TRUQUES DE AUTOR HELENO BERNARDI
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TRUQUES DE AUTOR LIVRO
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Livro Truques de Autor Editora Circuito 2011
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Truques de Autor 7 projetos de intervenções urbanas narrados através de textos com estrutura de romance. A história que une os projetos apresentados constitui o trabalho site specific. Arte da Fuga Sonata em Si Concerto para Contêineres Magma Ceci N’est Pas Porra Nenhuma Verso Anverso Enquanto Falo, As Horas Passam
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Truques de Autor Renato Rezende A pesquisa de novos e indeterminados campos para a arte e o pensamento, ampliando, por exemplo, as zonas de contato e comércio entre imagem e escritura, frequentemente gerando obras de intensa voltagem e estimulante imprecisão, é uma das marcas reveladoras do contemporâneo, e também uma das principais chaves de leitura da obra de Heleno Bernardi, caracterizada sempre pela sofisticada economia de elementos e pela inteligência. Se este jogo de espelhamentos entre poesia/filosofia, imagem e matéria é explorado por Heleno em algumas de suas obras mais importantes, como Apology of Socrates (2005), a série Memento Mori (2006) e Enquanto falo as horas passam (2009) em ações fotográficas, performáticas e de intervenção urbana, que se inscrevem mais comumente no campo das artes visuais, em Truques de autor o artista ativa sua afiada capacidade de dissolver gêneros e elaborar novos sentidos tendo como ponto de partida a palavra e seu suporte canônico, o livro. Em seu nível narrativo, Truques de autor, tendo como pano de fundo o cenário do Rio de Janeiro no início deste novo milênio, é uma misteriosa história de amor (e sexo), com certo ritmo cinematográfico, entre personagens que vivem imersos na trama de uma vida urbana contemporânea marcada por referências culturais, e que por ela são constituídos, como se essa trama fosse uma espécie de segunda natureza. O site specific literário e imaginário (e, portanto, paradoxal e crítico) de Heleno Bernardi é um caldeirão de ideias com influências tão diversas como a land art, a música eletrônica e experimental, as linguagens da publicidade e da fotografia, o flaneurismo de João do Rio e o delírio lírico do profeta Gentileza. Em um outro nível, no entanto, Truques de autor é um livro-proposta de instalações e intervenções urbanas; um livro-projeto que se constitui, ele mesmo, como um trabalho acabado. Truques de autor apresenta-se, portanto, como um romance site specific, uma obra construída no espaço literário entre as propostas
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de projeto de instalações e intervenções urbanas, estas sim pensadas por Heleno Bernardi ao longo de uma década para espaços reais da cidade do Rio de Janeiro, sendo que algumas delas foram de fato realizadas com alguma variação. Se para Heleno as intervenções materiais devem ser dissolvidas no entorno da cidade, enfraquecendo as fronteiras entre arquitetura/mobiliário urbano e arte, em Truques de autor os projetos dissolvem-se na narrativa, como situações incidentais do romance. Desta forma, o título da obra é especialmente significativo porque funciona como uma piscadela do autor, com uma pista para suas intenções: para Heleno Bernardi arte é truque, estratagema, estratégia; não no sentido de artifício, mas, pelo contrário, no sentido daquilo que revela e desmascara o artifício, aquilo que abala as ideias pré-estabelecidas, que transgride e transforma. No trabalho de Heleno há sempre um deslocamento de sentidos. Das ruas, Truques de autor passa agora para o espaço literário, e em breve estará no espaço dito virtual da internet, em forma de plataforma interativa, sempre angariando novos sentidos, desdobrando leituras e revelando linguagens.
