas possam realmente ter todos os seus direitos preservados. E aí é um outro desafio, é preciso pensar nas outras formas de aprisionamento que existem, que não necessariamente acontecem no espaço físico.

Um jornalista que é bastante famoso, já faleceu, o Goulart de Andrade, fez uma espécie de documentário no Juquery no qual entrevista alguns artistas que hoje estão no acervo do MAOC. Lá se pode ver o caso do Lorenzo Serrato. Ele tem origem italiana e a terapeuta dele fala que, na verdade, já naquela época, ele poderia estar vivendo em sociedade, porque ele não tinha um problema de saúde mental extremamente grave. Tinha um problema com alcoolismo, mas ele não conseguia sair de lá pelo fato de que, como ele era italiano, não tinha parentes no Brasil, pessoas que poderiam abrigá-lo, então ele estava condenado a viver no Juquery por isso.

Temos muitos artistas de origem japonesa aqui e nós nos indagamos: será que a pessoa esteve aqui porque foi diagnosticada de fato com alguma coisa ou ela, na verdade, teve um certo choque por estar vivendo em outra cultura e isso foi entendido como um problema de saúde mental e um desvio?

E isso, mesmo com o fim do Juquery, permanece. Esses choques cul turais que existem, pessoas que são isoladas, imigrantes que vêm pro país e sofrem, que já estão, muitas vezes, saindo do seu país de forma forçada, e vêm para um outro país e tem que se adaptar aqui e às vezes não conseguem. Acho interessante pensar, nesse momento, já que muitas dessas instituições estão acabando, quais são essas outras formas de isolamento? Acho que é uma pergunta importante para pensar as ações do museu.

DA MEMÓRIA

Cibele - E quando começamos a puxar os fios, essas histórias vêm. Aconte ceu isso com o Grupo Contrafilé na exposição Meta-Arquivo também. Qu ando puxamos os fios, as histórias dos familiares, amigos de familiar es, começaram a brotar, e foi uma coisa muito forte, muito potente. E elas estavam ali, represadas em algum lugar. Uma história forte e atual é a de Jéssica Barbosa, atriz, carioca e que produziu uma peça-filme chamada Em busca de Judith . Ela passa anos atrás da história da avó, que foi internada em um Hospital Psiquiátrico do Rio de Janeiro, e descobre que

a avó teve uma depressão pós-parto. E quantas mulheres não tiveram essa história?! Bom gente, são muitos assuntos e poderíamos ficar aqu i mais horas e horas…

Ana - Queria agradecer, foi um prazer enorme conhecer o MAOC e espero logo poder visitar vocês.

Elielton - Venha, Ana!

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CADERNO DE REGISTROS

Este caderno reúne algumas estratégias criadas pelo Grupo Contrafilé em sua trajetória dentro e fora de museus e espaços culturais, assim como os percursos elaborados em duplas ou trios, pelas pessoas que participaram do Curso de Formação de Educadores do MAOC. Sistematizando-as nessa publicação, objetiva-se não a criação de modelos a serem seguidos, mas inspirar educadories de museus, escolas ou de outros espaços de educação não formal a trabalharem de forma integrada com o campo da arte, da cultura e das questões que atravessam cotidianamente a todes nós.

COMO LIDAR COM A MEMÓRIA DA DOR E DO TRAUMA?

LIDAR COM

MEMÓRIA

TRAUMA

OLÁ RAFAEL, JOANA E CIBELE,

Estamos com problemas bastante sérios na cidade, acho que vocês devem ter visto no jornal. Franco da Rocha teve uma enchente que levou até à morte de pessoas por deslizamento de terras, a cidade está extremamente suja de lama, estamos passando por um momento de luto na cidade. E pensando nas aulas que vocês estão dando para nós no curso, acho até que essa situação se encaixa bastante com a questão da memória, mas a memória de algo traumático para a cidade, que é a enchente. O MAOC não está funcionando para o público esta semana, estamos trabalhando em outros equipamentos. O museu, por estar localizado em um lugar mais alto, não foi atingido, felizmente isso não aconteceu, mas vários setores da prefeitura e da cultura foram atingidos e perderam parte de suas coisas. Então, pensamos em manter o encontro, mas fazer um pouco mais curto e depois vocês repõem as horas que faltarem.

Até amanhã,

Michelle.

[transcrição de mensagem de áudio enviada por Michelle via Whatsapp para o Grupo Contrafilé, em 2 de fevereiro de 2022]

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DA DOR E DO
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Cíntia Barbosa - Em nossos encontros estamos falando da cidade a partir de muitas perspectivas, então é impossível deixar de trazer à tona o que está acontecendo. O momento pede para a gente parar e analisar esse sofrimento todo, que é angustiante, triste e comovente ao mesmo tempo.

Joana Zatz Mussi - Gostaríamos de ouvir vocês e pedir para que cada um e cada uma trouxesse um testemunho sobre o que está acontecendo em Franco da Rocha. Mexer na dor e no trauma é ir aos poucos transformando a dor, construindo inteligência social, um lugar mais saudável. Inclusive, no meio de tudo isso, é importante conseguir construir coisas que libertam certos traumas. Que experiências vocês querem e podem compartilhar com a gente sobre o que está acontecendo? O que tudo isso está gerando em vocês, o que vocês estão sentindo?

Amara Hartmann - Para mim é estranho ligar a TV e estarem falando o nome do bairro que estou acostumada a ouvir a vida inteira, reconhecer os lugares, o centro da cidade, parece que todos os olhos estão voltados para cá. Minha mãe trabalha na prefeitura de Francisco Morato e meu pai na prefeitura de Franco da Rocha e no domingo minha mãe foi organizar uma escola para receber desabrigados. Fui também para a escola e passei a acompanhar as famílias e as doações chegando. Ester, uma criança que estava lá, viu um vestido de princesa entre as doações e ficou m uito feliz, a única coisa que a chateava era ter deixado o seu peixinho em casa. Depois chegou Caio, sujo de lama da cabeça aos pés, descalço, muito assustado. Nos dias seguintes eu voltei para brincar com as crianças. Ester estava com saudade de casa, chorando, mas a boa notícia é que o pai conseguiu ir até a casa e resgatar o peixinho. São sessenta pessoas nesse abrigo, ainda sem saber como voltar para casa. Em Morato estamos com cerca de 1200 pessoas fora de casa. A gente está acostumado com enchentes, mas dessa vez foi mais cruel do que o normal.

Michelle Louise Guimarães - A minha experiência é dupla, como funcionária da prefeitura e como moradora da cidade. Como funcionária, estou realizando várias ações para auxiliar as pessoas que perderam suas coisas e os próprios equipamentos que foram afetados. A biblioteca, o circo-escola, os equipamentos localizados no centro perderam muita coisa. É muito triste ver a perda de materiais adquiridos recentemente. Estamos auxiliando na limpeza de escolas, equipamentos de cultura, e agora estamos também no centro cultural começando a fazer escalas para

doação de alimentos. E como moradora tive uma experiência complicada… moro na Vilinha, no centro, ao lado do Rio Juquery, e tive sorte porque minha casa é um pouco alta. Mas acordei com muita água na rua, por pouco não perdi minha máquina de lavar. Em 1987 teve uma outra enchente muito violenta e muitas pessoas estavam revivendo esse trauma. Até ontem a rua estava com muita lama, utensílios e objetos pessoais presos. As pessoas num silêncio de dor. Eu me mudei para a casa onde estou faz um mês e na casa onde eu morava antes, na mesma Vilinha, a água chegou até o teto. É um processo de morte de vidas físicas e de sonhos, projetos. A lama que encobre e engole as coisas, essa imagem é muito forte. Uma coisa que me assustou muito é que além da água estar alta, existia a possibilidade de abrirem as comportas da represa Paiva Castro, que abastece essa região. Felizmente isso não aconteceu. Mas passamos por essa apreensão, saí de bote sem saber se na volta minhas coisas estariam lá. Na segunda-feira, ao voltar para casa, ouvi aquele barulho de mangueira, baldes de água, as pessoas lavando suas coisas, tentando recomeçar.

Víctor Vicente Barreto - Uma coisa que está sendo bem marcante para mim é o fato de que o deslizamento foi perto da minha casa, a algumas ruas de distância, então a comunidade está bem envolvida, tenho vizinhos e amigos que estão sendo voluntários. Também são marcantes os sons dos helicópteros sobrevoando a região e a preocupação que fica toda vez que começa a chover.

