Cartas aos Pais

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cartas aos pais [livro eletrônico]. -- Recife, PE: Ed. dos Autores, 2021. PDF Vários autores. ISBN 978-65-00-28554-3 1. Coletâneas 2. Homens 3. Homens - Aspectos psicológicos 4. Homens - Aspectos sociológicos 5. Masculinidade (Psicologia).

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CDD-155.332 Índices para catálogo sistemático: 1. Masculinidade : Psicologia 155.332 Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380


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SOMAZERO + O edições



Dedicado à memória de Wladimir Araújo



ÍNDICE Prefácio - Vinicius Andrade

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Equilíbrio Complementar - Rafael Durand

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Riachos Choram - Álvaro Andrade

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Carta ao pai - Manish

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O filho do seu Quinquim - Joubert Arrais

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Sonho 7 - Hassan Santos

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[Fenômeno Hidrodinâmico] - Jorge Lira

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Anjo Mortal - Iggor Chiacchio

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Carta ao avô - Pedro Leal

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Anotações - Wladimir Araújo

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Aprender e apreciar - João Vale

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Além do herói - Jorge Lira

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Volte Todas as Casas

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Prefácio Vinícius Andrade

A coletânea Carta aos pais se desdobra do encontro entre um grupo de homens constituído especialmente para estudar os entraves da masculinidade na nossa sociedade através do livro Além do herói, do psicanalista norte-americano Alan B. Chinen. Embora a existência de grupos como esse seja cada vez menos incomum*, as reuniões entre homens são ainda pouco numerosas se comparadas aos variados círculos femininos – evidência de nossa dificuldade em tratar de modo frontal os mal-resolvidos emocionais que estão na base dos comportamentos nocivos que perpetuamos e dos problemas causados a partir deles. O livro Além do herói, mesmo depois das três décadas que nos separam de seu lançamento, nos pareceu um bom ponto de partida, em função de alguns motivos fundamentais. Sua estrutura baseada na análise de histórias antigas**, cujos protagonistas são homens em crise, apresenta a jornada de superação dos paradigmas masculinos tradicionais não como uma receita, mas como um processo gradual feito de tarefas combinadas. Ao mesmo tempo, se empenha em recolher os aprendizados vivenciados ao longo dessa jornada, num esforço para compôr um repertório renovado de comportamento, capaz de nos orientar no processo de reconstrução.

* Atualmente, temos importantes grupos em funcionamento em diferentes cidades do Brasil, como o Guerreiros do coração, o Peixaria ou os existentes em algumas unidades da UNIPAZ. ** Expressa no subtítulo “Histórias clássicas de homens em busca da alma”.

Assim notamos, por exemplo, que a transformação efetiva de nossos padrões depende da sabedoria para enfrentar os momentos de crise em que esses padrões revelam seus limites; aprender com as fases de elevada incerteza pessoal decorre da capacidade de assumirmos aquilo que, numa cultura patriarcal, é considerado fraqueza; tomar nas mãos as próprias vulnerabilidades reflete nossa habilidade para tansitar no terreno das emoções; habitar nossa sensibilidade depende, por sua vez, do tratamento das feridas produzidas na relação com figuras masculinas que funcionaram como referência em nossa 8


constituição como sujeitos no mundo. A coletânea Carta aos pais se volta para este último universo de questões: os relacionamentos que nós homens mantivemos e mantemos com os homens mais velhos (pais, tios, padrastos, professores, mentores), responsáveis por parte decisiva de nossa formação. Seja de forma direta, quando ocupam um lugar de autoridade em nossas vidas e mostram-se incapazes de uma educação saudável, seja de maneira indireta, quando se ausentam de nosso convívio e produzem uma espécie de vazio afetivo na nossa subjetividade – em ambos os casos, referenciais problemáticos de masculino –, esses relacionamentos provocaram sérios machucados, sobre os quais precisamos falar. O diagnóstico do psicanalista Alan B. Chinen é tristemente acertado: “O patriarcado fere os homens, forçandoos a curvar-se a autoridades masculinas, a competir com seus iguais e a desconfiar de seus filhos. Homens feridos tornam-se pais feridos, e criam mais uma geração de homens feridos”. 9


Portanto, não é espantoso que os materiais produzidos pelos participantes do grupo tenham, aqui e ali, esbarrado nesse tema. Se tal fato não nos apanha de supresa, não deixa de ser impressionante o modo imperativo pelo qual os problemas da relação com pais e outras figuras masculinas se impõem em nosso íntimo, ou a partir dele, revelando o tamanho da ferida e do desafio curativo que temos pela frente. “Falha básica” é o termo usado por Chinen para descrever essa pedra que estamos ainda carregando, nó fundamental onde jogamos a possibilidade de reinvenção, em todas as direções e relações (com outros homens, mulheres, com a natureza e os animais, em contato com modos de vida diversos e no diálogo com a diferença). Cabe dizer, então, que a produção dos materiais artísticos que compõem essa coletânea não foi uma proposta feita no decorrer do grupo. Os homens que nele se engajaram foram, como que naturalmente (por conta própria), expressandose por meio de poemas, contos e desenhos, recuperando arquivos, rabiscando reflexões. Embora composto de tarefas condicionadas entre si (horizonte necessário), o processo de reconstrução do masculino é, no fundo, algo instável e não linear. Ora, enquanto nos vemos ainda às voltas ainda com feridas básicas, ao menos insinuamos o trabalho decisivo de comunicar melhor nossos afetos – esses textos nada mais são que isso. Nossa coletânea respeita e é um retrato desse movimento, de uma só vez artístico e curativo, tecido com verbalização e silêncio, nutrido na força e na fraqueza. Se estamos apenas no início da caminhada – da travessia, já que as metáforas com as águas (símbolos das emoções) abundam nas nossas singelas artes –, alguns homens aparecem como exemplos notáveis de outra masculinidade possível, mais 10


equilibrada e comprometida com o bem-estar das pessoas ao redor. Nossa publicação encontrou as palavras e imagens para tratar dessa masculinidade – já que ainda desconhecemos os caminhos para experimentá-la –, mas podemos dedicar a tessitura dessas páginas aos homens que nos inspiraram, como se tê-los vivos em nosso coração pudesse ser a garantia de nos lançarmos na vida com a mesma coragem e dignidade com que eles se lançaram. De modo que agradecemos imensamente a João Vale que, através da plataforma Meditando Junto, acolheu o nosso grupo, e, ainda mais, cedeu um belíssimo texto para a coletânea (Aprender e apreciar). Também a João Albuquerque, psicoterapeuta que está por trás de algumas descobertas sobre o masculino que acabaram por alimentar nossas discussões. E agradecemos, especialmente, à Wladimir Araújo. Tenho certeza que haverá ainda, no futuro, ocasião para que possamos afirmar o tamanho da importância que este amigo teve para nosso grupo e para essa publicação. Enquanto as limitações emocionais masculinas, aguçadas pelo luto recente de sua perda, não me permitem expressar devidamente a força de sua influência, ofereço em sua homenagem esses textos e a jornada vacilante porém empenhada que expressam, com a certeza de que todos os colaboradores fazem aqui coro com minha voz. Wlad, presente.

