Jornal O Duque #03

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O jornal da cultura de Maringá e região

Ano I - Nº 3 - Novembro de 2013

e mais

MARIGHELLA Um livro que disseca; um guerrilheiro que incendeia

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CEGUEIRA MORAL e a metáfora do conhecimento

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VIRGÍNIA

A escritora maringaense Thays Pretti e seu conto arrebatador, no #Sarau novembro

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NOVOS RUMOS DA CULTURA LOCAL 1


MARINGÁ:

CULTURA EM MOVIMENTO N

ossa terceira edição d’O Duque chega com um paradigma: Novos Rumos da Cultura Local. Organizada, decidida e dedicada, membros da Classe Artística se uniram para propor caminhos mais adequados para o setor. De maneira única, contam com o empenho do Poder Legislativo para alcançar este objetivo. Portanto, no dossiê que compõe a matéria de capa, abrimos espaço para que personalidades do setor público e privado colocassem diferentes pontos de vista da Cultura como Negócio e Direito do Cidadão. Um time de especialistas, composto por Edson Pereira, Ben Hur Prado, Miguel Fernando e Jovi Vieira Barbosa traçam um perfil da economia criativa em Maringá, comentando os avanços e as dificuldades desse mecanismo de apoio à cultura. Ao final, o leitor – seja produtor ou consumidor cultural, sentirá que o futuro é promissor, e o campo de defesa parece estar mais preparado do que nunca. A 3ª edição da Mostra de Teatro Contemporâneo de Maringá foi o grande destaque de novembro na nossa cidade, e nessa edição encontramos nas palavras do grande Alexandre Flory, um comentário interessantíssimo acerca do “O teatro dialético do Coletivo de Teatro Alfenim”, curso de extensão que foi realizado durante a Mostra. Quem assina a coluna de literatura do mês é Victor Simião, que devorou as quase 800 páginas da

biografia de Marighella e fez uma resenha para os leitores do Duque. De volta ao jornal, agora com coluna fixa, Gilmar Leal Santos busca no pensamento do escritor e filósofo francês Émile Faguet uma metáfora inteligente sobre a fôrma, o bolo e o poema. Quem estreia nas páginas do jornal é Rodrigo Gonçalves Corrêa, estudante de psicologia que de cara já nos brinda com um “Ensaio sobre a cegueira moral”, uma releitura do clássico de Saramago, Nobel de Literatura em 1998. Já a crítica de cinema fica por conta de Elton Telles, que nos adianta este que será um dos grandes destaques do cinema brasileiro em 2014, o filme “Tatuagem”, de Hilton Lacerda. Fechando a conta, o músico João Giannasi Jr. também estreia no jornal com a coluna “Deu Rolê!”, um guia apresentando o que vai rolar de bom nos palcos da cidade em novembro. E no já tradicional #Sarau, a escritora Thays Pretti nos leva para a história arrebatadora de “Virginia”, criada exclusivamente para o jornal. E quem ilustra tudo isso é Alan Bariani, cartunista e designer maringaense que também assina as páginas internas.

O jornal da cultura de Maringá e região 18.427.739/0001-40

CONSELHO EDITORIAL Novembro / Edição nº 03 / Ano I

EDITOR-CHEFE Miguel Fernando

CO-EDITORA Luana Bernardes

JOR. RESPONSAVEL Gustavo Hermsdorff

REVISÃO Zé Flauzino

COLABORADORES Ben Hur Prado - Especial (página 04) Jovi Vieira Barbosa - Especial (página 05) Edson Pereira - Especial (página 05) Alexandre Flory - Teatro (página 08) Victor Simião - Literatura (página 09) Gilmar Leal Santos - Poesia (página 10) Rodrigo Corrêa - Psicologia (página 12) Elton Telles - Cinema (página 13) João Giannasi Jr. - Música (página 14) Thays Pretti - #Sarau (página 15)

DESIGN EDITORIAL

ILUSTRAÇÕES Alan Bariani gaijin07@gmail.com

As colocações expostas por convidados ou entrevistados é de responsabilidade exclusiva dos mesmos.

Impressão: Jornal O Diário Tiragem: 3.000 exemplares 16 Páginas / Tablóide Americano

Críticas, dúvidas ou sugestões contato@oduque.com.br Departamento Comercial jcastro@oduque.com.br 44 9924-7085 Departamento de Marketing marketing@oduque.com.br Assine O Duque assinaturas@oduque.com.br

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novembro

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Especial //

ARTE X NEGÓCIO, CRISE X CRESCIMENTO Ben Hur Prado

A

evolução da produção cultural brasileira vem se desenvolvendo a passos largos. A crise na cultura existe desde que o homem é homem. Mais especificamente no teatro, que é minha profissão de ofício, nota-se um desânimo e uma certa "preguiça" do público em assistir ao teatro produzido em nosso país, mas isso também remonta de longa data. Desde a Grécia Antiga já se falava em crise no teatro e ele continua aí com seus atores, diretores, produtores, iluminadores, cenógrafos e tantos outros profissionais que

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formam a barricada da resistência da cultura, onde me encaixo e vivo projetos culturais. Como homem de teatro, acredito e sinto a crise que assola nossa profissão, mas não me rendo aos argumentos pleiteados pela suposta crise cultural. Como exemplo, voltemos nosso relógio aos anos 1960, 1970 e 1980 quando, para se produzir um espetáculo, o produtor ao estrear uma peça nova contava com 9 apresentações semanais, de terça a domingo, com duas sessões na quinta-feira, sendo uma no final da tarde e outra a noite, depois com duas

sessões no sábado e duas no domingo. Trabalhávamos muito e as temporadas eram longas. Não havia patrocínio. O produtor usava seus próprios recursos e cotizava a bilheteria entre os atores e pagava os técnicos e a locação da sala de espetáculos com o resultado da bilheteria. Era uma verdadeira roleta. Se a peça emplacasse a temporada era longa e frutífera. Já com o fracasso, só mesmo recorrendo a créditos bancários para cumprir com os compromissos assumidos. Cansei de ver colegas assinando "papagaios" e vendendo apartamento pra quitar suas dívidas. Uma coisa é certa, o teatro sempre foi artesanal, trabalhado por ourives dos tablados.