Elielton Ribeiro - Estou em Francisco Morato em uma área um pouco mais alta, na minha rua não sofri com a enchente, mas tive que lidar com o fato de que o poste na entrada da avenida cedeu e ficamos sem luz, sem internet, num breu, tentando entender o que estava acontecendo, nesse lugar de desconforto geral, dentro de casa, no bairro, na rua, na cidade. Eu moro perto da prefeitura, então tenho também que lidar com toda uma movimentação, visitas oficiais, e consequência da enchente, recebemos uma visita da tragédia, a tragédia em pessoa veio nos visitar oficialmente. E teve também essa preocupação latente com as comportas da represa, fiquei acompanhando a água subindo pelas redes oficiais da prefeitura, escapando de fake news . A água chegou no nível máximo e depois foi descendo, isso gerou muita insegurança. Se já estávamos no curso de formação falando da loucura e do hospital psiquiátrico como estigmas da cidade, agora falemos desse outro estigma que é essa relação com as enchentes, o centro localizado numa área baixa e o Juquery projetado pelo Ramos de Azevedo em uma área alta - tanto que o MAOC e os prédios do Juquery não foram

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afetados. E se aqui estamos falando de arquivos, o arquivo da prefeitura sofreu muito com essa enchente. Quantas informações não foram perdidas?

Lucas Cacozze - No final do ano passado, Franco da Rocha teve destaque nos jornais por conta do grande incêndio no Parque do Juquery. Víamos as imagens do fogo consumindo tudo, muitos animais mortos. E agora, por conta da água, da enchente, da lama, do soterramento, fica esse contraste entre o fogo e a água, a desgraça e o que podemos fazer com o que aconteceu, as redes de solidariedade, a esperança, me lembro dos moradores tentando apagar o fogo e agora tentando tirar a água e a lama, achar os corpos das pessoas.

Joana - Nossa, isso me faz lembrar muito de um trecho do livro “Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição”, do Comitê Invisível, no qual eles falam sobre esse impulso de construção de comunidade em meio à tragédia. Vou ler o trecho para vocês, é assim: “O desastre objetivo mascara o esgotamento dos recursos subjetivos, dos recursos vitais que atinge nossos contemporâneos ... ruína das interioridades... O mundo está cansado do humano... Somos governados pelo horizonte de catástrofe - a profecia apocalíptica não vai se concretizar, só é enunciada para convocar os meios de a afastar, o que quase sempre significa a necessidade de governo – operar no presente a espera, a passividade e a submissão – não há outra catástrofe por vir a não ser esta que já está aqui, como é patente que a maior parte dos desastres efetivos oferecem saídas a nosso desastre cotidiano. Vários exemplos dão conta de como a catástrofe real aliviou o apocalipse existencial... A decomposição desse mundo, assumida como tal, abre pelo avesso o caminho a outras maneiras de viver, mesmo em plena ‘situação de emergência’. Foi dessa forma que, em 1985, os habitantes da Cidade do México, em meio aos escombros de sua cidade atingida por um terremoto mortífero, reinventaram num só gesto o carnaval revolucionário e a figura do super-herói a serviço do povo – sob a forma de um lendário praticante de luta livre, Super Barrio. Na loucura de uma retomada eufórica de sua existência urbana no que ela tem de mais cotidiano, eles assimilaram a destruição do sistema político à destruição dos prédios, libertando, tanto quanto possível, a vida da cidade do controle governamental, e reconstruindo suas habitações destruídas”.

Daniele Senário - Realmente só vamos conseguir perceber a dimensão da situação conforme os dias forem passando. Enquanto as coisas estão

Ubirajara Ferreira Braga, Juqueri a Queimada, 1993. Guache sobre papel, 32 x 45 cm

Ubirajara Ferreira Braga, Barragem – Juqueri. Afogamento, 1991. Guache sobre papel, 50 x 66 cm

Essas duas obras representam a força da natureza que, quando incontrolável, acomete a cidade. Fiz uma conexão entre elas e nossa conversa realizada em meio às enchentes que assolaram Franco da Rocha e região. As enchentes, que segundo moradores, já fazem parte do cotidiano e da memória do território.

acontecendo, custo a entender, mas nós vivemos em uma região com muitas áreas de risco, então o alerta é constante e dessa vez teve uma proporção muito grande. Eu sou de Francisco Morato, em bairros próximos houveram deslizamentos. A todo momento eu pensava nas pessoas que perderam tudo ou até a própria casa. A gente sabe o quanto é difícil batalhar para ter um lugar onde morar, e de repente tudo se desfaz. De onde tirar forças para recomeçar? Ainda mais se algum familiar faleceu. Como atravessar a perda de tudo e o luto? Nós nos sensibilizamos e precisamos estar preparados emocionalmente para acolher essas famílias.

Mariane Souza - Eu moro aqui em Franco e é normal chover de manhã, alagar embaixo e a gente não conseguir passar, ficarmos ilhados. Mas dessa vez o nível da água demorou muito para baixar, as pessoas não conseguiam se deslocar. Eu não tive nenhuma perda, moro em um predinho, mas vi o nível do rio alto, os morros desbarrancando e me senti refém, sem conseguir sair, imaginando as situações das pessoas.

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Cíntia - Franco é esse lugar, marcado de diversas formas, por enchentes, fogo, violência, presídios, “a cidade dos loucos”. E nos últimos anos temos trabalhado para mudar essa trajetória, para olhar para a cidade de outra forma, com desejo de pertencimento, orgulho. A gente sempre saiu de Franco para ter lazer, para estar ao ar livre e pouco a pouco fomos conquistando esses espaços aqui com os movimentos culturais do território. Foram anos de trabalho para em algumas horas de chuva ver isso na lama. Mas a quantidade de pessoas, grupos, as redes de apoio que surgiram dizem muito dessa construção e da cidade, dessa capacidade que a gente tem de, no meio da lama, lutar pela vida.

Rafael Moretti - Esses relatos todos de vocês e, quase no mesmo momento, o relato do assassinato de um refugiado congolês no Rio de Janeiro, trazem essa dimensão da ajuda, da solidariedade, característica da nossa história, e o seu reverso, a expressão de uma violência brutal. E como país, nós estamos nos havendo com estes dois lados e precisamos olhar para isso, sair da imagem do Brasil cordial para ver sua desumanidade. E estou aqui pensando no quanto temos que caminhar para expurgar e curar essa violência. E isso está em todos os níveis, do micro ao macro.

Joana - Para fechar, gostaria de mostrar para vocês uma intervenção do percussionista Dou Dou Nydia Rosé que inspirou a gente uma vez. Em 2007, integrantes do coletivo Política do Impossível 1 e Casa de Cultura Tainã 2 viajaram ao Festival de Arte Negra (FAN), realizado em Belo Horizonte, com o intuito de conversar com DouDou N´diaye Rose, maestro, percussionista e mestre griot africano 3 . O que motivou o encontro foi um vídeo documentário de uma ocupação musical orquestrada pelo maestro

1 O coletivo Política do Impossível – PI foi um coletivo de São Paulo que entre 2004 e 2008 realizou projetos de educação e produção coletiva de arte. Dentre os seus integrantes, estavam Cibele Lucena e Joana Zatz Mussi, que fazem parte do Grupo Contrafilé também.

2 Casa de Cultura Tainã é uma ocupação cultural localizada em Campinas, hoje reconhecida como importante marco da luta negra naquele território e no Brasil. Antonio Carlos Santos da Silva (TC), liderança da Tainã, é um importante referente da luta negra contemporânea e articulador da Rede Mocambos, uma rede de pessoas negras de âmbito nacional que conecta, através das tecnologias da informação e comunicação, comunidades quilombolas rurais e urbanas em todo o Brasil. TC tem sido parceiro e mestre em diversos processos dos quais o Grupo Contrafilé ou seus integrantes participam.

3 Frente 3 Fevereiro, Dugueto Shabazz, Projeto Treme Terra e Associação Cultural Cachuera! também estavam presentes na conversa.

Intervenção através do som de tambores do maestro DouDou N´diaye Rose e sua orquestra na Ilha de Goré, um dos portos de onde mais saíram pessoas negras escravizadas para o mundo.

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Dou Dou na “Casa dos Escravos” da Ilha de Goré 4 – porto de onde partiram milhares de negros escravizados para as Américas. A imagem de uma ocupação física e simbólica feita através dos tambores, ativando aquele espaço, reverberou nos integrantes dos dois grupos.

TC - A gente se reencontra nos sons dos tambores...

Tenka Dara - Uma pergunta que tenho é sobre a escravidão, sobre as lacunas que o processo de escravidão deixou na África. Porque a gente conhece os resultados da escravidão no Brasil, mas a gente não sabe qual é a lacuna que ficou lá. E eu acho que essa é uma ponte interess ante.

TRECHOS DA CONVERSA COM DOUDOU N´DIAYE ROSE 5

TC - Aquele momento na casa dos escravos, na Ilha de Goré, para a gente foi muito importante, uma referência muito forte. Como foi isso para os que participaram? O que os levou a tocar na Ilha de Goré?

