Revista GRR #5

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por FRANCISCO TOLEDO

O história.

ano de 2014 passou, e deixou para este ano uma tarefa complicada: reverter a situação política do país pós-eleições quando, ao mesmo tempo, elegemos o Congresso mais conservador de nossa

Promessas de campanha já se demonstram verdadeiras falácias, com um governo que caminha para o lado da obscura direita brasileira. Recessão, cortes trabalhistas, privatizações e por fim, o esquecimento de pautas progressistas que marcaram o debate em 2014. Nisso se construiu uma desilusão (talvez mais uma em muitas) com o Partido dos Trabalhadores, e praticamente todo o segmento político de nosso país. Apesar de tudo isso, 2014 foi um ano que ficará marcado na história. Um ano de lutas, um ano de fortalecimento dos movimentos sociais – mesmo com o poder público e seu maior aliado, a imprensa tradicional, fazendo de tudo para criminalizar e perseguir ativistas políticos em pleno século XXI. A juventude disse não aos abusos da Polícia Militar, instituição macabra que aos poucos vai perdendo o apoio da população em geral, fortalecendo uma pauta antiga: a desmilitarização, que chegou a ser tema de campanha. As ocupações se fortaleceram. O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto colocou mais de 20 mil pessoas, semanas antes da Copa, em direção ao estádio do Itaquerão. Uma manifestação que ficará marcada na história, e uma sequência de vitórias para o povo trabalhador. Mesmo assim, a moradia ainda é pauta. A reforma urbana foi deixada de lado, mas tomará conta novamente do debate nos próximos 4 anos. As greves tomaram conta do país. Metroviários, rodoviários, professores, alunos, funcionários públicos, todos se unindo em torno de um grito por justiça trabalhista. Muitos perderam, outros venceram – um novo tipo de mobilização surgiu, sem os sindicatos, os movimentos internos ganharam força e mostraram que a horizontalidade já é presente na luta dos trabalhadores, e não só dos estudantes. Teve Copa, mas teve resistência. E por conta disso, até hoje dezenas de estudantes e ativistas são perseguidos pelo Estado. Foragidos, presos, exilados. Mais um reflexo do regime democrático burguês, que serve apenas para atender os interesses de multinacionais como a FIFA, instituição que ficou a imagem suja. Na questão moral, perdeu de 7 a 1. Teve cultura. Teve arte. Mas ainda não é o suficiente. Em 2015, a luta vai continuar. Logo nas primeiras semanas, o Movimento Passe Livre voltou para as ruas, contra o aumento das passagens no transporte público. E com isso, a mídia independente mostrou sua cara – ao lado dos estudantes e trabalhadores. O ano começou agora, mas já sabemos quem está do lado de quem. Quem pode vestir a máscara de quem. Os veículos tradicionais, incrédulos e manipuladores, continuam. Mas nós também, e daqui não sairemos.


EDITORIAL


quem chega pra ficar

Fomos até a Casa do Migrante para ouvir as histórias dos que vieram ao Brasil em busca de vidas melhores

08 14

FOTOGRAFIA SEM ARREGO

GUERRI #ContraTarifa

em SP

a gota d’água

Quando falamos de masturbação feminina, nem mesmo estímulos sem influências machistas existem

ESPECIAL 1 ANO

Consultamos especialistas para investigar e explicar a maior crise hídrica da história de São Paulo

35 36 MUNIÇÃO

Luana é MC - Um tratar o feminis

Luana H


o deserto da especulação

Empreiteiras continuam investindo em uma guerra sem fim, passando por cima de espaços importantes na cidade

ESPECIAL 1 ANO

Me disseram "Então vai pra Cuba!" - E eu fui

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PAPO GUERRILHA

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DESCONSTRUÇÃO Definindo estratégias do movimento mais incompreendido pela opinião pública (esta, por sua vez, conduzida pela mídia) ma das primeiras no Brasil a smo nas suas rimas

TAZMAN Hansen

ESPAÇO MARGINAL

18 22 29 Passamos três meses com comerciantes e artesãos de rua, estudando o trabalho informal no centro de SP

ILHA #05 MAR/15’


ORGANIZAÇÃO EDITORIAL Camila Eiroa

REDAÇÃO Amaral Accioly Camila Eiroa Francisco Toledo Gabriel Soares Luiz Miller Magoo Pagu Pagã Pietro Damiani Thatiana Mazza Vitor Falco

FOTOGRAFIA Felipe Paiva Francisco Toledo Gabriel Soares Pietro Damiani Rafael Bonifácio Vinicius Monteiro

CAPA PERG

DESIGN Vinicius Monteiro Vitor Falco Revista GRR é uma publicação independente produzida pelo Guerrilha

Indicamos o álbum "Fanfarra do M.A.L. Contra a Tarifa e Outras Histórias da Luta Autônoma Libertária de 2013" para ouvir enquanto lê a revista.

NAVE GUERRILHA


CATRAQUEIRA


Depois das Jornadas de Junho e da revogação dos 20 centavos na passagem de ônibus, o prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) recuperou boa parte da aprovação da população e principalmente da própria esquerda que o ajudou a se eleger. Porém, mesmo depois de ter confirmado, em novembro, o congelamento das tarifas de ônibus em 2015 através da SPTrans, Haddad se reunia ao mesmo tempo com outros prefeitos da Grande São Paulo para debater reajustes. Sem discussões com a população sobre alternativas ao aumento a não ser com políticos e empresários que lucram com o transporte, foi anunciado o aumento de tarifa em 50 centavos. A decisão chega novamente em parceria com o Governo do Estado de Geraldo Alckmin (PSDB), que também entra com a parte de repressão violenta dos protestos contra a tarifa do transporte público, retomados com força no começo do ano pelo MPL. O GRR acompanhou, cobriu e mostrou todos os movimentos da luta no site e nas redes sociais.

fotos | FRANCISCO TOLEDO . GABRIEL SOARES . RAFAEL BONIFÁCIO . VINICIUS MONTEIRO



FOTOGRAFIA SEM ARREGO



FOTOGRAFIA SEM ARREGO




QUEM CHEGA PRA FICAR A dificuldade de imigrantes que chegam ao Brasil atrás de uma vida melhor e muitas vezes em condição ilegal é latente na Casa do Migrante, em São Paulo. O Guerrilha conheceu a história de algumas dessas pessoas. texto e fotos | GABRIEL SOARES


C

hegando em uma paróquia no meio do bairro da Liberdade, em São Paulo, procuro por padre Paulo, um dos coordenadores da Casa do Migrante, onde os imigrantes vindos de várias partes do mundo chegam para recomeçar a vida quando não têm trabalho e algum contato formal no Brasil. É dia de Crisma coletiva, e muitos latino-americanos – como colombianos, peruanos e bolivianos – estão com suas melhores roupas para receber o sacramento da Igreja Católica. Antes da cerimônia, padre Paulo me conta que na noite anterior 80 haitianos haviam chegado do Acre com a esperança de encontrar uma maneira de ganhar a vida. Na lista de países de origem das pessoas que chegam por aqui estão Congo, Camarões, Haiti, Síria, China e outros da América do Sul.

O primeiro imigrante com quem converso é Osakue, um nigeriano que está há seis meses no Brasil e veio fugido da guerra. Ele trabalha atualmente instalando e fazendo a manutenção de aparelhos de ar-condicionado. Na Nigéria era soldador, função que pretende continuar a exercer por aqui. Osakue também quer trazer a família que ficou por lá para morar com ele; são três filhos e sua esposa. Quando chegou, conta que conseguiu trabalho temporário em uma empresa de soldagem, porém, logo que o serviço acabou, foi assaltado e ficou somente com a roupa do corpo. Com muita dificuldade para se comunicar na época, já na delegacia, conseguiu escrever seu nome e foi através das redes sociais que conseguiu encontrar um ex-

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colega de trabalho brasileiro chamado Marcos, que o encaminhou para a Casa do Migrante. Hoje, Osakue está aprendendo português muito rápido e por conta própria. Ele tem esperanças de ficar aqui legalmente, fazer cursos na área de solda e ter sua família ao seu lado no novo país.

Encontro outro nigeriano, Oluwadare, de 34 anos. Há apenas nove dias no Brasil, não fala quase nada de português. Na Nigéria, trabalhava no setor náutico, mas agora está disposto a encarar qualquer emprego, já que suas qualificações não têm validade em nosso país e sabe que provavelmente será muito difícil conseguir o mesmo tipo de trabalho aqui. Assim como na história de Osakue, sua família permaneceu na Nigéria e devem vir para cá depois. Oluwadare diz que quer aprender português o mais rápido possível, trabalhar e continuar vivendo no Brasil.

Vindo do Haiti, Jules é o próximo com quem converso. Ele tem 28 anos e está há 15 dias em território nacional. Quando o abordei para a conversa, demonstrou-se desconfiado sobre minhas intenções. A reação é normal e até mesmo esperada, já que muitos dos imigrantes estão em situação ilegal e uma exposição lhes poderia causar problemas. Jules fala espanhol perfeitamente, o que facilita muito a nossa conversa. Ele me conta que na verdade sua família está na Republica Dominicana, e que chegou ao Haiti depois do terremoto que arrasou o país em 2010. Tem dois filhos, uma irmã, pai e mãe. A vontade de estar junto da família é unânime. Assim como a maioria dos imigrantes, Jules veio em busca de uma vida melhor, já que as condições no Haiti estão extremamente difíceis. Ele confessa que gosta muito do Brasil e que quer ficar aqui e conseguir um trabalho como em construções, por exemplo. Reclama do problema de não ter onde morar, já que a permanência na Casa do Migrante é provisória e muitas vezes não é possível abrigar a todos confortavelmente.

Depois de conhecer Jules, caminho até a cozinha e, preparando uma macarronada, está dona Silvna, que veio do Paraguai há sete anos. Ela tem família formada no Brasil e sempre que pode ajuda na cozinha da Casa do Migrante. Também veio atrás de emprego e acabou permanecendo. Hoje trabalha com costura, diz que não sofre preconceito por ser imigrante e gosta do país, mas mesmo assim pretende voltar para a sua terra em no máximo


dois anos. Sobre os motivos, ela se queixa dizendo estar muito caro viver no Brasil, principalmente por causa do aluguel e da alimentação.

to, não nega que existem problemas. “A burocracia atrasa e dificulta muito a vida de quem chega aqui e quer se legalizar. Mesmo em departamentos públicos, dificilmente alguém fala alguma língua além do próprio português”. Ela também conta que pretende voltar para a sua terra natal daqui um tempo. Pergunto se posso fotografá-la e ela, muito educadamente, recusa. O motivo? O nome da revista. “Guerrilha tem uma conotação muito diferente na Colômbia”, ela diz. E completa: “Se você disser o nome da revista, muito provavelmente mais colombianos vão se negar a falar ou se deixar fotografar, pois estão justamente fugindo da guerrilha”.

Entre os muito haitianos que estão conversando na frente da igreja, me aproximo de Frandy, que tem 24 anos. Há 3 meses no Brasil, não seria novidade se dissesse que veio buscando outra coisa que não um emprego. No Haiti a situação está escassa para os trabalhadores. Frandy já trabalhou com metalurgia e como pintor, conta que há brasileiros que o recebem bem, enquanto outros têm preconceito e desrespeitam muito os trabalhadores imigrantes de forma generalizada. Enquanto a conversa flui, muitos outros dos presentes vão se aproximando curiosos para saber o que está acontecendo. Frandy fala bem português e me diz que aprendeu sozinho no dicionário. Ele sente saudade do Haiti, mas conta que depois do terremoto ficou muito complicado continuar vivendo lá. Peço para tirar um retrato e ele me pede uma identificação de imprensa. Mesmo mostrando, ele se nega a ser fotografado.

trabalho escravo. Familiarizado com a função, já que na Bolívia também trabalhava fazendo roupas, Lorenzo não pensa em voltar. Tem família formada em solo brasileiro. Quando pergunto se espera coisas boas para o Brasil em 2015, ele responde positivamente: “espero coisas boas, sim. Acredito que, como a maioria das pessoas que decide constituir família aqui, a esperança fica em nossos filhos”.

Logo que acaba a cerimônia de Crisma, encontro com Lorenzo, um boliviano de 38 anos que há 15 vive aqui no Brasil. Ele me conta que o que o trouxe para cá foi a curiosidade. Como muitos outros bolivianos, trabalha em confecções, setor que em casos frequentes e, infelizmente, rotineiros, o serviço é executado de maneira abusiva e até mesmo denunciado como

Padre Paulo decide me apresentar a um casal. Ele brasileiro e ela colombiana. Luz (32) veio atrás no namorado há três anos, com quem já mantinha um relacionamento na Colômbia. Aproveitou a oportunidade para terminar os estudos através de um intercâmbio. Ela diz que o Brasil e a Colômbia são muito parecidos e que aqui há oportunidades de trabalho. Entretan-

Por fim, encontro uma senhora sentada na frente da escadaria da igreja. Rosse Mary Alvarez, que tem 55 anos e já está há 30 no Brasil. Veio terminar a faculdade de arquitetura e hoje trabalha no comércio. Acabou se tornando coordenadora do grupo de oração da igreja e aproveita a oportunidade para reclamar sobre a dificuldade que sente em relação a cultura da oração aqui no Brasil. Quando pergunto quais as suas esperanças para 2015, ela responde que “devemos ter esperanças nos políticos que elegemos nessas eleições, que eles mudem o que está errado e continuem o que está certo”. [GRR]

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ENTÃO VAI PRA CUBA! Sempre tive curiosidade de visitar Cuba, não só pela sua história mas também pela quantidade de oportunidades de uma boa foto que existem por lá. Meus amigos e família, por sua vez, sempre foram contra: "Não existe liberdade lá!", "Fidel Castro é um ditador". Ok, ok. Depois de muito tempo insistindo, finalmente veio a frase de impacto: "Então vai pra Cuba!" - e eu fui. texto e fotos | PIERO DAMIANI

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Para começar, devo lhes informar: não, não sou comunista. Sou apenas um fotógrafo que tem como trabalho viajar ao redor do mundo e registrar suas culturas, cidades, tradições e costumes. Mas nunca na minha vida presenciei a experiência socialista, apenas o discurso (que sinceramente, não me atrai nem um pouco). A oportunidade de viajar para Cuba por três dias e ter essa experiência foi um desafio: vinte horas de viagem com diversas escalas, o desafio da língua, a então desconhecida chance de ser preso por tirar uma foto que não deveria, entre outras. Que se dane. Fui para Havana no dia 5 de janeiro de 2012 e a primeira coisa que eu quis foi me hospedar em um hotel no centro da cidade, nada de litoral afastado da população. Não estava lá para curtir, mas sim para ter esse contato humano com a cultura através da minha fotografia. Saí do aeroporto e me deparei com um rapaz de 33 anos chamado Erick. Falava inglês de forma fluente, o que me assustou pra caralho! Seria um espião cubano atrás de mim? Vai saber… Minha mãe dizia que, no tempo da Guerra Fria, haviam espiões vendendo sorvete nas ruas da Austrália. Ok. Entramos em um mototáxi, ou “cocotáxi”, que, apesar de não ser tão confortável, era rápido e incrivelmente barato. A viagem do aeroporto até o Hotel Inglaterra durou 10 minutos e paguei exatos 2 dólares americanos. Eu moro em Melbourne e a distância da minha casa até o aeroporto é um pouco maior de carro, cerca de 15 minutos. Geralmente o taxi fica em torno de 30 dólares. Comecei a rir para Erick quando ele me falou do preço e dei uma gorjeta de 5 dólares, que ele recusou. Que tal dez dólares? Recusados novamente. A razão: “Não precisamos que vocês tenham pena da gente. Com dois dólares posso colocar comida em casa por dois dias para meus filhos. Vá curtir sua estadia, narigudo”, me disse ao ponto em que quase me expulsava da garupa. Uma lição de moral para a vida e um elogio ao meu nariz. A vista do meu quarto era coisa de cinema. Fiquei relativamente perto da praia, e pude ver as casas e apartamentos com suas rachaduras e defeitos. Na rua, ninguém parecia muito triste com isso. Crianças brincando na frente da entrada do hotel e poucos carros passando. Aliás, a diferença de qualidade de ar que senti de Melbourne para Havana foi absurda. Incrivelmente mais limpo! Comentei isso com o porteiro Eduardo, que apesar de não falar inglês, acabou virando meu grande amigo. Inclusive me recomendou dois lugares para ir naquela tarde: a barbearia Salon Guamá e o restaurante El Bosque.