Publicado originalmente na apresentação do livro Truques de Autor
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ARTE DA FUGA De andar em andar foi constatando que aquele prédio estava meio abandonado. Era um prédio misto, comercial e residencial. Mas parecia que ninguém mais morava ou trabalhava ali. De vez em quando ouvia um ruído ou outro, muito estranho, mas não dava para identificar de onde vinha ou do que se tratava. Procurou descer rapidinho, tão rápido que quase podia ver o rastro de seu corpo pelo vão da escada e aquilo foi dando certa tontura. No quinto andar ouviu um piano. Mas não era exatamente música, eram notas soltas, confusas. Às vezes parecia que havia mais de um piano sendo tocado. Os acordes também não tinham um ritmo compreensível para sua sensibilidade musical. Num momento ouvia uma série de notas emboladas. Em outro, notas isoladas, com silêncio entre elas. Não dava nem pra dizer que era dodecafônico. À medida que descia mais e mais degraus, o som do piano ia ficando mais e mais alto e amedrontador. Começou a ouvir alguns gritos e sons de respiração ofegante. Sentiu-se desprotegido como se estivesse nu, descendo a escada num clipe macabro do Cunningham. Instintivamente, começou a correr escada abaixo, pulando às vezes 3, 4 degraus. Como dizia um velho amigo de seu pai: em certas situações, em vez de ter presença de espírito é melhor ter ausência de corpo. Do terceiro para o segundo andar não havia luz, o que tornou a situação ainda mais sinistra. A escadaria terminava no corredor e era preciso andar alguns metros para continuar descendo. Já no segundo andar, percebeu que os sons vinham de uma sala atrás de uma porta velha de madeira, com uma janela de vidro no centro. Pelo vidro percebeu movimentos na sala, mas não conseguiu ver direito porque era vidro canelado e estava embaçado, mas a porta tinha um buraco de fechadura escangalhado e superconvidativo. João Hélice hesitou, hesitou, mas não resistiu e abaixou-se para espiar, e viu uma cena que o deixou completamente tonto, mesmo sem entender bem como acontecia. Era uma situação que explicava e confundia ao mesmo tempo o que ele estava ouvindo desde o quinto andar. O seguinte: a sala era bem grande, do tamanho dessas de colégios antigos, com janelões de madeira até o chão e ventiladores no teto. Umas lâmpadas fluorescentes que
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piscavam muito, e davam vertigem. João Hélice estava ali abaixado, olhando meio nervoso com medo de ser pego, e pelo buraco da fechadura não conseguia ver todos os detalhes. Mas, lá no meio da sala viu dois lutadores praticando judô. Quer dizer, assim rapidamente, parecia judô. Chamou sua atenção que um deles tinha o quimono preto. O outro quimono era branco mesmo. Os dois homens eram grandes, mas lutavam com agilidade. Chegou a ver um golpe que levou o de quimono branco ao chão com bastante violência. Nesse instante o lutador soltou um grito primal, típico das artes marciais. E junto com o grito, João Hélice ouviu um som estrondoso de piano. Desses que fazem tudo tremer como se a gente estivesse por trás de uma câmera de vídeo no meio de um terremoto. A visão foi muito rápida, um outro cara apareceu dentro da sala, vinha em direção à porta. João Hélice se afastou rapidamente para não ser descoberto espiando. Nada disso teria causado conflito se não fosse o tatame da sala, que ele só percebeu quando desgrudava o olho do buraco da fechadura: ele era formado por teclas de piano. Brancas e pretas, intercaladas. Decerto por isso, quando o lutador foi ao chão, ouviu o acorde de trovão. Aquilo era no mínimo curioso, mas João Hélice não teve tempo de olhar novamente, a criatura se aproximava da porta. Só conseguiu sair correndo, abaixado mesmo, com aquela imagem na cabeça. E enquanto descia os dois últimos lances de escada ouviu outros sons de piano, ainda mais fortes, misturados com bufadas assustadoras. Era uma sinfonia fantástica para uma luta, ou melhor, fantasmagórica.