DouDou - Comecei a tocar o “tam tam” quando tinha nove anos. E por que eu fui a Goré? Pois quando aprendi a tocar o “tam tam” queria marcar a passagem da casa dos escravos. Eu poderia fazer esse registro em vários lugares, na beira do mar, na minha região, ou ainda em outras regiões, mas eu preferi Goré. Se há a Martinica, a Ilha da Reunião, outros continentes, é porque eles passaram pela casa dos escravos. É por isso que eu queria mostrar que tudo se passou lá, em Goré.

TC - Esse lugar é um lugar forte, que marca a história do negro em diáspora. Goré é importante para nós também, como símbolo. E ver o tambor tocar ali, pulsar vivo, nos motiva a lutar com a música, com o tambor.

DouDou - Foi para mostrar o primeiro ritmo que tocamos, o ritmo que anuncia a partida dos escravos. O primeiro que eu toquei em Goré foi o ritmo da partida dos escravos. O ritmo se chama “vocês partem, mas não retornam”. Meus parentes estão lá ou acolá. Eles partiram. E não retornaram mais. Mas um dia pode acontecer. A gente encontra nossos parentes, mas não somos capazes de reconhecê-los.

4 Esse vídeo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=voqgr3JFYD4

5 Tradução de Majoí Gongora e edição de Política do Impossível.

DouDou - Os africanos, todos os africanos, não estão contentes com o que ocorreu no passado. Os colonizadores, eles tinham a força, eles nos colonizaram, nos mostraram sua força, mas ninguém ficou cont ente com aquilo que fizeram. E felizmente, os africanos sabem perdoar. Se não fosse por isso, em um curto período, muito sangue ia rolar. Porém eles os perdoaram e nós estamos trabalhando para refazer, para plantar a nossa cultura. Eles queriam que nós fôssemos escravos, eles queriam que nós perdêssemos a nossa cultura. Mas eles não podiam, pois agora, vejam, a nossa cultura retorna. Eles não podem partir sem nós.

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A FUGA: FAZER RODA EM TORNO DA VIDA

ESCOLA DE TESTEMUNHOS COM LUCAS VEIGA

Joana Zatz Mussi - Bom dia para todo mundo. Só para retomar, na semana passada, Lucas, aqui em São Paulo, não sei se você acompanhou, houveram várias enchentes, transbordamentos, e uma das piores situações aconteceu em Franco da Rocha, que é exatamente onde está o MAOC. E muitas das pessoas que estão aqui, se não todas, moram lá ou em algum município vizinho e estava todo mundo muito tomado por essa situação. E como estamos nos relacionando com o arquivo do MAOC, falando e pensando sobre como trabalhar com esse arquivo, como trabalhar a partir de uma perspectiva da “pedagogia radical”, vamos dizer assim, como pux ar fios a partir de uma certa radicalidade da nossa presença e perspectiva no mundo, paramos para escutar as experiências que cada pessoa estava tendo a partir das enchentes. Vieram muitas imagens, memórias, histórias, muita emoção também e até uma certa poética, no sentido de um pensamento que estava sendo elaborado sobre a tragédia. Acho que é isso… eu trouxe essa contextualização porque acho que tem aí um fio para puxar.

Lucas Veiga é psicólogo e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal Fluminense. Idealizador da plataforma descolonizando.com que reúne textos, vídeos e cursos ministrados por ele sobre saúde mental, questões raciais e anticoloniais. Além do trabalho como pesquisador e professor, e dos atendimentos clínicos, atua também como palestrante e consultor de saúde mental. É autor do livro “Clínica do impossível: linhas de fuga e de cura”.

testemunho, mas depois do seminário fomos ler seus artigos, conhecer um pouco mais de seu trabalho. E em um de seus textos encontramos uma frase que gostaria de trazer aqui: “Conseguir ouvir o paciente implica conseguir ouvir o sintoma que o adoece, ouvir o sintoma para ouvir o mundo que o produz. Dar poucos ouvidos ao mundo talvez tenha sido um dos grandes erros da história da psicanálise 2”. Isso ecoa como um chamado para olhar para a ideia de loucura não apenas como questão individual, mas como processo histórico, colonial, fruto de uma série de violências que seguem em curso. E este chamado, acreditamos, se conecta muito com o que estamos discutindo e trabalhando aqui, neste curso de formação, diante das e dos artistas do Juquery, deste acervo, de tantas memórias de dor e trauma e também diante de tantas experiências de vida. O testemunho do Lucas, certamente, será importante para a gente aprender e aprofundar nossas conversas. Lucas, passo a palavra para você.

Cibele Lucena - Eu contei para o Lucas e quero contar pra todo mundo também… ano passado estive imersa em um trabalho de coleta de histórias do Juquery, junto com a artista Flavia Mielnik e funcionáries que estiveram nos últimos momentos antes do manicômio fechar as portas da internação e, atravessada por esse trabalho, em maio, na semana da luta antimanicomial, soubemos de um seminário que aconteceria sobre Frantz Fanon, que tinha uma mesa intitulada “Alienação e Liberdade, escritos psiquiátricos” 1, composta por Lucas e Vladimir Safatle. Na mesma semana em que assistimos a fala de Lucas neste seminário, assistimos a peçafilme da atriz Jéssica Barbosa, “Em busca de Judith”. Tanto a fa la de Lucas quanto a obra de Jéssica foram fundamentais para aprofundarmos pensamentos sobre saúde mental a partir de questões raciais.

Não quero falar muito porque Lucas vai se apresentar e trazer seu

1 https://www.youtube.com/watch?v=WsjaGLAihJw (último acesso em 23/03/2022)

Lucas Veiga - Oi gente, bom dia. Bom dia a todas, a todos, a todes. Estou muito feliz de estar aqui com vocês. Quero agradecer à Cibele, à Joana e ao Rafael pelo convite e pela maneira como estão me recebendo. Antes de vocês entrarem, estávamos conversando um pouco, Joana e Cibele estavam me contando tanto do trabalho do Grupo Contrafillé, quan to do que vocês estão desenvolvendo agora, e é muito interessante essa articulação entre arte, educação, clínica, política; essa transdisciplinari dade também compõe o meu trabalho, a minha clínica. Eu sou psicólogo, sou mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal Fluminense e lancei um livro no ano passado, o “Clínica do Impossível: linhas de fuga e de cura”. Vou falar só essa linha para poder trazer o meu

2 In VEIGA, Lucas. Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta . Fonte: https:// www.scielo.br/j/fractal/a/NTf4hsLfg85J6s5kYw93GkF/?lang=pt (último acesso em 23/03/2022).

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testemunho, porque durante o meu testemunho, sei que a minha formação vai aparecer, por onde eu fui na psicologia e no mestrado, e por onde o meu trabalho circula e se situa. Eu gostei muito da ideia do testemunho… sou psicólogo clínico e a clínica é o trabalho que faço há mais tempo e que me dá sustentação para todos os demais. E esse livro, que eu mostrei para vocês, foi escrito a partir das minhas experiências clínicas, a partir dos meus encontros em especial com os meus pacientes negros e negras nessa dimensão de testemunho que a clínica tem. Um dos trabalhos do analista é escutar o testemunho do outro, nós somos testemunhas de situações, de vivências, de dores, de traumas e de alegrias que por vezes ficariam apenas na ordem da intimidade, do segredo ou daqu ilo que não pode ser dito, e o trabalho de análise é esse trabalho em que aquilo que não pode ser dito é dito, então tem algo aí também de testemunho muito forte na clínica. A própria palavra que vocês estão usando para essa atividade é uma palavra que casa muito com o que é a experiência de atender uma pessoa, de acolher uma pessoa.

Quero contar pra vocês uma história. Moro no Rio de Janeiro, no Flamengo, um bairro na Zona Sul do Rio, há 14 anos, mas sou de Nova Friburgo, uma cidade do interior do Estado, localizada a três horas do Rio de Janeiro, a 124 quilômetros de distância, aproximadamente. A minha família toda é de lá, tanto materna quanto paterna, e o meu avô, quando tinha 18 anos, um homem negro, viveu uma situação de conflito com o filho do patrão, na época, que regulava a mesma idade dele. E desse conflito, uma situação em que meu avô se recusou a uma experiência de subjugação na condição de empregado, acontece uma briga que vai para a dimensão física, eles saem no soco, isso em 1957, o que teve como resultado a internação do meu avô num hospital psiquiátrico. Os pais desse jovem com quem ele brigou, e que eram patrões do meu avô, insistem com meus bisavós que meu avô estava ficando maluco, que meu avô era perigoso, que ele precisava ser internado, isso numa época muito anterior às discussões da reforma psiquiátrica e de todas as coisas que a gente está vivendo no contemporâneo. Meu avô foi internado no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, um hospital que ainda existe em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro.