Com o passar dos anos notamos uma vertiginosa mudança no comportamento da produção cultural e das relações profissionais. Aos poucos fomos buscando alternativas para produções mais eficientes. Primeiramente, com uma lei criada nos anos 1980 que ficou conhecida como Lei Sarney, que possibilitava o aporte de recursos da iniciativa privada com abatimento no pagamento de Imposto de Renda como despesas operacionais. Esse mecanismo, muito útil na época, teve que ser modificado para disciplinar empresários e produtores, tornando o mecanismo mais eficaz e transparente. Foi aí que surgiu a Lei Rouanet na esfera federal que possibi-

litou um grande passo no fazer cultural. Aos poucos o empresariado, ressabiado em abrir suas contas ao governo, percebeu que o mecanismo de isenção fiscal poderia ser um caminho muito barato ao marketing de sua empresa. Hoje vemos a movimentação das empresas em reter parte de seu Imposto de Renda para a cultura, fazendo com que essa fatia (4%), que a empresa é obrigada a pagar ao fisco, fique para a criação de projetos culturais. Assistimos ao boom da produção cultural. Musicais internacionais sendo produzidos no Brasil, dramas e comédias produzidos com requinte, em face da figura do patrocinador que disponibiliza recursos necessários para o que podemos chamar de produção globalizada. Com o mecanismo de isenção fiscal as produções podem pagar melhor seus integrantes, sejam eles artistas ou técnicos, abolindo o método antigo de recursos próprios que, invariavelmente, sacrificava o ganho de todos os profissionais envolvidos em um determinado projeto. Não se fala mais, no teatro profissional, em sair por aí passando o chapéu para poder minimizar o risco desta aventura milenar. Hoje produzimos com a mesma qualidade que se produz na Broadway ou no West End de Londres. Produzir cultura demanda tempo, paciência e ainda hoje, risco. É um negócio chamado cultura. Aos meus pares peço o obséquio da expressão, mas cultura não deixa de ser um negócio, mesmo que elaborado artesanalmente. As pessoas pagam pra assistir uma peça, ir a um museu, a um show e se pagam por isso, existe, claramente, um comércio. Para atender a exigência do público de hoje, seja em Maringá, São Paulo ou New York, o que se busca é a arte com qualidade e isso só pode acontecer com recursos financeiros. Nossa cultura está crescendo e se desenvolvendo. Podemos acreditar na profissão artística como meio de subsistência de seus profissionais, que dedicam seu tempo, talento e conhecimento para o fazer cultural com qualidade. Este trabalho de resistência é observado nos operários da cultura que se não almejam o palco, almejam a transformação para uma sociedade melhor, função precípua da cultura. Fomentar, possibilitar, acreditar e participar do fazer cultural mantém viva a chama do desejo em perpetuar a arte em todos seus segmentos. Vivemos um momento histórico, momento em que a iniciativa privada, amparada pelo poder público, renova as esperanças dos que, com os pés desnudos e peito aberto, deslizam sobre o palco na esperança de dias melhores, sempre.

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CAMINHOS DA ECONOMIA CRIATIVA: Jovi Vieira Barbosa

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AVANÇOS E CONQUISTAS DE MARINGÁ NOS ÚLTIMOS ANOS

que é Economia Criativa? Para alguns pode parecer estranho se fazer este tipo de pergunta. Mas, é que, por hábito, nós aprendemos uma expressão ou palavra, começamos a fazer uso dela e não nos damos conta, muitas vezes, do que significa aquela expressão ou palavra, da qual fazemos uso constantemente. E não é só com essa expressão: economia criativa. Pode-se enumerar diversos exemplos. O que importa é fazer uso da expressão. E na questão da economia criativa, é preciso atentar para o grande significado que há por traz da expressão. O Plano Nacional de Cultura traz em seu contexto definição de três dimensões culturais: a dimensão simbólica; a dimensão cidadã; e dimensão econômica. A dimensão simbólica pressupõe o aspecto da cultura que “considera que todos os seres humanos têm a capacidade de criar símbolos”. A dimensão cidadã traz o aspecto da cultura pelo qual se entende que a cultura é “um direito básico do cidadão”. E a dimensão econômica estabelece o “aspecto da cultura como vetor econômico”. O Plano Nacional de Cultura (PNC) contextualiza a questão em uma frase importante: “a cultura como lugar de inovação e expressão da criatividade brasileira fará parte do novo cenário de desenvolvimento econômico, socialmente justo e sustentável”. A idéia do PNC é que, a partir de 2020, haja reconhecimento dos territórios criativos, com apoio para a sustentabilidade econômica da produção cultural. Em razão dessa amplitude de entendimentos é que iniciamos nosso texto com uma pergunta: o que é Economia Criativa? A Primeira Conferência Nacional de Cultura, realizada em 2005, já pincelava algumas vertentes intelectuais sobre o tema, com o levantamento das “questões da economia e a diversidade das práticas culturais”. No anuário lançado encontramos a indicação de que em 2001 já se discutia a questão econômica da cultura em um ciclo de estudos realizado no Rio de Janeiro com o tema: Economia da Cultura: a Força da Indústria Cultural no Rio de Janeiro. Muito se refletia sobre os aspectos que envolviam a mídia, principalmente quanto ao aspecto “industrial” da cultura. Eis a questão:

Nos últimos anos, especialmente, a partir de 2011, as ações coordenadas do SINCONTÁBIL, do Instituto Memória e Vida, da ACIM, tem conquistado avanços na captação de recursos através da Lei Rouanet. A articulação da sociedade civil foi muito importante, bem como o empenho do ex-prefeito Silvio Barros junto ao Governo Federal, convidando, em nome de Maringá, a Comissão Nacional de Incentivo à cultura (CNIC) para conhecer a realidade local. Pela primeira vez, em agosto de 2012, a CNIC se reunirá numa cidade do interior e não capital. Desta forma, no campo institucional, avançamos muito e criamos as condições para o desenvolvimento de projeto de todos os tamanhos e para todos os públicos, financiados pela Rouanet. Falta agora, mesmo reconhecendo que avançamos bastante, ampliar a quantidade de empresas que patrocinam e apoiam projetos culturais e, principalmente, reforçar a captação de recursos da pessoa física. Acreditamos que o potencial de Maringá é quatro vezes maior do que nossa realidade atual, pois temos capacidade de atrair patrocínio de empresas de fora da cidade através de projetos de projeção estadual e nacional. Somando-se a esta realidade temos agora o Instituto Cultural Ingá que funciona como uma agência de fomento, articulando um grupo bem maior da sociedade civil, credenciando projetos e patrocinadores. Acredito que chegaremos em breve ao nosso potencial. Edson Pereira

há uma indústria da cultura? Ou há uma indústria cultural? Alí, se buscou definir “economia da cultura” como todas as atividades econômicas que guardam relação com atividades culturais. Essa definição inclui, portanto, a indústria do cinema, da TV, da música, de espetáculos etc., considerando tudo, até o consumo de alimentos e bebidas relacionados com eventos turísticos e “culturais”. A expressão “economia da cultura”, entretanto, cedeu lugar para uma nova expressão: “economia criativa”. E, assim, ao nosso ver, ampliou o conceito, através do qual se pode incluir, por exemplo, as “invenções”, as “marcas”, os “designs”, entre outros elementos e fatores, que são produto da “criatividade” humana. Ora, neste diapasão, pode-se dizer que “tudo”, extremamente, tudo é “economia criativa”, exceto os produtos culturais que não geram qualquer renda, como por exemplo, apresentações caseiras, escolares etc., cujo objetivo é, tão-somente, a satisfação de uma necessidade qualquer da comunidade. O PNC estabelece pela meta nº 7 que em 2020 100% dos segmentos

culturais com cadeias produtivas da economia criativa estejam mapeados, o que significa que atualmente não se tem total conhecimento da localização dessas ações culturais e econômicas. Conforme a definição do PNC a “economia criativa é composta das atividades econômicas ligadas aos segmentos definidos pela Unesco: patrimônio natural e cultural, espetáculos e celebrações, artes visuais e artesanato, livros e periódicos, audiovisual e mídias interativas e design e serviços criativos”. Portanto, o leque é grande e Maringá vem crescendo bastante neste aspecto cultural. Os rumos estão traçados pelo PNC, ao menos, para até 2020. O município ou cidade que desejar presença na economia criativa deverá ter altivez e se atentar às oportunidades. Deverá valorizar, patrocinar, apoiar e conduzir as políticas necessárias para que todos os eventos possíveis se realizem, pois, falamos de um setor cultural “estratégico” e “dinâmico”, que gera trabalho, emprego, renda e inclusão social.

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NOVOS RUMOS DA CULTURA LOCAL

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Cultura de Maringá melhorou muito nas últimas duas décadas. Isso é irrefutável. Muito se deve às movimentações de artistas e produtores culturais, bem como às iniciativas que foram implantadas pela própria Gestão Pública. No entanto, contrapontos são necessários para estabelecer outras vertentes para essa discussão. A Secretaria Municipal de Cultura poderá investir em 2013, pouco mais de R$ 7,2 milhões, o que representará 0,84% do Orçamento Geral do Município. Londrina, município vizinho, está trabalhando com o recurso previsto de quase R$ 15 mi para o mesmo período, representando 1,24% de seu Orçamento Geral. Óbvio é que os portes das cidades são diferentes, o que pode resultar a discrepância dos valores. Mas, o que devemos nos atentar é a diferença de

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percentuais investidos em cada um dos comparativos. Além disso, a questão é que deste montante de recursos previstos para o segmento cultural de Londrina, pouco mais de R$ 3,1 mi será aplicado no Fundo Municipal de Cultura, que é um mecanismo de fomento e incentivo a produção local por meio de editais complementares. Apesar do paralelo entre essas cidades, em linhas gerais, a perene adversidade que a área cultural brasileira enfrenta está arraigada na falta de profissionalização dos envolvidos tanto do setor privado quanto público. De um lado está a morosidade e burocracia da iniciativa pública; do outro a falta de conhecimento especifico da cadeia produtiva. Esse desiquilíbrio tende a gerar resultados insatisfatórios. Portanto, resta aos profissionais do setor propor novos rumos. No caso de Maringá, isso já está ocorrendo desde

que foi realizada a primeira Audiência Pública sobre a Cultura, em setembro passado. Daquele encontro, um Grupo de Trabalho foi organizado para discutir meios adequados de fomentar e incentivar a produção local. A pauta deste grupo foca-se no orçamento da Secretaria Municipal de Cultura. E a proposta consensual prevê uma elevação considerável na dotação orçamentária da pasta. A exemplo de Londrina, a ideia é que uma parcela do montante seja destinada para o Fundo Municipal de Cultura de Maringá, que, desde sua constituição em 2003, nunca foi utilizado em função de o Município não ter estruturado ainda o seu Plano Municipal de Cultura, que é uma obrigatoriedade a ser cumprida. Outra questão discutida por este grupo é o destino do Cine Teatro Plaza que, apesar de ser um grande equipamento cultural, permanece interditado

Miguel Fernando

pelo Corpo de Bombeiros devido à falta de adequações acerca da segurança e prevenção contra incêndios. Em parceria com o presidente da Câmara Municipal Ulisses Maia, há proposta para que ocorra seu tombamento histórico e, com mais recursos previstos em orçamento, seja estudada a possibilidade de transformar aquele espaço em um prédio de interesse público, para que a Prefeitura possa adquiri-lo integralmente, transformando-o em Centro Cultural – sabe-se que somente 31,26% do prédio é de propriedade do Poder Público. O novo rumo da Cultura de Maringá está para que mais ativos culturais sejam disponibilizados aos habitantes de toda a região. E o mais importante de tudo é que este processo está ocorrendo com consenso e soluções palpáveis entre grande parte dos envolvidos.