Capítulo extraído do livro Truques de Autor
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SONATA EM SI Ela andou depressa para chegar à estação das barcas antes da chuva. Foi botar o pé na estação, que o mundo desabou lá fora. Apesar de não ser nem meio-dia, parecia noite. Estava morrendo de fome, mas nem deu tempo de comprar nada para comer. Entrou direto numa dessas embarcações de ferro, enormes, com fileiras de cadeiras de madeira como as de cinema antigo. Era bem grande e haviam poucas pessoas. talvez pela chuva, talvez por não ser horário de pico. Sentou-se do lado de uma janela, com moldura de madeira. Sentiu-se acolhida, mesmo com o repentino frio e a fome. Começou a ler um manual sobre como montar uma mulher-bomba. Se perdeu naquele terrorismo emocional e cochilou. De repente se tocou que a viagem estava demorando demais. Olhou pela janela e não reconheceu a paisagem. “Ué, pra onde a barca tá indo?”, pensou. Mas a barca nem estava indo, estava parada, ou pior, estava à deriva. Ficou olhando pela janela tentando reconhecer onde estava exatamente. Havia muita chuva, vento forte e neblina. Levantou-se e andou até a proa. Com a névoa, mal dava para ver os altos guindastes do porto. A barca apenas subia e descia com as ondas e algumas espumas flutuantes. Não havia ninguém naproa, só ela. Ficou parada observando a paisagem que se tornava mais ou menos clara de acordo com as lufadas de vento na neblina. Pelo sistema de som podia ouvir uma música clássica em bom volume. Mas alguns ruídos e falhas na transmissão, somados ao som da chuva, das ondas e ao próprio ranger da embarcação tornavam a música mais estranha. Algum burburinho da tripulação em torno da situação, o som de uma e outra gaivota que voava acompanhando os marinheiros e uma corrente de ferro que se arrastava pra lá e pra cá sobre o convés ajudavam a dar um sotaque contemporâneo à melodia de orquestra. Fixou os olhos no horizonte e começou a perceber os guindastes atrás da bruma. Eram uns 30 ou 40. Eles se moviam lentamente. Parecia que cada um tinha seu próprio movimento, apesar de iguais. Mas logo percebeu que estavam se movendo de forma ordenada, com os braços mecânicos se articulando pra cima e pra baixo. Ela se deixou levar totalmente por eles e teve a clara sensação de que tudo tinha sido orquestrado: a música clássica com interferências
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casuais, a barca à deriva, numa distância que permitia a contemplação total do porto, mas sem estar muito perto para que pequenos detalhes não comprometessem a apreciação de uma encenação perfeita. Os guindastes, permeados pela bruma, pareciam leves e graciosos. Femininos até. Não se podia ver direito a cabine de cada um deles e muito menos os operários que certamente estavam lá dentro comandando seus movimentos. De forma que tudo parecia autômato. Em um momento, os guindastes se afastaram mais uns dos outros. Os braços articulados ganharam ângulos retos em relação ao tronco e começaram a girar suavemente sobre seus próprios eixos. Deram inúmeras voltas, em velocidade baixa e constante. A música entrou num movimento circular se repetindo e se transformando progressivamente, em harmonia total com a maquinaria. A moça da cesta de feira ouviu um grito vindo lá de trás. Virou-se e avistou no alto da embarcação um marinheiro com uma longa capa de chuva escura, silhuetada contra o céu nublado, mantendo o equilíbrio sobre as pernas abertas e firmes no topo da cabine de comando, gesticulando, nem rápido nem lento, com o olhar fixo no horizonte. Em suas mãos uma lanterna que mais parecia um farol portátil, com o feixe de luz cortando a neblina em direção ao continente. Voltou-se novamente para os guindastes, e pode vê-los agora numa velocidade maior se aproximando uns dos outros. Compreendeu aquilo como se obedecessem aos gestos do marinheiro. A névoa se moveu, ocultando os guindastes, e revelando um barco-resgate se aproximando, orientado pela sinaleira do marujo. Os aplausos, gritos e assovios só vieram um pouco depois, quando a barca finalmente religou seus motores e tomou sua direção, agora com ventos mais calmos. Era o fim de um espetáculo minuciosamente coreografado.