E desde que chegou no hospital psiquiátrico, muito jovem, com 18 anos, meu avô sempre tentou fugir. E junto com outros dois internos, eles criaram uma estratégia de fuga que era: uma vez por semana, entrava um caminhão no hospital que levava roupa, alimento, um caminhão da

prefeitura que chegava com insumos de manutenção do funcionamento. E a ideia deles era subir nesse caminhão enquanto ele estivesse dentro do hospital, torcer para que não fossem vistos e, quando o caminhão saísse, eles também sairiam e pulariam na estrada, indo para longe daquela instituição terrível que era o Hospital Psiquiátrico do Jurujuba naquela época. Mas todas as vezes que eles tentaram fugir, sempre eram capturados, e uma das razões da recaptura tinha a ver com o fato deles não terem uma roupa própria. Os usuários naquela época usavam uniforme, um uniforme do hospital com o qual eram facilmente identificávei s na cidade. Então, os próprios moradores, as próprias pessoas da vizinhança, acionavam o hospital psiquiátrico quando viam internos na rua. Aconteceu algumas vezes deles fugirem e chegar uma ambulância para levá-los de volta, porque alguém os identificou.

Eles subiam no caminhão e saltavam na estrada, tentavam carona para voltar para suas casas, para suas famílias. Numa dessas tentativas de fuga, o meu avô quebrou o pé e precisou ser hospitalizado. Depois da hospitalização ele retornou para o manicômio, e nesse retorno foi colocado numa espécie de jaula, no meio do pátio do hospital, como um demonstrativo de força da instituição: quem tentasse fugir novamente passaria por aquilo que ele estava passando, ficar numa espécie de jaula no pátio, sofrer sanções públicas de eletrochoque, prática ainda usada, mas que era muito usada naquela época, e muito invasiva e violenta. Ele vivenciou uma série de violências que eram próprias da instituição, mas que foram intensificadas com ele por conta de ser alguém que estava insistentemente tentando fugir.

Isso não foi suficiente para que o meu avô desistisse de fugir do hospital psiquiátrico, e numa dessas tentativas ele conseguiu efetivamente fugir. Meu avô não sabia ler, não sabia escrever, naquele momento, e entre caminhadas a pé e caronas, fez essa travessia de 124 quilômetros e voltou pra casa. Foi recebido pelos meus bisavós, pais dele. Anos depois, conhece a minha avó, se casam e têm filhos. Um desses filhos é o meu pai, que posteriormente se casa com a minha mãe, e eu nasço e meus irmãos.

Meu nascimento, e a minha existência, se tornaram possíveis porque o meu avô fugiu do manicômio. Por isso o subtítulo do meu livro é “Linhas de fuga e de cura”, porque estou querendo pensar a fuga como caminho de saúde. Como que a fuga é uma via de libertação das engrenagens de

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opressão em que por vezes estamos inseridos? A fuga do meu avô tornou a constituição de uma família possível e a minha vida, posteriormente, eu estar aqui hoje contando essa história pra vocês, que é a história que abre o meu livro.

Eu cresci convivendo muito com os meus avós, e o meu avô, nesse período, teve um diagnóstico de bipolaridade e a gente nunca tinha muita clareza se era um diagnóstico que ele já possuía ou se foi algo desencadeado a partir do trauma da internação psiquiátrica forçada. Mas ele era um homem que tinha um quadro de bipolaridade e tinha períodos em que estava bem e períodos em que estava com uma depressão grave, períodos em que estava eufórico, em que ele fazia coisas muito doidas, como, por exemplo, trocar o aparelho de som da casa por um cavalo. Foi uma experiência, uma situação que aconteceu, e que deixava, evidentemente, a minha avó, meu pai e minhas tias completamente atordoados, mas que para mim e para meus irmãos e primos, para os netos dele, era uma grande delícia, uma grande aventura ter um cavalo no quintal. E ele ensinou a gente a andar à cavalo, entre uma série de vivências que a maluquice que fazia parte da subjetividade dele, pôde trazer para nós, netos, nesse lugar da brincadeira, do acolhimento, da festa, da celebração da nossa relação com ele e com aquilo que para ele era importante.

Meu avô era muito amado pelas crianças do bairro, eu lembro de cenas da gente indo jogar futebol e eram, sei lá, trinta crianças atrás dele, ele conduzia uma situação de interação, da prática do esporte com os meninos e meninas do bairro de uma maneira muito bonita. Quando as pessoas ficavam doentes, iam à casa da minha avó para conversar com o me u avô, porque ele conhecia um milhão de chás e de ervas e temperos e de coisas que ele partilhava com a comunidade. Eu tenho muitas memórias bonitas dessa vivência com ele, ainda que essas memórias componham momentos muito tristes em que ele estava de cama no quarto, em que algo da ordem de uma ideação suicida às vezes aparecia. Isso nunca aconteceu, mas a ideação num momento de depressão grave é comum e acontecia com ele. Eu lembro de criança, pré-adolescente, entrar no quarto onde ele estava, onde ele ficava, quando ele estava muito deprimido ele não gosta va de receber ninguém, mas eu era o neto mais velho e uma das poucas pessoas que ele gostava de receber no quarto quando estava num momento depressivo. E era um momento em que eu lia a Bíblia pra ele, conversava com ele coisas que eu achava que poderiam ajudá-lo de alguma forma.

Meu avô era um grande contador de histórias, ele contava histórias incríveis que ele tinha escutado dos pais, dos avós, histórias que ele inventava na hora. Tem uma expressão africana para o contador de história que é griô, então, meu avô era um grande griô, com uma habilidade muito grande de envolver as pessoas numa narrativa, uma inteligência, uma articulação da palavra e dos afetos muito linda de acompanhar. Era um grande cozinheiro, ele que cozinhava em casa, muito mais que minha avó, ele inventava pratos, foi chefe de restaurantes lá na cidade onde ele morava, onde eu cresci.

E quando eu tinha 14 anos, ele teve um infarto, estava com 65 anos na época, e a morte do meu avô foi a minha primeira grande perda, a minha primeira experiência de luto real. Eu nunca tinha perdido ninguém da família, e a primeira vez que perdi alguém foi esse homem, que tinha ocupado um lugar, não só na minha vida, mas na nossa família, na nossa casa, um lugar muito ambíguo, de muito cuidado, de muito amor, e ao mesmo tempo um lugar de muita preocupação, porque, em épocas de manias, às vezes ele se colocava em situações de conflito, às ve zes era difícil, em especial, na relação com a minha avó, minha avó era alguém que exercia na relação com ele algum tipo de interdito, algum tipo de barreira para aquilo que tinha de perigoso, por vezes, quando estava na época de mania. Então, tinha uma tensão na relação com a minha avó que era às vezes difícil para a gente acompanhar. Tensão essa que se dava porque a minha família decidiu que ele nunca mais seria internado no hospital psiquiátrico.

Isso foi uma decisão, eu era criança, uma decisão da minha avó, do meu pai e das minhas tias, de que lidariam com os momentos de complexidade, os momentos de crise do meu avô, sem que ele passasse de novo pelo trauma da internação, porque foi muito violento pra ele e ele não falava sobre. Essa história que estou contando pra vocês, eu fui saber depois que ele havia morrido. É algo que ele nunca dividiu abertamente com a gente, porque era muito doloroso pra ele.

Ele era acompanhado no Caps da cidade, tinha o acompanhamento psiquiátrico, mas em momentos de crise, por vezes, ele não queria tomar o remédio, porque dizia que não era maluco pra ficar tomando rem édio, mas em geral, quando a pessoa mais precisa da medicação é quando ela se recusa a tomar. Tinha toda uma lida, uma complexidade na relação,

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mas muita afetividade, muita criatividade, tanto dele quanto da minha família pra lidar com a singularidade, com as necessidades que ele tinha enquanto um homem negro que tinha passado por uma experiência traumática dessa ordem e que estava, apesar dessa experiência, conseguindo fugir dos efeitos dela, conseguindo continuar fugindo.

Quando eu faço 18 anos, eu entro na faculdade de psicologia, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, na mesma cidade onde meu avô havia sido internado, com a mesma idade, só que numa outra condição, eu fui lá para me tornar psicólogo. Me formo, faço o curso de psicologia de 2008 a 2013, em 2013 entro no mestrado, em 2015 defendo o me strado e, em seguida, ainda no mestrado, começo a trabalhar como psicólogo clínico. Desde que eu me formei eu atendo, mas comecei a trabalhar numa instituição que se chama Casa Viva, que ainda existe no Rio de Janeiro, eles têm quatro casas e eu fui trabalhar na Casa Viva Bangú. Pra quem não conhece, Bangú é um bairro periférico que fica na Z ona Oeste do Rio de Janeiro. E essa casa, a Casa Viva Bangú, era uma unidade de acolhimento, que é o termo correto, mas popularmente chamada de abrigo, para adolescentes em situação de rua que faziam uso abusivo de drogas.

aparece bastante numa dimensão da psicologia social ou numa dimensão estritamente da discussão de raça e classe, mas pouco na dimensão clínica, subjetiva, inconsciente da racialidade.