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Teatro //

Literatura //

MARIGHELLA

DA IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO CRÍTICO PARA UM TEATRO FORMADOR

Alexandre Flory

A Mostra de Teatro Contemporâneo de Maringá, criada em 2011 e agora em sua terceira edição, foi concebida como um espaço para se ver e discutir teatro e, também, seu papel e lugar na sociedade. Desde então se afigurava como imprescindível articular cena e crítica, base para um posicionamento reflexivo de um público em processo de formação. Uma das maneiras de efetivar essa perspectiva é o Evento de Extensão realizado pelo Grupo de Pesquisa Crítica Literária Materialista, da UEM, que estuda justamente o teatro brasileiro, suas formas, temas e recepção. Em 2013, começamos com duas conferências sobre o Coletivo de Teatro Alfenim, que se apresentou alguns dias depois na Mostra. Nossa intenção foi construir um percurso da história do grupo, das formas teatrais que eles utilizam e das teorias que sustentam essa concepção de teatro, sem perder de vista a relação que estabelece com a sociedade. Um dos grupos mais promissores no cenário atual, o coletivo de teatro Alfenim, de João Pessoa, Paraíba, inscreve-se na já vultosa e bem estabelecida tradição de teatro dialético, retomada a partir dos anos 1990. O Alfenim, criado em 2007, estabelece desde sempre uma relação com essa perspectiva pela experiência de seu diretor, Márcio Marciano, que durante vários anos co-dirigiu a Cia do Latão. A ênfase no trabalho de grupo, coletivo, e na primazia do processo em detrimento do produto acabado, aspectos esses que devem ser levados para a forma de suas obras, alinha-se ao que de melhor se faz em matéria de teatro de grupo no Brasil nos dias de hoje. A articulação entre cena, dramaturgia e crítica, bem como a aproximação com in-

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telectuais das mais diversas áreas e de seminários, workshops e outras formas de difusão, discussão e disseminação de seu pensamento os colocam como um grupo que merece pesquisa. As discussões abertas nas conferências foram confrontadas com a cena viva no domingo, com um público também ativo. Na segunda-feira de manhã, com a peça ainda fresca na memória sensível e racional, houve uma mesa-redonda com a participação do diretor Márcio Marciano para apresentar aspectos importantes da dramaturgia do grupo, da encenação, para comentar as influências, as dúvidas, o processo de trabalho, entre outros itens. Aqui se completa um ciclo, pois as condições de produção, o processo de trabalho e coisas assim são fundamentais para o entendimento do teatro. Já estiveram incluídos, nesse pacote, a visão analítica e histórica das peças, feita pelo nosso grupo de Crítica Materialista; a sua materialização em cena; os pressupostos e bastidores da criação artística, pelo Alfenim. Para os interessados em teatro, em um teatro formador, foram dadas as balizas para o início de uma atividade das mais importantes e úteis nos dias da Mostra. Para finalizar, na quinta-feira à tarde dois documentários sobre teatro apresentaram grupos que dialogam com essa tradição artística, tão importante no Brasil, com grupos como os nordestinos Ser Tão e o Clowns de Shakespeare. Conseguimos, com isso, contribuir para aquele propósito inicial, tão necessária em tempos que teimam em caracterizar a arte como mero entretenimento, como passatempo, o que não respeita nem sua natureza nem sua história.

UMA BIOGRAFIA QUE INCENDEIA Victor Simião

Enquanto Roberto Carlos, Chico Buarque e outros figurões da MPB discutem - e se confundem - sobre o que pensam a respeito das próprias biografias, Mario Magalhães, autor de Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 2012), deve comemorar – e com razão – o Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria Biografia, que recebeu neste ano. O autor, jornalista com passagens pelos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, trabalhou durante nove anos para escrever o calhamaço de mais de 700 páginas, rico em imagens e fontes, contando a vida de um dos personagens mais intrigantes do século 20: Carlos Marighella. Neto de escravos, admirados por estudantes, revolucionários e intelectuais do mundo todo, como o filósofo francês Jean-Paul Sartre, Marighella teve o futuro decretado ainda quando era Carlinhos. Não de propósito, é claro. A mãe dele, Maria Rita, para evitar que o filho pequeno saísse para jogar futebol, prendeu o calcanhar dele ao pé de uma mesa. Uma vizinha, ao ver a cena, alertou: “Dona Rita, não faça isso! Criança que é presa assim acaba presa de verdade". Ela não poderia imaginar que, da boca da vizinha, saíra uma profecia. Marighella, baiano de Salvador, ficou conhecido na cidade enquanto cursava o Ginásio (atual Ensino Médio) quando realizou uma prova de física em forma de poema. Na década de 1930, cursou por dois anos a facul-

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Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo Mário Magalhães Companhia das Letras 792 págs.