Capítulo extraído do livro Truques de Autor
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CONCERTO PARA CONTÊINERES No final do corredor deram de cara com um pátio de dimensões incalculáveis. Era de concreto bruto, muito claro, por pouco não era branco, e refletia o sol quase cegando-os. Com as ondas de calor, a paisagem tremulava como uma miragem no chapadão das Gerais. Se sentiram estranhos numa terra estranha. Deixaram as bicicletas no chão. Bem a frente deles, em linha reta com o corredor por onde tinham passado, havia um único contêiner. Todo enferrujado. João Hélice ficou um pouco decepcionado. Por cemitério de contêineres, imaginava encontrar dezenas ou centenas deles, abandonados como num ferro velho. Ou quem sabe melhor, amontoados uns por cima dos outros como corpos num campo de batalha. Mas, nada. Tinha um só. O Rafa ainda falou que da última vez tinha um monte deles espalhados por ali. Vai ver, venderam a velharia de vez. Ainda assim, aquele único contêiner impressionou bastante o João Hélice. Foi caminhando lentamente, na direção exata do bichão de ferro. Rafa deitou-se no chão com os braços abertos e ficou olhando o céu. João Hélice sentiu-se abduzido. Não era preciso ser especialista em logística para sacar que havia algo de muito estranho ali. Já tinha visto muitos daqueles na vida, passando de carro pelo porto, em fotografias, em filmes. Tudo bem que geralmente eram coloridos, azuis, vermelhos, amarelos e até brancos. Mas não era o fato daquele estar enferrujado que causou estranhamento. Devia estar ali há anos. A diferença é que aquele tijolão de aço estava na vertical, em pé, como uma torre. Um colosso impávido, teria pensado. Caminhando lentamente, chegou próximo dele e ficou parado na sua sombra. Olhou para cima constatando sua altura pela distorção da perspectiva em direção às nuvens. Colocou as mãos no bolso e ficou sem reação diante daquela grandiosidade. A mão direita encontrou a peça de dominó. Girou-a para um lado, para o outro, passou-a entre os dedos mas não tirou a mão do bolso. Se sentia como diante de uma esfinge e se perguntou: “Quem o teria colocado nesta posição? Para quê?”. O vento zunia em seus ouvidos trazendo também o cheiro de ferro castigado pela maresia. Praticamente podia sentir o gosto na língua e a aspereza nos dentes. O longo caminho de bicicleta sob sol forte e ácido tinha aguçado seus
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sentidos. Notou um som vindo de longe. Muito baixo, a princípio, mas muito grave e metálico. Um som repetitivo, cadenciado, mecânico, que foi aumentando assustadoramente de volume como se uma manada de mamutes se aproximasse. Sentiu uma trepidação no chão e uma vibração no ar que passaram para seu próprio corpo, lembrando a sensação de estar na linha de frente de um paredão de som de baile funk. Incluindo o batidão ensurdecedor. Teve o pressentimento de que aquele contêiner iria tombar por cima dele. Instintivamente estendeu o braço esquerdo e colocou a palma da mão com decisão sobre a parede de ferro quente. Neste exato instante tudo cessou: a vibração, o som grave, o vento. Não sentiu mais o calor, não sentiu mais o chão nem o ar. Não viu mais nada. Geral branco. Não ouviu sua respiração, absolutamente mais nada, a não ser a própria circulação de seu sangue. Apenas pensou: “tô dominado”. Resolveu contar até dez segundos para tomar alguma atitude. Perdeu a conta, ou a coragem, e chegou a 4 minutos e 33 segundos, quando finalmente sentiu-se um pouco mais tranquilo. Tirou a mão lentamente e tudo começou a voltar: o ventar, o ver e o pesar. Moveu-se com a intenção de sair da área de risco. Ao se afastar um pouco e olhar para um dos lados do bichão de ferro, foi atropelado pela imagem de um sem número de contêineres, iguais, formando uma fila indiana atrás do primeiro. Era como a formação de um exército, perfeitamente alinhados. Eles praticamente sumiam no horizonte daquele pátio. Se deslocou um pouco mais e veio o arrebatamento: só aquele primeiro contêiner estava em pé. O segundo da fila estava ligeiramente inclinado e se apoiava pesadamente sobre ele. O terceiro estava um pouco mais tombado e se debruçava sobre o segundo. O quarto, mais caído um pouco, pendia sobre o terceiro. E assim por diante, havia centenas deles, um escorado sobre o outro, até o último, que mal dava para ver e estava praticamente no chão. Não conseguiu sequer piscar os olhos na tentativa de conferir a verdade do que via. Não teve dúvidas: — O tempo parou. Bem na hora certa. João Hélice saiu correndo antes que voltasse a ouvir o tic-tac do relógio e a última peça da cascata de dominós gigantes desabasse sobre sua cabeça.