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EQUILÍBRIO COMPLEMENTAR Rafael Durand

Energias femininas e masculinas. Nos fizeram ter uma visão das mesmas como algo cristalizado, petrificado. Nos fizeram acreditar que elas são assim, separadas – que elas existem distantes uma da outra. Ainda, nos fizeram crer que elas têm uma relação intrínseca com o gênero das pessoas: a mulher, feminina, o homem, masculino. O que não nos contaram foi que elas existem juntas – são complementares – e que não se reduzem à questão de sermos homens ou mulheres. Petrificaram essas energias de tal maneira que passou-se a acreditar que a heteronormatividade é a única possibilidade de expressão possível, ou, pelo menos, a mais certa – mais saudável, universal. A energia masculina diz muito mais sobre um fluxo de atividade, iniciativa ou tomada de posição, firmeza que torna possível o movimento, deslocamento na concretude – fazerse escutar, pensar em si mesmo. Enquanto isso, a energia feminina indica uma habilidade e uma proximidade com o que é do âmbito das emoções, da nutrição, do acolhimento que decorre de saber ouvir e pensar no outro. Essas duas energias estão presentes em todos os seres humanos, em níveis e qualidades diferentes. Perceba que elas são complementares e não unilaterais: uma torna-se desequilibrada sem a outra. Na sociedade na qual vivemos, o que nos apresentaram foram verdadeiras caricaturas, distorções do que realmente são tais energias. Que caricaturas são essas? O homem possuiria apenas a energia masculina – crença errônea que moldou nossa educação. Mas energia ativa, de posicionamento e auto-preservação nas situações, quando padece de acolhimento e de sensibilidade com o outro, transforma-se em uma energia egocêntrica, que pensa apenas 12


em si mesma – tornando-se agressiva, não empática, invasiva, abusiva, egoísta, violenta. Em suas criações, os homens não podiam mostrar sensibilidade, pois seriam rejeitados, excluídos, inferiorizados pelos outros. O mesmo acontece com as mulheres: foram e ainda são forçadas a adotar uma energia feminina distorcida, que coloca os outros em primeiro lugar, em detrimento de si. Pernamecem, assim, numa amarga posição de cuidadoras constantes (de seus filhos, filhas, cônjuges, pais, mães, dos filhos dos outros) e, muitas vezes, sofrem com dificuldades para impor limites, expôr vontades e desejos. O modelo de mulher valorizado foi aquele da mulher dócil, que segue os desejos do homem. Ah, e se, desde o início, fosse permitido às mulheres expressarem suas vontades e suas formas de ver o mundo? Se, desde o início, fosse permitido aos homens serem sensíveis consigo e com os outros? Esse quadro está em processo de mudança, mas ainda há muito para se caminhar. Até porque essa mudança não resolveria sozinha nossos problemas sociais. A sociedade patriarcal, machista, racista, capitalista e, no caso do Brasil, colonialista, é extremamente complexa. Mas essa constatação apenas reforça a importância do tema tratado nessa coletânea. Sem poder entrar em contato com as emoções, os homens precisam se refugiar na racionalidade, na caminhada heróica do homem trabalhador, provedor. O homem provedor vai encontrar sua realização de forma muito objetiva: no dinheiro, nas conquistas materiais, esquecendo completamente seu próprio anseio por afeto. A repressão desde o interior do homem é violenta e desemboca em várias violências externas, presentes em nossa sociedade. A única emoção permitida 13


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e valorizada é a raiva. Todas as emoções são traduzidas e sentidas como raiva, que vai ser expressa como agressividade e violência contra o feminino no geral. Como não pode viver o feminino em si, o homem ataca as supostas representantes do feminino em nossa sociedade. Misoginia, homofobia, transfobia. Quantas mortes? Quantos homens não sabem lidar com seus ciúmes, com um “não, não quero”? Quantos homens não suportam ver outros homens que conseguiram sair, mesmo que minimamente, dessa prisão patriarcal e se expressam de forma menos rígida? E, nessa busca do caminho do herói, esses provedores, esses pais, acabam esquecendo também que seus filhos, filhas, filhes, também anseiam por amor, afeto, carinho, conversa, coisas além daquilo que o dinheiro pode oferecer. Quantas feridas causadas por pais autoritários, insensíveis, violentos? Por pais que não sabiam conversar e acolher, apenas brigar? Por pais ausentes? E, assim, as feridas vão passando de geração para geração: homens feridos criam mulheres e homens feridos. A intenção do grupo Além do Herói é construir masculinidades diversas, diferentes da masculinidade única e violenta do patriarcado. A partir de um espaço no qual homens possam agir de forma sensível, mostrando suas vulnerabilidades, procurase a integração das energias masculinas e femininas, para que elas possam estar juntas e ajudarem a reconstruir nossa saúde. Uma busca por uma forma de ser homem mais empática e cuidadosa. Um olhar sensível para as feridas geradas nas relações com pais, filhos, na tentativa de criar novos caminhos que ajudem na superação desse ciclo vicioso que perpassa tantas gerações.

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Riachos Choram

(Álvaro Andrade, aos 17 anos)

Perdão. Eu não sei chorar. Se o mundo, prestes a acabar em fogo, Dependesse de uma só lágrima para se safar... No outro dia tudo seria cinzas. Dentro de mim, porém, ondas de um mar revolto arrebentam a todo instante. Este faz dos meus atos, violentos, maremotos... Das minhas palavras, devastadoras, enchentes... Dos meus pensamentos, inacabáveis, tormentas... Mas homens com mares por dentro sonham incontrolavelmente. E, se ao menos o meu se realizasse, Não duvidariam do dilúvio. No fim de Tudo restaria a Terra. Fértil, à espera de homens vindos da Lua, Mas que, desta vez, tivessem por dentro riachos.

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Carta ao pai Manish

Pai, Hoje me peguei mais uma vez imaginando, sonhando acordado, com a gente conversando sobre a vida, conversando sobre a nossa história, sobre aquilo que a gente nunca conversou. Eu imaginei a gente na varanda de um bar, tomando whisky, fumando cigarros e revelando um para o outro as coisas que só dizemos para os amigos mais verdadeiros. Hoje eu consigo sentir o seu amor, da forma que você sabe me dar, sem achar que existe uma falta, a não ser a da possibilidade de conversarmos mais e mais profundamente sobre nós mesmos e sobre a vida. Você envelheceu e sinto que você se tornou mais emotivo. Acho que você se tornou uma pessoa mais aberta, e imagino que você também sabe viver melhor o sentimento de amor por mim. Não sei o que você sente em relação ao meu amor por você – se consegue alcançá-lo, se consigo chegar até você. Nós fomos treinados na economia das demonstrações de afeto. Nas minhas lembranças, não chegam imagens de você chorando por mim, por alguém, comigo, de saudade, de medo, de arrependimento. Não sei se é memória seletiva ou se de fato chorar não tenha sido o seu forte. Não sei se chorava longe de mim. Penso agora que você pode ter chorado abraçado comigo quando seu pai morreu. Sempre te vi como a pessoa que mantinha o controle nessas horas e resolvia as questões práticas do enterro dos nossos parentes. Mas, sim, resgato da minha memória a imagem de você chorando no enterro do meu avô. Eu tenho medo, pai, de você morrer sem se dar conta do tamanho do meu amor por você. Eu tenho medo de carregar, junto com o seu cadáver, a culpa do não dito, do não 18


vivido. A maneira como você se refere a seu pai – como vi você agindo com ele – é sempre com muito respeito e muita admiração. Sinto que seu pai foi um herói pra você e para seus irmãos. A prova mais óbvia é a sua curiosidade, e a enorme coleção de livros e filmes sobre a segunda guerra mundial, da qual meu avô participou como médico da Força Expedicionária Brasileira. Agora que escrevo, me vem a sensação clara de que você também é o meu herói, mesmo sem você ter ido para uma guerra. Mas sinto isso como se esse fosse um sentimento represado ao longo da nossa história. Um sentimento que provavelmente transbordava na pureza da infância, que se tornou oposição na rebeldia da adolescência, ganhou barreiras, buracos, muros, que tenho tentado silenciosamente desconstruir, tijolo a tijolo, desde que me tornei pai também. Me lembro bem que há três anos atrás, quando eu me mudei de cidade e você fez questão de me levar até o terminal de ônibus para o aeroporto, nós nos abraçamos para nos despedir e você chorou. Uma lágrima que se desgarrou para acalmar seu corpo que tremia e seus lábios que esboçaram falar alguma coisa, que acabou ficando guardada. Você rapidamente tentou se controlar e me perguntou sobre a passagem e os documentos. Foi uma das vezes que me senti mais amado por você. Talvez o que tenha faltado foram declarações explícitas de afeto . Talvez você tenha sentido que ali íamos nos distanciar ainda mais. Talvez você sinta medo de morrer depois do câncer e tenha pensado que aquela despedida podia ser pra sempre. Talvez agora você sinta, como pai, uma dor bem maior do que a minha como filho pelas distâncias e silêncios construídos ao 19