dade de Engenharia Civil, filiou-se ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), foi preso três vezes e escolheu para si dois ídolos: Luís Carlos Prestes (líder do PCB) e Josef Stálin (líder da União Soviética). Ambos seriam desmistificados – e o frustrariam - com o passar dos anos. Ao recontar a história do comunista mulato ateu que frequentava terreiros de candomblé, o jornalista mostra que, diferentemente de Prestes, Carlos Marighella era homem de ação. “O conformismo é a morte”, costumava dizer. Nos anos em que o PCB ficou na ilegalidade, o secretário-geral do partido mantinha-se escondido, en-

quanto o ex-acadêmico de engenharia se movimentava para organizar ações como panfletagem e greves. Diretor de jornais comunistas e deputado federal constituinte em 1946, foi expulso do PCB em 1968 por discordar da linha que o partido tomara. No mesmo ano, foi considerado o inimigo número um da ditadura. Ao lado de outros revolucionários, após sair do partido, Marighella fundou a ALN (Aliança Nacional Libertadora), grupo guerrilheiro que pregava que a revolução deveria começar na zona rural, como fez Fidel Castro em Cuba e Mao-Tsé-Tung na China. Morreu em 4 de dezembro de 1969,

aos 57 anos, assassinado a tiros. Dentro de um fusca, ele caiu em uma armadilha vigiada por, no mínimo, 29 polícias. E desarmado, contrariando versões contadas durante anos pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e pelos jornais. Pela qualidade do livro, Mário Magalhães entra no rol dos grandes biógrafos, ao lado de Fernando Morais e Ruy Castro. Já Carlos Marighella é (re) colocado ao lado dos personagens mais importantes do século passado. Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo incendeia - com propriedade - a mente do leitor. É simplesmente de tirar o folego.

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Poesia //

A fÔrma, o bolo e o poema Gilmar Leal Santos

Na sala de embarque lotada do aeroporto, voo atrasado, a passear por vários sites numa internet lenta, deparei-me com o blog "Amigo de Montaigne". Particularmente, na seguinte passagem, parafraseada:

Émile Faguet, escritor e filósofo francês do século dezenove, publicou o livro "L'Art de Lire" (A Arte de Ler); nele há um capítulo com as instruções para o leitor de poesias: "Os poetas propriamente ditos (...) devem ser lidos, primeiro, em voz baixa e, em seguida, em voz alta. Primeiro, em voz baixa, para que compreendamos seu pensamento, pois a maioria de nós, por força do hábito, não compreende mais do que a metade do que lê em voz alta. Depois, em voz alta, para que o ouvido se dê conta da cadência e da harmonia, sem que, dessa vez, o espírito deixe escapar o sentido, pois já o terá assimilado antecipadamente." Evidentemente, mais do que uma instrução, entendo que Faguet deu a nós, os leitores, uma sugestão de como ler poesia. E somos um número que diminui a cada dia. Porém, não é este o ponto do texto que prendeu a minha atenção e sim a descrição das qualidades de um poema: cadência, harmonia e sentido. Alguns poetas conseguem reunir as três qualidades facilmente em alguns trabalhos. Fernando Pessoa descreveu o processo de criação de "O Guardador de Rebanhos" da seguinte maneira: "... acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título - O Guardador de Rebanhos".

somente à forma – com o “o” aberto - do poema propriamente dita, como os sonetos, dísticos, haikais ou redondilhas, mas também à métrica, rima e, principalmente, o ritmo; este, mais raramente, através de adequação às suas unidades como o anapesto ou o iambo. Alguns outros poetas não se utilizam de nenhuma forma em especial e deixam-se guiar pela liberdade da folha em branco. Para estes bastaria somente utilizar o enjambement em um texto e tudo viraria poema. Em ambos os métodos ou estilos, penso que é um Ledo e Ivo engano! Pausa: não é intenção deste artigo a de discutir estética ou escolas de poesia; tampouco me preocupa e, acredito, há poucos que se preocupam com a classificação ou rótulo dado a cada poeta e sua produção. Um poema pode ser bom independentemente de sua forma ou escola. Da mesma maneira, um poema pode ser

ruim, seja um soneto ou um verso livre. De volta ao assunto. No caso da confeiteira, mais importantes do que a fôrma são os ingredientes e o trabalho e o enlevo e o zelo com o feitio da iguaria. A farinha, o leite, o açúcar de confeiteiro, os ovos, a noz moscada, o cravo e qualquer outro tempero são nada sem a mistura, sem o descanso da massa e o tempo certo no forno. Assim mesmo é o poema. Assim são as palavras tempero. As palavras servem e devem ser usadas pelo poeta para dizer alguma coisa, cada uma em seu devido lugar e significado; e deve haver cuidadoso

Colunista

poesia

trabalho neste fazer. É por isso que não acredito muito nessa coisa de “poema zen”. O poema já viria pronto da cabeça do poeta. Assim não se deveria, pela qualidade de o poema ser “zen”, mexer em alguma palavra. Balela! O segredo, penso eu, está no trabalho e no retrabalho, no reescrever o escrito pronto, no garimpo das palavras e no jogar fora o excesso. E apesar de todo o esforço dedicado e o suor escorrido, o poeta não terá a garantia de que produziu algo bom, mas terá quando menos – e se tiver tido o trabalho e o esmero – o deleite de ter tentado.

Enlevo

Não acredito em nenhuma linha que escrevo! E nada que narrei me comove, de fato. Talvez se eu trabalhasse as palavras qual bom cozinheiro ao aspergir o sal: nem pouco, nem muito; a exata pitada. Talvez eu pudesse me acreditar vez em quando. Vez em quando, me comover.

Porém, outros poetas suam muito mais a camisa e têm muito mais trabalho. Alguns, por estética ou por guia, valemse de fôrmas para ajudá-los a encontrar o caminho, tal qual a confeiteira as usa para fazer bolos ou tortas. E não me refiro

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Psicologia //

Cinema //

Um grito de liberdade.