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ESPECIAL 1 ANO

Foi então que eu senti a diferença, quando tanto o restaurante, como a barbearia, não aceitavam moeda estrangeira. Eu, que pensei que se fosse com três mil dólares para lá faria a farra, acabei tendo de lavar a louça do restaurante para poder comer um prato extremamente delicioso que a dona Maria fez para mim. Pelo menos valeu a sujeira. Depois disso, comecei a andar pelas ruas quase vazias de Havana, que tinham muitas bicicletas e crianças brincando ao ar livre. Sem esquecer dos muitos estrangeiros que me olhavam e falavam “salve camarada!”. Demorei para explicar para um chileno que eu não era comunista e que estava ali apenas por curiosidade. Com um inglês meia boca, ele me disse: “Hm... Daqui dois dias você sairá de Cuba sendo comunista!” - apesar de discordar, me fez refletir sobre meu primeiro dia em solo cubano. Tentei passar esse reflexo para as fotos abordando não a condição da cidade, mas sim a de quem vive por lá.

Voltei para o hotel e dormi por longas dez horas - mais do que deveria. Acordei correndo pra perguntar ao Eduardo qual seria o lugar perfeito para ir hoje. Ele me levou até a calçada, olhou para o céu por alguns segundos e disse sem pestanejar: MAR! As águas de Havana são as mais lindas que vi até hoje. As ondas batendo nas pedras, o barulho da brisa do mar sem interferência sonora qualquer das ruas em uma cidade onde vive tanta gente. Das 560 fotos que tirei durante a viagem, não consegui ser neutro: 250 foram só do litoral. E foi lá que, enfim, conheci a pessoa que de fato me fez amar Cuba. Marina, uma artista visual de 25 anos. Ela caminhava por ali quando resolveu perguntar sobre a minha câmera. Longas horas de conversa à beira-mar. Me levou no fim do dia para ver seus grafites, obras de arte que só agora estão sendo popularizadas em Havana. Em um deles, resolveu pegar uma caneta e escrever no balão em branco: “Te quiero”. Não preciso dizer o que aconteceu, certo? Meu último dia em Cuba. Dentro do táxi, lembrei do que aquele primeiro chileno havia me dito. Ainda discordo, não sou comunista. Mas não vejo lugar melhor no mundo do que a capital cubana. Talvez, se eu tivesse nascido lá, pensasse diferente. Mas, de todas as pessoas que conheci, conversei e me apaixonei em Havana, não consigo enumerar um momento sequer de arrependimento, tristeza ou ódio. Portanto, deixo aqui meu recado final: se te mandarem para Cuba, não pense duas vezes. Vá, explore, se aventure, se apaixone. [GRR]

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O DESERTO DA ESPECULAÇÃO Como um dos teatros mais importantes da história contemporânea brasileira foi ameaçado pela especulação imobiliária por décadas - e como os interesses empresariais se aproximam cada vez mais da descaracterização de espaços cênicos da cidade texto | VITOR FALCO

fotos | FELIPE PAIVA

N

o centro de São Paulo, uma cidade abarrotada de edificios e carente de cultura, há um quarteirão inteiro completamente desocupado. O destino deste terreno e de tantos outros locais especulativos é certo para dois lados de uma história de lutas que se desenvolvem nas muitas cicatrizes culturais da cidade.

nou alvo de um ata-que do Comando de Caça aos Comunistas), o grupo sofreu metamorfoses significativas, tendo o espaço cênico incendiado em 1966 e passando por mudanças no local: uma logo depois do incêndio e outra ao longo dos anos 80, sendo concluído nos anos 90 e passando a incorporar o nome Uzyna Uzona. “O primeiro teatro foi feito em oito meses, o segundo foi em um ano e meio e esse, cara, esse demorou uma eternidade porque teve ditadura, teve censura, tortura, exílio, retorno do exílio, abertura longa, restrita” conta José Celso Martinez Corrêa, um dos fundadores e diretor do Oficina. A arquiteta responsável pela reestruturação mais recente era Lina Bo Bardi. “Mas ela veio antes. Lina sofreu muito na Bahia, estava com um trabalho maravilhoso com Glauber Rocha, que me apresentou a ela, e Martim Gonçalves, na Escola de Teatro da Bahia, que tinha toda aquela geração maravilhosa, Gil, Bethânia, Caetano, Torquato, Capinam, Pitanga.” Em meio ao grande movimento da Revolução de Vanguarda, Lina veio para São Paulo e iniciou uma parceria com Zé Celso, fazendo a arquitetura cênica de peças importantes como Na Selva das Cidades (1969), de Brecht, toda montada com o lixo que as máquinas retiravam do caminho paraconstruir o

UZYNA UZONA

A boemia e a concentração cultural do bairro do Bixiga se estabeleceram e criaram forças há muitos anos, herança dos imigrantes italianos. Em meio a festas religiosas, museus, bares e teatros, o Bixiga está entre os vários núcleos culturalmente ativos e diretamente ligados na cidade, mas que se encontram deficientes de tal cultura há alguns anos. Muitos já enxergavam na região um futuro promissor para o desenvolvimento de diversas artes, no meio de todo um movimento. Além das cantinas e feiras de antiguidade, muitos teatros apareceram depois dos anos 50, como o Sérgio Cardoso, o Ruth Escobar e o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), importante fator para a criação da companhia Vera Cruz em São Bernardo do Campo, o mais importante estúdio cinematorgráfico brasileiro. Um dos teatros da lista é o Oficina. Fundado em 1958 e parte integrante de um grande capítulo na história da luta contra a ditadura (tendo como fato mais famoso a encenação de Roda Viva (1968), de Chico Buarque - que se tor-

Instituto Lina BO e PM Bardi

VIVA LINA

Achilina Bo Bardi nasceu na Itália e faria 100 anos em 2014. Estudou na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma. Durante a II Guerra Mundial, Lina chegou a ter seu escritório bombardeado. Nesse mesmo período, ela entra no Partido Comunista Italiano e participa da resistência à ocupação alemã. Veio para o Brasil em 1946, se naturalizando brasileira cinco anos depois. Lina não gostava de ser chamada de arquiteta. Amigos mais íntimos e parceiros de trabalho se referiam a Bardi como um arquiteto. Enxergou no Brasil uma possibilidade de potencializar suas ideias, concretizando-as através do modernismo, por estar em um país completamente diferente do pensamento europeu. É responsável por edifícios icônicos em São Paulo - como o MASP, SESC Pompéia, a Casa de Video e o inacabado Palácio das Indústrias - além de uma participação marcante no design e no cinema.

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Minhocão; e Gracias, Señor (1972). “Aqui, ela começou com O Rei da Vela (1967). Na Bahia, Lina foi expulsa. A escola praticamente fechou. Houve uma repressão muito grande.” Perto do Bixiga, o Vale do Anhangabaú passava por estudos de remodelação. A prefeitura organizou um concurso público para a reforma efetiva do espaço, que estava completamente degradado e só priorizava os carros. Lina Bo Bardi participou deste concurso, com o projeto Anhangabaú Tobogã (1982), mas acabou perdendo para o projeto que está implantado atualmente, de Jorge Wilheim, Jamil Kfouri e Rosa Kliass. Zé Celso conta que a integração de áreas da cidade para convivência faziam parte dos planos de Lina. “Ela tinha uma visão de águia. Quando abriu esta pista [o palco do teatro é uma grande pista], já visava o Anhangabaú, que era aquele projeto lindo que ela concebeu, mas que pegou o segundo lugar. E o primeiro lugar foi pra um nada, que tá lá”. As intenções com o terreno ao redor do Oficina, além da preservação de identidade do próprio prédio, seguiam e seguem as visões promissoras através de estudos de outro artista, que também morou no Bixiga: Oswald de Andrade. As contribuições de Oswald para o teatro não são muito conhecidas: além da forte fonte de inspiração de Zé Celso e O Rei da Vela, há estudos sobre a implementação de um Teatro de Estádio. Durante e após a movimentação de Lina Bardi no teatro e no Anhangabaú, planos de criação de um corredor cultural ligando esses dois pontos da cidade começavam a aparecer de forma cada vez mais nítida. O Teatro de Estádio fomentaria este processo, agregando escolas de criação e áreas de espetáculo e trazendo mudanças significativas no bairro e na cidade, ajudando a trazer de volta uma vida cultural ativa que nunca deveria ter sido cortada. Aparecia já planejado em maquetes e plantas, em parcerias com Edson Elito. Atualmente, os planos pouco mudaram. “O pomar [no terreno atrás do teatro] vai se extender pelo Bixiga todo, vai ser um corredor cultural, ligando a Praça Pérola Byington, Vila Itororó, TBC, Casa de Dona Yayá e a Praça Roosevelt” disse Marilia Gallmeister, arquiteta do Oficina, que trabalha nos planos e projetos atuais com Carila Matzenbacher. Zé arrematou: “E vai ter ciclovia, a gente quer que tenha porque o próprio espaço da Lina é uma ciclovia. Já anuncia a era que engole o petróleo. Tanto é que numa dessas peças, a gente faz essa cena com bicicletas. [em Cacilda!!!(2013)]”.

ANHANGABAÚ DA FELIZCIDADE Silvio Santos é conhecido da vizinhança do Bixiga há muitos anos. Registrou sua primeira empresa na Rua Treze de Maio, mesmo local onde morava, em 1959. Se estabelecendo na região com o Baú da Felicidade, o lado empresário de Silvio viu seus empreendimentos crescerem com o tempo, rendendo muitos frutos. Aos poucos, escritórios e estúdios passam a criar forma mais definida. O Grupo Silvio Santos se estabelece com mais força no Bixiga, trazendo consigo o Teatro Imprensa, se opondo ao conglomerado de prédios administrativos e comerciais do grupo, como o Edifício Panamericano. O grande número de imóveis faz com que um braço do grupo seja criado, apenas para fins de adminstração: a Sisan.Com sede no mesmo Bixiga, a

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empreiteira atualmente se descreve como “Uma empresa que visa construir empreendimentos contemporâneos, de qualidade refinada, alto padrão e requintado, que abriga muitos sonhos. [...] Nossos projetos sempre visam os mais modernos conceitos de arquitetura, sustentabilidade, operação e identificação com as demandas de mercado”. Dentro do grupo, foi responsável pela construção do Complexo Hoteleiro Jequitimar, no Guarujá, um hotel de luxo embutido com um shopping, um “mix de lojas diversificado”. Também é responsável pela construção de prédios residenciais de alto nível em regiões nobres de São Paulo, prédios comerciais em centros financeiros caros como a Berrini e um recente empreendimento residencial na Bela Vista (distrito onde se localiza o bairro do Bixiga) chamado “Central Park Club & Residence”. Os planos de construção da Sisan não paravam: O Grupo Silvio Santos quis comprar o Teatro Oficina no começo dos anos 80 para realizar um projeto de um shopping-quarteirão. A negociação não foi adiante, e logo depois o prédio foi tombado pelo Condephaat, órgão estadual. Mais tarde, o imóvel se torna um teatro público. A restauração com base no projeto de Lina Bo Bardi foi finalmente terminada, anos depois. A Sisan iniciou o projeto do tal shopping faraônico na rua Jaceguai, mesmo endereço do Oficina, nos anos 90. Parte do terreno já era de posse do Grupo Silvio Santos, que consistia no estacionamento do Baú da Felicidade, localizado nos fundos do teatro. Outras construções no quarteirão foram compradas e demolidas para dar espaço ao empreendimento, incluindo a primeira sinagoga de São Paulo. O projeto do complexo contava com um centro de lazer de oito andares, quatro teatros, seis cinemas, lojas, uma torre com restaurante panorâmico e um parque temático baseado no norte-americano City Walk, de Orlando. A região do bairro era descrita por moradores e pelo jornal local na época como “uma das mais deterioradas”. A própria empreiteira tratou logo de usar os espaços do jornal para adicionar mais “in-

Renato Anelli

UMA FLORESTA NO CENTRO

O conceito de “Tobogã” aplicado em viadutos deixaria todo o vale ao natural, com o concreto removido e a livre circulação de pessoas, criando caminhos orgânicos sobre a grama, conforme os pedestres naturalmente escolhessem vias mais rápidas de se chegar a determinado local. Uma grande estrutura tubular de aço protendido acompanharia o vale, contando com quatro pistas para carros e ônibus, passando por cima do Viaduto do Chá e do Santa Ifigênia, numa sequência ondulada. Baseada em aquedutos, “embaixo o rio de pedestres, as árvores, o verde”, A preferência de pedestres tornava um centro mais humano, participativo, circulável, respirável e inspirador. A passagem subterrânea seria transformada em lago, lembrança do antigo rio do vale. No entanto, a equipe avisava: “É um projeto caro.”


no, um dos principais braços da corporação, teve um rombo bilionário descoberto e foi vendido, piorando ainda mais a crise que tinha se iniciado pouco antes com os carnês do Baú. A especulação entra em sua fase mais agressiva depois de quase 30 anos: haviam suspeitas de que a Sisan construiria arranha-céus residenciais no lugar do shopping. Se toda a conversa sobre cinemas, empregos, lazer, cultura e recuperação de áreas degradas tinha caído por terra após criar um quarteirão de deserto no centro da cidade, ao lado do Minhocão por vinte anos, com toda a certeza a notícia que a vizinhança recebeu sobre 700 apartamentos no lugar de um parque de diversões enterrou qualquer argumento que ainda restava para a sua construção. Para arrematar, o Teatro Oficina conquistou seu tombamento como patrimônio cultural do país pelo Iphan em junho de 2010, que havia sido solicitado desde 2003. Com isso, o prédio não pode mais ser derrubado e as características de seu entorno devem ser preservadas. Localizado na lateral da construção, o janelão de vidro concebido por Lina para a interação do público e dos atores com a cidade - com vista para o Minhocão - atravessado por uma grande árvore Cesalpina não pode ter suas características alteradas ou perturbadas por outro elemento em lotes vizinhos - como torres colossais. A Procuradoria do Meio Ambiente abriu um inquérito em outubro do mesmo ano para garantir a proteção do local.