longo de uma vida. Talvez você se sinta incompreendido. Me dói muito pensar que meus filhos possam achar que eu não ame ou não me importe com eles. Acho que ser pai aumenta a saudade e que envelhecer aumenta a saudade também. Hoje eu entendo a forma que você me ama, pai, porque eu olho para as minhas próprias dificuldades em ser pai, em ser gente, em ser homem. E por entender melhor que nós homens não fomos ensinados a cuidar, não fomos ensinados a expressar nossas emoções. Entendo hoje que muitos dos sentimentos de carência e de desamparo afetivo que experimentei na infância e não consegui elaborar na juventude não eram por falta de amor. Eram por falta de traquejo. Era pela sua limitação de lidar com esses sentimentos e ações. Percebo que é preciso perdoar a sua distância, os seus silêncios, a sua dificuldade de abraçar, de dizer eu te amo. Se antes eu era uma criança, como todas – sedenta de carinho e atenção –, hoje sei que existem distâncias e silêncios que partem de mim. Pra mim também é muito difícil quebrar barreiras e abrir as portas. A sua distância me ensinou a distanciar também. Mas agora eu consigo reconhecer com clareza a sua rede de proteção, que sempre me abraçou e me abraça até hoje. E, diante desse sentimento, me pergunto se essas inquietações, que carreguei em muitos momentos da vida, são injustas com você. Posso olhar como um adulto e reconhecer que as suas dificuldades são o reflexo também de uma cultura, das dificuldades dos homens em se relacionarem com os filhos. Percebo, entretanto, que muitas das dores que carrego ainda são feridas que eu trago da infância. Apesar de conseguir ter uma relação mais lúcida a respeito dessas imbricadas questões de hereditariedade e amor, eu tenho ainda muita vontade de um dia poder te dizer as coisas 20



que eu senti e sinto na nossa relação – e de te ouvir, saber como foram e são as suas emoções e os seus sentimentos em relação a mim, em relação a ser pai. Desde a adolescência, consciente ou inconscientemente, fiz escolhas que pareciam ser o oposto das suas, mas vejo cada vez mais que a minha maneira de agir em questões fundamentais da minha vida emocional foram assustadoramente parecidas com o seu jeito de ser, de falar e de sentir. Desconfio que muitas das minhas dores e dificuldades foram as suas dores e dificuldades antes de mim. Você foi o meu espelho. Quando observo a minha relação com os meus filhos, por várias vezes me reconheço em você. Tenho olhado muito para esses espelhos e eles te refletem. Eu queria saber sobre tantas coisas e te contar tantas outras. Eu também sou seu espelho. Eu quero entender o seu passado, o meu passado com você, para poder integrar as minhas próprias dores de criança. Eu quero enterrar meus fantasmas. Eu quero proteger meus filhos das sombras da cadeia hereditária da nossa família. Eu não quero reproduzir o que não foi bom. Nessa minha estrada cheia de buracos, eu quero construir pontes mais sólidas com os meus filhos e sinto que, para ter êxito, preciso construir túneis até você. Ir mais fundo. Te confesso que essa percepção mais atenta aconteceu primeiro pelos nossos aspectos negativos. Às vezes, quando sou rude, ou impaciente, ou distante dos meus filhos, me vêm imagens, sons e sensações de você sendo assim comigo. Muitas vezes eu reproduzo com eles as mesmas palavras, o mesmo tom, que me machucavam na infância sem que você se desse conta, provavelmente pelos mesmos gatilhos que faziam seu humor se desestabilizar.

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Reconheço situações corriqueiras em que não tenho os comandos atendidos ou simplesmente em que não sei como lidar e que afloram a minha reatividade e incompetência para ter um diálogo sereno, amoroso e pedagógico que um adulto deve ter com uma criança. Reconheço os momentos em que a pressão do mundo me atinge e acabo descontando nos elos mais frágeis de minha cadeia de afetos: meus filhos. Percebo a dificuldade de assumir pequenas e grandes responsabilidades da paternidade, quando essa função parece me desviar do caminho heróico das conquistas, do sucesso, do trabalho, para ter que cuidar do outro. Sinto uma culpa enorme de reproduzir com quem eu mais amo o que me machucou. Essas memórias me fazem reviver no corpo agora envelhecido essas dores antigas, mas sinto que isso é iluminar, aos poucos, essas sombras soterradas dentro de mim. Tenho cavado no presente alguns buracos para olhar pro passado. Quando me identifico – passando como pai por caminhos que passei como filho – tenho sentado para descansar e observar essa repetição, aprender nesse caminho em espiral, ganhar consciência para encontrar as pontas dessa mesma linha que nós somos. Ao longo do tempo, remexendo essas memórias, resgatei também muitas lembranças amorosas que estavam esquecidas. Um dia desses, ao beijar minha filha dormindo, me lembrei que, quando você estava em casa, era o último a dormir, e sempre ia ao meu quarto para apagar a TV, me cobrir e me dar um beijo de boa noite na cabeça. Muitas vezes eu nem estava dormindo, mas fingia que estava, para participar daquele ritual de carinho. Hoje eu conto histórias e canto pros meus filhos todas as noites que eu estou com eles, até que eles durmam. É um momento de 23


carinho, abraço, beijo, um ritual para dar segurança a eles nesse momento frágil em que nos entregamos ao mistério do sono. Uma segurança que você me dava quando ia ao meu quarto antes de dormir. Lembro que quando você me levava para treinar ou jogar futebol era uma alegria. A gente conversava sobre o jogo, analisava a minha atuação, e você – apesar de sempre reiterar a necessidade do treino, da atenção ou reclamar de uma jogada mal feita – reconhecia as minhas virtudes. Você sempre esteve imbuído de que era possível evoluir, mas você me valorizava nesse lugar. Lembro de meu padrinho tirar onda com você que era impossível que eu fosse mesmo seu filho, pois você era “perna de pau” e eu era “bom de bola”. Me sentia forte em ser melhor que você em alguma coisa, em ser um bom competidor. Em causar admiração. Quantas tardes de domingo e noites de quarta fomos juntos ao Mineirão assistir aos jogos do Galo. A gente sempre ia com um ou dois amigos seus, ou com meu tio e meu primo. Eu gostava de ir com vocês pois me sentia adulto, me sentia parte do seu mundo. Me divertia, me sentia um torcedor legítimo, que podia contar depois as suas aventuras pros colegas de escola. É um vínculo que criamos e que ainda hoje alimenta nossas conversas e que tenho muita alegria que tenha sido construído por você. Era uma ligação de proximidade, mas que também me trazia sentimentos ambíguos. Me lembro que achava estranho, por exemplo, que nunca íamos só nós dois aos jogos. Apesar de sermos filho e pai, você parecia não achar graça em ter apenas a minha companhia. Talvez fosse simplesmente a diferença de idade, a sensação que não há muito espaço de diálogo entre um adulto e uma criança. Talvez fosse pelo fato de que a maioria 24


dos pais não conversam muito com seus filhos. Lembro de grandes silêncios dentro do carro, que tornavam interminável o nosso caminho de casa até o clube nos fins de semana. Hoje posso dimensionar melhor que pensamentos, sentimentos, preocupações podiam estar povoando sua atenção durante esses percursos. Você dirigia e fumava, e eu, do banco de trás, tentava puxar conversa – ou simplesmente via a cidade passando pela janela, contando comigo mesmo quantos fuscas eu via no caminho. Eram sentimentos sutis, que não conseguia elaborar. Mas essas sensações eram claras, tanto que até hoje estão vivas em mim. Lembro a sensação que eu tinha quando o Galo marcava um gol e as pessoas se abraçavam na arquibancada. Eu era uma criança tímida e me sentia muito feliz com gol, com toda aquela explosão coletiva, mas também sentia algum desconforto com esse ritual. E acho que o meu sentimento vinha do fato que eu sentia você constrangido com esses abraços, porque você era tímido antes de mim. O nosso abraço também era estranho pra mim. Era estranho que a gente se abraçasse naquele rito coletivo subversivo, sendo que no nosso convívio cotidiano, o abraçar não condizia com a etiqueta e a formalidade da minha educação. Seu abraço era mais duro que o da minha mãe, nossos olhos não se encontravam, eu sentia algum constrangimento, mas também prazer, afinal, aquele era um lugar onde a gente se abraçava, nesse encontro desencontrado no meio da multidão. Essa recordação me faz lembrar agora de um outro momento, também ambíguo. Há pouco mais de dez anos, lembro de você orgulhoso de mim quando um filme que fiz ganhou um prêmio importante. Você circulava com um jornal nas mãos, com a foto do filho estampada na primeira página, e mostrava-o vaidoso aos amigos. Certa hora, você disse rindo 25