Capítulo extraído do livro Truques de Autor
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MAGMA Entrando mais pelo meio das pessoas, acabou descobrindo o que houve: a explosão de uma tubulação de gás do depósito de material da escola de samba. O sobrado que guardava não sei quantas toneladas de purpurina virou só escombro. A purpurina foi pelos ares e caiu lentamente feito chuva rala. O que restou da casinha era uma montanha de tijolos, vigas, pedaços de parede, de ferro, móveis e outros objetos que não dava para identificar direito. Uma avalanche em camadas, agora congelada, que deixava ver a brutalidade do acidente na aleatória combinação de elementos e objetos da casa: um pedaço de pia sobre uma cadeira, um vaso sanitário quebrado junto de um rádio de pilha e um capacho, um garrafão de plástico, uma bíblia e um pé de sapato. Tudo fortuitamente coberto por camadas de purpurina dourada. Plasticidade barroca sobre ruína moderna. O brilho fragmentado do pó ainda conferia uma leveza impensada aos restos grosseiros da construção. A impressão era, ironicamente, de uma grande alegoria que ao mesmo tempo que revelava a simplicidade daquele espaço, também transformava em tesouro qualquer aspecto de banalidade que ainda pudesse resistir. Aquelas camadas de purpurina eram, de certa forma, o magma que surpreende e solidifica os últimos momentos de vida dos habitantes no entorno de um vulcão em erupção. Apesar da explosão, fogo mesmo quase não tinha. Só um pouquinho lá no alto, o suficiente para iluminar aquela cena trágica fazendo a purpurina cintilar. Os bombeiros nem tinham chegado mas algumas pessoas entraram no entulho brilhante para ver se encontravam alguém ali no meio e resgatar. Pelo que se sabia, havia 3 pessoas lá dentro no momento. Uma foi jogada longe mas por sorte estava razoavelmente bem. Logo gritaram que tinham achado alguém. Removeram uns tijolos que estavam por cima e tiraram ela dali. Estava morta. Colocaram a pessoa no chão. João Hélice se infiltrou um pouco mais para poder ver. Não conseguiu distinguir se era homem ou mulher, porque o corpo estava completamente coberto pela purpurina. Parecia uma estátua de ouro tombada no chão. Ficou olhando o nariz do morto pra ver se se mexia, se ainda respirava. Quem não soubesse da história poderia jurar que uma igreja tinha desabado e que ali se encontrava uma imagem de um santo esculpida com
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precisão. Olhou mais fixamente e percebeu que sob aquele anjo de pedra a purpurina parecia se mover. Prestou mais atenção e logo viu uma poça de sangue surgir carregando uma camada flutuante do pó brilhante como um rio que corre poluído. Tudo muito lento e viscoso. Os bombeiros chegaram e pediram para que todos saíssem. Isolaram o lugar com fitas amarelas e pretas. Por uns minutos, João Hélice pôde olhar a montanha de destroços, o corpo no chão e seu brilho mórbido. Ficou ali parado, como um devoto do santo morto, sem saber o que fazer.
Capítulo extraído do livro Truques de Autor
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CECI N’EST PAS PORRA NENHUMA Subiu cada um dos vinte andares parando nos corredores, para tomar fôlego e também para tentar entender como podia um prediozão daqueles estar ali abandonado, na frente do Aterro. Talvez a resposta estivesse no próprio nome da localidade: Morro da Viúva. Viúva de quem? E só porque o morro era “viúva” não tinha mais o direito de ver o mar? As ruas em volta sufocaram esta montanha escondendo-a da geografia da cidade. Quem sabe um dia não demoliriam o prédio só para deixar o morro respirar e voltar a ver o mar? Não parecia má ideia. Era melhor do que transformá-lo em hotel de luxo só para aproveitar a vista. Finalmente chegou ao terraço. Com o calor e a luminosidade lá de cima, aquela palmeira mais parecia um relógio de sol, sozinha no meio do nada. Foi andando até o limite da laje. Não tinha mureta, nem grade. Depois do cimentado já vinha o abismo. João Hélice chegou bem na beirinha. Aquilo dava uma puta vertigem. Afastou-se. Olhou a paisagem e tudo pareceu perfeito demais: as formas das pedras, as proporções, as cores da mata, o reflexo na água, até o bondinho parecia que fazia parte da natureza. Nestas horas tendia a acreditar em Deus. Começou a devanear que tudo não passava de um cenário montado, algo artificial. Bem em frente, a pedra imensa do Pão de Açúcar avançando sobre o mar. Uma coisa colossal. Mas, pelo ângulo em que estava e pela luz que rolava naquele momento, ela parecia sem volume, chapada. Dava a impressão mesmo de ser uma grande parede, plana, no formato da pedra. Como se fosse um tapumezão. Ficou imaginando que teria até umas estruturas por trás para sustentar, como um outdoor. No mar, pequenas embarcações à vela cruzavam a baía pra lá e pra cá. Um dia, pensou, com um grande temporal, aquele tapume de 400 metros de altura iria desabar sobre a água, sobre os barcos, sobre tudo, rangendo suas estruturas de ferro antes de bater na água e causar um tsunami que inundaria a cidade. Tinha certeza que a pedra não passava de uma farsa. Um background perfeito para os gringos fazerem fotos.
