MASSETER SUÍTE HELENO BERNARDI
MASSETER SUÍTE FOTOGRAFIAS
Vista da exposição Masseter Suíte Brasilea Foundation Basel 2006
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Masseter suíte Conjunto de fotografias realizadas a partir de esculturas produzidas com chiclete mastigado que revestem cabeças modeladas em gesso e crânios humanos reais. Os trabalhos apresentam pseudomúsculos de goma de mascar que dão forma a uma anatomia inventada. As esculturas foram destruídas após a realização das fotos. O nome da série se refere a um dos principais músculos responsáveis pela mastigação: Masseter. As fotos têm, como títulos, nomes de outros músculos da cabeça.
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Contrários consoantes Roberto Conduru
Estranho ao mundo da arte (se é que ainda existe algo estranho à arte hoje, seja objeto, tema, prática ou lugar), o chiclete articula as profundezas misteriosas da Terra, o tempo imemorial das sedimentações geológicas, com a voracidade moderna de expropriação e manipulação da natureza, mais a trivialidade dos hábitos culturais na era de massas. Matéria privilegiada por Heleno Bernardi em sua “Masseter Suite”, a goma de mascar permite observar um elemento chave de seu trabalho como artista: o jogo de opostos. São pares, trios e múltiplos em contrariedade na série. Disciplina quase obsessiva versus variedade descompromissada. Uma certa intimidade inerente à prática corriqueira de mascar chiclete em oposição à frieza fotográfica, pretensamente natural, entre as lógicas do arquivo e da propaganda. Corpo representado, moldado, em ação, avariado, residual. Cientificismo e cultura pop. Seriedade + cliché. Tensões materiais tênues contra enquadramentos rígidos. Reflexos gerando opacidade. Borracha sobre plástico, pele ou osso. Associações visuais diretas intrigadas por títulos cifrados. Manobras de sedução x efeitos repulsivos. Retiro autoral em construção de persona artística. Asco colorido; dramaticidade cor-de-rosa. E o problema da jovem decrepitude, tão pertinente nesse inicio de milênio ainda com jeito de fin de siècle. Nas oposições, sobressai o contraste entre pessoalidade e distanciamento. Par quase onipresente no meio artístico atual, subjetivismo e cálculo insinuam-se desde o primeiro instante do trabalho. Mas a subjetividade manifesta-se menos na lembrança ou na figuração corporal do que na estratégia profissional. O projeto aparece mais nas escolhas subjetivas, na matéria e nos procedimentos eleitos, do que na conceituação. Quando se constata quão impessoal é o modo de engajamento do corpo no trabalho e com que naturalidade são acionadas as táticas de inserção e trânsito no circuito de arte, conclui-se que, em vez de se anularem, os confrontos são reiterativos e auto-estimulantes. Contrários consoantes abrindo-se em múltiplas direções.
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Nesse sentido, é um tanto corajosa a decisão de inserir-se no meio de arte com uma exposição aberta e que deixa entrever algumas possibilidades de encaminhamento do trabalho, para além da variedade dos suportes. Heleno Bernardi pode investir em um dos pólos da pesquisa: exacerbando a pessoalidade com a exploração do corpo nos limites das práticas mundanas ou concentrando-se criticamente nas manobras artísticas. E pode radicalizar o confronto: mergulhando na sofrida ironia pop e na reflexividade conceitual, de modo a internalizá-los na vivência do projeto. Mas não deve fechar os caminhos, nem abandonar a produtividade dos conflitos.
Publicado no site www.canalcontemporaneo.art.br 05 de novembro de 2003
Genioglossus Fotografia digital 180 x 120 cm / 2002
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Scapulate I Fotografia / 156 x 120 cm 2004
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Scapulate II Fotografia / 156 x 120 cm 2004
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Scapulate III Fotografia / 156 x 120 cm 2004
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Scapulate IV Fotografia / 156 x 120 cm 2004
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Scapulate V Fotografia / 156 x 120 cm 2004
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Scapulate VI Fotografia / 156 x 120 cm 2004
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Scapulate VII Fotografia / 156 x 120 cm 2004
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Vanitas resplandescente Julia Brodauf
Click. Fotos retêm em si mesmas uma fração de segundo. No entanto, nestas fotos é possível ver o passar do tempo. Sob o calor dos holofotes, a peça “Levator Scapulate” começou a derreter-se, a estirar filamentos e a formar pequenas poças. Note: tudo flui, tudo é perecível. A partir desta observação já entramos no jogo complexo de símbolos e remissões que Heleno Bernardi, com poucos e simples materiais, colocou em cena. Um braço, um busto, um crânio. Um repertório de elementos clássicos da escultura e da pintura. No entanto, é inútil procurar aqui a frieza e a solenidade com as quais esses objetos de museu permitem que o nosso olhar deslize sobre eles, silenciosamente enrijecidos em seu tempo passado. Bernardi revestiu seus guardiães esculturais com a modernidade e esta aderiu-se firmemente a eles. O obstinado material, que nestas fotos tem o papel principal, é a goma de mascar. Chiclete cor-de-rosa, que transporta ao pensamento as lembranças da própria infância de nosso passado artístico. Ao olhar a massa mastigada é como se um aroma sintético de frutas se espalhasse pelo ambiente e, em um instante, lá está ela, a moralizante idéia de carpe diem, que afeta qualquer um de nós. O tempo é realmente fixado neste trabalho. Afinal, todos os chicletes precisam ser longamente mascados antes de serem utilizados. Mas é então que a velocidade entra repentinamente em cena. Com a rapidez com que se traça um esboço, Bernardi modela um busto com as fibras rosa e vermelha, recobre um crânio ou seu próprio braço, de maneira que por um momento pensamos ver músculos,