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que estava esperançoso de que eu ganhasse dinheiro e ficasse famoso, pois, na primeira chance que tive, quando o Atlético me chamou pra treinar, você não tinha deixado – e tinha se arrependido. Eu ri também, e tentei fingir alguma humildade diante de suas demonstrações de corujice, mas estava radiante por você sentir orgulho de mim. Eis que, ao questionamento de um amigo do porquê você não ter deixado, você disse que estava brincando. – que, na verdade, eu não quis ir, que eu não gostava de treinar, ia ter que pegar dois ônibus... Eu acho que mantive o sorriso no rosto, mas minha surpresa com a sua versão dos fatos foi grande e eu logo me desviei dali decepcionado. Naquele momento, atordoado com o golpe, me veio a memória da gente no clube, você conversando com outras pessoas – sem se dar conta da minha presença –, dizendo que eu não ia aguentar aquela empreitada, que eu não ia me adaptar aos garotos de outra condição social, que era muita gente querendo conquistar aquele espaço. Eu acho que eu tinha medo mesmo, pai, mas, na verdade, o que eu fiz foi acreditar em você que eu não ia conseguir. Acho que suas cobranças, sua competitividade, sua irritação com minhas falhas me faziam, às vezes, me sentir incapaz, frágil, e aos poucos eu comecei a desconfiar de mim mesmo. É uma percepção sutil, uma linha tênue que separa o que é dar limites e direção aos filhos e o que é desencorajador, opressor. Entendo hoje, passando por essas experiências com meus filhos, que essa percepção exige muita atenção, proximidade e escuta. E você estava sempre cheio de coisas importantes pra cuidar enquanto eu sentia que não era tão bom quanto devia, que não era merecedor do seu amor. Eu já não sou mais criança. Sei que quem eu sou hoje é fruto das sementes que eu mesmo plantei. Vivi outras histórias, com outros personagens. Tive oportunidade de criar outros enredos. 28


Em parte, o fiz. Em outra parte, acumulei mais histórias mal resolvidas criadas por mim mesmo. Essas lembranças colocadas no papel são uma forma de trazer à luz, de colocar pra fora sentimentos antigos, muito mais do que te fazer alguma cobrança. Te relato esses sentimentos de criança em busca de diálogo, em busca de enterrar cadáveres para poder seguir mais leve. Compartilho com você porque percebo o quanto é delicada e difícil a atuação dos pais com os filhos – equilibrando-se entre o incentivo ao risco e a proteção, a crítica construtiva e a que paralisa, a autonomia e o descuido, a assertividade e a violência. À medida que escrevo, sinto medo de te machucar com essas palavras, de ser injusto com você. Estou certo que olhar para essas feridas é importante para mim. Mas não tenho certeza o quanto isso é necessário ou é violento pra você. Tenho medo de você se sentir desapontado comigo ou com você mesmo. Sei que meu ponto de vista pode ser uma forma de projetar em você problemas que são meus, e que, mais uma vez, estaria colocando na sua conta. Sei que são palavras arriscadas. O que me faz seguir adiante é a sensação de que falar sobre isso me cura. E de que também talvez possa curar você de alguma coisa. O desejo de falar contigo das minhas memórias, da minha formação, da minha infância em família já habita há muito tempo o meu coração. Mas também é muito difícil pra mim te propor esse tipo de conversa. Então essa carta funciona como confissão e como convite. Não sei se vou ter coragem de te mandar, se ela irá te aproximar de mim ou te assustar. Mas acho que olhar juntos pro passado de uma forma profunda ainda pode repercutir positivamente em nossas vidas. Sempre te achei uma pessoa muito fechada e a lembrança que 29


tenho do meu avô é a de um homem formal, sério, que não gostava de ser incomodado. Eu gostaria de ouvir as histórias do meu avô, mas não só aquelas que o colocam na condição de herói: o médico que serviu na segunda guerra, o parasitologista dos mais importantes do seu tempo, o professor catedrático, o comunista que foi impedido de ensinar no período da ditadura. Eu quero saber é sobre como ele era com você, dos seus medos com o seu pai, das suas tristezas, da sua saudade. Eu acho muito improvável que seus pais tenham brincado com você. Penso isso porque você não brincava comigo, não brinca com os seus netos e porque eu também não gostava muito de brincar com os meus filhos. O que adultos que carregam uma criança ferida dentro de si tema oferecer ao mundo é uma criança ferida, Lembro que você sempre trazia para mim de presente de suas viagens aviões, barcos e tanques de montar, com encaixes, cola e peças muito pequenas. Mas era você que montava meticulosamente na mesa do seu escritório aquelas reproduções perfeitas das máquinas que você gostava. A mim restava colecioná-los e, no máximo, colar os adesivos – o que fazia sob a tensão de ser repreendido por deixar torto algum deles. Foi assim também com as pipas, os planadores e até um aeromodelo. Você gostava de brinquedos de voar. Talvez nesses momentos você estivesse vivendo aspectos da infância que não pôde viver, mas ali parecia que o que importava era o resultado e não o processo da brincadeira. Eu quero saber das histórias da sua relação com a minha mãe, que vocês nunca me contaram. Das suas culpas, das suas inseguranças, das suas dificuldades e frustrações. Quero saber se você amava a minha mãe e porquê parou de amar. Eu quero saber se você teve amantes, se você se sentia bem em passar a semana trabalhando em outra cidade e ter o seu espaço de individualidade preservado, ou se você se sentia solitário e com saudades dela. 30


Eu quero saber se você era um homem, como eu vim a ser, que me sentia poderoso e adequado por conquistar e transar com diferentes mulheres, e que, desta forma, encontrava escape para os problemas que tinha dificuldade de enfrentar no casamento ou comigo mesmo. Ou se era um homem que respeitou pactos de fidelidade e sinceridade com a minha mãe, assim como foi fiel com a empresa que trabalhou a vida toda. Eu quero saber aquilo que se esconde das crianças, pensando em preservá-las. Eu quero saber sobre as muitas histórias não ditas que pairavam na nossa casa e que eu tentava ouvir por detrás da porta. Eu quero que a criança ferida que existe dentro de mim seja cuidada, pai. Eu preciso saber melhor sobre essas feridas para poder cuidar delas. Eu também vejo nas minhas relações com as mulheres muitas coisas que parecem se relacionar com a história de vocês. Eu ando tentando entender a nossa história, para poder reconstruir a minha história, pai. A lembrança mais forte que carrego da relação de vocês é a minha mãe dormindo por muito tempo no sofá da sala, tomando antidepressivos, durante a minha adolescência. A sensação que carreguei, a partir dali, foi a de desconfiar da instituição do casamento tradicional. E de que você era o culpado do sofrimento da minha mãe. Eu queria te contar sobre como foram os meus casamentos. Apesar de conscientemente desconfiar dessa instituição, meu inconsciente era povoado por um romantismo inocente (ou não tão inocente assim), a partir do qual procurei a princesa da minha vida, a mulher de quem eu ia cuidar e proteger, e que ia me amar pra sempre. Um sonho diferente do que via na vida de vocês, mas que provavelmente povoava também as suas expectativas. Eu também não consegui fazer minhas 31



companheiras felizes, ao menos da forma como eu e elas idealizamos. Eu queria entender o quanto fui influenciado pelas dores e as críticas da minha mãe nos meus sentimentos de infância por você, se eles foram distorcidos pelo discurso e pelos sentimentos dela. Eu queria saber quais eram os seus sentimentos, o seu ponto de vista – que eu nunca soube, sobre os assuntos afetivos. Ao longo da minha trajetória fui reconstruindo alguns caminhos. Mas fui muito cobrado por minhas companheiras de que o meu cuidado e parceria eram insuficientes. Eu me senti muito mal de fazê-las sofrerem a partir de ações ou não ações minhas. Mas eu também percebo hoje que, para além do descuido, eu fui alguém que sempre carregou uma culpa gigante. E que, junto de minhas falhas, egoísmos, incapacidades, imaturidades e machismos, também experimentei as sombras e dificuldades de minhas companheiras sendo projetadas em mim. Eu li num livro que a gente, sem se dar conta, fica tentando repetir na vida adulta os eventos traumáticos da infância e escolhe, inconscientemente, estar em situações e com pessoas que repitam o cenário do trauma – para tentar resolvê-lo, tentar fazer diferente. Mas, exatamente por não perceber, a gente se coloca em situações semelhantes, mas repete os mesmos erros que geraram o trauma anterior. Eu, que tive cinco filhos com três companheiras, olho agora para as minhas histórias e vivências de paternidade e de casamento com extrema atenção. Porque eu também aprendi que as repetições que acontecem nas nossas vidas são um caminho poderoso para a gente reaprender, e sinto isso acontecendo na minha vida.