Ou libertinagem? Premiado em diversos festivais Brasil afora, o filme Tatuagem chega ao circuito comercial neste mês prometendo um novo conceito de se fazer cinema

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA MORAL

A luz sempre foi a metáfora para o conhecimento. Inúmeras palavras e expressões carregam uma identidade de sentido entre a visão e o saber, assim como a cegueira costuma ser uma metáfora à ignorância. Porém, Ensaio Sobre a Cegueira nos imerge num paradoxo semântico: a cegueira de Saramago é branca, opaca como uma parede de leite. Seu portador antes sente como se estivesse encarando um farol que lhe incide direto sobre os olhos do que desorientado por uma noite escura e sem contrastes que se fecha sobre ele. É mais uma cegueira por excesso do que por ausência de luz. O leitor perceberá que todo o livro é permeado por uma atmosfera de vergonha intensa. O que é estranho, porque a

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vergonha só nos fere quando há um olhar que nos condena e estando todos cegos, também estão todos invisíveis, imunes a qualquer olhar. Porém, não estão imunes a qualquer juízo. Pelo contrário, na ausência de olhos, a única imagem que se pode ter de si é aquela cedida pelo juízo dos outros. Nenhum espelho servirá de consolo, projetando aquela imagem domesticada e previsível de cada um. O Outro assume o papel de espelho e a imagem que reflete é atravessada por valores que a transformam, conferindo-lhe a forma e a textura arbitrária de seu juízo. A autoimagem se torna propriedade do Outro e não há outra forma de chegar a si senão pelo olhar cego dos Outros, que se entrecruzam, convertendo tudo o que tocam em objetos de juízo.

Rodrigo Gonçalves Corrêa

A vergonha se condensa no ar, confirmando a exatidão do juízo mútuo geral: a cegueira é reprovável, estão todos condenados. Não a cegueira comum, nem aquela das figuras de linguagem, mas a cegueira branca que caracteriza o gênero humano ao longo de uma história de atrocidades ininterruptas. Uma cegueira que não é insensibilidade à luz, mas o colapso da razão. Este parece ser o ponto de Saramago: o homem não merece a vida. Diferente de qualquer outra espécie, o homem é o único capaz de transcender sua própria natureza e escolher a si próprio. Assim, a história existe como um legado que nos precede, um legado de escolhas que não realizamos enquanto indivíduos, mas com as

Lembro-me como se fosse ontem as tentativas frustradas da minha professora de Gramática, a saudosa Márcia, para disciplinar uma turma de arruaceiros na 6ª série do colegial. “Não confundam liberdade com libertinagem” era a sua palavra de ordem. Até entendo a aplicação da frase neste contexto, mas a minha real vontade, hoje, seria tomar uma gelada com a professora Márcia para discorrermos sobre libertinagem e depois encararmos uma sessão do filme Tatuagem, novo exemplar do exponencial cinema pernambucano, para usá-lo como ponto de partida da discussão. A obra Tatuagem é a melodia do canto dos esperançosos que buscam implantar liberdade nos meios culturais, valendo-se do deboche, ruptura de tabus atuais e perfil transgressor para embalar o ritmo da desordem organizada. Alguns certamente diriam que o conteúdo do filme é indecente, inadequado, pura libertinagem; outros, já o enxergaria como uma forma de manifestar a desobediência consciente em resposta à ditadura da hipocrisia conservadora. Evitando escandalizar seus efeitos, a arte-provocação é apresentada entre quatro paredes pela trupe anárquicoteatral Chão de Estrelas, definida pelo

Estudante do 4° ano de psicologia da UEM e membro do JPF ensaio

quais mantemos uma relação de continuidade e remorso. A narrativa do Ensaio nos conduz lentamente a uma atmosfera densa, carregada duma violência desconcertantemente familiar que, pouco a pouco, nos degrada a esperança, ao mesmo passo que nos direciona a uma relação de identidade entre a ficção de Saramago e a narrativa da humanidade: ambas nos afloram a náusea. Saramago não explica a cegueira. A história se encerra e o mal continua injustificável. Fora da ficção, o mau ainda não se justifica e a cegueira permanece. A história da humanidade caminha de olhos vendados no campo dos valores. Estamos todos cegos, condenados a uma cegueira moral. novembro

Elton Telles

filme como o “Moulin Rouge do subúrbio e a Broadway da favela”. Ambientado nos longínquos anos 1970, porém atual como nunca, Tatuagem exercita a ideia da opressão cercando não somente o âmbito artístico como também a expressão do amor proibido, representado pelo espontâneo envolvimento entre o líder do espetáculo e um jovem soldado. As figuras do quartel, da namoradinha de portão que o garoto mantém e de sua família tradicional, promovem o equilíbrio e o contraste da produção. O romance entre os personagens centrais é um retrato curioso por também denunciar o pensamento limitador dos seus amantes. O melhor exemplo talvez seja o discurso do desapego amoroso defendido pela mesma pessoa que sente ciúmes do parceiro em se relacionar com outro. O insight é muito bem construído pelo roteiro como uma forma de unir todos os indivíduos, imperfeitos e insinceros, no mesmo balaio. Essa aproximação é positiva, pois renega a elevação de status e compreende o ser humano como um só modelo, independente do que pensa ou acredita. O afeto e ternura da relação caminham de mãos dadas com a imoralidade

Jornalista

eltontelles@vilaopera.com.br

e poesia delinquente das apresentações performáticas do Chão de Estrelas. O grupo fora livremente inspirado no coletivo Vivencial Diversiones – ativo em Recife na década de 1970 – e se assume como o grande destaque do longa. Irreverentes no melhor estilo Dzi Croquettes, os espetáculos são plurais em traços e personalidade, variando da doce inocência alienante, passando pela sátira dos bons costumes até a zombaria carnal, desgarrada e sem pudor do hilário número musical Polka do cu, canção composta por DJ Dolores, veterano da cena Manguebeat e referência da atual música eletrônica brasileira. Acertadamente, Tatuagem emprega a estética e linguagem do cinema marginal e contestador para narrar sua história, negando qualquer classicismo em sua fórmula. A câmera fervorosa do estreante Hilton Lacerda – roteirista das obras controversas de Claudio Assis – concebe um filme de espírito jovem e libertário, que se livra das amarras livrescas do cinema contemporâneo. Fazendo um paralelo estúpido com o seu título, Tatuagem dura muito mais em nossa memória. Aposto que a professora Márcia vai adorar.