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Capítulo extraído do livro Truques de Autor
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VERSO ANVERSO Olhou a biblioteca inteira primeiro, observando que tipo de estantes e prateleiras tinha. Eram todas iguais, destas de madeira escura. A biblioteca tinha 5 andares de estantes em torno do vão central, como balcões de um teatro. E cada estante ia do piso ao teto de cada andar. Tentou organizar o pensamento para fazer as contas: Em cada andar tem 30 estantes. Vezes 5 andares = 150 estantes. Cada estante tem umas 10 prateleiras. Vezes 150 estantes = 1.500 prateleiras. Cada prateleira, de cerca de 2 metros de extensão devia ter uns 100 livros. Vezes 1.500 prateleiras = 150.000 livros. Se levasse 10 segundos para tirar cada livro da estante e olhar levaria: 10 x 150.000 = 1.500.000 segundos. Divididos por 3600 segundos (que é o que tem de segundos em 1 hora), dava umas 400 horas. Dividindo 400 horas por 24, ia dar uns 16 dias. Caramba, ele não poderia ficar 8 dias, 24 horas por dia, revirando livros na estante. Talvez pudesse chamar 16 amigos para a empreitada e tudo ficaria resolvido em único dia. Agora, o difícil ia ser encontrar 16 amigos dispostos a ficar um dia inteiro virando livro velho de biblioteca. A troco do quê? De uma charada? De um amor? Assim mesmo, ele teria de dar uma olhada geral em tudo para ver se não tinha escapado nada. Então seria melhor primeiro colocar todos os livros com a lombada invertida na estante. Depois, olhar tudo, livro por livro, até encontrar o nome dela e só então desvirar cada um deles. Precisaria assim do dobro do tempo. Para fazer isso, só mesmo num fim de semana, quando a biblioteca não abria. E se fosse permitido. Coisa improvável. Talvez os 16 tivessem que entrar clandestinamente, ou entrar numa 6ª feira e se esconderem para fazer o trabalho na madrugada. Mas onde esconder 8 pessoas dos funcionários e dos seguranças? Bem, este era um problema para depois. Olhou novamente para a biblioteca como um todo e enxergou a situação: todos os livros de todas as prateleiras, de todas as estantes, de todos os andares, de toda a biblioteca virados ao contrário. Uma trabalheira bizarra. Mas achou aquilo poético. A biblioteca toda com uma cor uniforme, cor de papel antigo, amarelado. Depois, pensou que todos os títulos e autores seriam anulados, já
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que não daria para distinguir um livro do outro. Aquela montanha de conhecimento aniquilada num simples gesto, por um único nome. Tinha algo de subversivo naquela imagem. Ela voltou do banheiro e João Hélice, para evitar blablaísmos, resolveu simplificar para ela o que tinha imaginado fazer. E desembuchou: — Vou virar a biblioteca inteira do avesso. Ela olhou desconfiada para ele, olhou para o alto, girou seu corpo mirando as estantes e soltou em tom de deboche: — Que fuerte! Não sem se redimir, pensando: “all is full of love”.