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É incrível, pai, como eu tive dificuldade em expressar com sinceridade tudo que sentia. Não consegui em muitas vezes estabelecer um diálogo com profundidade, com confiança, com entrega. Acho que aprendi em casa o não dito, o subentendido, o ambíguo, a importância de se manter uma imagem, o apaziguamento – coisas que parecem nos proteger, mas, na verdade, nos aprisionam. Que parecem ser cuidado, mas, na verdade, são falta de abertura e de coragem. Não entendi, por muitas vezes, a sensibilidade e a diferença de perspectiva das minhas parceiras. É incrível, pai, como eu auto-sabotei o meu amor e minhas relações e me coloquei em um lugar de algoz, caindo nas armadilhas dos privilégios masculinos para depois permanecer num lugar de fragilidade, num lugar de quem é devedor. Aprendi a ser correto, educado e respeitoso como você, assim como aprendi – silenciosamente com você e os outros homens – que demonstrar a minha virilidade e minhas conquistas sexuais aumentavam o meu poder e o meu valor para sociedade, e entre os homens. Desconfio que essa também foi uma forma de demonstrar o meu valor para você. Pra mim mesmo. Vivi tanto o desejo de viver uma liberdade amorosa idealizada quanto o sonho de um casamento idealizado. Desejei não cometer com minhas companheiras a mesma desvalorização e repressão que eu via acontecer com a minha mãe, mas acabei também reproduzindo os mesmos equívocos. Entre o que herdei de você sem me dar conta e o que tentei viver no oposto por ter consciência, entre o chamado à trajetória heróica e competitiva do patriarcado e a sensibilidade e o respeito pelo outro, entre a vontade de ser amado e o pouco valor que dei, por vezes, ao amor que direcionaram a mim, entre os sentimentos mais autênticos que pulsaram no meu coração e o desejo de agradar a todos, restou um homem 34


dividido, enfraquecido, estraçalhado. Eu tenho a sensação que uma boa parte dessas vivências pelas quais eu passei você pode ter passado também. Nossas histórias são semelhantes ou opostas? Acho que, além das donzelas puras e indefesas, nós quisemos encontrar também mães para nós mesmos nessas mulheres. Alguém para cuidar da gente porque não sabemos cuidar de nós mesmos. Tenho a intuição, pois nunca falamos disso com profundidade, que o seu pai era mais distante e mais desajeitado afetivamente do que você. Mas provavelmente ele fazia muito bem o que se esperava de um homem naqueles tempos. Seu pai, seu espelho. Acho também que a minha avó era uma mulher distante dos filhos e mais interessada nas normas de etiqueta e disciplina do que nas demonstrações de afeto. Uma das coisas que lembro do meu avô era ele constantemente falando mal dela – que ela era insuportável. Lembro que você e meus tios sempre zombavam dela também, mesmo velha. Você cresceu em uma geração ainda mais desinformada que a minha sobre essas questões de desigualdade de gênero. Provavelmente era mais fácil não pensar nessas coisas. Mas penso que esse cenário devia aumentar o seu silêncio, a sua carência e sua solidão. Estou fazendo terapia há dois anos, pai. Nesse período, percebi o quão forte é o vínculo do filho com os pais e como a vida e os sentimentos do pai e da mãe reverberam na forma de viver e sentir o mundo dos filhos. Não me surpreende que você nunca tenha feito. Sempre ouvi de você que terapia é coisa de gente doida. No meu processo, fui entendendo aos poucos que usei muito a razão para confundir a mim mesmo sobre meus sentimentos: para não ter raiva, para não ter dor, para me fazer à imagem daquilo que esperavam de mim ou daquilo que eu julgava ser o mais bonito. Na terapia, descobri a possibilidade 35


de mergulhar mais profundamente nas raízes dos meus sentimentos. Quando comecei a me aprofundar na minha própria história, num primeiro momento, eu senti raiva de você – como se você fosse o responsável pela minha dor, pelas minhas carências e pelas minhas atitudes equivocadas nas minhas relações afetivas. Mas é muito provável que a sua verdade sobre essa história seja muito mais complexa do que isso. Se nessa carta escrevo críticas a seu lugar de pai e marido, não é porque eu isente minha mãe das sombras e fragilidades emocionais dela. É tão somente porque a conversa aqui é sobre nós. Se te aponto algumas vezes como possível responsável por problemas meus de comportamento, não quero levantar culpa, mas reflexão. E estou certo de que cabe a mim ser responsável por minhas escolhas e a mais ninguém. Não quero te transferir essa responsabilidade. Eu tenho a mim para zelar e me percebo zelando mal. E estou aprendendo que também tenho a você para zelar. Mas, mais ainda do que nós, eu tenho seus netos para cuidar. Eu preciso aprender e ensinar pra eles o que a gente não sabia. Eu quero escrever com responsabilidade aquilo que é permitido a nós na Terra escrevermos de nosso próprio destino. Como você sabe, eu tenho uma artrose na articulação da coxa com o fêmur na perna direita, que é o lado do masculino, na leitura corporal. A articulação do tronco com a perna tem a ver com a nossa capacidade de sustentar o peso do mundo nas costas. A ortopedia diz que minha cabeça do fêmur é maior que o acetábulo por uma questão congênita. O osteopata me disse que a fáscia do meu estômago - película que envolve os orgãos - estava torcida, gerando um desequilíbrio por todo corpo, possivelmente por dificuldades de digerir emoções em 36


algum momento e gerou sobrecarga nessa região. Minha leitura de mapa astral disse que eu sou um homem ferido no lado do masculino. Eu vejo a imagem de uma flecha atravessada na minha virilha direita. Eu vejo a imagem em que estou arrancando da minha carne essa flecha com as mãos. Eu tento estancar o sangue e fazer essa ferida voltar a tornar carne, a tornar pele. Eu tento fazer fisioterapia para parar de mancar. Além de perceber que preciso buscar os sentidos dentro de mim, e não fora, percebo que tive dificuldades emocionais e pragmáticas de sustentar o peso dos acontecimentos. Tive dificuldade ao longo da vida em cumprir o papel do provedor, e de estruturar minha própria autonomia. Se teve uma coisa que você se saiu brilhantemente, como homem, foi o de sustentar esse peso, de prover uma família. Você teve esse cuidado e cumpre bem demais a sua missão. E eu te agradeço muito, pai, por tudo que você me possibilitou, por sempre que você me socorreu, pelo seu apoio incondicional em ajudar a viabilizar os meus sonhos, mesmo aqueles que não eram os seus sonhos para mim. Eu te agradeço, pai, por ter me proporcionado oportunidades que só existiram a partir do seu trabalho. Esse papel do seu trabalho, que tanto coloquei no lugar das críticas, foi fundamental para a realização dos meus desejos. E isso já seria o bastante, pai, para minha gratidão e amor eternos. Eu sei que você fez o melhor que você pôde como pai, que me amou e me ama genuína e generosamente. Eu sei que você estava longe da gente, também pensando que era o responsável por uma família, que era responsável por mim, que estava cumprindo o seu papel de marido e de pai. Você tentou me ensinar e me direcionar para o trabalho, acima de tudo, para conquistar independência e estabilidade 37


financeira. Mas, com o seu suporte sempre presente, eu fiz o contrário, e pude não pensar em ter o dinheiro como prioridade absoluta, para ir atrás de outros sonhos que me pareciam mais nobres.. Desde jovem eu tinha vislumbres, e também me foi falado, sobre o pai que não sabe dar afeto, a não ser na forma do provedor. Me reconheço no lugar do privilegiado que sempre tive a salvaguarda generosa dos pais, que se aproveitou dessas circunstâncias para poder fazer menos esforço, e poder se comprometer menos com o que não interessava. É possível que nesse transe eu quisesse apenas receber o seu amor, pelo lugar que ele estava disponível, sem perceber que continuava estacionado no lugar de uma criança. Hoje vejo que meus privilégios e vaidades me levaram a muitas frustrações e tornaram alguns aprendizados mais lentos e tortuosos. E tenho que ressignificar, tardiamente, alguns valores, para poder me sustentar e oferecer também oportunidades para os meus filhos. Acho que a sua distância e a sua dedicação ao trabalho geraram em mim a sensação de que o trabalho e o dinheiro não eram as coisas mais importantes da vida, e sim aquilo que nos desvia disso. E entendo que tratei responsabilidade e prazer como se fossem pólos opostos. O engenheiro e o artista. Que duplo formamos, meu pai. Eu quero saber o que aconteceu entre nós, pai, eu quero te ouvir e aprender com você, porque eu posso ter entendido tudo errado. O que carrego comigo não são verdades, pai. Tudo isso que falo de você, e falo para você, diz muito mais de quem eu sou, do meu olhar, dos meus sentimentos, do que de você. Mas sinto que há tanta coisa pra gente se falar, pra gente chorar juntos, pra gente se perdoar um ao outro, se pudermos nos despir e olhar para o fundo de nós mesmos. Sei que o meu perdão é, antes de tudo, conseguir perdoar a mim mesmo. Hoje eu percebo que a vontade de me contrapor a você afetou um 38