formações” sobre o caso, afirmando que “pesquisas quantitativas e qualitativas indicam que 95% dos moradores e frequentadores da região aprovam a construção do Centro Cultural, e sabem que valorizará em muito a região”. O GRR não encontrou fontes ou registros de tal pesquisa. Mesmo em meio a revisões de obra por parte dos órgãos do estado e mesmo com declarações de João Guilherme de Castro, diretor técnico do Condephaat na época, a Sisan atestava que todos os órgãos autorizavam os primeiros passos de demolição de edifícios vizinhos e de preparação do terreno. Silvio Santos, ao ver uma coluna na Folha de São Paulo relatando toda a história sobre o shopping, se encontrou com Zé Celso no Oficina, em abril de 2004. O encontro rendeu frutos para os dois lados: ambos se acertaram e finalmente se aprontaram para planejar e construir o Teatro de Estádio, com o shopping construido como uma galera, nos arredores. Mas a Sisan estava alinhada para avançar apenas com o empreendimento. Restos de entulho que se formavam no grande terreno e que não eram levados foram se amontoado em um grande sambaqui, presente no local até hoje. Um antigo prédio abandonado da Caixa, ocupado pelo Movimento dos Sem Teto - e que participava de atividades sociais feitas pelo Oficina - também foi derrubado, com apenas 28 das 100 famílias que moravam no local sendo atendidas e conseguindo um apartamento pelo CDHU, por comprovação de renda mínima para financiamento. O grupo prosseguiu com as demolições até o fim da década. Foi exatamente nessa época em que o Banco Panamerica-

A crise contribuiu também para a queda do ex-presidente do Grupo Silvio Santos, Luiz Sandoval. Inimigo do teatro, respondia entre os embates que “só defendia a propriedade do terreno que pertendia às nossas empresas”. Mais um ponto para os interesses empresariais. Com a saída de Sandoval, quem assume a presidência do grupo é Guilherme Stoliar. A troca de presidência foi suficiente para que Zé Celso conseguisse o empréstimo de todo o terreno por trinta dias. Com isso, uma tenda de 1650m² foi construída e batizada de Teatro de Extádio, com quatro peças em cartaz ao longo de quatro dias. Mas a situação voltou a se complicar pouco tempo depois. Eduardo Velucci permanecia na direção da Sisan, posto que assumira desde 1993, e é apontado pelo Oficina por ser um dos responsáveis pela guerra na construção, tanto neste caso, quanto na interrupção das negociações com Silvio Santos em 2004. Interesses exclusivos da empresa estariam em jogo, em uma suspeita de acomunamento por avais do Condephaat no segundo e recente caso de descaracterização do patrimônio, dirigido por Ana Lúcia Lanna, também professora da USP. “Teve uma audiência pública aqui [no Oficina, em 2013] quando a presidente do Condephaat, Ana Lanna, Felicianna, ela destombou o teatro e queria construir torres aqui, cortar essa árvore e tudo, e ao mesmo tempo ela faz parte da comissão de festejos de Lina Bardi! É impressionante”.

TERREIRO ELETRÔNICO A resposta do grupo teatral depois da audiência pública foi, mais uma vez, enérgica. “Decidimos então nos reunir através disso ao invés de ficar chorando, porqueficar indignado é instrumento de otário”, diz Zé Celso. “Tem que tocar em frente com um novo vocabulário, de uma outra

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maneira, não pode ser da maneira em que escreveram.” Zé fala sobre a repercussão com a ameaça de retirada da escadaria dos fundos do teatro, que dá para o terreno e conta como a única saída de emergência que o prédio possui, e a cobertura do ato de lavagem dos degraus, depois de negociações com a Sisan, numa alusão à Lavagem do Bonfim. “A peça da escada é uma vitória que tivemos, não adianta ficar dizendo ‘A operação contra especuladores filhos da puta’, não é nada disso. Eles são especuladores, não fazem mais do que a obrigação deles do que são, mas eles querem nos destruir. Nós vamos revidar.” No dia 5/12, centenário de Lina Bo Bardi e mesmo dia do rito em homenagem que o Oficina estava preparando, Zé Celso ligou para Silvio Santos. Os dois conversaram até chegar a um entendimento concreto, marcando uma audiência pública no Ministério da Fazenda. “Chegamos a conclusão de 34 anos numa luta com os caras, eles também estão de saco cheio. O Silvio Santos foi muito gentil hoje. O outro [Eduardo Velucci, presidente da Sisan] quis proibir. Mas ele [Silvio] autorizou e inclusive confirmou a reunião. [...] Foi um jogo, uma luta que virou mais ou menos uma antropofagia. Foi pra mim formidável contracenar com esse poder que é o capitalismo financeiro e a especulação imobiliária. Eu aprendi muita coisa. [...] Chegou um ponto que alguma coisa vai acontecer. E se não acontecer, os empresários vão pro fogo, todos os empresários”. Citando estratégias, Zé conta que “temos uma relação muito diferente. Há uma visão antiquada, da velha esquerda, de acusação. Está em um outro nível, tá a nível de entendimento.”

O rito cineteatrográfico contou com experimentações e levou público e grupo a mais reflexões. A encenação interditou a Rua Jaceguai por alguns minutos e passeou com o público pelo grande deserto no quarteirão. Rios subterrâneos, engolidos pela cidade, foram simbolizados por longos tecidos azuis e estendidos da porta do teatro até a outra parede do terreno (especificamente o Ribeirão do Anhangabaú e o Córrego do Bixiga). Também removeram um tijolo do andar superior do prédioa marretadas, colocando na prática o que dita o laudo técnico oficial de tombamento: “O “teatro” Oficina passou por vários tipos de organização interna da relação palco-plateia: atuante-espectador. Esse fator constituiu-se em parte integrante de suas pesquisas: O “espaço” da cena. Um dos elementos básicos de sua pesquisa de linguagem eminentemente teatral. Seu “tombamento” não deveria, portanto, considerar “fixo”, congelado, o seu equipamento interno, para não estrangular as novas ou furutras propostas de pesquisa do grupo.” O laudo também aponta e comprova a luta em relação às mega construções doGrupo Silvio Santos, já em 1986: “Concordo com as medidas de urgência no caso de seu tombamento, dada a iminência da incorporação de sua área de chão a um grande complexo comercial.” As experimentações continuaram, desta vez pondo em prática os conceitos de Teatro de Estádio: enquanto o elenco guiava o público para uma ponta do terreno, um percussionista tocava do outro lado, a cerca de 150 metros de distância, no grande sambaqui. Ao final do ato, a atriz Sylvia Prado explicou ao público: “Só tinha um tambor e uma pessoa tocando, e dava pra ouvir perfeitamente. Isso é Teatro de Estádio.”


A CIDADE QUE QUEREMOS? O Uzyna Uzona não é o único espaço teatral da cidade que sofre na mão de empresas com interesses que só visam o lucro: vários outros grupos independentes de São Paulo estão sendo chantagiados e correm algum risco. O Núcleo Bartolomeu de Depoimentos é um exemplo: o grupo de teatro da Pompeia recebeu recentemente uma liminar judicial de despejo imediato pela incorporadora INK. Perderam uma audiência pública para tratar sobre o caso e foram compulsoriamente retirados do espaço em que atuavam. “A INK permutou isso com o antigo proprietário”, conta Eugênio Lima, ator e diretor musical. Quando alguém está em um local alugado, na hora da venda o dono tem a obrigação de oferecer primeiro para o inquilino. Na permuta, issonão precisa ser respeitado. “Temos o direito de contestar. Mas a questão é um pouco mais profunda do que isso. A questão é: Que tipo de cidade

GRUPOS DE TEATRO ATUALMENTE AMEAÇADOS

Núcleo Bartolomeu de Depoimentos

• Casa Laboratório (Barra Funda) • Casa Livre (Barra Funda) • Casarão da Escola Paulista de Restauro (Anhangabaú) • Cia. da Revista (Campos Elíseos) • CIT-Ecum (Consolação) • Club Noir (Augusta) • Espaço Cia. do Feijão (República) • Espaço dos Satyros (Praça Roosevelt) Os Satyros foram o primeiro grupo a ocupar a Praça Roosevelt, em 2000.

• Espaço Maquinaria (Bela Vista) • Teatro da Vertigem (Bela Vista) Vertigem e Maquinaria ocupam atualmente o mesmo prédio.

• Espaço Os Fofos Encenam (Bixiga) Ameaçou fechar as portas no fim de 2013, mas conseguiu um patrocínio.

• Galpão do Folias (Campos Elíseos) • Heleny Guabira (Praça Roosevelt) • Instituto Brincante (Pinheiros) • Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (Pompeia) Já perderam seu espaço para a construção de um prédio, pela INK

• Sede Luz do Faroeste (Santa Ifigênia) • Teatro Commune (Consolação) • Teatro do Ator (Praça Roosevelt) • Teatro do Incêndio (Consolação) • Teatro Oficina (Bixiga)

que a gente quer?”. O despejo durou cerca de 20 horas e contou com a presença de viaturas e oficial de justiça. “Eles queriam fazer isso rapidamente pra não dar tempo de termos outra condição, porque estávamos julgando o agravo. A gente pediu um agravo pro desembargador que poderia ou não suspender a liminar. Mas ele escolheu fazer isso a toque de caixa pra poder demolir o espaço”. Mesmo se o grupo ganhasse o agravo, o espaço já havia sido demolido. Em um dia. “A INK e todos os seus investidores compactuam com a ideia de que, pra resolver a questão, é preciso a violência, a força e o despejo”. José Celso estava na mesma audiência pública. “Eles são maravilhosos, têm um DJ que é um líder, com um discurso maravilhoso, contemporâneo. Têm atrizes maravilhosas, trabalho maravilhoso. O poder cultural desse grupo é enorme.” Após deixar bem claro que os colegas de profissão são maravilhosos, alertou os outros coletivos em perigo: “Os grupos não estavam lá na audiência! Só havia o Bartolomeu e o Oficina. Por que ainda não caiu a ficha. As pessoas tem que se ligar. O problema de hoje é que o teatro é uma coisa tão desprezada, tão deixada pro lado, e nós temos que trabalhar tanto em cada grupo que a gente não tem condições de contato. Mas essa guerra vai nos unir. Nós vamos ganhar.” Na TV Cultura, uma entrevista no Metrópolis trouxe esse debate à tona. “Estabelecemos um diálogo, abrimos uma reflexão onde podemos conversar e pensar uma cidade, do jeito que todos queremos. Então, por exemplo, a possibilidade de um projeto como esse é incorporar um teatro que já existe, que já está no seu projeto. De dialogar as partes para que isso possa fazer parte de um projeto”, disse Cláudia Schapira, do Núcleo Bartolomeu. O Plano Diretor prevê condomínios mistos - que não são exclusivamente residenciais, abrigando comércios, serviços e centros culturais. Eugênio Lima rebate: “A ação da INK é exatamente na contramão do plano diretor. Se as Zonas de Território Cultural já estivessem regulamentadas, isso não teria acontecido com o Núcleo Bartolomeu, e muito provavelmente isso não aconteceria com o Brincante”. Coordenado por Antonio Nóbrega e Rosane Almeida, o Instituto Brincante recebeu em maio uma notificação de desocupação e tentam estender esse prazo por meio de audiências públicas. O local, no Sumarezinho, é sede da companhia há 21 anos. “O que a gente tá tentando fazer é lutar para ficar até o final de 2015 e concluir nossas atividades que estão muito ligadas a ensino, e que acontecem ao longo dos anos pra pagar o aluguel, não fazemos a coisa de um dia pro outro, a gente se programa ao longo do tempo. Se eu não principiar nada agora, elas acabam em 2015. Estou contando com o bom senso, tanto da juíza que vai julgar quanto da incorporadora”. Rosane já tem planos para se adaptar. “A gente tem duas casinhas ao lado do brincante, e a nossa ideia é fazer daquelas casinhas um centro cultural pra cidade de São Paulo. Isso não resolve o problema de outros grupos, é um desafio pra época que a gente vive”.Rosane também cita como problema o mecanismo de políticas culturais, que “urgentemente têm de levar em consideração a continuidade de um trabalho”.

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Por mais algumas vezes, “O espaço de interesse público da cidade é suprmido por um espaço de interesse privado. Onde a única lei que vale é a lei da propriedade privada e a lei do grande capital”, completa Eugênio. “O processo do núcleo vai correr, tendo sede ou não. A proposta da sede é trazer um espaço de interesse público, que não é do estado, mas que é de interesse comum. [...] O poder econômico é muito mais sério. nessa cidade que tá se criando, a única mediação é a violência. Quando você retira os espaços de convivência pública, sobra apenas o conflito. E o conflito é violento.” Zé Celso também fez planos com a diretora do Bartolomeu, Claudia Schapira. “Vamos fazer uma pesquisa de todas as empresas. Deixar de ser o teatro do oprimido pra ser o teatro do opressor. Vamos pegar os nomes das empresas todas que querem nos despejar e colocar em um cartaz tipo faroeste, entregando, e os próprios grupos teatrais vão agir pra saber o que eles fazem. Sabemos o nome dos grupos, mas tem que saber de quem vai falar, pra impedir! Nessa época que está na cara que eles estão roubando pra caralho, como é que esses caras vão querer tirar o teatro, que é uma coisa de valor incomensurável? Essa cidade vai ter que aprender a não desprezar o teatro. A Orgya, como Dionísio chama. O teatro é um lugar onde as pessoas se juntam, onde nasceu a política, o contato direto, e esse contato é a coisa mais preciosa nesse momento em que a humanidade corre o risco de se ver exterminada. Não dá. O teatro tá aí pra impedir. Evoé!” [GRR]

NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM ESTACIONAMENTO

Blog do Zé Celso

O GRR foi fotografar os entornos do Teatro Oficina, nesse mês de março. Foi prontamente impedido por um porteiro do estacionamento que funciona no local. “Vocês não podem entrar aqui, não tem autorização. Só podem fotografar com permissão da SISAN”, dizia o senhor da guarita para a reportagem. Lembramos ao porteiro de que aconteciam peças do lado de fora do teatro, que haviam saídas de emergência nos fundos e de que estávamos fazendo uma reportagem sobre especulação imobiliária. Ele prontamente respondeu que o terreno não pertence ao teatro, e insistiu, mesmo com os vários carros mensalistas no local, pela autorização da construtora do Grupo Silvio Santos.

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Atual Ministro da Cultura Juca Ferreira no topo do Sambaqui do terreno em torno do Teatro Oficina. Maio/2014.

Blog do Zé Celso


A CULTURA INFORMAL OU O CENTRO LATENTE Pessoas comuns ganhando seu sustento, mas sempre há escondido algum talento. Artistas da vida real quebram paradigmas cotidianos e provam que a lei que vale é a da informalidade.

texto MAGOO PAGU PAGÃ* | fotos RAFAEL BONIFÁCIO

*Todos os nomes desta peça jornalísitca foram alterados para proteção dos seres humanos envolvidos neste contexto real.