Capítulo extraído do livro Truques de Autor
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ENQUANTO FALO, AS HORAS PASSAM No dia seguinte, depois de uma manhã monótona e prolongada, João Hélice partiu para a Cinelândia. Resolveu ir de bicicleta, já que não era muito longe. Era pegar a ciclovia e pronto. Chegou lá em meia hora, se tanto. Para sua surpresa, a praça estava lotada. Não entendeu direito, mas parecia haver uma grande manifestação. Eram milhares de pessoas numa movimentação tranquila, andando para todos os lados, sem direção. A aglomeração tomava a praça, as ruas que a cercavam e as laterais. Olhou por cima e para os lados, procurando alguma referência que explicasse aquela movimentação. Alguma faixa, um palanque, uma estátua de algum santo. Nada. Quis perguntar para alguém mas as pessoas estavam todas meio aéreas, gente deitada no chão, gente cantando de forma anárquica e ninguém lhe dava atenção. Era a própria liberdade guiando o povo. Foi penetrando com dificuldade naquela massa, andando e empurrando sua bicicleta, na direção do chafariz da praça. Se não fossem os jatos de água no ar, também não conseguiria saber onde diabos tinha se escondido a fonte. Olhando para cima, tentando enxergar além das pessoas à sua frente, João Hélice sentiu que sua bicicleta empacou em alguma coisa. Foi uma parada macia, como se estivesse atolada no barro. Olhou para baixo e viu que a roda da bicicleta tinha se enroscado num colchão. Levantou a roda para desviar-se do objeto e notou que era um colchão diferente, não era retangular. Tinha alguma forma própria. Ali no meio do tumulto não deu para ver direito. Logo a frente, tinha outro colchão, igual aquele. E outro e mais outro. E outro ainda por cima daqueles. Algumas pessoas estavam deitadas sobre eles. Uma delas levantou um dos colchões acima da cabeça, como um troféu e então foi possível ver do que se tratava. Eram colchões com a forma de uma pessoa. Como uma silhueta. Mas uma silhueta de uma pessoa deitada, como em posição fetal. Tinha um recorte bastante geométrico, parecendo um pictograma em três dimensões. Era mesmo como um colchão, só que feito neste formato de uma pessoa deitada, dormindo, com a mão debaixo da cabeça. Uma forma tarsilínea. Foi notando que a medida em que tentava se aproximar da fonte, mais colchões estavam ali, no chão, amontoados, encaixados uns por cima dos outros. Eram milhares
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deles. A bicicleta já não rodava mais pelo chão. Ia se arrastando pesadamente sobre as espumas como se fosse uma jangada de pedra. João Hélice teve, por fim, de carregá-la nos braços para poder continuar andando e tentando transpor a multidão. Finalmente conseguiu chegar no chafariz. De noite, certamente haveria luzes colorindo os jatos de água. Pois até o laguinho da fonte estava tomado pelos colchões em forma de gente, alguns boiando sobre o espelho d’água e outros submersos, afogados. João Hélice procurou um ponto mais alto, onde pudesse ficar em pé e avistar sua bonita. Deixou sua bicicleta sobre alguns dos corpos macios e levou a mão sobre os olhos, fazendo um pouco de sombra para tentar enxergar melhor. Olhou para um lado, para outro e nada. Circundou com dificuldade a fonte, se equilibrando na mureta que represava a água para procurar do lado oposto. Nada. Acenou com a mão no ar. Quem sabe se ela, no meio da confusão não estava tentando localizá-lo da mesma forma. Pegou um dos colchões e levantou acima da cabeça, repetindo o mesmo movimento de aceno, numa tentativa de comunicação primitiva. Nada. Pensou em gritar o nome dela, mas qual deles? Certamente ela não reconheceria nenhum. Então teve a grande sacada de gritar seu próprio nome. Ela, se o ouvisse, o identificaria e, sem dúvida, responderia. Soltou a voz: — Hélice! Hélice! Hélice! Parou para ver se vinha alguma resposta. Nada. No meio de tanta gente, pensou: “será que ela está bem do meu lado e eu não estou vendo?”. Olhou ao seu redor, ficou na ponta dos pés e voltou-se para a fonte luminosa. Só falta ela estar dando um mergulho junto com os bonecos. Olhou para aquela piscina escura, com alguns corpos dentro, tentando descobrir ali a sua sereia. Nada. Viu apenas seu próprio reflexo no espelho d’água. Nesta confusão, já tinham se passado uns 45 minutos do horário combinado. Caramba, será que ela estava na mesma situação? Será que ela cansou de esperar e foi embora? Será que ela nem veio e deu mais um bolo? Desceu da fonte e continuou sua peregrinação entre os colchões, que pareciam se multiplicar infinitamente.
Capítulo extraído do livro Truques de Autor
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TRUQUES DE AUTOR - Um Romance Site Specific foi publicado pela Editora Circuito em 2011 Coordenação editorial: Fernanda de Mello Gentil Apresentação: Renato Rezende Revisão: Heyk Pimenta Projeto gráfico e diagramação: Rafael Bucker Capa: Heleno Bernardi ISBN 978-85-64022-12-6
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Truques de Autor Parte integrante da caixa ÍNDEX H2O Ação e Arte 2016
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