bocado das minhas escolhas de vida, e demorou muito tempo para eu entender que nós não precisamos mais disso. Tem uma coisa que me angustia muito: eu vou tomando consciência sobre os motivos de nossas distâncias, de nossos silêncios, mas, de alguma forma, eu ainda me sinto incapaz de me aproximar mais. Eu tenho dificuldade de dizer que eu te amo. EU TE AMO, PAI! E agradeço por você ser o meu pai. Acredito, apesar de não poder te provar, que eu te escolhi, pai. Felizmente eu estou aprendendo a parar de querer fazer o papel do herói, de achar que as narrativas e reconhecimento das nossas glórias são importantes. E, quando comecei a me desiludir com essas histórias de contos de fadas, pude abrir espaço pra olhar para mim mesmo com mais atenção e para a minha alma esburacada. Você é um homem forte, mas ficar vestido eternamente com a fantasia da fortaleza também sufoca, também deixa doente. Eu sempre me considerei uma pessoa feliz e de bem com a vida. Em determinado momento, as coisas começaram a ficar muito difíceis. Por muitos anos, mantive a fantasia da fortaleza que eu também visto, que é a fantasia da alegria, de que tudo está bem, apesar de tudo. Mas a tristeza começou a tomar conta de mim de uma tal forma que eu não tive como fingir que não estava vendo – e só assumindo essa tristeza eu estou conseguindo entender os motivos dela pra me curar. Tenho percebido que o tempo passa e que os meus valores mudam. Tenho entendido que as minhas frustrações e 39


desilusões são oportunidades de me reposicionar diante do mundo. Tenho tentado olhar para o passado com a generosidade de quem entende melhor os contextos e reconhece que os desejos mudam ao longo da vida. Hoje sonho com coisas mais simples, mas nem por isso mais fáceis de se conquistar. Quero simplesmente dormirem paz comigo mesmo, ser cuidadoso com os outros, reconhecer meus erros, desarmar as culpas, ser responsável com os meus filhos e os meus afetos. Mas quero, mais que tudo, estar seguro que minhas ações no mundo sejam uma resposta aos meus sentimentos, à minha alma, e não ao que esperam de mim. Que os meus sentimentos sejam colocados com discernimento pra fora, que eu não fuja dos conflitos e seja amoroso com eles. Que eu não silencie por medo, comodismo ou hábito. Quero chorar e sorrir. Quero acalmar a angústia e ser grato. Não se preocupe comigo, estou melhor do que antes. Sinto uma alegria e um amor profundos em poder olhar para tudo isso e me sentir mais um homem de verdade. Uma pessoa de verdade. Poderia te dizer infinitamente sobre o que eu sinto – sinto que essa carta não tem fim. Sei que continuarei a escrevê-la, e que, à medida que o tempo passar, ela será cada vez mais bonita, cada vez mais amorosa. Essa carta é minha vida e também só um gesto pra te dizer que quero contar mais pra você e quero te ouvir. Um gesto de amor e abertura. Do seu filho.

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O filho do seu Quinquim Joubert Arrais

Ele tinha 65 anos. E reviveu aos 60. Mas morreu aos 25. O filho do seu Joaquim, o Quinquim. Morreu sim. De tristeza, poderia dizer. Daquelas que abatem qualquer mente jovem. Porém, diferente das de hoje, um pouco igual, confesso, mas um pouco bem diferente, idem. Sua fantasia não dependia da programação da televisão. Não tanto, já que se percebeu jovem, exatamente no ano de 58, quando nem tevê havia. Não no Brasil. Queria ser músico. Decerto, nasceu boêmio. Tocador de violão e cavaquinho. Ouvia muito rádio. Aprendeu de ouvido. Tirava som desses acordes. Improvisava. Tentou ensinar ao filho do meio que ainda viria a nascer, bem lá depois, mas foi em vão. Cultivava um bigode, costeletas e desejos. Cabelos ondulados, voz grave. Noivou cedo, mas casou só bem na frente, com outra. Via-se no espelho sempre que podia. Homem pra dedéu, dizia. Era o mais velho dos irmãos. Oráculo. Logo novo, já aprendera a ganhar dinheiro. Fez pequena fortuna. Mas casamento, nem pensar. Por enquanto não. Era do tipo ainda-não-chegou-a-hora, mesmo já noivo, como falei. Ajudava a todos, homem de bom coração. Só não se ajudou muito. Andarilho de si mesmo. Pelo mundo a fora. Talvez, por isso era mascate, do tipo moderno, não pós. Manaus, Teresina, Fortaleza, Aracajú, Feira de Santana, Salvador, São Paulo. Tipo Seu Quequé, pouco provável. Só suspeitas. Acreditava que iria enriquecer pelo comércio, lidando com gente. Gostava. E muito, de lidar com gente. E lidou sim. Pra ganhar ou não dinheiro. Mas não juntou tanto, só o suficiente pra uma juventude com ares lúdicos de prosperidade. Nunca matou ninguém, a não ser de raiva. Era teimoso demais. Porém, sabia de quem já havia matado gente. Um caso somente. Foi algo não premeditado, mas que lhe tirou algumas noites de sono. Acreditava num mundo melhor. Pretendia ter filhos. Eles vieram, bem depois: três. Um deles, sua cópia refletida, o caçula-temporão e quem o levaria na 42


frente, de mãos dadas. O outro era o do cavaquinho, o do meio e o que não quis aprender a tocar violão. Gostava mesmo era de ouvir. E de dançar, às escondidas, claro. Dança não é coisa de menino, iludia-se. Dois mais uma, eis a princesinha. Era como ele a chamava. A primeira a nascer, prematura, por isso, de capricórnio. Se tivesse nascido no tempo certo, seria ou de aquário ou de peixes, como os meninos, os dois de quarta-feira de carnaval. Mas ela é que lhe daria dois netos, lá bem depois, um casal com diferença de três anos. Conhecera o meninozinho, neto primogênito da primogênita. A outra, a neta-menininha, só a vontade, nem a lembrança. Recém-esposo, vendia de porta em porta, mas depois arranjou um ajudante. Que, de bicicleta, fazia as cobranças. E ele, o filho do Joaquim, seu Quinquim, só pra lembrar, ficava em casa calculando os prejuízos. Dinheiro dá essa sensação de poder, o dos cálculos. Não à toa, a trupe de menina e meninos – a princesinha, o que não aprendeu a tocar cavaquinho e o que era a cópia dele – adorava brincar de banco no quarto do quintal. Homem pra algumas sortes, também jogava e trabalhava no jogo do bicho pra manter essa sede de lidar-com- gente. Ganhou pouco dinheiro, mas o que ganhou mesmo foi uma loteria pra administrar. Uniu o útil ($) ao agradável (!). Era no nome da esposa, professora das boas, dessas pra vida toda. Mas quem mandava mesmo era ele. Pelo menos ela o fazia acreditar

nisso. Mandava, tinha boas intenções. Mas fez muita estripulia. O filho do meio, o mais sonhador, foi quem mais sofreu. E quem mais aprendeu. Era o oposto dele, um suplício pra um homem que se via no espelho sempre que podia. Sempre que possível. Oito meses antes, ensaiaram um estar juntos. Ao mesmo tempo, tentaram. Quase em vão. Foi quando viria a admirar esse filho do meio. Nunca falou nada. Apenas pra matriarca. Confissão no leito de morte. Monossilábico e assertivo, disse. De exato, nas 43