ESPAÇO MARGINAL

Se você, leitor, é de uma área metropolitana, com certeza deve ter esses trabalhadores em seu cotidiano. Aquele camelô com frase de efeito, aquele pescador de cliente com voz singular, o artesão que você vê naquela praça a caminho do trampo. Então, a Guerrilha passou os últimos 3 meses com essas pessoas e estudando o trabalho informal no centro de São Paulo.

Trabalho informal é o trampo que não tem contrato. Além disso, o trabalhador informal não tem carteira assinada e normalmente não tem nem salário fixo, nem férias pagas. As condições deste tipo de trabalho são bastante precárias, nenhum direito é garantido ao trabalhador que não paga impostos. Este é mais um caso de trabalho autônomo, autogerido e sem intervenção de empresas ou do Estado. Um aspecto que desencadeia o trabalho informal é a fragilidade da estrutura das relações trabalhistas: sindicatos não atuantes, instabilidade empregatícia e dependência em relação à Justiça do Trabalho. Ainda segundo a geógrafa Suelen Alonso, a substituição do trabalhador pela máquina nas lavouras e a informatização das indústrias contribuíram para o crescimento desse setor. Outro fator que talvez poucas pesquisas considerem é o preconceito social com pessoas que tenham estilos de vida diferente, ou os que já tiveram passagem pela polícia, o que muita gente acaba tendo por pequenos delitos como desacatos, pixação, fumar um... Muitas vezes esses trabalhadores ficam estigmatizados como “bandidos”, “vagabundos”, entre outras coisas dignas da Marcha da Família com Deus e o Capiroto no golpe militar constituinte... Para o Estado, é mais vantajoso criar métodos para que o trabalhador tenha contratos, porém, há uma grande parcela da sociedade que não consegue empregos fixos por falta de formação, por algum preconceito de imagem e/ou social, ou por precisar de

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horários flexíveis. Nem todo mundo tem que se encaixar na latinha de sardinha, e nenhum ser vivo deve ser submetido ao sofrimento que não lhe seja quisto, todos temos direito a plenitude, felicidade, liberdade, individualidade... O Brasil é o 2º país na América Latina com o maior número de trabalhadores informais, o 1º lugar é da Bolívia. Quem garante a existência de tudo isso é a lei da oferta e da demanda. O consumidor é muito beneficiado pelo trabalho informal. Muitas vezes esse trabalho é o que garante acesso ao público em geral, sem distinção de credo, cor, idade, etc., também frequentemente são os melhores preços do mercado. Ele faz a ponte entre o alto, médio e baixo consumo. Mesmo com todo o sistema monetário, estrutural e governamental, criando padrões, regras, tratados e leis contra esta categoria. Lidando com o precário, o trabalhador informal é o artista das classes trabalhistas, sempre abusando da criatividade para lidar com os entraves cotidianos do tradicionalismo e conservadorismo. Segundo estudo de 2012 do IBGE, dos 56% de brasileiros com mais de 16 anos ocupados com algum ofício, 22% são trabalhadores informais. Isso pelo que se tem registro, já que um trabalho informal por exemplo, é o comércio de substâncias psicoativas, assim como nós, guerrilheiros, preferimos chamá-los. Essa porcentagem de trabalhadores é bem próxima também, a de jovens que estão no sistema prisional cumprindo pena por comercialização de substâncias psicoativas (cerca de 20% segundo a CNJ e o DPN).


Caso esses dados fossem um pouco mais claros e menos criminalizados, esses trabalhadores informais poderiam estar contribuindo fortemente para o PIB brasileiro. O Serviço de Investigações do Congresso americano disse que a Colômbia chega a ter 2,5% do PIB no mercado da Cannabis. Os EUA mesmo tem o dobro, 5% do PIB com Cannabis. Se alguém aí está reclamando de falta de crescimento econômico do Brasil, deve estar também muito a favor da descriminalização da Cannabis... A relação cultura, trabalho e sistema prisional. Com mais Cultura mais oportunidades de relações saudáveis na sociedade. O trabalho é o ápice de nossa doutrinação capitalista, por ele reprimimos diversas individualidades, que por sua vez, poderiam ser supridas com atividades culturais. Uma das atividades culturais mais populares são as rodas de conversas, muitas vezes com Cannabis. Descriminalizar o consumo e o comércio da Cannabis, destrava uma sequência de fatores dessa bola de neve, incluindo a regularização de milhares de trabalhadores cotidianamente injustiçados. Convenhamos, só não legalizaram porque o sistema é financiado, e precisa manter a dominação, através da violência. Lembrando que o Sistema Prisional é totalmente ineficiente, incapazes de construir indivíduos sociáveis, provavelmente um interno sairá com uma formação livre daquele lugar, possivelmente acabe escrevendo, compondo, ou caindo pra alguma atividade artística para tratar de seus traumas adquiridos. Tudo isso porque ele vendeu um CD a preço justo? Ou por ser comerciante de uma planta

que vai dar bem-estar para as pessoas? No âmbito das artes, a palavra informal pode descrever um movimento artístico que surgiu nos anos 40 do século XX. O informalismo é caracterizado por ser contrário à estruturação formal e preconcebida da obra de arte. A arte tem tudo a ver com esses trabalhos. Muitos, inclusive, optam por esse tipo de trabalho enquanto não conseguem sobreviver só da cultura. Ou por terem um cabelo diferente, ou pelo visual de piercings e tatuagens, por você querer escrever fora dos padrões globo de jornalismo, ou por você já ter um trabalho informal que te dá, principalmente, flexibilidade e liberdade de ação, característica dessa categoria. Hoje, anos 10 do século XXI, se o leitor der um passeio pelas ruas do centro de SP, pode achar que está vendo uma gama de produtos e serviços como os ofertados nas Galerias: tranças dreadlocks, calçados importados, tinta pra arte de rua e graffites, artigos para capoeira, artigos para consumo de substâncias de fruição social, e qualquer outra coisa que se possa imaginar. E se o passeio for mais atento, vai ser possível se deparar com MC’s, escritores, poetas, beatmakers, músicos e dançarinos. Cada trabalhador tem a sua arte. Foi por esses lados que Nelson Triunfo, já na década de 70 do século anterior, pensava a arte, trazendo a cultura black para as ruas do centro velho. Ele ainda dá rolê pelo centro e inspira muitos, centenas seguem a mesma trilha.

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ESPAÇO MARGINAL

Fagner tem 29 anos, veio de Santo André e tem apenas o 2º grau completo. Conheceu a rua e o trabalho informal há 4 anos, pescando clientes para uma loja de tatuagem. Quando viu que fazer dreadlocks tinha uma demanda grande, resolveu se dedicar ao ofício. Para ele, a melhor parte de trabalhar na rua é a liberdade e a oportunidade de troca direta com seus clientes, já que seu trabalho é feito diretamente para uma pessoa, sem intermediários. Além de fazer dreads na 24 de maio, Fagner também “bate tambor” (como ele prefere dizer), junto ao grupo de capoeira do mestre Nanico, todo sábado a tarde também na 24 de maio.

Assim como Fagner, Felipe tem 24 anos. Chegou em SP em 2006 para estudar e trabalhar. Veio de Goiânia e chegou a ingressar na universidade, mas logo largou para seguir com a arte. Sempre foi envolvido com música e hoje toca 5 projetos, do rap ao sound system. Aprendeu a fazer dread com os amigos e após tentar vários trabalhos e sofrer diversos tipos de preconceito pelo seu cabelo ou suas roupas, preferiu continuar fazendo tranças dreadlocks. Para ele, a incerteza de sua renda mensal é uma preocupação, mas garante que mais que um salário mínimo ele faz. Felipe também relata que não é só na profissão de cabelos que sofre preconceito, mas em algumas apresentações. Mesmo com autorização do Estado, policiais já chegaram a impedir a realização de eventos em áreas públicas, além de aprenderem equipamentos de áudio.

Lorena é a mais nova do grupo de entrevistados. Com 18 anos, veio de Rondônia e assim como todos entrevistados, só tem 2º grau completo. Recém iniciada no artesanato, nos 3 meses que tem se dedicado, foi de Rondônia para Chapada dos Veadeiros e de lá foi para MG até chegar aqui. Para ela, uma das piores coisas desse trabalho é o medo que sente às vezes ao pegar carona na estrada, ela lembra de pelos menos 3 ocasiões em que foi desrespeitada e agredida por homens, mas que conseguiu sair. Porém, diz que a cada lugar que chega, logo conhece pessoas boas e que sempre a ajudam em sua jornada. Ela completa dizendo que são poucas as cidades como São Paulo, que possuem uma legislação autorizando o trabalho do artesão na rua. Mesmo com uma lei favorável à arte de rua em SP, os artesãos são obrigados a se associarem e pegarem uma carteirinha que comprovem a ocupação. Muitos acham que isso vai contra algumas leis brasileiras e principalmente contra o sentido natural da arte.

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William é pixador, tem 25 anos e venho de Itanhaém para estudar e trabalhar três anos atrás também tem apenas o 2º grau, pretende entrar no curso de produção cultural. Os trabalhos que teve até hoje foram todos bem informais, pintor, carregador, ajudante de pedreiro, barman...De tanto dar rolê no centro, conheceu a 24 de Maio e também é “puxador” de dreads, piercings e tatuagens.

Outros que adotam o trabalho informal são os imigrantes. Falamos com Krisin, de 44 anos, ele veio da Índia há dois meses e é formado em Letras com especialização no inglês. Ao ver que o Brasil é muito precário no ensino dessa língua, teve a ideia de abrir uma escola de inglês que tenha foco em crianças e mães solteiras, garantindo o ensino básico com um preço acessível. Um projeto lindo que ainda não saiu do papel justamente porque Krisin, sem falar o português e sem conhecimento das leis brasileiras, ainda luta para conseguir alguém com quem conversar. Por enquanto, Krisin ainda esta desempregado.

Para Tiozinho, camelô de 49 anos, a perseguição é ainda maior. Faz parte da performance diária do trabalhador. Na equipe tem o Dj que coloca pra tocar uma infinidade de sons, dos mais clássicos aos top hits atuais, todos os sons disponíveis nas lojinhas ambulantes. A seleta é sempre bem animada já pra deixar todo mundo no pique. No meio de nossa conversa, Tiozinho e a equipe tem que sair correndo para fugir da polícia. Camelô desde 2005 diz que o Brasil esta atrasado em relação a vários países nas leis de segurança e policiamento. Escolheu a profissão pela facilidade das transações financeiras. Acha que a coisa mais ridícula de seu trabalho é o preconceito e o despreparo da polícia que acaba correndo atrás de trabalhadores honestos. Para ele a ideologia do país é furada e não tem nexo, fazendo as contas um emprego registrado que pague mil reais para ele, com impostos descontados, não daria para pagar nada. Adora o que faz, conhece gente que trabalha de camelô a 20 anos e diz que nada mudou nesses anos, a repressão é a mesma e as políticas públicas ainda não atingiram sua categoria. Diz que se tivesse a oportunidade de ter um emprego registrado em escritório ganhando R$10 mil trocaria tudo por esse emprego facilmente. Ele ainda diz: “O Brasil tem tudo, tem minério, tem recursos. Eles roubam…”. Se os donos das empresas e os políticos abrissem mão do osso, a renda de qualquer brasileiro poderia chegar aos 20 mil reais fácil; se tudo fosse um pouco melhor valorizado e distribuído, ou investido de forma mais igualitária no Orçamento de cada setor social.

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ESPAÇO MARGINAL

No século XXI, um dos maiores debates é com relação a propriedade intelectual x livre compartilhamento de informação. O debate sobre a falência da indústria do entretenimento pós-explosão dos recursos digitais, que intensificaram o processo de reprodutibilidade técnica já ressaltado por Bazin, fica muito mais explícito na rua. A arte é popular, oral e sempre será, independente de leis. O trabalho por sua vez, sempre será arte, ou voltada ao crescimento dos indivíduos, ou pautada pelas demandas do papel moeda. Se o capital prefere as máquinas, os seres vivos estão enfrentando a batalha da Matrix.

ANTES O CICLO ERA

Antes o ciclo era: artista faz a arte -> gravadora/editora a supervaloriza colocando vários intermediários até o público -> loja acrescenta ainda mais o valor da obra -> obra chega, por fim, ao público.

HOJE NAS RUAS

Hoje nas ruas existe uma relação mais direta: artista faz arte -> obra chega ao público. Ou ainda: artista faz arte -> camelô tira todo o valor superfaturado da arte -> arte chega ao público. Além disso, temos outro processo que ocorre aqui: Estado não dá condições -> sistema cobra o indivíduo para ser bem sucedido -> indivíduo usa criatividade para ser bem sucedido como o sistema quer, sem precisar recorrer ao Estado ou empresas. Para isso se utilizam de ferramentas democráticas como a internet, o direito a livre compartilhamento de informações e ocupação de espaços públicos. O que esses trabalhadores têm em comum? Nenhum auxílio no sistema democrático de direito. Se ao menos as políticas

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de (in)Segurança Pública e Repressão tivessem cabeças mais pensantes, ou mesmo, se Leis que pedem a não discriminação por imagem, cor, credo, roupa, opção sexual, entre outras fossem cumpridas, ou que houvesse alguma forma de regular o investimento das empresas privadas na formação de seus funcionários, sei lá...dá pra pensar em tanta coisa. Hoje temos em São Paulo 93 delegacias de polícia. Um número expressivamente superior ao das Casas de Cultura, também projeto do Governo do Estado de São Paulo, com apenas 15 espaços. A última grande movimentação nesse sentido foi 10 anos atrás, em uma articulação Federal com os Estados e Municípios, o Programa Cultura Viva do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania, que durou até 2009 firmou contrato com 301 Pontos em 172 municípios diferentes do Estado de São Paulo. Ainda assim todos esses projetos são super burocratizados e cheios de pormenores que pro cotidiano da rua não são bem a solução. Sabe aquela parada do viva e deixe viver? Se um cara que compartilha conhecimento a preço justo promovendo acesso a conteúdo não tivesse sua mercadoria roubada pelos policiais, talvez sobrasse uma grana pra ele investir nesse empreendimento. Se o artista não fosse impedido de realizar suas apresentações livremente em qualquer espaço público que seja, talvez o problema de espaços para cultura seriam um pouco aliviados. Mas bonito mesmo seria ver cada delegacia de polícia de tornar um Centro de Assistência Sócio-Cultural, ou cada Base Móvel Comunitária uma Base Sócio-Cultural Comunitária. A cultura informal liga muitas coisas pelos passeios do centro de São Paulo. Seja por causa de algum preconceito social, por falta de políticas públicas para seres humanos, por total falta de vontade política, ou pela resistência em prol da liberdade; do menino de dread e tattoo, ao músico, ao traficante, o imigrante, o trampo das ruas muitas vezes é a única saída. Para aqueles com sorte e/ ou espírito empreendedor, o “faça você mesmo” segue crescendo cada vez mais no nosso cotidiano. A economia criativa vai construindo, é melhor abrir caminho. [GRR]