E o encontro com os adolescentes fez isso virar uma urgência dentro de mim, de me aproximar e aprofundar nos estudos sobre saúde mental da população negra. Que era algo que eu vinha fazendo, mesmo que por fora da graduação, já que na graduação, na minha época, isso não era discutido como eu gostaria, como eu achava que deveria, mas tinha colegas, redes e grupos com quem estava podendo fazer essas discussões. Então fui estudar a Neusa Santos Souza, Frantz Fanon, Virgínia Bicudo e uma série de outros intelectuais, negros e negras, que se debruçaram sobre essa temática, enquanto estava trabalhando na Casa Viva.

Eu fui trabalhar como psicólogo nessa instituição e, quando cheguei, a casa tinha capacidade para até vinte adolescentes, de 12 a 17 anos incompletos e funcionava num regime de portas abertas, digamos assim, os meninos podiam entrar e sair, e podiam permanecer ou não no espaço da instituição, não era uma instituição asilar, era uma unidade de acolhimento. Você quer ser acolhido aqui? Venha. Você não quer mais ser acolhido aqui? Tudo bem, pode sair. O que traz uma série de desafios e complexidades, em especial pensando na adolescência, mas, enfi m, era o modelo da instituição. E quando eu chego na casa, a grande maioria, 99% dos adolescentes, eram negros e negras. E eu lembro de ter sentido muito fortemente que toda a minha formação, tudo o que eu tinha estudado e desenvolvido, tanto na graduação quanto no mestrado, no encontro com aqueles meninos, as ferramentas que eu tinha, teóricas, talvez, eram insuficientes para um trabalho que eu gostaria de desenvolv er com eles, considerando a singularidade, a complexidade que é a clínica com adolescentes negros em situação de rua e que fazem uso abusivo de drogas. A formação em psicologia no Brasil ainda é muito embranquecida, a gente avançou pouco nas discussões raciais quando pensamos a dimensão clínica, a dimensão subjetiva das questões raciais. A discussão racial

Quando cheguei, eu já usava um black , e todos os adolescentes tinham a cabeça raspada. Todos. E lembro que eu achei aquilo curioso, falei: “gente, todo mundo tem a cabeça raspada aqui, que coisa. Será que está na moda? O que está acontecendo, que todos os adolescentes passam máquina zero?”. Ter o cabelo raspado em gradações e cortes variados é uma coisa, agora todo mundo ter o cabelo igualmente raspado me chamava muito a atenção, até porque a instituição tinha uma proposta mais aberta. E eu fui, sem dizer muita coisa, tentando mapear o que estava acontecendo, o que se passava na instituição que tinha esse efeito de todos os adolescentes rasparem sempre a cabeça, fui percebendo que circulava na casa, em especial pelos funcionários, um discurso de que tinha que raspar a cabeça porque senão vai pegar piolho; tem qu e raspar a cabeça porque senão não vai conseguir o estágio no programa Jovem Aprendiz. Porque uma das direções de trabalho da casa era a reinserção familiar, que os meninos pudessem voltar a estar com suas famílias. Quando as famílias estavam também em situação de rua, a direção era garantir moradia para essas famílias, então, tinha uma articulação com a Secretaria de Habitação, com o Ministério da Cidadania, para garantir o pagamento de um aluguel pelo governo do Estado para essas famílias, quando não era possível incluí-las no programa Minha Casa Minha Vida. Então, tinha a direção de reinserção familiar e de inserção educacional, matrícula na escola, acompanhamento educacional, e inserção também no mercado de trabalho, para além do cuidado em saúde mental que era, digamos, a minha responsabilidade ali na casa, mas não no sentido de que eu atendia cada adolescente; mas um trabalho clínico instit ucional,

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uma dinâmica de cuidado mental na instituição e eles eram atendidos individualmente no Caps do território.

E percebi que a coisa do piolho e do “se você não raspar a cabeça, você não vai conseguir um estágio no Jovem Aprendiz” tinha esse efeito de todos os meninos terem a cabeça raspada. E a minha entrada na casa, jovem, negro, psicólogo, teve o impacto de os próprios funcionários pararem de falar isso, esse discurso começou a cair. Começou a cair porque eu era o psicólogo da casa, tinha um black , seria muito complicado para alguém dizer na minha frente que se a pessoa não raspasse o cabelo ela ia pegar piolho. Seria muito complicado também dizer para os adolescentes que se eles não raspassem a cabeça, não conseguiriam ter um emprego, porque eu tinha um emprego, não só tinha um emprego como era o psicólogo da instituição. Então a discursividade que produzia uma certa homogeneização estética entre os adolescentes começou a cair com o simples fato de eu estar lá, pela minha simples presença.

E os meninos começaram a me perguntar que creme que eu usava no cabelo, quanto tempo eu tinha deixado o meu cabelo crescer para ele ficar desse tamanho, se dava muito trabalho, se eu já tinha colocado tranças, enfim, começou a surgir uma conversa em torno do cabelo. Enquanto eu ia respondendo e a gente ia conversando sobre cabelo, enquanto isso foi acontecendo, em paralelo ao fato do discurso da instituição ter se modulado com a minha chegada, os meninos começaram a deixar o cabelo crescer, e nesse processo muitos adolescentes viram pela primeira vez como era a textura do cabelo deles, como que era ter cabelo. Para muitos foi uma primeira experiência. E a gente conseguiu que a prefeitura mandasse cremes de pentear para a casa, e a máquina de cortar cabelo, aos poucos, foi dando lugar aos cremes de pentear. E algo que virou uma rotina diária era: os meninos acordavam e iam pentear o cabelo, lavar, passar o creme, puxar o fio e não sei o quê. Nesse processo de transição capilar, digamos assim, que eles estavam vivenciando, começaram a desenvolver uma relação de maior autoestima e de constituição de uma identidade negra mais forte e mais conectada com a sua potência, e não no registro de menos valia e de inferioridade que o racismo tenta produzir.

Então, a partir do nosso encontro, do meu encontro com eles e deles comigo, teve esse duplo efeito: em mim, de fazer um mergulho mais profundo e que mudou completamente o meu trabalho nos estudos sobre

saúde mental e questões raciais; neles, uma experiência de cons tituição de uma identidade negra, de fortalecimento de uma autoestima por uma via do corpo, de uma experiência no corpo, de uma experiência que passava pelo cabelo e que passava pela relação com o espelho e com a autoimagem. Adolescentes podendo afirmar o fato de serem negros num lugar de muita segurança e de muita beleza e de muita força, porque até então isso vinha sendo retirado deles, porque a condição de vunerabilidade social e de desamparo absoluto é muito despotencializante. Então, a experiência de acolhimento na casa e a experiência de acolhimento que a nossa relação pôde constituir, pra mim, talvez tenha sido o mais importante trabalho que eu desenvolvi ali, a possibilidade da gente trabalhar com a construção, o fortalecimento de uma autoimagem, de uma autoestima, de uma identidade negra por uma via das nossas relações, de como a gente se encontrava, de como a gente se relacionava, de quais eram as histórias que a gente tinha em comum ou que a gente tinha de diferente.

Eu fiquei um ano na instituição como psicólogo, depois fiquei um ano na instituição como coordenador. Quando eu saio, pouco tempo depois começo a desenvolver um curso que se chama Introdução à Psicologia Preta , a partir dessa experiência na Casa Viva e a partir das leituras, das pesquisas em torno das produções de conhecimento negras sobre saúde mental, e a partir da minha experiência clínica, porque em paralelo ao trabalho na Casa Viva, eu tinha o meu consultório, tenho o meu consultório e estava lá também atendendo os meus pacientes, em sua maioria, negros e negras. Esse curso, Introdução à Psicologia Preta , que está disponível online, no meu site, eu ministrei em 2019. Foram quize edições, em sete estados do país, entre alunos presenciais e online, foram mais de 1.200 alunos e alunas, até agora, e é um curso de formação em saúde mental da população negra. Então, a partir de todas essa vivências, que começam na fuga do meu avô do manicômio, fui desenvolvendo uma trajetória e um trabalho que tinha por fin alidade pensar por quais caminhos a gente pode fugir das engrenagens de opressão no contexto em que estamos inseridos, independente do lugar em que estejamos e por quais caminhos, nós, enquanto pessoas pretas, podemos viver da melhor forma que pudermos.