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# SARAU

Música //

DEU ROLÊ! "Não há nada para fazer em Maringá". Você certamente já ouviu alguém tecendo tal comentário, em relação às opções culturais de nossa cidade. Mas será que é isso mesmo? Somos realmente desprivilegiados ou talvez desinformados? Maringá é muito jovem, apenas 66 anos de história e já chegamos a praticamente 400 mil habitantes, sendo uma das cidades em maior desenvolvimento do país. Esse crescimento assustador em tão pouco tempo nos cria uma falsa ilusão, a de que somos ainda aquela cidade pacata do interior onde pouco acontece, distante dos grandes acontecimentos das capitais. Esse pensamento tende a mudar, mas não é algo que acontece da noite pro dia, naturalmente desenvolveremos uma mentalidade de acordo com nossa grandeza. Para provar que não estamos perdi-

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dos no mundo cultural nos basta parar e olhar um pouco para o que vem acontecendo e o que está por vir. Em Outubro houve inúmeras atrações por aqui. O Teatro Calil Haddad foi palco do “Festival Sesi Música”, premiando artistas regionais e apresentando a cantora Joyce Cândido. Tivemos a apresentação de Humberto Gessinger, o eterno líder dos Engenheiros do Hawaii, sem deixar de citar outros artistas que passaram por aqui como o sambista Diogo Nogueira, a dupla Teodoro & Sampaio, e as bandas Gentileza e Nevilton. Pudemos desfrutar mais uma vez a “Virada Cultural”, iniciativa da Secretaria de Cultura, que trouxe atrações de nome como O Teatro Mágico. Pra provar que Maringá tem muito mais, o começo de novembro também não ficaou atrás. Amantes da música re-

Virginia

João Giannasi Colunista

ligiosa puderam celebrar bandas como Oficina G3 e Rosa de Saron, nos eventos religiosos Clama Sul e Hallel, que aconteceram nos dois primeiros fins de semana do mês, respectivamente. O MPB Bar presenteou seus frequentadores com shows de rodagem nacional: os rockeiros do Kiara Rocks aportaram na casa dia 8 e na noite seguinte quem chegou foi o cantor Nasi, vocalista do Ira!. A revista cultural Circular Pocket também trouxe os cariocas do Canastra, no Tribo’s Bar dia 16. E para não dizerem que esquecemos os fãs sertanejos, o Woods Bar promove show de Fernando & Sorocaba, dia 22 no Parque de Exposições. Eventos com foco totalmente cultural foram outras opções interessantes. Já na segunda noite do mês tivemos opções como o “3º Cantando de Galo”, noite

cultural do curso de direito da UEM, no teatro do Colégio Platão e o espetáculo teatral “Misticismo” no Teatro Marista, também palco da “3ª Mostra de Teatro Contemporâneo” no dia 7, evento viabilizado pela Lei Rouanet. O “XIV Seminário de Cinema, História e Educação” vem sendo realizado na UEM desde Agosto com o tema: “A Escola no Limite” e se realizarou todas as segundas-feiras até dia 18 desse mês. A “Noite Cultural do SESC Maringá” acontece em 21 de novembro e agradará em cheio os amantes de literatura com lançamento de livros e muito mais. Sem esquecer os tradicionais eventos semanais como o projeto “Um Outro Olhar” e os “Convites” à música, dança e teatro. Então amigo, só me resta dizer: sim, nós temos o que fazer!