QUEM MEXEU NA MINHA SIRIRICA? texto | CAMILA EIROA

ilustrações | AHKA

Enquanto a pornografia violenta e sexista rola solta, a autonomia sobre o corpo feminino continua sendo considerada imoral e suja. A indústria pornográfica é claramente voltada para o público masculino pelos mesmos motivos de sempre: faz-se acreditar, até hoje, que a sexualidade feminina é imoral e, ainda mais, inexistente sem a presença da figura máscula ou de objetos fálicos. O que está alimentando o desejo sexual de milhares de pessoas que vão atrás desse material na internet, na televisão e na vida real? São várias as problemáticas a serem citadas, que passeiam pela aparência física das atrizes, criada a partir do modelo que a sociedade julga bonito e certo, dos filmes lésbicos totalmente estereotipados e em cima de um fetiche masculino, da educação sexual que faz meninas e mulheres da vida real reproduzirem o comportamento do vídeo e, por fim, a violência. Que não é pouca. A última modalidade que aparece nas filmagens tem como termo médico prolapso retal. Não, durante as cenas não parece ser levado a sério como deveria ser levado casos de descolamento do reto que acabam por escorregar para a parte de fora do ânus. E é isso mesmo que acontece e que faz alguns homens se sentirem excitados e se masturbarem. A masturbação do homem com estímulos desse nível e outros tão perturbadores como a depilação extremamente infantil que incita a pedofilia, o sexo oral que chega perto de causar o vômito e a submissão total da mulher é algo levado como natural e viril. Agora, quando falamos de masturbação feminina, nem mesmo estímulos sem influências machistas existem. Meia dúzia de revistas femininas se propuseram a falar do assunto nos últimos anos, mas o que vemos, mesmo com o estímulo, é o mesmo discurso pronto sobre se fechar no banheiro, estar relaxada, usar a imaginação, pensar no homem e mandar ver. Ou então, fazer de sua masturbação vitrine para estimular o parceiro – sempre ele. Existe também a máxima de considerar conformismo o caso de uma mulher que nunca chegou ao orgasmo. Oras, são conformadas as que não se tocam por acreditarem e

terem sido educadas de que isso é algo sujo? Não é sujo conhecer o próprio corpo, sujo e preocupante é aceitar que a sexualidade feminina sofra interferências violentas como as que cada vez mais são expostas e exploradas na pornografia para não perder público. Enquanto esse entretenimento é alimentado, muitos usuários do Facebook resolvem denunciar como impróprio o conteúdo que meninas vêm se dedicando a fazer para desconstruir o tabu da masturbação feminina. São ilustrações e fotos que não demoram muito tempo expostas no feed de publicações por este motivo. Lovelove6 é uma ilustradora de Brasília, de 24 anos, que assina a fanzine Garota Siririca. Entre os episódios que mostram a rotina da personagem, algumas dúvidas sobre a masturbação e sexualidade são respondidas. Isso, por mais importante que seja, não pode ser exposto no Facebook. AHKA (responsável pela ilustração de abertura deste post) também teve sua criação denunciada e retirada do ar na rede social. É neste cenário que se torna fundamental questionar a importância da divulgação e propagação sobre o conhecimento e emponderamento do próprio corpo. Não podemos deixar que mulheres sejam – mais - oprimidas por saberem como são suas vaginas, por descobrirem o seu clitóris e como se sentem ao serem estimuladas de uma forma ou de outra. Quantas nunca se olharam ao espelho para saber como é sua anatomia? Isso não incluí somente a questão do prazer, mas a questão de saúde, já que às vezes muitas não percebem problemas ginecológicos pela falta de observação. Precisamos saber quem somos. Descobrir o nosso corpo como um todo é revolucionário. É revolucionário poder descobrir os caminhos que levam ao orgasmo sem depender de qualquer outra pessoa. Temos que ter autonomia sobre nós mesmas por inteiro e não aceitar que o “entretenimento adulto” ensine como desconstruir o prazer no sexo da mulher. É desprezível que os valores continuem invertidos e a pornografia escrache a submissão da mulher. Empoderem-se, mulheres. Sejam donas de seus corpos, mentes, vida e prazer. [GRR]

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Socioambiental (ISA) e membro da Aliança da Água, na região do sistema Cantareira “mais de 50% da vegetação do entorno das cabeceiras e do reservatório principal já foi destruída, tornando as represas mais vulneráveis a eventos de seca como o que passamos atualmente”.

O FUNDO DO POÇO

E

m 2014, vimos o estado de São Paulo entrar na maior crise hídrica de sua história. Desde dezembro, a metrópole vive seu pior período de estiagem em 80 anos. Segundo a Assembleia Nacional da Água, cerca de 14 milhões de pessoas já convivem com a falta de água. Na cidade de Itu, por exemplo, alguns bairros estão há mais de 7 meses sem abastecimento. A região metropolitana e seus arredores são abastecidos por 9 conjuntos de reservatórios, sendo os três principais Alto Tietê, Guarapiranga e Cantareira. Esse último é composto por três represas – as duas maiores, Jaguari/ Jacareí e Atibainha, são responsáveis por 45% do abastecimento de água da maior região metropolitana da federação, atendendo a 8,8 milhões de pessoas. Para manter os reservatórios em níveis seguros, o sistema depende das chuvas de verão. Os especialistas alegam que as águas de março não chegaram este ano porque desviamos as correntes aéreas. Estudos apontam a relação direta entre a Floresta Amazônica e a produção de umidade que dá origem às chuvas no centro-sul do Brasil. À medida que o desmatamento avança, a floresta reduz a formação dos chamados “rios voadores”. Além disso, o reservatório encontra-se com a capacidade de armazenamento prejudicada. Para Marussia Whately, coordenadora do Programa Mananciais do Instituto

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Para diminuir o problema a curto prazo, em maio deste ano, a Sabesp decidiu usar o volume morto, uma reserva de 400 bilhões de litros que fica abaixo das comportas que retiram água do Sistema Cantareira. Obras foram feitas para bombear mais de 180 bilhões de litros dessa reserva. Para os pesquisadores, podemos contabilizar o aumento do custo da água. Segundo Antônio Carlos Zuffo, diretor do Departamento de Hidrologia da Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual de Campinas “o bombeamento dessa água e a construção de obras emergenciais encarecem a captação da água bruta”. Além disso, as vazões liberadas pelo sistema não são suficientes para a diluição de efluentes. “Nesta situação, não haverá vazão em quantidade e qualidade adequadas para a manutenção da flora e fauna e dos cursos d’água”, conclui Antônio Carlos. Entre 2004 e 2013, estima-se que o consumo de água nos 33 municípios abastecidos pela Sabesp aumentou em 26%, enquanto a produção cresceu apenas 9%. Para Marussia Whately, “existe uma cultura de fazer a gestão da oferta de água, e não da demanda, o que implica em buscar mais água em vez de racionalizar a distribuição e o consumo, preservando os mananciais existentes”. A represa Billings é o maior exemplo disso: possui uma capacidade de armazenamento de água semelhante a do Sistema Cantareira, mas não pode ser utilizada porque está poluída pelo bombeamento das águas do Pinheiros

A GO D´ÁG

Diante do alarmante caos hí especialistas para investigar as pergunta: ainda ex

texto | THATIANA M fotos | VOLUME VIVO . GAB


OTA GUA

e Tietê ao longo dos últimos 60 anos. Outro ponto preocupante é a perda de água tratada no sistema de distribuição em São Paulo. Segundo divulgado pela própria Sabesp, varia em torno de 25% – índice muito acima do ideal e que não deveria ultrapassar os 10%. Parte dessa perda se deve a vazamentos de tubulação, que muitas vezes acumulam décadas de uso, prejudicando o sistema.

te aos acionistas. Com ações nas bolsas de Nova Iorque e de São Paulo, a empresa vem tratando a água como produto. As duas últimas gestões foram gerenciadas por economistas, Gesner de Oliveira e Dilma Penna, ao invés de engenheiros hídricos. Em 2004, a empresa assinou um documento junto ao Consórcio PCJ, no qual foi acordada a redução de sua dependência do sistema Cantareira. Em 2009, o relatório final do Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, feito pela Fundação de Apoio à USP, alertou para a vulnerabilidade do sistema e sugeriu medidas cabíveis a fim de garantir uma melhor gestão dos recursos hídricos. Mais do que decretar oficialmente um racionamento, que já acontece por força da redução na pressão dos canos, para Marussia, “o governo deveria admitir a gravidade da situação e elaborar um plano de contingência que garanta níveis seguros dos reservatórios para o próximo período de estiagem, que começa em março de 2015”.

ídrico paulista, consultamos causas deste fato e responder a xiste água em SP?

MAZZA . LUIZ MILLER BRIEL SOARES . LUIZ MILLER

E VAI TER ÁGUA EM 2015? AFINAL, A CULPA É DE QUEM? Alguns alegam que a culpa é de São Pedro e do déficit de chuvas. Mas a responsabilidade não fica apenas com ele. No estado de São Paulo, a Sabesp, que atende 60% da população da região metropolitana, não alterou os contratos nem reviu práticas à luz dos vários anos seguidos com chuvas de verão abaixo da média histórica. Desde 2002, a Sabesp se transformou em capital misto, com 49% pertencen-

A Sabesp pretende fazer obras para bombear mais alguns bilhões de litros do volume morto para garantir o abastecimento por mais alguns meses. A estimativa mais otimista é de que haja água suficiente até março de 2015. Se chover como o que foi previsto para a partir de outubro de 2014, o Sistema Cantareira pode voltar a operar com 30% de seu volume. Acontece que, na última década, a única vez que o sistema iniciou a temporada de baixa precipitação com menos de 35% da capacidade foi neste mesmo ano, de maio a setembro. No mês de maio, por exemplo, o nível do manancial estava em 10,5%. Para comparar, em 2004, ano da última crise do Cantareira, os reservatórios iniciaram o período com 35,5% do volume armazenado.

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Segundo análise estatística do comitê que monitora a crise, o sistema tem só 25% de chance de acumular, entre dezembro e abril de 2015, água o suficiente para repor o volume morto e ainda devolver a Cantareira 37% da sua capacidade antes do próximo período de estiagem. Devido às precipitações abaixo da média dos últimos 2 anos, é mais provável que a situação persista. Antônio Carlos Zuffo explica que “em hidrologia observamos um fenômeno do qual chamamos de persistência: se as chuvas em um ano vierem abaixo da média, é esperado que continuem assim”. Se considerarmos o nível de janeiro de 2014 para dezembro de 2014, teríamos uma diferença de quase 50%. “É pouco provável que o sistema recupere 50% em apenas um ano”, conclui. Para Marussia “desejar um dilúvio, que encharque e recupere minimamente o reservatório da Cantareira, é imaginar uma quantidade de chuva atípica para São Paulo e que provocaria sérios problemas de enchentes”. Aliás, assim como ocorreu em novembro, teremos o paradoxo de torneiras secas e inundações, mostrando que mais do que de falta de chuvas, a crise é de insegurança hídrica. [GRR]

Água no fim da represa Em setembro de 2014, o Instituto Socioambiental (ISA) deu início ao projeto Água@SP, com o objetivo de mapear propostas que contribuam para lidar com a crise da água em São Paulo. As organizações que participaram do mapeamento se uniram para formar a Aliança pela água de São Paulo, que é uma coalizão de sociedade civil para contribuir com a construção de um plano de segurança hídrica em São Paulo por meio da coordenação das várias iniciativas e da interlocução com o poder público.


Foi quando chegou em sua casa que Adriano Sampaio percebeu a importância de seu trabalho como caçador de nascentes. Sentou-se no sofá de sua casa e começou a chorar. Não por estar triste, mas por reconhecer o quanto aquilo importava em sua vida. Hoje, aos 43 anos, o excorretor de seguros, que já foi por anos campeão de vendas, vive atrás de nascentes paulistanas para mostrar que sim, existe água em São Paulo e de boa qualidade. A emoção que sentiu naquele momento trouxe à tona lembranças da infância – quando sua ligação com os rios começou, na cidade baiana de Jacobina, localizada na chapada Diamantina. Foi lá que ele ganhou uma tarrafa de pesca do avô Aurelino e uma esquistossomose ao mergulhar no rio do Ouro – sentindo no corpo os primeiros sinais da poluição das águas. O avô, além de pescador, resolveu montar um bando para caçar Lampião. Não porque queria matar o cangaceiro, mas pelos 500 mil réis que o governo oferecia pela cabeça do homem. Porém, o que o fez chorar no dia em que chegou em sua casa, na Vila Clarice (SP), foi o reconhecimento de uma garota de 16 anos que disse ter visto seus vídeos na escola. Isso foi na ocasião em que Adriano andava por baixo de barracos de madeira no bairro do Jaguari, o que já demonstra a dificuldade do seu trabalho. Como a localização das nascentes são, muitas vezes, em bairros afastados, Sampaio tem que lidar com situações inusitadas e muitas vezes perigosas, andando em lugares que são utilizados para desova de corpos e que contêm rastros de extrema violência. Sampaio mantém no Facebook a página Existe Água em SP,

Água tem, o que não tem é vontade política Em um ano de trabalho, Adriano Sampaio catalogou 40 nascentes e pretende mapear quantas forem possíveis trabalho que começou no ano de 2013, quando ajudou a recuperar a nascente de uma praça da Pompeia, bairro na zona oeste de São Paulo. Numa conversa com o amigo Ramon Bonzi, surgiu a ideia de mapear as nascentes. No dia seguinte, Bonzi apareceu com um mapa de dimensões gigantescas sobrepondo os rios e córregos paulistanos às ruas. Como um Dom Quixote às avessas, Adriano luta para mostrar a vida que há por baixo da cidade – diferentemente do personagem, que enxergava monstros pelos campos europeus. Bonzi, o fiel escudeiro de Adriano, alimenta o trabalho do Existe Água em SP com informações que levam às possíveis nascentes. Em um ano de trabalho, Sampaio catalogou 40 nascentes e pretende mapear todas as que forem possíveis. Decidiu que é isso o que vai fazer daqui em diante. Para se ter uma ideia, em São Paulo há mais de 300 rios e córregos, quase todos já solapados pelo progresso e pela arcaica visão de que a cidade não pode parar. São décadas de desprezo levadas pelo lema estampado no símbolo da cidade “não sou conduzido, conduzo”. No entanto, a única coisa que conduzimos, no caso, foi lixo e esgoto para dentro dos rios. E isso, justamente , tem muito a ver com a crise hídricaatual, já que tudo está interligado de alguma maneira. A coleta e tratamento de esgoto,

não apenas em São Paulo mas em todo o país, é deficiente, sendo um dos maiores problemas da logística. Se há crescimento econômico, também há uma maior produção de lixo e esgoto, o que leva a um colapso do sistema hídrico, já que nos criamos com a visão de que os rios são canais para levar a sujeira para algum lugar. Bem, a conta do desprezo chegou e ficou alta. Segundo estudo do Instituto Trata Brasil, seria necessário um investimento de 35 bilhões de reais para zerar essa deficiência sanitária. Podemos fazer uma comparação com Cingapura para conseguir enxergar a importância do tratamento do esgoto e da recuperação de rios e córregos. Na cidade-estado localizada no sudeste asiático, foi feito um trabalho de reestruturação dos mananciais em conjunto com uma série de medidas – como a universalização da coleta e tratamento do esgoto, que não é jogado diretamente nos rios, mas volta para as represas a fim de que seja novamente mineralizado, tornando-se potável para o consumo. Esse processo, em conjunto com a recuperação dos rio (que antes eram canalizados e invisíveis para a população) e, também, a captação de água de chuva, trouxe segurança hídrica para que, quando haja fatores climáticos parecidos com os de São Paulo, Cingapura garanta o abastecimento da população.Por lá, 30% do sistema de abastecimento é feito através da coleta e tratamento de água da chuva. Adriano Sampaio sabe disso e tenta mostrar para a população que as soluções estão bem embaixo de nossos pés. O que falta mesmo é vontade política.