Os cursos de psicologia preta foram, de alguma forma, uma experiência de cura também para mim e para as pessoas que participaram, no sentido de que para muitos de nós, pela primeira vez, estávamos reunidos numa sala

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Maria Aparecida Dias foi uma artista que atuou no antigo ateliê do Juquery entre os anos oitenta e noventa. Mulher negra, Cidinha, como era conhecida, retrata a dor, geralmente com figuras que sangram pelos olhos e são esfaqueadas na cabeça e na região da barriga. Em sua fala, Lucas Veiga discorreu sobre a relação entre identidade negra e questões raciais com a saúde mental. Por outro lado, Cidinha também parece retratar o próprio movimento dessa dor na direção da reconstrução dos indivíduos. Tais experiências podem ser conectadas com “as memórias da transfiguração” e com as “linhas de fuga e cura”, conceitos tratados por Veiga durante sua apresentação.

de aula, num espaço de estudo, num espaço de discussão intelectual, em que todos nós ou a maioria de nós éramos negros e negras. Uma das coisas que eu escutei muito foi que pela primeira vez se estava numa sala de aula, num espaço de discussão acadêmico, teórico, conceitual, com um professor negro e numa turma majoritariamente negra e que isso estava tendo um efeito de saúde e de sensação de acolhimento, sensação de pertencimento muito grande para as pessoas que estavam participando.

Uma das questões que eu abordo no meu trabalho e que é cara pra mim, um conceito importante e que tem a ver com tudo isso que eu estou partilhando com vocês, é que é muito comum na experiência subjetiva negra uma certa sensação de não pertencimento. Não pertencimento porque nós vivemos num país que é antinegro, num país que opera, por múltiplos dispositivos, o extermínio da população negra. Viver num território antinegro, que opera por múltiplos dispositivos o nosso aniquilamento, desde as violências mais sutis até o homicídio, produz, tem como efeito, uma sensação de não pertencimento, “eu não pertenço a esse lugar”, porque esse lugar está constantemente me expulsando ou negando a minha presença, negando a minha individualidade, negando a minha singularidade. Essa sensação de não pertencimento produzida pelo fato de vivermos num território racista, pode desencadear uma série de efeitos subjetivos, como ter muitas dificuldades em estabelecer relações, relações de amizade, relações de amor, relações de trabalho, porque se eu me sinto não pertencente fica muito difícil pra mim me per mitir pertencer aos lugares, quando pertencimento está posto como possível. Então, cuidar da sensação de não pertencimento e poder me sentir pertencente a uma relação, a um território, tem um efeito de saúde muito importante para nós. E poder fazer com que os meninos da Casa Viva se sentissem pertencentes àquela casa, se sentissem pertencentes ao próprio corpo, no sentido de ter a gestão sobre como seriam ou não os seus cabelos, e no Curso de Introdução à Psicologia Preta ter uma turma majoritariamente negra, discutindo sobre saúde mental, tinha e tem o efeito das pessoas se sentirem pertencentes àquele espaço.

Tem algo da dimensão da cura, tem algo da dimensão da promoção da saúde, que só se dá quando a gente se encontra. Tem algo da reparação, digamos assim, aos danos e aos efeitos da violência racial que só se dá no encontro entre pessoas negras. É isso uma das coisas que eu defendo também no meu trabalho. Que a clínica entre pessoas negras, pacientes

FAZER RODA EM TORNO DA VIDA Maria Aparecida Dias, sem título, s/d. Hidrocor sobre papel, 50,2 x 34 cm Maria Aparecida Dias , sem título, 1997. Acrílica e tinta para tecido sobre papel, 50,2 x 66,3 cm
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negros e negras, analistas negros e negras, o simples encontro, já é uma experiência de cura, já é uma experiência de promoção de saúde, porque o senso de pertencimento, que é tão violado e violentado em uma sociedade racista como a nossa, pode se reestabelecer. E o meu paciente pode me relatar uma experiência de violência racial, por exemplo, sem precisar me explicar ou me justificar porque ele está me dizendo aquilo. Eu já acompanhei muitos casos na clínica de pessoas negras que antes eram atendidas por pessoas brancas e que ouviram de seus analistas coisas do tipo: “Mas você não acha que você está exagerando nisso que você está dizendo?”; “Mas você acha que racismo ainda existe no Brasil desse jeito?”. Pessoas que, ao partilhar uma experiência de violência racial, uma experiência de dor, tiveram a sua dor questionada, tiveram a sua dor interrogada nesse lugar “isso é verdade?”. E isso tem um efeito muito violento sobre a subjetividade: no momento em que você está dividindo algo que é, em alguma medida, dilacerante pra você, ter um outro que desconfia disso, e ter um outro para quem você prec isa ficar se explicando, se justificando para ser entendido, do por que aq uilo foi difícil pra você, do por que aquilo foi doloroso pra você. Tem algo no encontro entre pessoas negras em que a explicação não é necessária. Em que é só um testemunho, é uma partilha de uma vivência e um acolhimento.

A relação dos adolescentes na Casa Viva com o cabelo e com a autoimagem foi modificada pela entrada de uma pessoa negra na instituição. Algo só era possível de acontecer porque era eu quem estava ali. Então, quando a gente pensa em promoção de saúde mental para as pessoas pretas, tem a dimensão do pertencimento que é, na verdade, apenas a continuação do uso de uma tecnologia ancestral, que nós pessoas negras herdamos dos nossos ancestrais, que é o quilombo. O que foram os quilombos? Os quilombos não acabaram imediatamente com a escravidão ou com o colonialismo, ainda que as revoltas e as construções dos quilombos contribuíssem definitivamente pro fim da escravização. A finalidade do quilombo não era desfazer a engrenagem colonial escravocrata no território nacional imediatamente, a finalidade era fugir da engrenagem de opressão colonial. A revolta e a fuga tornaram os quilombos possíveis dentro do território colonial, dentro de um território de violência escravocrata, tornaram possível a constituição de um território livre das engrenagens de opressão colonial. Então, o quilombo é fazer um espaço de liberdade e de pertencimento dentro de um território de violência e segregação. Isso são os quilombos.

Então, a clínica com pessoas negras, os coletivos negros, a capoeira, o candomblé, o samba, o cinema, a arte, a intelectualidade negra são espaços de aquilombamento; é o que eu defendo também no meu tra balho. Espaços de aquilombamento no sentido de que, a partir desse lugar que a gente cria para nós enquanto coletividade, experimentamos a liberdade e o pertencimento, onde as engrenagens de opressão racial não têm lugar. Elas não têm lugar na minha clínica, por exemplo. Tem um compromisso do quilombo de não reproduzir a violência colonial, de interromper a violência colonial. E não no sentido de “vamos esperar o dia em que o mundo será diferente”.

Esse espaço de aquilombamento, que é um espaço de recusa da violência, de recusa da opressão, é um espaço de vivência do pertencimento e é um espaço em que a gente não está pensando no porvir da revolução, no sentido de que “um dia o mundo será diferente e não haverá mais a violência racial tal qual está posta hoje”. Pode ser que isso aconteça, pode ser que esse mundo venha, pode ser que esse mundo não venha. O que a gente está interessado é em fazer esse mundo colonial acabar em nós, e nas nossas relações. Acho que é isso… agora quero deixar vocês trazerem o que vocês quiserem trazer.

Elielton Ribeiro - Nossa, muito forte! É muito simbólico todo esse processo, a relação entre você e o seu avô, a mesma idade, a mesma cidade, processos diferentes e uma retomada. Tem uma beleza, assim como a Joana colocou sobre nosso encontro anterior; é uma tragédia, mas também uma ressignificação, o processo de procurar uma cura. Eu achei muito bonito e gostei muito de te ouvir.

A gente definiu que um dos encontros da formação seria sobre saú de mental, mas dentro dela tem tantas questões a serem faladas, tantas vertentes a serem abordadas e que são muito caras para a história do museu, especialmente se pensamos sobre as internações psiquiátricas e os recortes que elas tiveram. E a gente fala dos artistas do museu, é muito difícil identificar quais eram negros ou se as pessoas n egras internadas no Juquery chegavam a ser levadas para a criação artística também. Então, como era esse acesso? Recentemente identificamos que uma das artistas, Maria Aparecida Dias, era negra, porque encontramos uma gravação em que ela aparece, e isso é muito importante pra gente.

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E você falando da sua relação com seu avô, fui me identificando muito, porque sou do sertão do Piauí, da região da Serra da Capivara, e o meu primeiro contato com uma noção de loucura foi também com o meu avô. Eu trabalho aqui no MAOC desde 2018, mas o meu avô foi esse primeiro contato na infância com uma pessoa que era tida como louca, que fugiu de casa, foi para uma região de mata e só dias depois foi encontrado, e minha avó teve que dividir com as irmãs e os irmãos dela os fi lhos para a criação, porque meu avô não tinha condições. Meu avô paterno. Te ouvindo, fui relembrando um pouco dessas histórias, desse meu avô que depois virou benzedor, num processo de cura dele, e contador de histórias. Isso é muito marcante. E como trazer a perspectiva de uma criança, de uma relação com essa dita loucura que pode ser algo lúdico, como você contou do cavalo, do incomum poder ser um caminho de encontros, o inesperado, algo que pode conquistar uma outra pessoa também. São muitas questões! Muito obrigado por suas falas, para mim foram muito importantes.

prejudicando a mais fundamental capacidade de amar: o amor-próprio. Uma das direções de trabalho na Psicologia Preta é promover o resgate do amor por si mesmo, por sua história, pelo povo ao qual se pertence. Fiquei com essa imagem muito forte te ouvindo agora, do espelho e do autoamor.