novembro

Queria que se chamasse Virgínia, a minha filha. Virgínia. Virgínia sem qualquer motivação maior, apenas porque olhava pela janela, vi uma menina sorrindo e pensei “Virgínia é um bom nome para se dar a uma filha”. Sei que não se parece com nada e não me lembra nada, mas Virgínia seria realmente um bom nome para a filha que eu nunca terei. Então, se você que me lê estiver de barriga e se for uma menina, essa é a minha sugestão: Virgínia. Acho que Virgínia também me soa bem porque é um nome que tem cor. Virgínia tem algo de verde, e eu preciso que as coisas tenham cores. E tudo porque de repente a gente está sossegadamente numa rede, olhando para o céu azul, apenas isso, olhando para o céu sem pensar em nada, e de repente nos vem o branco. Ele surge como um ponto disforme no canto da mente, um nada tão absoluto como deve ser morrer, e se espalha igual a sangue escorrendo de uma ferida recém-feita, nos domina completamente e nos derrete, pois o branco é ácido puro, a química do ácido puro em minha pele, fervendo. Só as cores me deixam respirar. As cores não me obrigam a olhar para as verdades que eu não quero ver. Pois há verdades que a gente não quer ver. Minha carne teve que ficar dura de tão sofrida para que eu pudesse saber disso, que eu ainda não sei de fato, mas pressinto. Pressentir é virtude feminina? Sou meio feminino, então, eu sei. Aprendi a pressentir certos perigos. O pressentimento é arte feminina porque a mulher já nasce com a carne dura e sofrida. Já nasce sofredora em potência. Eu não. Apenas por similaridade me fiz sofrer. Apenas por opção. Na primeira vez, ainda na infância, em que vi uma parede completamente branca, senti uma pequena vertigem. É que a mim, apesar de criança, havia sido permitido ver o meu lado reverso, meu avesso exposto obscenamente e, em fúria, marquei a parede com rabiscos de caneta esferográfica. Meu pai, quando encontrou minha obra, olhou-me nos olhos, tentando me decifrar, “Por quê?”, eu lia em seus olhos espantados. Minha mãe, que sempre foi sofredora em potência e ato, com a brandura e a tensão de quem está sempre à espera, rijamente à espera, disse “sossega, Mário, o Júnior não tem idade pra entender o que fez”. E, de fato, nunca entendi. Mas o homem que me feriu tinha escorpiões tatuados em seu braço. Escorpiões, os mais cruéis dos animais assassinos. Nunca cheguei a saber se os escorpiões poderiam mesmo matar uma pessoa, mas eles me amedrontavam terrivelmente. Se havia escorpiões, o mundo estava à beira de uma catástrofe global. Escorpiões são as bestas do Apocalipse. Nunca li o Apocalipse, mas imagino que os escorpiões devem estar lá. Se não estiverem, é apenas por falta de atenção de quem escreveu esse livro, pois escorpiões subirão pelas nossas pernas no dia do Juízo Final. Os escorpiões me deixaram nessa cama hoje, entre quatro paredes terrivelmente brancas, e eu tento controlar meu desespero vendo as pessoas que passam na rua. O braço do homem era grosso, rijo, e havia uma fileira de escorpiões em sua volta, na altura do bíceps. Eu prestei atenção por um momento apenas, enquanto ele levantava uma caneca no bar, e tive um calafrio. Creio até que tenha sido um pressentimento do que viria. Eu sei pressentir: é minha virtude feminina. Distraí-me da conversa na qual estava envolvido e comecei a cutucar a madeira da mesa com a unha, como se pudesse, com esse gesto, matar cada um dos escorpiões enfileirados. Mesmo que eu jamais tivesse tido coragem de matar escorpiões.

Thays Pretti

Pensando agora, talvez Virgínia fosse o nome da mulher que me encontrou espancado na rua e chamou a ambulância. Ou da enfermeira que me atendeu. Não lembro bem, mas ela foi carinhosa comigo e, talvez, esse fosse o nome dela. São tantas Virgínias, tão iguais em suas desilusões e dores, que não sei se faz tanta diferença saber qual das mulheres que conheci se chamava Virgínia. Sou igual a vocês, Virgínias, igual em tudo, e na sina. O mesmo pressentimento, a mesma vida sofrida. E estou desenhando para esquecer o que me sucedeu. Estou desenhando uma menina como a Virgínia que vi pela janela. Ela segura com força uma pelúcia, levemente amedrontada por causa dos escorpiões que lhe sobem as perninhas. Ela é minha filha Virgínia, a filha que não terei, e ela já tem a carne dura do sofrimento que, nessa sociedade, é inato às mulheres. Mas ela é sábia e não tem medo do sofrimento. Virgínia controla muito bem o medo que sente dos escorpiões, porque venceu o mundo. Ela sente calafrios e preocupações, mas mantém-se viva, mantém-se forte. Virgínia não precisa burilar sua identidade, Virgínia é. E sabe ser-se mais do que qualquer pessoa saberia, por saber que ser-se é tarefa individual. Ah, Virgínia, minha filha Virgínia, você sabe lidar com a vida! Eu não. Eu não aceito que o mundo me diga coisas más, mas não sou capaz de me revoltar. Porque o mundo vai me acusar de coisas que não fiz, vai colocar em mim a culpa por ter sido ferido. O mundo vai tentar me culpar por eu ser quem sou, vai tentar fazer com que minha consciência pese, mas eu sou mais leve que a brisa, eu sou puro como um anjo e minha alma e consciência estão em paz. O homem dos escorpiões vai ser perdoado pelo mundo, pois o mundo às vezes é demasiadamente tolerante. Mas eu fui empurrado contra a parede, chutado, e tive uma garrafa de cerveja quebrada em minha cabeça. Eu não tenho perdão. Não há perdão para mim, que não gostaria de ter nascido Virgínia, mas que tenho os mesmos pressentimentos estampados na carne, como milhares de Virgínias que caminham por essa cidade de névoas. Eu sei que nunca serei pai de Virgínia. Não tenho útero para gerar Virgínia, e não gerarei Virgínia no útero de mulher alguma, pois jamais poderei tocar em uma irmã. Mas o mundo precisa de minha filha Virgínia, e é por isso que eu peço a você que me lê que, se estiver de barriga, ponha o nome de sua filha de Virgínia. Eu, mesmo não sendo o pai, serei o pai de todas as Virgínias que nascerem sob o símbolo da dor maior da carne, da dor do pressentimento de que nem sempre é possível ser-se completamente quem se é. E guardaremos segredo. O verdadeiro pai de sua pequena Virgínia nem precisará saber que nossa criança – de nós três, enfim – nasceu protegida da dor que é sua sina. Eu e minha alma frágil serviremos de escudo entre ela e o mundo, pois mostrarei a distância que separa o número um do número dois, e todas as coisas que cabem entre esses dois números. Assim que cicatrizarem meus cortes, serei escudo para Virgínia. Virgínia será a mulher mais forte dessa cidade de névoas e ela, por sua vez, salvará todas as outras Virgínias – aquelas verdes, e as que não forem tão verdes assim – e nos orgulharemos muito dessa nossa filha. Virgínia nascerá de ti, que traz na alma sensibilidade suficiente para ler-me e abraçar-me solidariamente, e será a pequena filha que eu nunca terei. Será quem vai entoar os gritos de liberdade, levantando a bandeira de nossa fraternidade. Até que o mundo seja verde.

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