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tendões, uma vida interior revelada. Porém,em um segundo olhar, nos lembramos muito mais de uma mutação - como a dos monstros criados por HR Giger para o cinema em “Alien” - do que de uma representação analítica de Damien Hirst. Bernardi satisfaz-se com uma insinuação de horror em termos de anatomia e estira como que uma rede ao redor do globo terrestre, por meio da qual o presente, a história e a própria biografia se unem de um jeito casual. Consistente como a goma de mascar, o tempo se distende pelo espaço - é dessa forma que os físicos descrevem a teoria da relatividade. Em linguagem popular, diz-se que os dentes do tempo corroem todas as coisas. Bernardi intitulou suas fotos com os nomes em latim dos músculos da mastigação. Buccinator, Genioglossus e, bastante significativo, Temporalis, um músculo temporal. Os pseudomúsculos de chiclete substituem a verdadeira musculatura de um crânio, por exemplo, que tanto poderia ser um achado arqueológico quanto uma relíquia ou um objeto de cena. “Ser ou não ser”, ressoa prenhe de significado sob a massa gelatinosa, “eis a questão”. Os contemporâneos de Hamlet também são invocados neste plano pelo simbolismo das pinturas, que retratam uma época também intitulada em latim, como as fotos. As naturezasmortas Vanitas estavam muito em voga no séc. XVII. Era nessas pinturas moralizantes que os ricos comerciantes holandeses buscavam conselhos para um estilo de vida moralmente correto. Tudo é “futilidade”, diziam as pinturas, nada tem valor. Ao lado dos crânios e de outros símbolos, alimentos, como por exemplo um limão cortado, servem de ilustração a esta idéia. Bernardi escolheu para seus quadros um alimento que não é tão perecível assim. Cinco anos se passam até que uma goma de mascar que se aderiu ao calça-
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Zygomaticus IV Fotografia / 120 x 120 cm 2002
mento de uma rua se decomponha. Um alimento rebelde, que não se decompõe com facilidade, mas que também não deve ser realmente ingerido. Jovialmente, fazemos com ele uma bola de ar, depois o cuspimos fora. Onde? Muitas vezes o colamos sob o tampo de uma mesa ou debaixo de um banco e lá ele permanece, atrevidamente em oposição a Vanitas. Em português, a palavra “barroco” é usada para nomear uma pérola de superfície irregular e serviu também para dar nome a uma época, que sob toda sua opulência, de uma maneira melancólica, desejava fazer sobressair o essencial. O escultor e arquiteto Aleijadinho ornamentou com suas obras a então província das Minas Gerais, que também é a terra natal de Bernardi. Elementos barrocos, que mostram associações, como prolongamento desses longos fios de chicletes estirados. No entanto, Bernardi, que nasceu em 1967, estudou arquitetura e mais tarde freqüentou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, mora no Rio de Janeiro desde 1985. Após uma pausa de vários anos, “Masseter Suíte” é sua primeira apresentação no cenário das artes. Os crânios parecem ter a dimensão de um metro quadrado. A escuridão, que no séc. XVII atenuava a visão de cavidades oculares vazias e de dentes viscosos, e ao mesmo tempo acentuava a lugubridade do tema, foi substituída pela cuidadosa iluminação de um estúdio fotográfico. Nós estamos no ano de 2004, na era das mídias de massa e da resplandecência. Bernardi sintetiza a vida e a existência em um fenômeno estético, que elimina as barreiras de tempo e lugar, no momento em que inclui as reminiscências histórico-culturais em sua superfície pegajosa. Com um estalar de dedos, Bernardi salvou objetos perecíveis da ação do tempo quando os fotografou.
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Click. Vanitas e resplandecência, um tema que na literatura sobre a mídia, como no romance “$29,99”, de Frédéric Beigbeder (em francês, “99 Francs”), ou em “Psicopata Americano”, de Bret Easton Ellis, é comentado de forma angustiante. Uma goma de mascar estira fios até o moderno Holden Caulfield. De fato? A caveira de Bernardi é assustadora em sua dimensão, mas não chega a ser aterrorizante. As caveiras sempre ostentam um sorriso, e a desta foto também sorri, bemhumorada em seus tons de rosa. Ao seu lado será colocado um braço envolvido em uma luva de goma de mascar. Uma outra foto mostra a intensidade da vida, na força com que o chiclete é estirado. Não existe um mergulho melancólico na contemplação do tempo e da efemeridade. Bernardi associa a morte ao crescimento, e até mesmo ao viço, ao químico e ao indestrutível. Entretanto, a morte permanece, mascada, úmida e fibrosa: repugnante, mas de uma forma infantil e fascinante, que é muito engraçada. Se Hamlet houvesse segurado um crânio de goma de mascar, haveria uma pegajosa comédia no palco. Com sua onipresença global, o chiclete também é um elemento subversivo, que com o ruído que fazemos ao mascá-lo opõe-se a todas as normas da boa educação. Ao escolher este material para a sua obra, Bernardi escarnece eficazmente da vida e da arte.
Publicado no folder da exposição Masseter Suíte / Galeria Theodor Lindner Rio de Janeiro / 2004 Tradução: Márcia Neumann
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Thyreohyoideus I Fotografia / 76 x 180 cm 2004 Thyreohyoideus II Fotografia / 76 X 180 cm 2004
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Temporalis Fotografia / 120 x 120 cm 2002
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Levator Scapulate Fotografia digital / 120 x 156 cm 2002
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Vista da exposição Masseter Suíte Galerie Alain Couturier Nice 2005
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Masseter Suíte Parte integrante da caixa ÍNDEX H2O Ação e Arte 2016
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