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MARGINAL IMPERATRIZ Luana Hansen é uma das pioneiras do rap feminista brasileiro. Hoje, faz da música sua luta política com letras que falam de aborto e montou seu próprio estúdio na periferia. Mas nem sempre foi assim, no passado se envolveu com o tráfico de drogas e chegou a morar na rua por conta do crack texto | CAMILA EIROA

fotos | RAFAEL BONIFÁCIO


PAPO GUERRILHA

com LUANA HANSEN

P

ego o trem com destino a Piqueri – zona oeste de São Paulo –­em um sábado de manhã. Na escadaria da estação da CPTM, encontro Drika Ferreira, companheira da DJ e MC Luana Hansen há três anos. Luana nasceu e foi criada na “quebrada”, como chama o bairro de Pirituba. Não chegou a conhecer seu pai e sua mãe criou os cinco filhos sozinha. O sobrenome denuncia a ascendência alemã e a MC conta que é a única negra da família. O rap não faz parte de sua vida desde sempre, mas foi ele que a fez enxergar um caminho que, hoje, é a principal motivação de sua vida. Na música, ela une a arte com a sua própria luta política como mulher, negra, lésbica e feminista. A paulistana de 33 anos já foi backing vocal do cantor Rodriguinho e ganhou, com o grupo feminino TAL, um dos maiores prêmios do hip hop, hoje extinto, o Hútuz. Também participou do longa Antônia, baseado na minissérie de mesmo nome da Rede Globo. Do envolvimento com drogas e o tráfico, suas composições sobre o direito da mulher em uma sociedade machista e o aborto, os primeiros passos da carreira e a criação de um estúdio de música na periferia pra receber mulheres: passeamos por diversos assuntos durante a tarde, que acabou com a prensagem artesanal dos CDs que seriam vendidos nos shows daquele dia. Leia nas próximas páginas a conversa.

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PAPO GUERRILHA

GRR | Como começou a sua carreira de MC? Luana Hansen | Sou MC há 10 anos e comecei a fazer rap porque vendia droga. Quando estava trabalhando, brincava com os moleques cantando que “Pirituba é minha quebrada, não tem parada errada” e eles foram gostando, diziam que eu tinha o dom pra escrever. Nisso, me levaram para conhecer o Sandrão, do RZO [grupo consagrado de rap], que mora aqui também. GRR | Por que você vendia droga? Luana Hansen | No começo eu vendia pra consumir mais. GRR | E qual droga era? Luana Hansen | Comecei vendendo maconha, um ou dois quilos pra poder fumar. Com o decorrer do tempo, fui conhecendo e gostando muito de outras substâncias e acabei indo pro crack, que foi a droga que eu mais usei. Cheguei a morar na rua por isso. Foi o rap que me resgatou, sabe? Que me mostrou uma outra vertente. Até então, eu achava que o meu talento era pra vender droga, depois eu descobri que tinha um dom pra além deste: a arte. GRR | Como você foi pra rua? Luana Hansen | Assumi minha homossexualidade cedo e saí de casa. Fui criada em uma família matriarcal, quem me orientou foi a minha mãe, uma nordestina que veio pra São Paulo e criou os filhos sozinha, na luta. Foi abandonada pelos maridos. Eu não tenho pai nem em registro. Por ser a filha mais velha, sempre tinha que dar exemplo. Fui a filha certinha até os 15 anos, depois disso foi o auge da minha rebeldia, quando eu me joguei no mundo e conheci as drogas. Desde a primeira vez que usei, gostei. Eu fui adicta e sou adicta. Fui dos 15 aos 20 anos muito rápido, cheguei no limite do meu corpo

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sem nem perceber. Foi a música que me fez pensar aonde eu queria chegar. Eu sou mulher, a única negra na família. Eu ia entrar pra estatística, ia ser a mulher negra da periferia que morre. O Estado não te dá condição de ganhar bem, viver bem, morar bem e ainda por cima ser mulher, negra e lésbica. Eu estava em todos os patamares que me colocavam abaixo da sociedade e eu não sabia disso. Procurei emprego como todo mundo procura, mas eu ganhava 400 ou 500 reais em um mês de trabalho, sendo que isso eu tirava em um dia vendendo droga. GRR | Você chegou a ganhar muito dinheiro com o tráfico? Luana Hansen | Ganhei muito, muito dinheiro. Eu consegui morar em um flat na Avenida Paulista, por exemplo, vendendo droga. GRR | E nunca foi pega? Luana Hansen | Minha casa foi invadida quatro vezes pela polícia. Apanhei muito deles, mas nunca conseguiram me achar com droga, sempre dei muita sorte. Você até chega a pensar que nunca mais vai vender, mas no dia seguinte está lá, com outro saquinho de 20 papéis de cocaína, 200 contos você faz em meia hora. Na frente do Love Story [boate no centro de São Paulo], eu fazia 800 reais na noite só de cocaína e de pedra. De maconha não, maconha não vende na madrugada. Quando você é traficante, você sabe disso. Depois é só sintético, químico. Ganhei dinheiro pra caramba, tanto que para entender que eu podia ter potencial pra fazer outra coisa foi bastante difícil. GRR | Claro, era uma grana que vinha muito fácil... Luana Hansen | E também porque o rap no Brasil ainda não é valorizado da maneira que deveria ser. As pessoas talvez ainda não entenderam, nem mesmo as que estão dentro do

movimento, que o hip­hop é muito machista, lesbofóbico, transfóbico… As pessoas não respeitam ainda nem a mulher, quanto mais eu, que queria falar de aborto e dos direitos das mulheres. GRR | É um assunto difícil ver sendo abordado na música em geral. Luana Hansen | Sim. Você vê que a mulher ainda não tem o espaço dela dentro do rap nem pra gravar. Eu sempre fui em estúdios que só tinham caras e não me sentia à vontade pra falar o que queria. Como eu vou cantar “direito ao próprio corpo/legalizar o aborto” em um estúdio que só tem homem? Ele não vai me recriminar? Claro que vai! Eu só tive liberdade de compor uma música dessas porque tenho o meu próprio estúdio. E se eu quiser amanhã fazer uma música contra a transfobia, eu sento aqui e escrevo. Acontece que eu nunca enxerguei esse potencial quando traficava. Eu saí das drogas justamente porque fui ameaçada pelos caras. Eu não era filiada ao partido. Porque até no tráfico você precisa ter um braço quente. Preferi correr sozinha e vendia tanta, mas tanta droga, que foram me ameaçar. “Se essa mina continuar vendendo droga, a gente vai mandar matar, porque ela vende demais”. GRR | E quando invadiram a sua casa, você sentiu que te trataram de uma forma diferente por você ser quem era? Luana Hansen | Porra! Acho que foram os momentos em que eu mais fiquei assustada na vida. Quando eu saí de casa, fui morar em vários lugares e acabei me metendo em um desses hotéis de quinta do centro de São Paulo, na Rêgo Freitas. Eu escondia droga no quarto, até que um dia a polícia e a rota o invadiram. Só tinha homem! Na época eu era casada com uma garota de programa. Imagina como a gente foi tratada? Eu, lésbica, sapatão, com uma garota de programa. Só faltaram os caras falarem pra ela que, se encon-


trassem droga, ela teria que fazer programa de graça pra eles. Já rolou essa conversa logo de cara “ó, se a gente achar alguma coisa, ela vai ter que te ajudar”. Nesse dia, eu tinha droga dentro de um dragãozinho chinês de fundo falso. Tinha tipo 200 papeizinhos de cocaína ali dentro, enfiado. O policial pegou aquilo na mão, olhou e falou ‘nossa, horóscopo chinês?’ e pôs de volta. Não achou a droga. Eu lembro o quanto ela foi humilhada por ser garota de programa. GRR | O que eles diziam? Luana Hansen | Pra começar, a gente estava dormindo, eles chutaram a porta do quarto e foram direto nela. Eu fui defender e falavam “ah, o macho dela está aqui, então vamos tratar ela que nem homem. Fica aí, cala a boca que a gente vai revistar tudo”. E foi o hotel inteiro. Lá tinha travesti, gogo boy… A parte ralé da sociedade que mora no mesmo lugar. Todo mundo tratado como lixo. Ela era do interior, e depois disso resolvemos largar tudo e ir embora pra Bauru. Fomos com uma travesti e um gogo boy. Lá, eu continuei vendendo drogas e ela fazendo

programas. Ela foi embora, me abandonou, fiquei sozinha morando com os outros dois. No interior todo mundo sabia quem a gente era. Éramos considerados o quarteto fantástico:­a sapatão­, a garota de programa, uma travesti e um gogo boy. Onde íamos, tinha quem nos humilhasse. GRR | Então você voltou para São Paulo e deixou o tráfico de vez… Luana Hansen | Isso. Quando eu voltei, procurei emprego e consegui como balconista, trabalhava de segunda a segunda na padaria. Eu saí do mundo do crime não porque quis, mas porque percebi que ia morrer. A verdade é essa. Nesse período eu fumava quarenta pedras de crack por dia e tive que ser internada. GRR | E como o rap entrou na sua vida? Luana Hansen | Quando eu vi que iam me proibir de fazer o que eu queria no rap com a galera, fui atrás de fazer o meu próprio trampo. Eu tinha um grupo só de minas chamado TAL, formado pela Tina, mulher do DJ Alpino (que no

gospel é um grande DJ), a Angélica e eu. Éramos três negras muito bem arrumadas e bonitas, a gente tinha presença. Chegamos a fazer o filme Antônia. As pessoas vinham atrás da gente porque éramos o único grupo de mulher naquela formação. Chegamos até a ganhar um troféu do Hutúz. É triste dizer isso, mas o rap perdeu muito dos prêmios que tinha, o Hutúz era como se fosse o Óscar do rap, com várias categorias. A gente ganhou como a melhor demo feminina em 2005. A nossa proposta era diferente exatamente por sermos mulheres. Tinha uma música que a gente cantava que eu gosto muito chamada Seja como for, que fala da mãe que tem o direito de lutar pela pensão alimentícia. Minha mãe não lutou por isso, por exemplo, mas eu sabia que ela tinha esse direito. Hoje a gente fala de direito da mulher e, mesmo assim, muitas não sabem quais são esses direitos. Tem mulher que acha que se tomar uma cerveja no bar da esquina vai perder o direito aos filhos porque a sociedade faz parecer isso. Faz parecer que a mulher tem que ter um padrão de moral e conduta para ser mãe. Muitas mulheres se identificaram com essa música, muitas que apanhavam em casa e namoravam um

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PAPO GUERRILHA

traficantezinho de merda. Com esse grupo conseguimos começar a mostrar que a gente tem direitos e que somos oprimidas por todos os lados. GRR | Por serem três meninas você achou mais fácil abordar esses temas? Luana Hansen | A gente até tinha liberdade, mas uma das meninas é evangélica, enquanto eu era lésbica... Então, muitas vezes tinha um confronto de ideias. Hoje eu, graças a Deus, consegui fazer um trabalho do jeito que eu queria e que me representa. Eu não preciso ter um padrão de beleza como era com a TAL. As três negronas, bonitonas, intocáveis. Tipo a Barbie negra. Eu sei aonde vou chegar com o meu trabalho se amanhã eu colocar um cabelão, um vestidão e um rímel, mas não é esse o padrão que eu quero vender. Eu quero vender uma Luana de verdade. Não que amanhã eu não possa acordar e querer colocar um rímel, é o meu jeito de ser mulher. Mas o que eu quero vender é a quebra de padrões, esse negócio de a mulher não ter que ser sempre magra, bonita, de cabelo liso e padronizada. Você pode alisar o seu cabelo, isso não quer dizer que você tem menos valor do que a outra pessoa, mas que você saiba o por que está fazendo isso. GRR | Então, quando você começou no rap, sentiu preconceito mesmo se enquadrando em um padrão de beleza? Luana Hansen | Sim, pra caramba. Parecia que a gente sempre tinha que estar seguindo o padrão que eles queriam. Mesmo sendo um grupo só de mulheres, não era a gente que produzia o nosso trabalho. Já chegaram a perguntar em uma música que eu cantava “estou com saudade dela” se não era “dele” no lugar. Eu me senti encurralada e assenti. Quando a gente ia pedir base pra música, por exemplo, eu via umas muito loucas. Eu queria fazer um som pesado, um rap gângster… E os caras davam aquela base romântica