costumeiras palavras, levou as consigo. Mais um segredo que, em voz baixa, silenciou. Tanto que gostava de ir à igreja pra agradecer. Por tudo e por nada. Habituou- se. Sempre no domingo, às sete da noite. Todos arrumados, ele principalmente. Antes, quase ao meio-dia, levava a família pra comer churrasco de carne e queijo coalho na brasa. Sentia-se feliz, o provedor. Ouvia música religiosa, dessas que apazigua o coração mas inquieta a mente. Ou seria o contrário? Desconfio. Não era carinhoso. Melhor, era sim, só ao jeito dele. Sensibilidade camuflada. Tapinha nas costas, passava a mão nos cabelos dos filhotes, assanhava-os com a mão forte e pesada. Dava um beijo no rosto da princesinha. Pra matriarca, o beijo era na testa. Ele a respeitava, mas gritava alto. O homem da casa. Um cão que só ladrava. Lição de moral mesmo era assunto de mãe. Mas batia sim, menos na menina. Corretivo era pros meninos, assunto dele. No que era seu oposto, surra das boas, a imagem não refletida de um espelho trincado. No caçula, o parecido com ele, mão leve e bajulação madalena-arrependida pelo que fazia com o do meio. Nasciso gosta de espelho. Queria filhos varões, mas mudou de ideia quando perdeu os dois. Um na vida de cá. Outro na morte de lá. Pra isso, já se preparara. Gostava de guardar recortes de jornal. Coisas boas e ruins da vida, naturalizadas nesse hábito secreto. Ilusão de capturar a realidade que sempre escapava das mãos. Não a entendia, mas, pra isso, punha-a na ordem que queria. Diagramava a realidade. Fazia efeito. Ficava bem humorado. Pois quando se casou, já passava dos quarenta. O filho do seu Joaquim-Quinquim.

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Sonho 7

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Poema de jejum

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Sempre

Hassan Santos

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Estava em minha casa do bairro de Campo Grande, me preparava pra dormir cedo no quarto do meu irmão. O quarto dele era aconchegante com camas e equipamentos. Durante a noite soube que um casal de amigos tinham aparecido lá e feito uma grande sujeira no banheiro. Da janelinha do banheiro via alguma pessoa suspeita no telhado da garagem. De manhã alguém me chama, era meu amigo Rafael, apelidado de “Mago”. Meu irmão abre a janela do quarto para que nos vejamos, desço, ele me beija na bochecha e eu dou tapinhas nas costas de Rafeael. Ele vai embora. Agora estou na praia, é um penhasco artificial para conter o avanço das águas. Estou dentro do mar, aguardando as ondas. A maré sobe muito, rompe a contenção, submergi, mergulhei enquanto isso. Lá fora junto-me ao meu irmão e minha mãe que estão dentro de um carro observando o horizonte. Meu irmão está no volante, minha mãe atrás. Eu me acomodo no carro então aparece uma mulher, falamos um pouco com ela e ela se junta a nós, é uma boa pessoa.

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Por casa anda um homem Conhecimento acumulado Poemas não feitos Gostos materiais Materialidade do som; O que pensa ele De importância comum? O que sonha ele Que merece ser escrito? A quem mais rufa Seu descompasso no violão? Um cão que late Na rua vazia Em quantos bilhões Não triscará Suas solitárias poesias

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Quase certeza É uma das piores melhores Dúvidas

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[fenômeno hidrodinâmico] Jorge Lira

levanto no escuro meto-me no calção nunca durmo na véspera da praia com passos de pés pequenos calcular distâncias entre o pé de aroeira e o lugar de cavar na areia o buraco de enterrar tesouros para não achar depois um, dois, três você chuta a bola mar adentro eu tenho medo que o mar vire a boca de uma baleia o estômago a minha casa nunca mais ver o mar de fora me dá frio na espinha mas eu nado até não sentir meus pés medo nada só a vontade de te trazer a bola e me sentir um pouco gente que cumpre o que esperam o gosto salgado da memória abre meus lábios de receber rio tanta correnteza tece sonhos de reconciliação eu e você novos nomes a dividir o riso sobre as águas distância nenhuma peixes do mesmo cardume

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Anjo Mortal Iggor Chiacchio

As lágrimas caem dos céus, deixando-se levarem pela janela, paralelas às minhas. Tudo ao meu redor é nostálgico. Vestígios de lembranças. Corro os olhos minuciosamente pela casa. Os momentos vividos me inundam, afogando os mais breves pensamentos até transbordarem-se pelos meus olhos. A recordação de como sua breve ausência doía, impõe-se. A frustração acampava o dia quando o seu tranquilizante riso não nos cumprimentava. Sua dose abundante de alegria imobilizava qualquer elefante de tristeza. Como nos tornamos dependentes de quem é alegre. Uma tosse escapa da minha boca e anuncia a chegada de uma virose. A lembrança de seus ensinamentos de curandeiro é imediata. Aprendi dentre os muitos remédios, o para virose: mel, alho e limão. A extrair da natureza a saúde que essa oferece. Estudando-se a fundo, poderia a farmacologia supor a insuficiência ou ineficácia de alguns medicamentos, mas o elemento principal é invisível às lentes da ciência. Cuidado. Esse tentáculo do amor é a substância mor de qualquer remédio, tratamento ou cura. Quando o amor nos quer bem, nós nos queremos bem também. Sinto-me levemente escorregar e ao olhar para o chão de cera amarela, que quando encerado brilha mais que mina de ouro, resgato a lembrança de quando éramos colocados sobre os seus pés e dançávamos valsas, forrós e boleros na elegância de um ballet russo. A raça humana foi confeccionada sem a dádiva das asas e sofremos todos a frustração decorrente disso, Ícaro que o diga. Contudo, aprendi bailando com meu pai, que com ossos de imaginação e penas de felicidade, voa-se livre como um gavião selvagem. Discordem quantos ornitólogos quiserem, mas 53


só voa quem está feliz. Como os pássaros. Pena pelas tristes galinhas e gratidão pelas baratas infelizes. Dirijo-me ao quintal e sento numa cadeira para fumar um cigarro. O camelo estacionado na parede cospe a lembrança de quando ele regulou em exagero o freio dianteiro da bicicleta e ao testá-lo fui arremessado de joelhos ao chão e por pouco não fui pisado por essa. Meu pai que estava a me olhar correu desesperado ao meu encontro e se sentiu tristemente culpado. Ficou a lição. Por mais que tenhamos a boa intenção de ajudar o outro, nem sempre seremos capazes de fazê-lo ou de estarmos livres do insucesso, das consequências indesejadas e da incompreensão. Avisto, quase que escondida, a churrasqueira enferrujada e aposentada de sua utilidade e rememoro deliciosos domingos. Ela também deve sentir muito a falta dele. Presenciou inúmeras vezes, a pequenina chama do fósforo nascer faminta e com rapidez correr para abocanhar a flor de pão molhada com álcool e prostrada num copo descartável colocado por meu pai. E num processo de crescimento, muito mais ligeiro que o humano, tornar-se adulta e espaçosa para enfim, assar a carne a ser saboreada na tarde do domingo. Tarde, porque, como todos nós sabemos, almoçar cedo aos domingos pode causar morte instantânea. Após a ausência foi que aprendi o significado desses momentos e outros, em que meu pai se alegrava em construir e os quais tinha plena consciência do seu significado. A felicidade habita na simplicidade de tudo o que constitui a vida. É clichê já desbotado, mas é sincero. E por supormos saber é que o óbvio ululante caminha mudo e despercebido. É necessário desprendimento e atenciosa prática para que consigamos extrair a seiva da felicidade que bombeia nas coisas simples. 54