Michelle Louise Guimarães - Eu também achei incrível a fala do Lucas. Essa experiência de ter contato, na infância, com alguém que é diagnosticado com alguma doença mental, também passei por isso, tive muito contato com um parente e sei que é muito diferente de um adulto que passa por isso na relação com outro adulto, porque a criança ainda está formando muitas coisas, muitas sensações. Eu me lembro até de muitas vezes questionar as pessoas ditas “normais” da família. E a fantasia, muitas vezes, criava um vínculo muito forte. No caso era o meu tio, que morou comigo, inclusive. A gente gostava muito de ver filmes juntos, de brincar juntos, de jogar jogos, isso foi forte na minha infância. Fiquei muito emocionada com a sua fala.

Lucas - Obrigado, querido.

Cibele - Tem uma relação entre a história do seu avô com o uniforme, o uniforme como dispositivo normatizante e homogeneizante, que facilita a captura e dificulta o escape e a fuga; e a história dos meninos com o “corte universal”. O uniforme e o cabelo raspado como impedimentos da existência do corpo e de suas escolhas. E quando você falou sobre o amor próprio e essa retomada do corpo, me lembrei de novo do seu texto 3 , onde você traz uma citação linda de Fanon, que fui buscar depois no livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”. Ele diz: Sinto em mim uma alma tão vasta quanto o mundo, uma alma realmente profunda como o mais profundo dos rios, meu peito tem um poder de expansão infinito. Sou dádiv a, mas me aconselham a humildade do inválido… E em seu texto, você continua: Experimentar a si mesmo como dádiva, seguir a recomendação de Oxum, que, ao ser perguntada sobre como encontrar o amor verdadeiro, respondeu: “olhando sempre para o espelho”. O racismo produziu uma autoimagem turva,

E essa solidão, essa experiência solitária, que as pessoas chamam, chamavam principalmente, de loucura, que é um termo que diz tanta coisa e às vezes também não diz nada, essa experiência de não conseguir que os outros entendam a sua dor. Aqui no acervo a gente percebeu várias obras que falam sobre a solidão, sobre estar sozinho e se sentir sozinho. E na sua relação com a Casa Viva, como mudou totalmente a relação com esse sentimento.

3 VEIGA, Lucas. Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta . Fonte: https://www. scielo.br/j/fractal/a/NTf4hsLfg85J6s5kYw93GkF/?lang=pt (último acesso em 23/03/2022)

E por fim, a relação com a palavra dor… a doença mental, no noss o caso, aqui no acervo, é muito questionada também, porque muitas vezes ela parte de um ponto de vista totalmente preconceituoso, de valores que vão muito além da pessoa ter algum problema de fato, de saúde, então sempre tento pensar como a dor é uma forma mais humana de entender essas experiências, que vão além da doença. Você não precisa estar doente para sentir uma dor. E o compartilhamento da dor traz um processo de ressignificação muito importante. Então, acho que é muito melhor pensar, entre aspas, isso que chamam de “loucura”, ou algo assim, pelo viés da dor, a dor é um sentimento que todos têm; então, como trabal har com a nossa dor? E o que você colocou sobre a importância da interação, da construção da identidade, tira um pouco da solidão. E no coletivo,

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principalmente com pessoas que estão passando pelas mesmas experiências, mas que, ainda assim, são indivíduos diferentes. Você levou uma perspectiva para aqueles jovens, algo que não estava passando pela cabeça deles naquele momento, porque era sempre dito que não podiam ter o cabelo daquele jeito, que não teriam um futuro, e quando você chegou lá, você abriu essa perspectiva.

Lucas - Muito interessante isso, Michelle, que você está dizendo, porque, pensando inclusive o trabalho de mediação, um trabalho que vocês fazem, como a gente estabelece ali com o outro uma relação em que seja possível as nossas diferenças e as nossas experiências, as nossas perspectivas, porventura diversas, aparecerem? Porque, por exemplo, o processo dos meninos deixarem o cabelo crescer não virou uma nova homogeneização, entende? No sentido de: eles não passaram a ter todos o mesmo cabelo. Tinham tamanhos diferentes, cores diferentes, cortes diferentes. E eu estava ali numa posição de mediação, de alguma forma, entre eles e a relação deles com o cabelo. Mas uma mediação em que a experiência pudesse ser singular para cada um, ainda que uma experiência coletiva. Então, eu acho que esse é um desafio quand o a gente vai trabalhar com grupos e com mediação e com dispositivos grupais em geral, que é: como a gente garante o comum, porque é interessante ter algo da ordem do comum, algo da ordem do que é partilhado por todos que estão vivenciando aquela experiência, porque isso é valioso inclusive para a gente conseguir criar senso de coletividade, de grupalidade, tem algo da ordem do comum, daquilo que eu e você pensamos parecido, sentimos parecido, que é muito importante para constituir um grupo, e para um trabalho como esse. Agora, como, ao mesmo tempo, a gente acessa e permite o que é diferente; como a gente dá lugar para aquilo que é radicalmente diferente de nós, que é contraditório, aquilo que é esquisito.

Porque eu acho que uma das belezas de trabalhar e de se aproximar da loucura, das discussões em torno da loucura, das produções em torno da loucura, como Estamira , por exemplo, tem algo aí que é de uma relação com a realidade que é muito inventiva. Nós, neuróticos, a gente por vezes tem uma relação muito dura e muito fechada com a realidade. A gente por vezes é muito ensimesmado nas nossas próprias perspectivas, na nossa própria história, no nosso próprio drama, no sentido de que, por

vezes, a gente vai muito rápido pra esse lugar de ler o mundo e de ler o outro apenas a partir de uma perspectiva centrada no eu; a ge nte tem mais dificuldade de expandir isso pro coletivo ou de expandir is so para o que o mundo tem a nos dizer sobre as experiências. Isso que eu estou sentindo, isso que eu estou vivendo, tem algo que está se comunicando comigo, e claro que na loucura isso aparece como delírio, aparece como alucinação, mas essa conexão com o que está além de nós – eu não sei se está muito confuso isso que eu estou querendo dizer –, mas é o seguinte: como a gente se aproxima da nossa própria loucura? Como a gente se aproxima daquilo que em nós é diferente de nós mesmos? E isso tem a ver com a gente ter um pouco mais de abertura para aquilo que a gente não entende, para aquilo que é confuso, para aquilo que é difícil. Como a gente pode abrir mão de algumas certezas, de algumas seguranças que a gente inventa sobre a vida, para ser possível, também, viver.

Sem comum e sem diferença não tem trabalho grupal possível. E tanto acessar o comum quanto acessar a diferença passa por a gente poder se deslocar um pouco daquilo que é radicalmente nosso pra entrar em contato com aquilo que é nosso, mas também é do outro. Então, quando eu penso na minha infância, na convivência com o meu avô, por exemplo, e essa experiência de uma pessoa negra ter sido internada num hospital psiquiátrico, tratada como louca, ela é muito comum, eu ouço muito relatos de colegas, amigos, que também tiveram avós, tios, pessoas próximas que passaram por internações psiquiátricas, mas na minha memória do meu avô o que predomina é a criação. As minhas memórias dessa história não são memórias da dor e do trauma, são memórias de cura e de liberdade.

Então, como acessamos uma dimensão de sofrimento psíquico, da ordem da loucura, sem cair também num lugar de pobres coitados, entende? Meu avô não era um pobre coitado. Os internos do Juquery não eram pobres coitados. Eles foram violentados por uma engrenagem perversa que imperava naquele momento. Mas, apesar disso, eles criaram vida. Seja nas telas, nas obras, na criação literal de constituir uma família, tem algo aí que é da ordem da invenção, da ordem da fuga mesmo, e eu acho que a gente precisa escutar isso. É muito importante a gente poder escutar a dimensão da cura, da fuga, da criação, dentro de um cenário de opressão, porque se eu fico assim: “poxa, essa história é uma história de dor e de trauma”, eu retiro dessa história aquilo que ela tem de mais fantástico e de mais revolucionário, que é esse louco fugir do hospital e ter uma

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casa, um trabalho, uma família, filhos, netos, bisnetos, entende ? Tem algo aí que a gente precisa poder fazer que é: se encontrar com a dor e se encontrar com o trauma pra fugir da dor e do trauma. Não é um gozo com a dor e com o trauma, não é uma roda em torno da dor e do trauma, é uma roda em torno da vida, da invenção.