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porque éramos três mulheres e eles queriam que a gente cantasse musiquinha de amor. Cheguei a pergunta por que a gente não podia fazer aquele tipo de música e me responderam que os caras não queriam ouvir as minas rimando mais do que eles. Os caras não querem mesmo uma mina militando, fazendo rap. E tudo bem, eles não querem… Mas será que nenhuma mina quer ouvir isso? Que a gente é mulher, que a gente pode chegar em qualquer lugar que quisermos e que temos direitos? Eu me sentia sozinha. Tanto que quem fez o meu trabalho andar foi a Elisa Gargiulo, militante feminista da banda Dominatrix. Foi quando ela me descobriu, em 2012, que ajudou a minha carreira a ir para frente principalmente no meio feminista. Elas prestaram atenção que eu falava do aborto em uma música que só nasceu porque a Elisa conhecia as meninas da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir. Ela me sugeriu fazer uma música sobre o tema pra ajudar a mensagem a ir mais longe. GRR | E foi. Luana Hansen | E foi mesmo! Tenho 20 mil acessos no clipe da Ventre livre de fato, devo muito às meninas. Hoje eu só sou quem sou por causa da Frente Nacional de Mulheres, a Frente de Lésbicas, a Caminhada das Lésbicas que eu participei dois ou três anos e todos os outros movimentos feministas. Eu tenho muita ajuda das mulheres. Foi quando toda a frente feminista conheceu o meu trabalho que eu comecei a deslanchar. GRR | O movimento feminista transformou o seu trabalho. Mas você acha que o seu trabalho também transforma as mulheres? Luana Hansen | Ontem no show que eu fiz foi muito engraçado. Tinha uma mulher que chorou durante todo o tempo em que eu cantei Ventre livre de fato. Quando acabei de me apresentar, uma outra mulher veio, me abraçou e disse “parabéns pela coragem”. É diferen-

te você cantar essas músicas em um evento feminista e cantar isso em um evento de rua pra um monte de pessoas que vão te olhar e pensar “como assim? Ela está falando de um aborto e de um jeito que eu estou entendendo”... Elas se identificam, claro. GRR | E ser mulher no tráfico, como é? Tem a questão do encarceramento feminino, que aumentou muito nos últimos anos por isso. Luana Hansen | A gente é oprimida a todos os momentos, quando vende droga é a mesma coisa. Mesmo eu, quando vendia droga, tinha que me impor para os caras que compravam. Pro traficante não interessa o que você vai ter que fazer pra conseguir vender a quantidade de droga que ele te dá. Muitas mulheres se envolvem com o tráfico quando o marido é traficante e vai preso. A esposa tem filho pra sustentar e conhece a rotina, então, acaba ficando na gerência da droga porque precisa se manter. É muito triste porque na hora em que ela cai presa, em muitos dos casos, o companheiro a abandona. Coisa que a mulher não faz. Muitas delas, por exemplo, são presas levando drogas para o cara na cadeia. GRR | E as questões feministas sempre fizeram parte da sua arte? Luana Hansen | Na verdade, acho que sempre fui feminista sem saber. Lutar pelos direitos como negra com a minha mãe, que é descendente de alemães, por exemplo, já era um ato feminista. Ela me criou mostrando que eu precisava ter as minhas coisas sem esperar por ninguém, isso me ajudou a montar o meu estúdio e com ele eu posso ter quantos CDs eu quiser. Me indignava não ter um estúdio que só tivesse mulher e eu pudesse ir numa boa. Eu vivo em um movimento de uma música que luta, que é por militância. Fui engatinhando, virei DJ sozinha até eu ter a minha própria produção. Depois que eu descobri a causa feminista eu percebi que era isso. A mulher


feminista luta há muito tempo. Ela luta pelo direito de sair de casa, de votar. E foi por causa de lutas lá atrás que eu posso hoje sair, usar meu dread e fazer a minha música. GRR | O seu estúdio você montou há quanto tempo? Luana Hansen | Três anos. GRR | E você recebe várias meninas por aqui? Luana Hansen | Eu abri o estúdio para ter só mulheres, mas no começo vieram os meninos… Não tem jeito, aqui na minha quebrada tem muito menino que grava funk. Tiveram músicas que eu tive que conversar com os moleques e falar que desvalorizava a mulher. Alguns me ouviram, outros foram gravar em outro lugar. É assim que funciona a vida. Agora eu trouxe a rapper

Preta Rara, que é de Santos, trouxe a Tiely Queen... Las Krudas Cubensis foram as primeiras meninas internacionais que gravamos aqui, são feministas e lésbicas ativistas de Cuba. As mulheres estão começando a vir pra cá e eu estou começando um projeto do meu próprio selo fonográfico. Vai se chamar Las Maestrinas e vai ser a minha família. Mulheres produtoras, grafiteiras, DJs, fotógrafas, jornalistas… Toda mulher que somar com a gente de alguma forma vai fazer parte dessa família. E é isso que eu queria, criar uma família grande de mulheres independentes. Feministas, lésbicas, trans… Mulheres no que se julgam mulheres. Eu quero que essa valorização seja nossa, mesmo que futuramente entrem homens. Os homens, querendo ou não, já têm vários espaços mais do que registrados. GRR | Tem quem diga que o feminismo já teve o seu tempo...

Luana Hansen | Quem pensa desse jeito deveria ver o rap, que é um movimento totalmente machista. Quantas mulheres do hip ­hop e do rap têm o seu espaço? Acho que esse caô de dizer que o feminismo é uma coisa do passado é típico pra deixar o machismo continuar imperando, assim como a heteronormatividade. Precisamos continuar lutando. Isso só vai acabar quando a gente ganhar os mesmos salários, quando tivermos a mesma qualidade de emprego e os mesmos direitos que um homem tem. Quando não tiver mais fiu fiu na rua, quando não tiver mais nenhum padrão preestabelecido, aí sim podem dizer que o feminismo já teve a sua época. Não é igualitário ainda? Então a luta continua! [GRR]

Veja parte da entrevista em vídeo



UH, UH, UH, UH, UH!


A odiosa máscara caiu, o anti-herói permanece sem vitórias, livre, sem restrições, mas é humano igual, sem castas tribos ou nações isento de coerção, decoro, hierarquias Rainhas e Reis de si mesmos; Apenas gentis, sábias, mas pessoas sem ambições? - não, entretanto livres de pecado e autoridade.” shelley remix

Poucos movimentos ou estratégias foram tão mal entendidos pela opinião pública e deram tantos motivos para confusão pela própria variedade de formas de táticas empregadas em suas ações quanto os black blocs brasileiros. É por isso que, antes de traçar uma evolução histórica do ativismo radical como tática ou movimento antropológico no Brasil, começaremos com um prólogo de definição.

O que é e o que não é o Black Bloc? Por princípio, todos os adeptos de táticas antiautoritárias costumam fazer uso do anonimato por dois motivos simples; o primeiro pela proteção de suas ações, e o segundo pela não individualização da autoria dos atos. Do ponto de vista histórico, a tática de enfrentamento de forças repressivas vem das manifestações ocorridas em Berlim nos anos 80, já a destruição performática de patrimônio como narrativa estética vem das batalhas de Seattle em 99. Ambas propõem uma critica à sociedade vigente através da desconstrução da autoridade, seja ela econômica, estatal, política ou intelectual. Para os adeptos ortodoxos, a simples revolta irracional não faz de ninguém um black bloc, nem a rejeição do poder terreno com bases filosóficas ou religiosas. O objetivo final na concepção moderna do caos

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é a transformação da sociedade através da condenação de seus padrões de forma veemente e performática, seja por táticas destrutivas ou construtivas. Desta forma, pode-se equiparar as ações dos adeptos deste radicalismo militante como sendo niilista ou terrorista, mas jamais defini-las como tal. O estereótipo fascista do black bloc tupiniquim foi construído através de subterfúgios semióticos que beiram roteiros hollywoodianos. Na melhor das hipóteses, a ópera de criminalização dos adeptos teve como alvo os movimentos culturalistas – que negam as institucionalidades – pelos grandes periódicos nacionais e serviu para descrever aqueles cujos métodos de atuação política podem ser considerados destrutivos ou desastrosos. Essa criminalização foi orquestrada para aviltar a identificação maniqueísta dos que se opõe às mudanças no status quo. O fetiche da personificação de líderes e elaboração de arcos dramáticos tão arraigada na sociedade moderna encontrou um movimento que se opõe à busca da mudança atraves de um profeta a ser seguido, um Gandhi, um Jesus, uma Joana D´arc. Além de se opor, também, a Pedra de Roseta, que contém todas as réplicas pensadas para sanar uma sociedade doente, que vê em seu próprio preconceito o medo que


UM NOME, MÚLTIPLOS PERSONAGENS O ativismo radical dos black blocs tem mil faces atrás de uma única roupa negra. Aqui, um manifesto do movimento que mais teve estratégias mal entendidas pela opinião pública conduzida pela mídia tradicional.

por AMARAL ACCIOLY

tem de seus desejos. Foi assim que os Enragés e Robespierre foram colocados num mesmo balaio pelos que temiam o desconhecido, e é assim que todo militante autônomo é visto pela sociedade de hoje por conta do deserviço da mídia.

lir a autoridade implica necessariamente na eliminação de grande parte das principais instituições de uma tipica sociedade moderna e pode ser um dos grandes motivos de sua rejeição.

Adeptos da tática black bloc, assim como Proudhon ou Godwin vangloriam-se de seus paradoxos, vivem para provocar contradiçõea e, através delas, acreditam ser possível a reconstrução de uma simplicidade natural ao ser humano. Há de se entender que a critica à autoridade, através do emprego da força, vai além da espiral hegeliana de progresso. Dado que o monopólio da legalidade da violência está nas mãos do Estado, instaurar o caos em meio a essa ordem estabelecida à força não implica defender a desordem. É nesse sentido que irei tratar o ativismo radical, apesar de suas inúmeras variantes ideológicas, como um sistema de experimetação social que promove mudanças básicas na estrutura da sociedade e força o sentido de urgência através de ações de estética violenta para formar narrativas subliminares. O que visam principalmente é a substituição do estado autoritário por uma forma de cooperativa entre indivíduos livres de forma empírica. A ideia de abo-

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DESCONSTRUÇÃO

“Consideramos contrarrevolucionárias todas as instituições inflexíveis que tenham como base a ideia de regular as transformações sociais por meios de atos do governo e leis criadas por representantes eleitos. Talvez seja realmente impossível que a sociedade consiga atingir a liberdade completa, mas ao acreditar na soberania individual como objetivo básico de nossas ações, transformamos cada cidadão da polis em seu próprio País, utilizando as falhas no sistema para atingir total liberdade individual. Há duas formas de se construir uma narrativa factual que possa tocar o âmago de grandes parcelas da população expondo um erro incipiente através de uma “ação direta”. Eles podem ser sociais ou econômicos, existem várias táticas empregadas para atingir qualquer uma destas formas, sejam greves gerais, destruição de patrimônio, resgate de animais, boicote a eleição, bloqueios de estradas, resistência pacífica, resistência defensiva, formação de comunidades off-grid e até cooperativas de crédito. Nossa finalidade é dissolver a ordem vigente e não apenas preparar uma revolução social, assegurando-se que uma vez iniciada a evolução de nossa sociedade, ela jamais tornará rumos autocráticos.”

“Como tática, mudamos constantemente; como movimento, crescemos e nos desintegramos, em permanente flutuação, mas jamais pararemos. O ativismo radical, a propaganda pelo ato e as ações diretas existem na Europa desde 1840 ininterruptamente, e por suas próprias características multiformes, conseguiram sobreviver onde muitos outros movimentos do século passado (bem mais poderosos, mas com menor mutabilidade) desapareceram totalmente. A estranha volatilidade das ações e táticas black blocs se refletem em nossa atitude em relação à organização. Diferentemente do que acreditam os pensadores contemporâneos, não rejeitamos a ordem, mas nenhum de nós procura impor uma ordem artificial em detrimento à própria atitude libertária. Excluímos, assim, a possibilidade de uma organização rígida e especialmente de qualquer coisa que se assemelhe a um partido criado com o objetivo de tomar e manter o poder. Nossa utopia é substituir a ideia de organização partidária pelo impulso individual e popularesco que se expressa, na prática, através de uma sucessão de atos, todos desagregados e transitórios, e de cooperativas que têm o dever de não liderar, mas orientar e servir de exemplo. Levamos a cabo nossos pequenos levantes não porque acreditamos que deles podem originar uma revolução que ficaria sob nosso controle, mas porque vemos em nossas ações uma forma de propaganda de guerrilha cujo objetivo é mostrar ao cidadão comum uma linha de conduta que possa conduzi-lo à libertação.”


“Depositamos nossa confiança no eterno espirito de Kali, que destrói e aniquila apenas porque esta é a insondável e infinitamente criativa origem do universo. A paixão pela performance de estética destrutiva, é também um amor criativo no sentido metafísico. Não temos nenhum medo de ruínas em blocos, fomos criados com Lego e massa de modelar. Trazemos o novo mundo de cor-agem em nossos corações sem cor e ele resurgirá a qualquer momento.” A.M. (35)

“Todos concordamos que, se as expectativas dos ativistas radicais antiautoritários viessem a se concretizar e a dominação política e econômica chegasse ao fim, as relações econômicas seriam o principal campo a necessitar um novo tipo de organização. As diferenças que encontramos entre as varias ideologias refletem opiniões conflitantes sobre até que ponto poderia ser aplicada a administração das coisas sem perigo para a independência individual. Uma sociedade regida por relações simbióticas, não necessitaria de leis ou seus aplicadores eleitos ou autoimpostos, mas por mútua concordância de todos os seus interessados e pela soma de usos e costumes sociais, em continuo desenvolvimento, sofrendo constantes reajustes para que possam satisfazer as exigências sempre crescentes de uma vida livre, estimulada pelos progressos da ciência, por novos inventos e pela evolução ininterrupta de ideais cada vez mais elevados. Não haveria, portanto, a constituição cidadã de 1988, a necessidade de representantes eleitos autoridades para legislála. Nenhum politico representaria um cidadão; nem plebiscito ou referendo, mas a continua evolução – tal qual a que vemos na natureza. Aqueles que tentam representar a vontade de outro, impondo-lhe leis feitas por si ou por instituições positivas, são os verdadeiros inimigos da sociedade. Pois então, o radical que se levanta contra eles, chegando ao extremo da violência física ou psicológica, não é, afinal, um ser anti-social. Pela lógica, ele é o regenerador, o anti-herói, um indivíduo responsável que se arrisca para reestabelecer o equilíbrio social em sua direção natural. A fórmula é quase euclideana: ela sugere o fluxo de uma mudança incessante, mais do que o movimento dialético dos hegelianos e marxistas. Sugerimos um mundo onde a história perderá sua rigidez no interfluxo de forças que se equilibrarão; sugerimos a contradição como elemento positivo e produtivo e o equilíbrio como uma condição dinâmica, para jamais atingir a imobilidade da perfeição, porque a imperfeição é a causa e consequência do eterno movimento da vida. Para nós, a história não caminha seguindo as linhas inflexíveis da necessidade dialética, como julgam os marxistas, mas sim da práxis, e a práxis humana é produto do exercício da vontade e idiossincrasias, baseada no lampejo da consciência que existe dentro de cada sociedade, reagindo ao estimulo de qualquer impulso – da razão ou da emoção – que desperte sua eterna ânsia de liberdade.”