Nesses momentos sentia uma alegria constante e sem razões claras percorrer o ambiente. Não estava na fartura de comida, na ausência de obrigações, na bebida distribuída nos copos nem na maresia dominical. Estava em estarmos juntos, no cozinhar carinhoso para quem ama, nas músicas gostosas que compuseram as trilhas sonoras dessas vivências e que se constituem em instrumento de recordação. Estava e está nos gestos de gentileza e no sentimento prazeroso de estar rodeado de amores e apreciar a existência de suas presenças em nossas vidas. A descoberta é uma loteria, pode ser algo que traga tristeza, alegria ou ambos. Quando ouvi o sussurro da palavra maligno e a reação de meu pai, mesmo com a pouca vivência de uma criança, compreendi o significado. A morte anunciada traz consigo dor constante, mas também aprendizado. A convivência diária com a morte, mesmo que não a sua, ressignifica substancialmente como você encara a vida. Não viemos com prazo de validade e estamos sempre tentando camuflar a nossa fugacidade. Isto não é apologia à morbidez, é viver com sobriedade. Tornei-me a contradição de um fruto de casca ainda verde e interior já amadurecido. Compreendi que não temos controle sobre a nossa morte. Da vida, temos em reduzido. As circunstâncias estão lançadas. Temos a faculdade de interpretá-las, posicionarnos e agir. A condução do barco da vida nas águas do destino será de acordo ao modo como você usa essa faculdade. Há momentos tempestuosos e desoladores. Outros de ensolarada tranquilidade e paz. Saibamos navegar cada momento. A vida toca por reprodução aleatória e ininterrupta, delicie-se. Os aprendizados foram muitos, assim como as dificuldades em continuar a relembrá-los. Ponho bebida em um copo e acendo 55


outro cigarro. As lágrimas continuam a escorrer como se estivessem a recompensar as que eu impedi de nascerem. Tento sair do museu onde as lembranças estão penduradas, mas me é muito difícil, nunca consegui equilibrar os sentimentos antagônicos que a saudade evoca. Seleciono algumas canções (“Ê Meu Pai”, “Retrovisor”, “Marvin”, “Vento no Litoral”, “Gostava Tanto de Você”, “Naquela Mesa”...) e coloco para ouvir. Enquanto a saudade rasga minha alma como uma navalha a escorrer pela pele, tento manter tão somente o sentimento de gratidão de ter amado e ter sido amado por um anjo mortal, que, muito além de um poderoso herói que usa a cueca sobre as calças, cumpriu a difícil missão de ser um exemplo de amor.

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Carta ao avô Pedro Leal

V

ô, Tenho muita coisa pra dizer, mas como ainda não é fácil pra mim, como homem, superar essa vergonha e essas travas de falar de coisas do coração com um outro homem da família, vou escrever algumas coisas aqui pro senhor. Antes de tudo, me sinto na obrigação de agradecer ao senhor por ter ajudado a gerar a minha vida e a do meu pai. Sem você, ele não seria ele e eu não seria eu. Nós estamos e estaremos eternamente conectados através dessa força ancestral que tá entranhada no mais profundo do nosso existir, desde as nossas células, nosso DNA, até o nosso jeito de ser e de lidar com o mundo, com as outras pessoas, com a natureza. Falando em lidar com as pessoas e com a natureza, apesar de nunca ter lhe falado abertamente, o senhor sempre foi e é cada vez mais uma referência pra mim. Atrás dessa casca grossa, que o mundo exige que um homem tenha, existe um Joaci amoroso, doce, cuidadoso, sensível e simples, como eu sempre escuto que também era vovô Biu. Um homem que ama os animais e a natureza até mais do que a si próprio. O seu cuidado com os bichos é outro ensinamento que tento cultivar em mim todos os dias. Os seus filhos não humanos também celebram sua paternidade: Fofinho, Marylou, Rank, Branca, Bob e todos os outros. A simplicidade é talvez a maior beleza e o maior legado que o senhor (e também vovó Raimunda) deixam pra nossa família e que nós, como filhos e netos, temos que cultivar com todo amor. É bonito, apesar de duro, ouvir a história de superação, mais do que isso, de luta por sobrevivência, sua e de seus pais, que como o senhor mesmo conta: “Fugimo da seca e chegamo em Surubim só com a roupa do couro.” E quando a gente ouve essas histórias, não sente lamento, tristeza, o que seria 58


completamente compreensível. Pelo contrário, são histórias felizes e poéticas. Pra mim, o senhor é uma das minhas maiores referências de poesia e de contação de histórias, herança que o senhor deixou pra painho também. Ter mais história do que dinheiro pra contar, tem coisa mais bonita que isso? Sou filho e neto de dois poetas. Quanta honra. Essa origem de pobreza financeira, mas extremamente grande e nobre, faz de você um homem do povo. Essa realidade lhe fez um homem trabalhador, até demais da conta, pra poder dar aos filhos, juntamente com vovó, uma vida menos difícil do que foi a sua na infância. Pra isso, foi furar mundo, com muita coragem. Pra seguir na estrada, teve que ser um pai ausente em muitos momentos, se afastar até emocionalmente da família, mas tenho certeza que com a melhor das intenções e sempre querendo que a felicidade reinasse naquela casa. E eu tenho certeza que seus filhos reconhecem isso. Sinto o amor que todos têm por você e por vovó, que criam essa família da melhor forma que podem. Eu sou extremamente grato por seu legado e o do meu pai pra nossa família. Sinto orgulho de fazer parte dessa linhagem e vou buscar sempre ensinar tudo de positivo que aprendi de vocês. Vocês, juntamente com as mulheres da família, me permitem ser quem eu sou. Honro essa beleza que vocês me presenteiam e me comprometo a tentar romper com o que não serve pra gente enquanto homem. Amor, cuidado, doçura, coragem, poesia, força, simplicidade, respeito… aprendi de vocês e quero compartilhar com o mundo. Um feliz dia dos pais, um beijo e um abraço, com todo o amor do mundo, do neto e filho. 59


Anotações Wladimir Araújo

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Aprender e apreciar João Vale

Em uma cultura onde a ameaça de desqualificação econômica é semelhante a ser devorado de forma violenta por inimigos difusos, os pais perdem o sentido profundo da regulação porque passam a olhar obsessivamente para o desenvolvimento econômico e deixam de compreender que uma janela do céu se abriu na forma de um ser a quem chamam de ‘filho’, ‘filha’. Em outras palavras, passam a achar que pais são apenas sustentadores dos seus filhos e não apreciadores do mistério, da singularidade, da mensagem especial que aquela criança traz para toda uma família. Quando nasce, um filho sempre é a memória de várias gerações mas também é a chance de fazer diferente, é uma brecha, uma oportunidade de contarmos uma nova história sobre a nossa própria infância e sobre os nossos dramas. Vou ouvir as suas apreensões ou vou impor as minhas? Vou ouvir as suas brincadeiras ou vou impor as minhas? Vou aprender a estar com ele ou vou força-lo a estar comigo? Ao encararmos os filhos como ‘fardos’, investimentos ou como seres que devem cumprir desempenhos, estamos afastando o milagre para longe de nós. Estamos perdendo a chance de aprender a, ao admirar aquela vida, renascer. E quando realmente olhamos a beleza desse gesto, podemos pensar que esse aprendizado não pode ser negado a ninguém. Aprender a apreciar pode, também, ser uma forma de revolução.

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Além do herói Jorge Lira

ao menino que fui deram muitos nomes e peles, foi preciso tempo para descobrir com qual feitiço o chamaria para perto de mim. ao menino que fui violaram o corpo e impediram seu choro foi preciso enrijecer e marchar antes de acender a fogueira para descongelar a dança. ao menino que fui impuseram ritos impossíveis, foi preciso correr e retrair para rasgar estatutos, tomar lugar e sustentar presença. ao menino que fui silenciaram a voz, foi preciso reter pássaros até não ter medo de abrir jaulas e gaiolas

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ao menino que fui negaram-lhe o direito de sentir, foi preciso refúgio na palavra e uma cabeça muito grande antes de descobrir o coração. ao menino que fui lanço meu olhar, dou-lhe o mel, e um lugar seguro à expressão de suas sensibilidades, saúdo seu corpo, celebro seu canto. tomo-o pelas mãos. juntos, fazemos um carnaval. o menino que eu fui vive e requebra dentro do homem que eu sou.

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TODAS AS CASAS

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CARTAS AOS PAIS Textos e Arquivos fotográficos Vinícius Andrade Rafael Durand Álvaro Andrade Manish Joubert Arrais Hassan Santos Jorge Lira Iggor Chiacchio Pedro Leal Wladimir Araújo João Vale Desenhos Morgan Leon, pág.: 6, 14, 21, 32 e 63 Nando ZV pág.: 26, 41, 45 e 52 Hassan Santos pág.: 11 e 57 Manuscritos Hassan Santos pág.: Capa e 66 Manish pág.: 22 e 31 Wladimir Araújo pág.: 9, 16, 49, 60, 61, 86 e contracapa Programação Visual Hassan Santos Site cartasaospais.hotglue.me

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