É claro que o trabalho na Casa Viva era muito duro, tinha uma carga muito grande de sofrimento psíquico naqueles adolescentes. Em situação de rua, longe da família, uma relação complicada com drogas, é óbvio que tinha dor e trauma. E isso era o objeto da intervenção, da nossa intervenção enquanto profissionais que trabalhávamos lá, a gente olhava e cuidava disso, mas a gente cuidava disso fazendo oficina de danç a, oficina de cinema, oficina de música. A gente cuidava disso naquilo que estava para além disso.

O meu trabalho como psicólogo não é acompanhar a dor e o trauma do outro. O meu trabalho é acompanhar as linhas de fuga, os caminhos de escape da dor e do trauma. Por quais caminhos a gente cria as condições de saúde. E não é sobre desconsiderar o trauma ou a dor, mas é sobre dar menos lugar para eles. E é claro, gente, estou falando disso num registro clínico, subjetivo, da pessoa, de nós. Claro que quando a gente vai olhar para uma história como, por exemplo, a história da escravização, é uma história de dor e de trauma, não tem como a gente falar desse período colonial sem falar de dor e de trauma. Mas dentro da colonização existiram os quilombos. Dentro da história de dor e de trauma existia um espaço de cura e de liberdade. A gente precisa falar disso, a gente precisa celebrar isso, a gente precisa se aproximar dessa tecnologia, dessa ferramenta, dessa força que possibilitou, num cenário de massacre, de extrema dor e de extremo trauma, a constituição de um espaço de cura.

transfiguração”. Memórias da transfiguração tem a ver com as memórias, por exemplo, na Umbanda e no Candomblé, da incorporação. Transfiguração é o momento em que esse corpo vira uma outra coisa e não aquilo que está sendo imposto a ele. Memórias da plantação é a memória do corpo negro numa condição escrava. Memórias da transfiguração é a memória do corpo negro numa condição de liberdade, ainda que dentro de um contexto maior de opressão. Então, como que a gente lida com as memórias da plantação, com as memórias da dor e do trauma, mas ao mesmo tempo, a gente não perde jamais de vista as memórias da transfiguração, as memórias daquele ponto onde a gente conseguiu fazer uma virada na situação e viver da melhor forma possível dentro daquele determinado contexto.

Acho que essa ambiguidade é algo que a gente precisa, quando vai discutir memória, poder acessar, precisamos poder habitar esses dois lugares da memória. A memória não é só sobre o passado, e isso é um princípio banto, da cosmogonia banto, o tempo não é linear, ele é espiralar. O tempo opera como se fosse uma espiral, então, aquilo que foi voltará a ser, e aquilo que é deixará de ser para que uma outra coisa aconteça. Tem algo nesse movimento espiralar que é de criação, que é de invenção. Então, como a gente tem uma relação com a memória que é também pensando o futuro. Uma memória do futuro tem a ver com aquilo que a gente gostaria de contar e de lembrar dessa história, e como a gente, nessa memória do futuro, cria, então, as condições para que o futuro seja diferente disso que aconteceu.

Não sei se vocês conhecem a Castiel Vitorino, uma artista super importante, interessante, que é psicóloga, inclusive, também. A Castiel, num dos trabalhos dela, fala sobre substituir a memória da plantação – a Grada Kilomba, artista importante, psicóloga, portuguesa, tem um livro que foi lançado no Brasil chamado “Memórias da Plantação”, em que ela faz uma discussão super interessante sobre os efeitos do racismo nos dias de hoje, nas relações interpessoais, na subjetividade, e ela dá esse título, Memórias da Plantação . E a Castiel faz uma torção aí, ela fala: “a gente precisa substituir as memórias da plantação pelas memórias da

Como a gente dá lugar pro choro e pro lamento e pra tristeza e para aquilo que tem de doloroso, na nossa vida individual, na nossa história pessoal, no mundo, na história do Brasil, e, ao mesmo tempo, como a gente se mantém conectado com as forças da vida que possibilitam que a gente esteja aqui nesse plano da realidade, nesse momento histórico. A gente não virou mundo só pra velar a história do colonialismo. A gente virou mundo para inventar mundo. E inventar mundo passa por a gente poder ter memórias do futuro, não só memórias do passado.

Joana - Lucas, deixa só eu te perguntar uma coisa, você conhece um escritor que se chama Dénètem Touam Bona? Ele escreveu um artigo que se chama “A arte da fuga”.

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Lucas - Não. Ele é de onde?

Joana - Ele é francês, de pai centro-africano e mãe francesa. Ele vai construindo um repertório de modos de fuga e mostrando o quanto esse lugar, durante a escravidão, e em várias partes do mundo, foi sendo construído como táticas e estratégias da arte mesmo, de uma produção, de uma invenção. Isso de não compreender a fuga como o fugir que às vezes a gente tem no senso comum, “ah, você está fugindo de alguma coisa”, como um lugar de fracasso. Mas ao contrário, como lugar de força.

de regressar à origem do futuro. O desejo de estabelecer no agora, ainda que provisoriamente, a possibilidade de sentir, pensar e viver diferentemente”. Então, a fuga tem a ver com a gente criar agora as condições de um outro modo de viver e isso começa em nós, nas nossas relações e isso pode se expandir.

Cibele - Muito obrigada, Lucas! Que bom te ouvir.

Lucas - Não. Fugir da opressão é lugar de sucesso.

Joana - De sucesso, totalmente! Mas a gente é ensinado assim, né?

Lucas - É masoquismo não fugir da opressão. Vamos fugir, vamos de galera, vamos fugir juntos.

Cibele - Vamos fugir juntos! Total!

Lucas - Sem dúvida. Eu queria ler pra vocês um trechinho do meu livro, que tem a ver com isso que a Joana estava falando, com o que a Cibele comentou, Eli e Michelle, que está na página 34, é o final do pr imeiro capítulo, em que eu digo: “o paradigma ético, estético e político da clínica do impossível – que é o título do livro – é um convite para intervir no contemporâneo se afastando da lógica do tempo linear e de certa racionalidade pretensamente científica, confrontando a rea lidade social com uma prática de liberdade que, ao mesmo tempo, reconhece essa realidade e a viola. O que conduz esse processo é o desejo indomável

Lucas - Eu que agradeço, gente. Obrigado pelo espaço e pelas trocas. Eu estou à disposição, a gente pode trocar mais vezes, a gente pode manter contato. E vamos criando essas memórias outras. Vamos entrar em contato com a memória da dor e do trauma para fazer uma outra coisa. Acho que esse é um desafio que está posto para nós nesse tempo, que é um tempo de muita dor e de muito trauma, socialmente, coletivamente, globalmente. Como é que a gente, também, faz a memória da pandemia, uma memória de dor e de trauma, mas também uma memória daquilo que é intolerável, daquilo que a gente não quer mais aceitar pra nossa vida individual, pra nossa vida enquanto coletividade e a gente cria uma outra coisa, um outro modo de viver. Obrigado gente, uma boa continuidade para vocês.

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FICHA TÉCNICA

Imagens nas páginas 13, 16, 33, 34, 35, 36, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 56, 75, 79, 87, 96:

Coleção: Museu de Arte Osório César. Cortesia: Complexo Hospitalar do Juquery e Prefeitura de Franco da Rocha. Fotografia: Gisele Ottoboni/ Prefeitura de Franco da Rocha.

Prefeito

Nivaldo da Silva Santos

Secretária de Educação e Cultura  Renata Maria de Araujo Celeguim

Secretário Adjunto de Cultura

Francisco Thainan Diniz Maia

Museu de Arte Osório César

Michelle Louise Guimarães Elielton Ribeiro  Daniele Senario

Joyce Ferreira

Matheus Alves Vilela

Oficina de formação educativa Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi | Grupo Contrafilé

Produção

Rafael Moretti Convidades

Ana Pato Lucas Veiga Luiz Rufino

Participantes

Amanda Barboza de Lima

Amara Hartmann

Camila Costa

Cintia santos Barbosa Costa Daiane Mota

Dandara Luz

Daniele Senario

Elielton Ribeiro

Fabiola Andrade

Janaina de Barros Nascimento Joyce Ferreira

Loys Barbosa dos Santos Lucas Cacozze

Mariane Missias de Sousa

Matheus Alves Vilela

Michelle Louise Guimarães

Nádia Silva Lima

Roberta Maria Pedrosa

Victor Vicente Barreto

Concepção e edição da publicação

Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi | Grupo Contrafilé

Design Gráfico

Gil Fuser

Transcrição

Denise Malta Lia Zatz Revisão Lia Zatz Produção Contrafilé Realização

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