DESCONSTRUÇÃO Essa é uma das máximas que se aproxima da definição perfeita do real motivo das táticas empregadas pelos ativistas radicais. A destruição em si é aceita como parte de uma desconstrução de padrões incômodos e imperceptíveis à sociedade. Dizia Shelley, um dos maiores discípulos de Godwin e um dos primeiros filósofos libertários do mundo, expressando de forma eloquente esse sonho sempre repetido de renovação: “A grande idade da terra recomeça, retornam os anos de ouro, como uma serpente, a terra se renova. As ervas daninhas do inverno já esgotadas, o céu sorri, as crenças e impérios cintilam; como destroços de um sonho que se desfaz.” Pois é assim que nós, ativistas radicais, mascarados ou não, vegetarianos ou regicidas, feministas ou individualistas vemos erguer as cintilantes torres de nosso mundo livre. Essa visão pode parecer ingênua, mas não é obviamente uma visão de destruição desprovida de sentido. Os ativistas radicais podem estar totalmente de acordo quanto aos seus objetivos básicos, mas demonstram ter profundas divergências quanto às táticas necessárias para atingir esses objetivos, especialmente no que se refere à violência física. O caso do jornalista da Bandeirantes é tido como um divisor de águas entre os militantes, ainda que todos concordem que não houve direito de ampla defesa, comparando o caso do fotógrafo paulista que foi culpado de perder a visão com o julgamento dos ativistas cariocas. Na verdade, ao aceitar a violência, os radicais o fazem sempre em obediência a uma tradição que teve origem nas Revoluções Russa, Francesa, Americana e principalmente a Inglesa – uma tradição de ação popular dita violenta – em nome da liberdade que essas revoluções compartilhavam com outros movimentos de suas épocas, como os jacobinos, os cavadores, os blanquistas e os seguidores de Mazzini e Garibaldi, ou Duruti. Um fato interessante que vale a pena frisar, é que tanto nessas revoluções históricas quanto na realidade das grandes cidades brasileiras que tiveram maior incidência de ações diretas, a violência na vida pública era e é há muito tempo normativa e endêmica, assim sendo, enquanto as insurreições em tempos antigos eram percebidas como parte de sua rotina, hoje se tem a condenação midiática para proteger o estabelecido, criando uma áurea de terror e medo nos cidadãos. Assim qualquer revol-

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ta popular legítima, mesmo que ilegalista, é vista com maus olhos e julgada como imprópria, remontando aos primeiros atos regicidas dos anarquistas do século XVIII. As polícias brasileiras matam, assassinam, torturam e cometem crimes numa proporção muito maior do que qualquer ato de barbárie cometido por cidadãos vestidos de negro, mas são percebidos como heróis pelo senso comum. É possível que esse preconceito – que durará por muitos anos – possa ser explicado pela perturbação que qualquer ação de lógica extrema provoque na mente de indivíduos inseguros, pois ao atacar o princípio da autoridade que rege grande parte dos modelos sociais contemporâneos onde estão inseridos esses indivíduos, despertam nas pessoas comuns uma espécie de repugnância culpada. A própria ambivalência do homem comum diante da autoridade faz com que se desconfie daqueles que agem abertamente sobre o ressentimento que este mesmo indivíduo sente em segredo e é, portanto, nessa condição psicológica que Erich Fromm chama de “medo a liberdade” a razão pela qual tantas pessoas denominam o ativismo radical dos black blocs como niilista ou terrorista. Descrever a teoria essencial do ativismo radical é como tentar lutar com Proteu, pois as próprias características e táticas empregadas – a rejeição ao dogma, a deliberada fuga a sistemas teóricos rígidos e, acima de tudo, a ênfase que dá a total liberdade de escolha, à primazia do julgamento individual – criam imediatamente a possibilidade de uma imensa variedade de pontos de vista, inconcebíveis num sistema rigorosamente dogmatico. O ativismo radical é a um só tempo diversificado e inconstante e, à perspectiva histórica, apresenta-se não como um curso d´agua cada vez mais forte, mas como um fio de agua filtrando-se atraves do solo poroso – formando aqui uma corrente subterranea, ali um poço turbulento, escorrendo pelas fendas da sociedade, desaparecendo de vista para resurgir onde as rachaduras da estrutura social possam lhe oferecer uma oportunidade de seguir seu curso. O campo de batalha que enfrentam não é nada equilibrado. Tudo na vasta arena da comunicação favorece ao estabelecido, porém, as táticas de propaganda de guerrilha aplicadas ao ativismo radical são mais velozes, criativas e determinadas do que a velha mídia está acostumada. Eles têm total consciência dos benefícios extras que obtêm na


Destruam et Aedificabo Eu Destruo e Construo.

mudança das mídias, nas tecnologias de comunicação, no acesso à informação e no conhecimento compartilhado. Sabem, por exemplo, as melhores maneiras de se criar um factoide alarmante para servir como cortina de fumaça de uma ação ilegal.

“Nossa tática não tem a intenção de angariar mais adeptos, mas sim de manter um grupo de afinidade onde a confiança seja plena e mútua. Esse tipo de conhecimento não está no arsenal das grandes mídias nem das forças de segurança, o que nos dá uma vantagem estratégica que tanto incomoda nossos inimigos.”

O que os faz estar sempre um passo à frente dos que os combatem, é o modo como entalham algumas ações especificamente para alguns públicos, definindo os benefícios da liberdade através de um fato concreto. Quando se torna um ativista radical propositivo – aquele que não age de forma reativa – o planejamento das ações e o comprometimento é algo tão profundo que quase nunca se enfrenta situações emergenciais. A velocidade, embora muito importante em nossa era, os parece muito perigosa quando se trata de ativismo radical. “As revoluções não são feitas por indivíduos ou sociedades secretas”, disse Bakunin. Elas acontecem, até certo ponto, automaticamente: os fatos e o marketing de guerrilha destes ativistas por todo o mundo são o efeito da hiper conectividade. Durante muito tempo essa glocalização amadureceu nas profundezas da obscura consciência das massas globalizadas para irromper subitamente, alternando evolução e revolução. E a revolução – isto é, o período em que a evolução é acelerada – é parte integrante da natureza tanto quanto o tempo em que ela ocorre mais lentamente. Tanto a crença mística de Bakunin no impulso irracional da massa quanto o darwinisimo social adaptado por Kropotkin, sugerem que organizações e sistemas teóricos rígidos atuam como obstáculos ao progresso – seja ele revolucionário ou evolucionário – ao mesmo tempo em que estimulam

formas de abordagem mais flexíveis, capazes de tornar as pessoas mais sensíveis a correntes de descontentamento e aspiração. Foi essa consciência da necessidade da luta e da necessidade de tomar medidas práticas para obter a libertação da sociedade que levou os ativistas radicais a entrarem no campo de atuação da política. Ainda que a maioria dos ativistas radicais repudiem qualquer contato com o poder público, afirmando que a máquina do Estado não deve ser usada, ou tomada, mas abolida; que a revolução social não deve levar à ditadura de qualquer classe, mesmo do proletariado, mas a evolução para o abolicionismo das castas, sociais, políticas, intelectuais e econômicas. Tal atitude tem tornado o ativismo radical alvo de críticas por suas ações antidemocráticas, assim como antiutopias. Tais como Admirável Mundo Novo e 1984 fazem parte da literatura utópica, a antidemocracia dos ativistas radicais faz parte da democracia, condicionada pelas próprias instituições governamentais contra as quais lutam. O desenvolvimento do ativismo radical na Republiqueta das Bananas ocorre paralelamente ao desenvolvimento do Estado brasileiro, centralizador e pouco federalizado, a análise histórica das diferentes constituições republicanas revela que, com exceção da Carta de 1891, as demais possuíam traços marcantemente centralizadores, o que se constata no amplo rol de competências privativas da União em praticamente todas elas e, ao que parece, tal modo de organização se justifica em países de baixo amadurecimento democrático, já que a descentralização, na prática, tem ensejado ineficácia na realização de políticas públicas. Historicamente também atitudes patrimonialistas e clientelistas em âmbito local e regional como a força das elites coloniais na República Velha sempre foram um impedimento para real federalização do pais. Porém, com a crescente aceitação de que o ativismo radical vem tutelando as instituições e empoderando cada vez mais a sociedade com subterfúgios para além do simples sufrágio como sendo uma ação política, ações diretas de todos os tipos, de estética destrutiva, construtiva, lúdica, performática e etc. servem de exemplo para a sociedade civil entender sua função fiscalizadora e balanceadora dos possíveis erros administrativos de toda a classe política.

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DESCONSTRUÇÃO

Somos parte do mesmo eterno processo que produziu a Terra, entre a explosão de uma supernova e o caos, a capacidade dos átomos de reconstruir-se evolutivamente sobre os escombros do passado, é um sonho repetido de renovação. Não temos medo de ruínas ou celas, delas herdaremos a terra crua. Não há a menor dúvida quanto a isso. A aristocracia pode explodir e arruinar seu próprio mundo e abandonar o palco da história. Eles matam, calam, corrompem, estupram, escravizam, deturpam nossa realidade, doutrinam a classe média para odiar qualquer ação popular, mas os vilões somos nós, a depredar o sagrado patrimônio público, privado ou a ordem? Eu, como todos os adeptos, sou capaz de aceitar a destruição, mas apenas como parte do mesmo eterno processo que produz a morte e renova a vida no mundo da natureza, apenas acredito na capacidade do homem livre para construir outra vez e fazê-lo melhor sobre os escombros do passado destruído.

“Em meio à confusão de atitudes com respeito à violência física ou não, transitam os anjos negros do ativismo radical. Black blocs regicidas, terroristas, ou que aceitam pegar em armas para transformar a sociedade. Eu conheço boa parte deles, e posso dizer que são uma minoria ínfima entre todos os adeptos. Vejam o caso do Morelli, que tentou arregimentar um pequeno exército e conseguiu nada mais do que 20 pessoas. Em contrapartida, nós, ativistas radicais, somos muitos. Não consigo precisar o número exato pois funcionamos como células de democracia direta, somos também uma ideologia, uma forma de vida, um hobby, cada qual com autonomia total. Esses juízes dos crimes de autoridade emprestam à tática uma fama inteiramente desproporcional ao seu número. O ativismo radical, de idealismo austero e paixão apocalíptica, é o mesmo ativismo radical que tornou Gandhi um Santo ou Chico Mendes em um herói e o grupo Yes! Men ou Banksy em celebridades. O mais curioso dessa dicotomia entre os atos dos black blocs, é que as forças que combatemos, sejam elas policiais, estatais ou morais e midiáticas, mantêm o monopólio da legalidade da violência e reprimem veementemente qualquer ato de resposta à violência com mais violência.

“Nossas ações têm melhorado com o tempo, constantes esforços para ajustar as engrenagens de nossa comunicação melhoram nossas ações o tempo todo. Diferentemente dos grandes meios de comunicação fadados à falência, que pensam estar fazendo jornalismo mas apenas fazem publicidade, nós temos a consciência de que existe pelo menos uma centena de armas de marketing feitas para comunicar uma pauta incipiente. Enxergar essa conexão entre o ativismo e o marketing é a maior vantagem que detemos.”

“Como tática, mudamos constantemente; como movimento, crescemos e nos desintegramos, em permanente flutuação, mas jamais pararemos. O ativismo radical, a propaganda pelo ato e as ações diretas existem na Europa desde 1840 ininterruptamente, e por suas próprias características multiformes, conseguiram sobreviver onde muitos outros movimentos do século passado (bem mais poderosos, mas com menor mutabilidade) desapareceram totalmente. A estranha volatilidade das ações e táticas black blocs se refletem em nossa atitude em relação à organização. Diferentemente do que acreditam os pensadores contemporâneos, não rejeitamos a ordem, mas nenhum de nós procura impor uma ordem artificial em detrimento à própria atitude libertária. Excluímos, assim, a possibilidade de uma organização rígida e especialmente de qualquer coisa que se assemelhe a um partido criado com o objetivo de tomar e manter o poder. Nossa utopia é substituir a ideia de organização partidária pelo impulso individual e popularesco que se expressa, na prática, através de uma sucessão de atos, todos desagregados e transitórios, e de cooperativas que têm o dever de não liderar, mas orientar e servir de exemplo. Levamos a cabo nossos pequenos levantes não porque acreditamos que deles podem originar uma revolução que ficaria sob nosso controle, mas porque vemos em nossas ações uma forma de propaganda de guerrilha cujo objetivo é mostrar ao cidadão comum uma linha de conduta que possa conduzi-lo à libertação.”


JUNHO,

um cenário em evidência até os dias de hoje. Em junho de 2013, a sociedade civil desorganizada impulsionada pela primeira leva de ativistas radicais brasileiros – advindos da cultura Eurocêntrica que eclodiu em 2001 em SP nos ataques aos relógios da Globo – sem nenhuma coerção ou delegação de responsabilidade, nem mesmo liderança, levantouse como nunca na história deste País e passaram, assim, ao que chamam de plano prático de evolução social. O Brasil era considerado um pradeiro amistoso para os que defendem a cadeia alimentar de privilégios, ainda que muitos coletivos do País tivessem expressividade ou comportamentos arredios. Seu histórico de lutas respeitável não evoluía para levar o cidadão animal em toda sua ancestralidade ao centro da evolução como especie politica. De repente, por força do efeito manada, sapiens que não sentiam-se fortes o suficiente para enfrentar o Leviatã da opressão, passaram a sentir apreço por outras espécies – consciência coletiva. Assim, os coletivos percebidos como pequenos atos de insatisfação local, erros antropológicos, birras anticonstitucionalistas não mereciam ter voz ou pautas de reivindicação política com legitimidade. E, assim, as facções passaram a conviver em simbiose. Nessa relação mutualista entre os vários atores políticos, nasceu uma nova espécie de animal, o homoconsientia. E desde julho de 2013, o Darwin no Brasil não parou mais de dar tapas de luva de pelica em Jesus e encorajar novos

adeptos cooperados. Coletivos e movimentos antropo-mórficos, que antes eram concorrentes, amensalistas do status quo competidores entre si, armaram-se da ambição dos seres autótrofos e metralharam o Estado com autonomia e o estabelecido com autogestão e cidadania. Pequenos seres unicelulares, contra intempéries gigantes. Autótrofos foram os garis do Rio, que são garis de Belo Horizonte, de São Bernardo, do Paraná, de Niterói -- tudo por conta do efeito manada. Pequenos grupos de dissidentes, segundo o prefeito do Rio, perderam o medo do Leviatã em cascata, sabendo que evoluir é não sucumbir sem lutar. Greves evolutivas para todos, greves gerais, greves para todo lado. Não sobrou sindicato que não fosse presa. Cooperativas de artistas nômades, há mais de 3 anos pela reintegração randômica, ocuparam a Casa Amarela, a Casa Azul, um prédio na rua do Ouvidor, conseguiram assim, fincar raízes no poder público ao reutilizar lugares abandonados, curvas podres no organismo da cidade em espaços para todos. A coragem dos black blocs no 7 de setembro em São Paulo, involuiu as forças de segurança para uma tropa de braço, mansa, coesa, responsável. E no Rio de Janeiro a resistência dos autótrofos seguia, fazendo a Tropa de Choque retroceder na pirâmide frente a um paredão de presas, não mais indefesas.

Coragem por coragem, um pedágio em Vitória pegou fogo, até que fosse possível cantar vitória ao conseguirem cancelar a cancela (o mesmo aconteceu com o pedágio do CEAGESP). Somos todos coletivos, fontes intermináveis de movimentos evolutivos, ondas de cidadania expansiva, e nada vai parar nossa evolução. Continuaremos resgatando beagles e fechando institutos fraudulentos, seguiremos montando barricadas nas favelas, e ensinando os marginalizados seus direitos. Derrubaremos muros de concreto para livrar parques, e danificaremos patrimônio publico e de grandes corporações. Seguiremos invadindo sites, expondo a vida de nossos carrascos e distribuindo contra informação conscientemente. Sabemos que somos grampeados e criamos até a narrativa que nos tentam impor. Somos nada mais do que o som propagado por um ser em eterno movimento. A oposição dos ativistas radicais à democracia tripartide, vai além da simples disputa sobre modelos. Ela envolve a não aceitação da ideia de que o povo é uma entidade que pode ser representada através da ditadura da maioria. Já a oposição à autocracia vai além do simples liberalismo econômico, ela envolve o comprometimento com a sociedade tanto quanto sua própria existência. “Para nós, o direito não está nos números, mas na razão; a justiça não está na contagem de cabeças, mas na prática de uma convivência sublime, onde cada pessoa entenda a existência da necessidade outro, em detrimento de seus próprios desejos”. [GRR]

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